A Aula Miitar do Funchal e o sargento-mor Francisco de Alincourt 1768 - Nov 2012.pdf

May 31, 2017 | Autor: Rui Carita | Categoria: Architecture, Ensino De Ciências
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XXI COLÓQUIO DE HISTÓRIA MILITAR Lisboa, 13, 14, 15 e 16 de Novembro de 2012 “NOS 250 ANOS DA CHEGADA DO CONDE DE LIPPE A PORTUGAL: NECESSIDADE, REFORMAS E CONSEQUÊNCIAS DA PRESENÇA DE MILITARES ESTRANGEIROS NO EXÉRCITO PORTUGUÊS ”.

A Aula Militar ou Escola de Fortificação do Funchal: As aulas regimentais da Madeira e o sargento-mor Francisco de Alincourt, 1768. Rui Carita Professor da Universidade da Madeira

A Madeira no quadro da restruturação militar do conde de Lippe A ilha da Madeira representou sempre um especial ponto de apoio a toda a navegação do Atlântico Norte, enquanto a mesma se processou à vela. O seu papel, no entanto, foi limitado no quadro das Guerras Europeias do início da segunda metade do século XVIII, onde se confrontaram, essencialmente, as velhas potências continentais, mas o que projetou a Inglaterra para potência marítima indiscutível. As reformas então implantadas em Portugal pelo conde de Lippe, no entanto, não deixaram de se estender às ilhas atlânticas. Nestes meados do século tinha evoluído a chamada Guerra dos 7 Anos, 1756 a 1763, conseguindo a Áustria fazer novamente aclamar como rei de Espanha, Carlos III, em 1759, e envolvendo-se Portugal num grave conflito com a Santa Sé, expulsando-se de Lisboa o núncio apostólico e cortando-se relações diplomáticas com Roma 1. Neste quadro, as coroas europeias com elementos da família Bourbon, assinam em 1761 o Pacto de Família, invadindo a Espanha, no ano seguinte, Portugal. Para fazer face à declaração formal de guerra que se fizera à Espanha e à França, Portugal chamou a Lisboa o conde de Lippe. O conde chegou em 1762, acompanhado por vários oficiais ingleses e alemães, e 2 batalhões suíços. Reorganizou então o exército português, começando por criar logo em 1762, o Estado-Maior do Exército, à frente do qual colocou o brigadeiro inglês Crawford e fez publicar as "Ordenanças", para uniformização da doutrina tática. Estas ações conseguiram minimizar as consequências do conflito, conseguindo Portugal assinar com a Espanha o tratado de paz de Paris, no seguinte ano de 1763, que pôs fim à Guerra Fantástica. A partir de 1764 publicava-se em Portugal o plano de uniformes, o regulamento para o exercício e a 1

Instituto dos Arquivos Nacionais /Torre do Tombo, Ministério do Reino, Lº 974, fls. 90 v a 91 v. Proibição de entrada de fazendas da corte de Roma e terras do Papa. Carta de Lisboa, 21 Ago. 1760, com cópia de decreto de expulsão dos vassalos do papa dos reinos de Portugal, de 5 Jul. 1728. Funchal, 9 Out. 1760.

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disciplina, e fazia entrar em vigor a jurisdição castrense, apenas em relação a delitos específicos da disciplina militar. Na Madeira, entretanto tinha sido colocado à frente dos destinos militares da Ilha o governador José Correia de Sá 2, que, entre outros assuntos, ocupou a sua vigência de governo com o cerco e expulsão dos jesuítas do Funchal. No entanto, outros assuntos o preocuparam, como o pagamento aos seus ajudantes de ordens, que se arrastava desde o anterior governador, Manuel de Saldanha de Albuquerque e que voltou a pressionar 3, assim como a reformulação da companhia do presídio, ou seja a companhia paga de São Lourenço. A companhia encontrava-se então com cerca de 100 praças, entendendo o governador ser o efetivo mínimo necessário para a guarnição da Ilha, as 200 praças4. Com o conflito da Guerra dos 7 Anos alargado a todo o Atlântico, ocorreram igualmente problemas com navios corsários no porto do Funchal, que o governador tentou, dentro das suas limitadas possibilidades, resolver. As primeiras questões ocorreram com o bergantim francês do capitão Seaux, em março de 1762, acossado por um navio de guerra inglês e que se refugiou no Funchal, requerendo a proteção portuguesa. Em julho, logo que divulgada a declaração oficial de guerra, o bergantim francês fugia do porto, deixando em terra armamento, munições e até 18 homens da guarnição, todos de várias nacionalidades, que embarcaram depois noutros navios, salvo dois portugueses e dois pretos, que ficaram no Funchal. Entretanto, igualmente tinha partido a fragata inglesa, que ali o detinha, recolhendo ao porto de Londres. Em abril do seguinte ano de 1763, ainda passou pelo porto um navio mercante francês, procedente de Marselha e com destino a São Domingos, para meter água, assim como no ano seguinte, passou pelo Funchal o bergantim francês que dali fugira dois anos antes5. Nestes anos difíceis, para fazer face à situação, o governador apelou aos capitães de ordenanças, chegando o capitão António João Correia Brandão Bettencourt Henriques a levantar à sua custa uma companhia de 40 soldados de cavalaria, para patrulharem as praias dos arredores do Funchal. O governador dentro das suas possibilidades reparou as fortalezas, nomeou uma série de capitães para as companhias que se encontravam vagas e aumentou o pessoal encarregado de vigiar as costas, para o qual requisitou mesmo, por alistamento, 60

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Nomeado a 17 Maio 1758, só se apresenta no Funchal mais de um ano depois, ou seja a 27 Maio 1759, já com todas as instruções para a extinção da Companhia de Jesus. Arquivo Histórico Ultramarino, Madeira e Porto Santo, nº 161. Ofício do bispo ao rei, informando a chegada do novo governador, a 26 Maio e a sua entrega do governo no dia seguinte. Funchal, 2 Jun. 1759. 3

AHU, ibidem nºs 124 e 177. Ofícios do governador, sobre os ajudantes Matias Moniz Bettencourt e Manuel Teixeira e Paiva, Funchal, 4 Nov. 1757 e 9 Jul. 1759. 4

Ibidem, nº 216. Ofício do governador, Funchal, 17 Jan. 1761.

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Idem, nºs 237 e 238. Funchal, 12 Mar. 1762; idem, nº 248, Funchal, 24 Jul. 1762; idem, nº 253, idem, 25 Abr. 1763; idem, nº 266, idem, 8 Ago. 1764.

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cavalos particulares, depois utilizados nas patrulhas que passaram a andar pelas praias 6. Com a entrada em conflito com a Espanha, o governador ficou com outro problema, pois nas companhias de ordenanças do Funchal existiam 5 nacionais das Canárias, residentes há muitos anos na Madeira e aqui casados, assim como na Ilha viviam dois religiosos agostinhos, da mesma proveniência. O governador não tomou especial opção em relação aos mesmos e, com o ajuste de paz, no ano seguinte, a situação ficou sanada7. O governo de João António de Sá Pereira Com a posse de governador de João António de Sá Pereira 8 nos finais de 1766 deram-se de imediato algumas restruturações, entre as quais a nomeação para um cargo, de certa forma original: "oficial de guerra com capacidade para ter a seu cuidado os rastilhos das portas desta cidade e bocas das ribeiras e mais madeiras pertencentes às pontes". A patente foi passada por proposta do capitão engenheiro Domingos Rodrigues Martins e foi empossado Gaspar Raimundo Homem del Rei. Na carta patente cita-se que "na ausência do inspector das obras reais e em outro qualquer acidente, ficava este oficial obrigado a assistir a todas as obras da fortificação" 9. No entanto, não voltamos a ter qualquer referência a este cargo, nem a este oficial. O governador António de Sá Pereira tinha assentado praça no regimento de Dragões de Penamacor, sendo promovido a capitão do regimento de cavalaria de Almeida, em 1757, a sua primeira patente, sendo coronel do regimento de Chaves quando deflagrou a Guerra do Pacto de Família em 1762, tendo feito a campanha da Beira, sob as ordens do tenente general inglês George Townshend, 4.º visconde do título e, depois, marquês. Em princípio, encontrava-se assim entre os oficiais portugueses integrados no círculo próximo do conde de Lippe.

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Idem, nºs 241. Ofício do governador sobre os reparos das fortalezas. Funchal, 24 Jul. 1762; idem, nºs 242 a 246, idem, com os requerimentos sobre a companhia de 40 cavalos. Funchal, 24 Jul. 1762; idem, nº 247, idem, sobre nomeações, idem; idem, nº 249, sobre o alistamento dos cavalos, idem. 7

Idem, nº 250. Ofício do governador sobre a receção dos manifestos sobre a Espanha. Funchal, 8 Set. 1762; idem, nº 258, idem, sobre o ajuste de paz. Funchal, 7 Set. 1763. 8

João António de Sá Pereira (c. 1730; 1804). Filho de Manuel de Sá Pereira e de Mariana Plácida de Meneses, tinha prestado serviços na campanha de 1762, como coronel de Infantaria. Teve carta de conselheiro de 15 Set. 1766 (IAN/TT, Chancelaria de D. José I, Lº 20, fl. 253); de governador e capitão general da Ilha da Madeira, na mesma data, (ibidem, idem; e idem, PJRFF, Lº 975, fls. 181 v a 185); carta de padrão de 12$000 a ter com o hábito de Cristo, a 12 Set. (idem, idem); prestou menagem, no palácio da Ajuda, a 25 Set. 1766; alvará de vencimento como governador da Madeira, a 10 Out. 1767 (ibidem); e posse no Funchal, um ano depois, a 9 Dez. 1767. Saiu da Madeira a 10 Jun. 1777, tendo carta de Barão de Alverca e do senhorio daquela vila, a 3 e 4 Abr. 1795 (IAN/TT, ibidem, Lº 19, 172 v.); carta de assentamento de barão, a 15 Jun. 1795 (ibidem, Lº 27, 362). Faleceu em 1804 como marechal de campo do Exército, sem descendência. O título passou para seu irmão José António de Sá Pereira, 2.º barão de Alverca e 1.º conde de Anadia, tio do futuro chefe de gabinete João Rodrigues de Sá e Melo (1755; 1809), visconde da Anadia. 9

Arquivo Regional da Madeira, Governo Civil, Lº 532. fl. 42. Funchal, 6 Fev. 1767.

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Com a restruturação militar levada a cabo pelo conde de Lippe em Portugal, foi por sua ordem enviado para o Funchal o engenheiro Francisco de Alincourt. Veio em finais de 1767, como sargento-mor, com exercício de engenheiro por seis anos e assentamento de praça na lista da 1ª plana da Corte, com 52$000 réis por mês de soldo dobrado. A ordem real para o movimento citada na patente, era dirigida "ao conde reinante Setiaurnbourg Lippe, meu muito amado e presado primo", mas com certeza, por proposta do mesmo e, muito provavelmente, a pedido do governador da Madeira. O sargento-mor Francisco de Alincourt veio pago até agosto desse ano de 1767, como capitão de Infantaria e com dois meses "de soldo adiantados, a respeito de 52$000 réis por mês, como sargento-mor e na dita Ilha deve ser pago do 1º de Novembro em diante"10. A vinda de Francisco de Alincourt relacionava-se, por certo, com a continuação das obras do porto do Funchal, de que conhecemos um projeto de união dos dois ilhéus, datado de 1771, mas que não passou então do papel11. O seu principal trabalho, entretanto, foi a montagem da Escola de Fortificação do Funchal e os trabalhos para o levantamento da planta geral da ilha da Madeira. Para o ajudar chegou em meados de 1768, Faustino Salustiano da Costa, "discípulo extra numerário da Academia Militar da Fortificação da Corte". Veio com patente de ajudante de Infantaria e exercício de engenheiro por seis anos, com 10$000 réis de soldo por mês12. Acabou por ficar na Ilha, em princípio, até janeiro de 177513. Um dos primeiros trabalhos de que estes engenheiros foram encarregados, foi do planeamento da levada do Rabaçal. Assim, a 8 de outubro de 1768 10

Filho de Luís de Alincourt, natural da Flandres, teve patente datada de Lisboa, 11 Maio 1767, com posse no Funchal a 10 Dez. 1767 e registo na Fazenda, a 28 Jan. 1768 (IAN/TT, Provedoria da Real Fazenda do Funchal, Lº 975, fls. 180 vº e 181; idem, fl. 193 vº.: Carta de guia com que se apresentou. Lisboa, Belém, 3 Set. 1767; Registo no Funchal, 12 Dez. 1767 e 28 Mar. 1768; idem, ARM, GC, Lº 526, fl. 30. Ofício do governador para o provedor da fazenda. Quinta do Pico, 7 Jul. 1768. Era coronel de Engenharia e tinha 81 anos de idade, quando em 9 Mar. 1803 se lhe passou certidão negativa (IAN/TT, Chancelaria de D. Maria I, Lº 12, fl. 174; ibidem, Registo de certidões, Lº 1, fl. 139), devendo ter falecido pouco depois. 11

Pranta dos dois ilheos com seu projeito para os fichar. Nanquim e aguarela sobre papel D. & C. Blauw, 485 x 375; 510 x 395 mm. Petipé de 19,3 cm. = 60 braças (escala aprox. 1/700). Assinado: Francico d'Alincourt, sargento-mor de Engenharia, Funchal, 1771. Centro de Estudos de Cartografia Antiga (nº 18, pasta 34). Existem os esboços preparatórios para este projeto no Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar (nº 1309, 2-22A-109). Cf. AHU, ibidem, nºs. 312, 345 e 346. Ofícios do governador sobre a vantagem de fechar os ilhéus. Funchal, 2 Abr. e 30 Ago. 1768. 12

IAN/TT, PJRFF, Lº 975, fls. 205 vº a 206. Lisboa, 18 Jun. 1768; Funchal, 9 e 11 Jul. 1768.

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Ibidem: Nota à margem; "Foy pago pela Provedoria até fim de Janeiro de 1775 e dali em diante, não continuou...". Saliente-se que Salustiano da Costa ainda voltou à Ilha, em 1777, mas regressou de imediato a Lisboa, como se lê numa outra nota à margem: idem, Lº 976, fl. 103: "Foi pago até 31 de Janeiro de 1775. Regressou a 16 de Maio de 1777 e foi-se a 10 de Junho do dito".

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recebiam ordem para se deslocarem "em direitura à vila da Calheta", onde deveriam contactar o Dr. Francisco Cristóvão de Ornelas e Vasconcelos, ou, na sua ausência, com o juiz ordinário da vila para os informarem sobre a "Levada do Rabaçal", de que deveriam levantar a planta, assim como as propriedades dos bardos14. O assunto prendia-se com o aumento das terras de regadio na área da Calheta e Ponta do Pargo, assunto que preocupava os governadores desde meados do século, mas que só no século seguinte seria resolvido pelos engenheiros militares António Pedro de Azevedo e Manuel José Júlio Guerra. A Aula Militar ou Escola de Fortificação do Funchal A necessidade de uma Escola de Geometria e Trigonometria do Funchal deve ter sido aflorada na vigência do engenheiro Francisco Tossi Colombina, em exercício a partir de inícios, ou meados de 1757. Para o levantamento das obras do porto do Funchal, com a ligação do ilhéu pequeno a terra firme, construção do molhe de cais, estrada da Pontinha e do forte de São José, por certo necessitou de pessoal habilitado. Ora nessa altura o único técnico que possuía na Ilha era o capitão engenheiro Domingos Rodrigues Moniz, que viria a ter nova nomeação de mestre das obras reais da ilha da Madeira, a 1 de janeiro de 1760 15, o que era nitidamente insuficiente. No entanto a montagem da escola militar não teve ter tido verdadeira implantação, pois em breve Tossi Columbina era afastado e, de imediato, aproveitado pelo ex-governador da Madeira, Manuel de Saldanha de Albuquerque, então conde da Ega e nomeado vicerei da Índia, para o acompanhar ao Oriente16. Os trabalhos foram iniciados ou reativados na vigência de Francisco de Alincourt, que se deslocou mesmo a Lisboa para recolher o material necessário 17, vindo então com o sargento-mor, do continente, material vário para a Aula, como "12 jogos da tradução de Belidor" e, depois, com o ajudante Faustino Salustiano da Costa, "por um navio inglês, o material que pediu", conforme se deu conta ao governador em junho de 1768. No navio inglês Riotte, vieram então 2 agulhetas de prancheta, 100 picaretas, 100 enxadas, 68 padiolas, uma barraca de cúpula e uma cadeia para medições, com 20 braças, entre outros instrumentos 18. Em outubro desse ano, ainda se pedia para Lisboa um "theodolito"19. Em finais de outubro de 1768 o governador informava para Lisboa da abertura das aulas, para o que tinha mandado colocar editais, pois entre toda a tropa paga da Ilha, tanto de infantaria, como de artilharia, não encontrara mais de dois ou três "sujeitos com aptidão e vontade de entrarem a aprender na Aula de Engenharia". Tinham então recrutado elementos civis, com cerca de 20 anos, sabendo ler, escrever e contar, e abrindo a Aula com 14 ou 15 14

ARM, GC, Lº 526, fl. 41. Funchal, 8 Out. 1768; ibidem, Lº 530, fl. 50. Carta de 31 Out. 1768.

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IAN/TT, idem, Lº 975, fl. 133 vº.: Provimento de mais um ano... Lisboa, 23 Abr. 1760, registo de 7 Ago. seguinte, no entanto, só escriturado a 22 Set. 1766. 16

Existem inúmeros relatórios de Tossi Columbina sobre os seus trabalhos de engenheiro na Índia na Biblioteca do Palácio da Ajuda. 17

ARM, GC, Lº 530, fl. 78. Esteve em Lisboa de 30 Abr. a 5 Jul. 1768.

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Ibidem, Lº 526, fl. 29 e 37. Cartas de Lisboa, palácio da Ajuda, 14 e 22 Jun. 1768; ibidem, Lº 530, fl. 36. Lisboa, 24 Jul. 1768. 19

Ibidem, Lº 530, fl. 70 v. Funchal, 31 Out. 1768.

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elementos. Tinham sido entretanto examinados e matriculados, na presença do próprio governador, que estava entusiasmado com a experiência, acrescentando na sua carta: "É certo que estes naturais da Ilha não são faltosos de habilidade, se quiserem fazer-se úteis". Mais tarde o governador Sá Pereira informava Lisboa das primeiras aulas, a que tinha assistido e onde haviam sido dadas "complicadas explicações pelo sargento-mor Francisco de Alincourt, que ninguém percebia nada". O governador não gostou da atuação de Alincourt, que "voltou à planta da Ilha"; substituindo-o pelo ajudante Salustiano da Costa. No dia 2 de novembro do seguinte ano de 1769 já havia "exames públicos, na livraria do Colégio", aos quais o governador também assistiu, enviando depois os mesmos para Lisboa e salientando o envio de dois desenhos, à pena, efetuados por alunos de apenas 13 anos de idade. João António de Sá Pereira salienta no final da sua carta, que em face do desenvolvimento das aulas, em breve seria "Sua Magestade servida... por sujeitos bem capazes de serem oficiais, pois se aplicavam deveras e com aturado estudo"20. Os trabalhos de levantamento da planta da ilha da Madeira devem terse iniciado logo nos meados do ano de 176821 e, segundo as diretivas do governador António de Sá Pereira, deveriam começar na igreja de Santiago, "no extremo da cidade, em direcção à ponta de Leste". Para isso foi determinado o fornecimento de "aposentaria e víveres" aos engenheiros, na forma de "casa, cama, luz, sal e lenha". Por ordem do governador, datada da Quinta do Pico, de 7 de junho desse ano, deveriam igualmente ser "satisfeitas cavalgaduras" aos executantes, o que levantou algumas dúvidas. Foi então alvitrado pelo próprio governador o fornecimento de duas cavalgaduras ao sargentomor e uma, ao ajudante, as quais deveriam ser satisfeitas "todos os dias que durar a diligência de que foram encarregados". Como não havia taxa determinada pela Câmara para tal, a mesma reuniu-se para resolver a situação. A equipa ainda era reforçada com dois homens para ajudarem na medição dos terrenos, alvitrando o governador o pagamento de 300 réis por dia a cada um. Em outubro estava já concluída a "planta provisional da Serra da Encumiada e suas pertenças"22.

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Ibidem, fl. 45 e 46, 70 v a 71 e 121 v. a 122. Funchal, 13 e 31 Out. 1768 e 6 Nov. 1769; idem, AHU, idem, cx. 2, nº 372. Ofício do governador, Funchal, 6 Nov. 1769. 21

ARM, idem, fls. 43 v. a 46. Cópia da ordem que leva o sargento-mor com as instruções sobre a "carta typographica" (sic!) e carta sobre as "dificuldades da carta". São Lourenço, 12 e 13 Out. 1768. 22

IAN/TT, idem, Lº 976, fls. 207 vº, 215 e 221 vº a 222 vº.: Quinta do Pico, 7 Jul., registos de 12 e 15 do mesmo mês; Fortaleza de São Lourenço, 6 Out., registo de 8 e, idem, 12 Nov., registo de 14, tudo desse ano de 1768.

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Os trabalhos continuavam em meados dos seguintes anos de 1769 e 1770, quando foi solicitado o aumento de 300 para 400 réis aos dois homens que acompanhavam o sargento-mor Alincourt "no levantamento da carta da Ilha"23 e o pagamento de duas cavalgaduras a Salustiano da Costa ("uma para ele e outra para os instrumentos que leva")24. Em meados de 1769 os engenheiros ainda se deslocaram com o corregedor ao Porto Santo, elaborando uma Descrição da ilha e uma planta da mesma25. Os trabalhos continuaram em 1771, então já só a cargo de Salustiano da Costa, dada a prisão do sargento-mor, em dezembro do ano anterior. O sargento-mor envolvera-se em várias irregularidades, desvio de fundos e falsificações, tentando, inclusivamente fugir para Lisboa, pelo que o governador não teve outra hipótese, segundo o mesmo, senão mandá-lo prender. A Ilha era francamente propícia a certas irregularidades, mas parece que o engenheiro tinha ultrapassado em muito o que lhe fora atribuído. Conforme o governador expôs para Lisboa e de acordo com os autos levantados pelo corregedor Francisco Moreira de Matos, o sargento-mor tinha processado ilegalmente as "férias que se fizeram aos jornaleiros que andaram nas obras da fortificação", assunto que não lhe pertencia, como já referido, mas sim ao capitão Domingos Rodrigues Martins. No entanto, Alincourt pressionara o tesoureiro António João Homem del Rei, dizendo ter ordens do governador para assim proceder, o que não era verdade. Instado sobre o seu procedimento, comprometera-se a repor o que tinha tirado, confirmando assim ter havido desvios. O governador escreveu-lhe a 2 de fevereiro, citando "que a sua confissão, mais qualifica o seu delito, que a sua inocência, de que Vossa Mercê me quer persuadir por carta...". Efetivamente, o sargento-mor acrescentara dois nomes na lista dos operários das obras: Miguel Ferreira e Francisco Marques, que não existiam, assim como debitara nas mesmas contas as despesas efetuadas pelo mestre carpinteiro de origem alemã, Matias Guerelink, com uns "trastes que este lhe fez para ornato de sua casa, cuja avaliação está na mão do capitão apontador António João Homem del Rei"26.

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Ibidem, fls. 10 vº e 11: Funchal, São Lourenço, 31 Maio 1769, registo de 1 Jun.

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Idem, fl. 42. Trabalhos desde 13 Dez. 1769 e até Abr. 1770. Ordem de São Lourenço, 20 Abr. 1770. Registo na Provedoria do mesmo dia. 25

A Dissertação da Ilha do Porto Santo à que foi mandado por ordem do Illmo. e Exmo. Senhor João António de Sá Pereira, do Conselho de Sua Maggestade, Governador e Capitão General da Ilha da Madeira; o Sargento Mor Engenheiro Francisco de Alincourt, em 20 de Abril de 1769, para observar as suas particularidades e motivos da sua annual necessidade, levantando planta geral do seu continente e Ilhéus a ella adjacentes, encontra-se no AHU e a planta do Porto Santo, assinada e datada por Salustiano da Costa, numa cópia de 1775, no antigo Gabinete de Cartografia Antiga da Junta de Investigação do Ultramar. 26

ARM, GC, Lº 526, fls. 67 v a 68 v. e 88 v. e 89. Funchal, 2 e 27 Fev. 1769; idem, Lº 530, fls. 72 e 80; idem, AHU, idem, nºs 349 a 351. Ofício do governador, com auto em anexo. Funchal, 12 Fev. 1769.

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O sargento-mor, apesar de tudo, era um técnico altamente habilitado e, repondo as despesas debitadas ilegalmente, o governador ainda lhe perdoou, enviando ordem para Machico, onde o mesmo se encontrava, para se deslocar ao Porto Santo, para "informar as pessoas, desenhar as fortificações e levantar a carta da Ilha"27. Saliente-se que as fortificações, de um modo geral, eram atribuição do engenheiro mestre das obras reais, então Domingos Rodrigues Martins, mas este encontrava-se impedido nas obras do colégio e da antiga igreja dos jesuítas, pelo que, aliás, recebeu em agosto desse ano o pagamento dos dois anteriores anos de trabalho, embora somente cem mil réis, quando o seu ordenado por dois anos, deveria ter sido de 200 mil réis28. O engenheiro fizera no Porto Santo um excecional trabalho, já anteriormente referido e que assina como "cavaleiro professo na Ordem de Cristo, director das obras da Fortificação e lente da Real Academia"29. Entretanto, o trabalho do Porto Santo teve de ser continuado pelo ajudante, que, aliás, assina depois a carta do Porto Santo, passando Alincourt para a planta da ilha da Madeira. Em março de 1770, o sargento-mor tinha ordens para levantar a "carta central da Ilha", assim como em abril, se encontrava já levantada a planta da cidade do Funchal "desde Santiago até à ribeira de São João". Também em abril, existe referência a um outro trabalho: "a levada nova, que nasce no Pico Ruivo"30. No entanto, em breve havia novamente ordem de prisão para Francisco de Alincourt, "por justos motivos do serviço de Sua Magestade", com data de 1 de dezembro de 177031, não voltando a haver referências a seu respeito na Ilha, tendo

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Ibidem, fls. 99 a 101. Cartas e ordens de 19 Abr. 1769; idem, fls. 117 v e 118. Idem, Funchal, 16 Out. 1769; Idem, fls. 124 v a 129 v. Idem, ao conde de Oeiras, Funchal, 8 Fev. 1770. 28

Idem, fl. 111. Domingos Rodrigues Martins, mestre das obras da fortificação: reparos dos consertos no colégio que foi dos jesuítas, e nas capelas da Igreja: cem mil réis pelo trabalho de dois anos. Funchal, 6 Ago. 1769. 29

AHU, idem, nº 366. Funchal, 9 Jul. 1769.

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ARM, idem, fls. 136 v e 137. Cartas do governador de 21 Mar. e de 26 Abr. 1770.

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Ibidem, fl. 172. Ofício do governador para o provedor da fazenda. Funchal, 1 Dez. 1770; idem, IAN/TT, idem, fl. 69. "Por motivos do serviço de Sua Magestade mandei prender o sargento-mor engenheiro Francisco de Alincourt e suspendê-lo do serviço do seu posto até nova mercê de Sua Magestade. São Lourenço, 1 de Dezembro de 1770". Registo do mesmo dia; idem, Lº 975, fl. 101: "Por avizo do Ilustrissimo e Excelentissimo governador João António de Sá Pereira está suspenso o sargento-mor engenheiro Francisco de Alincourt até nova mercê de Sua Magestade e por isso puz esta nota à margem da sua patente..."; idem, Lº 976, fl. 69

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embarcado de imediato para o continente. Salustiano da Costa tinha sido, entretanto, nomeado ajudante de ordens do governador, "sem soldo"32, e deslocou-se depois a Lisboa, para o que recebeu autorização em agosto de 177133, solicitando mais tarde, em 1772, o pagamento das cavalgaduras em atraso, pelo seu procurador José Anastácio da Costa34. Conclusões A Aula Militar ou Escola de Fortificação do Funchal funcionou assim entre 1768 e 1769, em princípio, primeiro com o sargento-mor Luís de Alincourt, que, inclusivamente, se deslocou a Lisboa para trazer material, onde se citam os “Tratados de Belidor”, com o seu afastamento e substituição por Salustiano da Costa, não temos informações depois de 1769. Francisco de Alincourt foi compulsivamente afastado na Ilha em 1770 e, Salustiano da Costa parece ter saído em 1771, embora ainda tenha sido pago até 1775, mas por um procurador. Embora em 1768 o governador João António de Sá Pereira desse conhecimento, entusiasmado, para Lisboa da montagem da Aula Militar, com o recrutamento dos alunos e, depois, as primeiras provas feitas pelos mesmos, então no antigo Colégio dos Jesuítas do Funchal, a partir de 1769 não voltamos a ter documentação sobre o assunto. O governador afastou Alincourt das aulas perante as "complicadas explicações" dadas pelo sargento-mor, "que ninguém percebia nada". Parece que aqui teria residido o problema, ou seja Alincourt, natural da Flandres, em princípio, não deveria falar bem o português, o que não agradou ao governador. A partir de então as queixas contra o sargento-mor são inúmeras e, em breve, "por justos motivos do serviço de Sua Magestade", era enviado preso para Lisboa. Documentação posterior apontaria o sargento-mor Francisco de Alincourt como envolvido nas lojas maçónicas madeirenses, onde depois aparece várias vezes referenciado e nesse aspeto parecem residir os "justos motivos do serviço de Sua Magestade". O problema é que chegado a Lisboa sob prisão, Francisco de Alincourt foi de imediato colocado em liberdade por ordem direta de Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras, que o governador tratava na correspondência oficial por “Tio”, como outros elementos ligados ao gabinete do marquês. Embora nada conste localmente da documentação oficial, ao que tenhamos conhecimento, tal foi, com certeza, do conhecimento do governador da Madeira.

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IAN/TT, idem, fl. 49. Funchal, 31 Ago., registo de 11 Set. 1770. Cf. ARM, idem, fl. 155 v. Carta ao capitão da Sala Alexandre Nicolau de Atouguia e Freitas sobre a nomeação, com data de 30 Ago., de Faustino Salustiano da Costa, ordenando-se que o capitão da sala, mais o capitão da semana, Manuel de Sousa Caldas e mais ajudantes da mesma sala se reunissem para assistir à leitura da nomeação. Funchal, 12 Set. 1770. 33

Ibidem, fl. 103. Ordem do governador de 15 Ago. 1771 e registo de 17 seguinte. A dúvida coloca-se perante a nota à margem "Foi pago até 31 de Janeiro de 1775...", já citada, o que parece indicar que a saída, só se teria processado mais tarde. 34

Idem, fls. 189 a 191 vº. A petição cita as taxas em uso na província da Estremadura e a dívida então no montante de 264$600 réis. São Lourenço, 1 Ago. 1772, registo de 13 do mesmo mês e ano.

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Por esses anos os problemas entre o governador João António de Sá Pereira e as principais famílias não deixaram de aumentar, pelo que, falecido o rei D. José I e caindo o marquês de Pombal, a 24 de fevereiro de 1777, o governador pediu, imediatamente ao primo, Aires de Sá e Melo, para regressar a Lisboa. Não recebendo resposta, em 11 de junho de 1777, o governador fretava do seu bolso uma embarcação, entregava o governo ao bispo do Funchal e abandonava com a família rapidamente a Madeira. No entanto, as condições climatéricas foram-lhe adversas e, por falta de vento, a embarcação ficou no meio do porto. Assim, com o enoitecer, o governador e a família viram-se obrigados a assistir, da baía do Funchal, ao acender progressivo das luzes na cidade e ao fogo-de-artifício lançado em regozijo pela sua partida. Poucos meses depois era enviada ao Funchal uma alçada para indagar o procedimento do governador Sá Pereira, como muitos outros processos levantados no quadro da “Viradeira”, mas o governador levara cópias de toda a documentação do seu gabinete, defendendo-se de todas as acusações e, alguns anos depois, era reintegrado como coronel e elevado a barão de Alverca. O seu primo, Aires de Sá e Melo, tinha sucedido ao marquês de Pombal e o filho, João Rodrigues de Sá e Melo, visconde de Anadia, também integraria depois o gabinete de D. Maria I e do príncipe regente D. João VI. Ao mesmo tempo, o engenheiro Francisco de Alincourt continuava também ao serviço, tal como o irmão, Luís de Alincourt e depois o filho deste e o neto, que haveria de prestar serviço no Brasil e aí ficar. A presença em Portugal de oficiais estrangeiros não foi assim pacífica, quer porque portadores de uma outra visão dos assuntos de que foram encarregados, como porque nem sempre também se portaram corretamente e de acordo com as normas vigentes. No entanto, muitos acabaram por se adaptar, casar e integrarem a multifacetada sociedade portuguesa, que também ela sempre se adaptou de uma forma muito especial.

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