A Austrália descoberta pelos portugueses? Ficções aquém e além de Capricórnio

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Descrição do Produto

Brotéria

5/6 VOL. 178

Maio-Junho 2014 Série Mensal Assinatura para 2014 : Portugal 55 E (IVA incluído); Europa 90 E; Outros países 95 E Número avulso: 6 E (IVA incluído) Números atrasados (+3 anos): preço actual NIB: 0007 0101 00461660002 25

ISSN 0870-7618 Depósito Legal 54960 / 92 Tiragem: 1100 exs.

Brotéria

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Recensão e Crítica

António Vaz Pinto SJ António Júlio Trigueiros SJ Domingos Terra SJ Manuel Morujão SJ António Júlio Trigueiros SJ António Vasconcelos de Saldanha Carlos Borrego Domingos Terra SJ Francisco Malta Romeiras Francisco Sarsfield Cabral Henrique Leitão José Carlos Seabra Pereira Manuel Braga da Cruz Margarida Ataíde Miguel Corrêa Monteiro Raquel Vaz Pinto



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Bibliotecário

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Propriedade



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Teresa Olazabal Cabral

Design Gráfico

I mpressão e acabamentos

MINHOGRAFE – Artes Gráficas, Lda. BRAGA - Portugal

Brotéria

5/6 VOL. 178

ÍNDICE

421 Editorial

António Vaz Pinto, S.J.



Imigrantes e sem-abrigo

425 Carlos Borrego



Lei de Bases do Ambiente revista: simples e sucinta, mas controversa

437 Raquel Vaz-Pinto



A democracia indiana e a encruzilhada da identidade

445 Francisco Sarsfield Cabral



A crise de legitimidade na UE

453 Nuno Sampaio



Eleições, legitimidade e o futuro da União Europeia

463 José Carlos Seabra Pereira



Inquietação transmanente na poesia portuguesa do século XXI

481 Paulo Jorge de Sousa Pinto



A Austrália descoberta pelos Portugueses? Ficções aquém e além de Capricórnio

501 Revisitando

a

Brotéria



Serafim Leite, sj



A carta de José de Anchieta aos irmãos enfermos do Colégio de Coimbra e o que tem de inédito

511 Recensões 516 Índice do volume 178

A Austrália descoberta pelos Portugueses? Ficções aquém e além de Capricórnio

Paulo Jorge de Sousa Pinto *

1.  Tive em tempos um colega que, ao fazer pesquisa em manuscritos, descobria aparentemente com grande facilidade aquilo que procurava, mesmo contra toda a lógica; uma vez pediu-me para confirmar se o que estava escrito num certo documento era efetivamente “Ponte da China”, onde constava, em bela caligrafia quinhentista, um inequívoco “Ponte de Lima”. A maior parte dos trabalhos de pseudo-História enfermam, no essencial, de idêntico defeito de base: escolher um pedaço, “ler” o que se procura e ignorar, intencionalmente ou não, tudo o que existe à volta. De um modo geral, estes trabalhos são o resultado de leituras apressadas, manipulação de fontes e dados e ignorância ou conhecimento insuficiente dos contextos históricos envolvidos. O entusiasmo de apresentar provas e revelações e o sensacionalismo que decorre do alegado desvendar de mistérios e segredos garante geralmente o sucesso editorial destas obras. Desta forma, um deslize de leitura é facilmente detetado e corrigido; um livro onde é exposta uma “tese” bombástica, pelo contrário, obriga a comunidade científica a um moroso e aborrecido trabalho de verificação de dados e desmontagem e refutação de análises e conclusões, processo geralmente tardio e incompleto e que não evita a divulgação e propagação deste tipo de abordagens junto do público não especializado. *  FCH / Universidade Católica Portuguesa.

Brotéria 178 (2014) 481-500

481

O chamado “período dos Descobrimentos” presta-se com grande facilidade a teorias especulativas por parte de jornalistas, curiosos, autodidatas e alegados estudiosos. As histórias do “Colombo português” ou a teoria que envolve as alegadas viagens chinesas à volta do mundo na década de 1420 são alguns exemplos flagrantes. Caso recente é a retoma do tema do “descobrimento da Austrália pelos portugueses”, mais especificamente o das presumidas viagens do português Cristóvão de Mendonça ao continente australiano, em 1522-1523. É disto que trata Beyond Capricorn, de 2007 (ed. portuguesa Caderno, 2008, com o título Para Além de Capricórnio), do jornalista australiano Peter Trickett.

1

  Richard Henry Major, On the Discovery of Australia by the Portuguese in 1601, Londres, 1861. 2

  George Collingridge, The Discovery of Australia. Sydney, 1895, e The First Discovery of Australia and New Guinea, Sydney, 1906 (que Trickett cita mas a que chama, curiosamente, de The First Discovery of Australia and New Zealand). 3

  “O descobrimento da Australásia e a «Questão das Molucas»” in História da Expansão Portuguesa no Mundo (dir. António Baião, Hernâni Cidade e Manuel Múrias), volume II, Lisboa, 1939, pp. 129-150. 4

  Kenneth Gordon MacIntyre, The Secret Discovery of Australia: Portuguese Ventures 250 years before Captain Cook, Londres, 1977; ed. portuguesa A Descoberta Secreta da Austrália: a façanha portuguesa 250 anos antes do Comandante Cook, Macau, 1989.

482

2.  A ideia de que os portugueses terão sido os primeiros europeus a chegar ao continente australiano, antes do reconhecimento oficial pelo capitão James Cook, no século XVIII, e mesmo em data anterior à viagem do holandês Willem Janszoon, em 1606, tomado tradicionalmente como o primeiro a fazê-lo, não é nova. Desde há pelo menos um século e meio que diversos autores levantam essa hipótese, com maior ou menor entusiasmo e apoiados em indícios diferentes. Henry Major fê-lo em 1861, após a descoberta da cópia de um mapa de origem portuguesa no Museu Britânico1. Mais tarde, foi sobretudo o australiano George Collingridge quem defendeu mais vigorosamente esta tese2. A discussão era, sobretudo, académica, envolvendo a exposição e análise de cartografia e de documentação portuguesa e espanhola. Também o português Armando Cortesão apoiou esta ideia3. Foi só na década de 1970, contudo, que emergiu a “tese Cristóvão de Mendonça”, ou seja, a ideia de que houve uma viagem secreta à Austrália em 1522 sob o comando deste capitão português, pela mão de Kenneth Gordon McIntyre, em The Secret Discovery of Australia4. O trabalho de Peter Trickett surgiu na continuidade desta obra, embora com diferenças importantes. É de toda a conveniência começar por dizer que a discussão sobre “quem descobriu a terra X” está cada vez mais arredada da ciência histórica atual, não apenas pelo seu inde-

lével traço eurocêntrico, muito típico de uma era colonial já passada que cantava a supremacia europeia sobre a barbárie asiática, ameríndia e africana e que resumia o protagonismo histórico à competição entre as potências europeias entre si, mas também pelo facto de, no caso específico da Austrália, ser indiscutível – algo que também Trickett aceita – que a terra foi pontualmente visitada por malaios, pescadores de Timor ou das Flores ou mercadores macaçares, antes dos europeus. Logo, o debate deveria girar em torno sobre se foram chineses ou malaios quem “descobriu a Austrália”, e não portugueses ou holandeses. Este facto concede, digamos, “vantagem” à “tese portuguesa”, mas não no sentido que Trickett defende: sendo um espaço onde os portugueses viajavam muitas vezes em navios de mercadores asiáticos e em parceria com estes, é natural que soubessem da existência da Austrália e que a visitassem como o faziam malaios ou macaçares. Mas tratando-se sobretudo de gente anónima, mercadores privados – e não capitães de armadas oficiais, com registos, diário de bordo e desenhadores de mapas, à moda do capitão Cook, de cujo modelo Trickett nunca se consegue libertar – não deixaram rasto visível, quer nas crónicas ou na documentação oficial, quer em vestígios materiais. Beyond Capricorn teve ampla divulgação em Portugal, após algum sucesso internacional, nomeadamente na Austrália. Só foi, contudo, traduzida numa única língua, a portuguesa. A imprensa nacional fez (e continua a fazer) eco do livro, nomeadamente aquando da estadia do autor no nosso país, em 20085. Nesse mesmo ano, o Museu da Ciência de Coimbra, além de acolhê-lo para uma palestra, realizou um colóquio e um debate com historiadores, portugueses e estrangeiros, sobre o tema, e cujas comunicações foram recentemente publicadas6. É, até ao momento, a única reação da comunidade científica e académica portuguesa, com tímida divulgação7. Não tenho conhecimento de qualquer recensão crítica à obra. O saldo final é desconcertante: divulgadas de forma praticamente acrítica pela imprensa – e relembradas quando emerge uma qualquer nova “prova”, desde um canhão descoberto numa praia a um alegado canguru num manuscrito

5   Diário de Notícias, 22 de março e 8 de abril de 2007, 29 de outubro de 2008; Público, 23 de março de 2007; Expresso e Jornal de Notícias, 27 de outubro de 2008. 6

  Carlota Simões e Francisco Contente Domingues (coord.), Portugueses na Austrália – as primeiras viagens, Coimbra, 2013.

7

  Público, 8 de maio de 2008.

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do século XVI –, as teorias do jornalista australiano são reproduzidas em blogues e redes sociais, em páginas na internet e na Wikipédia e tacitamente aceites como uma alternativa nova, válida, sedutora e ousada à visão tradicional que aponta holandeses e britânicos como os “descobridores” da Austrália. O ego nacional, ferido durante muito tempo pela forma injusta como o pioneirismo dos navegadores portugueses dos séculos XV e XVI foi (e ainda é) omitido, minimizado ou ignorado em filmes e séries de ficção e de divulgação histórica e pelos media internacionais, acolhe com natural satisfação um autor australiano que o afaga e elogia.

3.  Para Além de Capricórnio não é uma obra de exposição, análise e discussão dos indícios, sinais e suspeitas de que os portugueses terão visitado o continente australiano ao longo do século XVI. Isso exigiria uma amplitude de conhecimentos que o seu autor notoriamente não possui e um grau de rigor, mas também de interrogação e de dúvida, que claramente não lhe interessa. Trata-se, ao invés, de uma narrativa centrada num suposto “segredo” – agora alegadamente desvendado – em torno do binómio Cristóvão de Mendonça / Atlas Vallard que, digamos, se “auto-alimenta” em círculo vicioso. O raciocínio da argumentação do livro é mais ou menos este: Cristóvão de Mendonça explorou a Austrália porque o Atlas Vallard o prova, e o Atlas Vallard é fiável e rigoroso porque resulta de viagens reais e concretas, levadas a cabo por Cristóvão de Mendonça. Isto apesar de nada – repito, nada – provar ou, sequer, indiciar qualquer conexão entre as duas partes. A estrutura da obra divide-se do seguinte modo: um contexto histórico da expansão marítima portuguesa que prepara, enquadra e anuncia a viagem de Cristóvão de Mendonça (cap. 1), a jornada de Diogo Pacheco, considerado como um seu precursor (cap. 2), a viagem de Mendonça à costa oriental australiana e à Nova Zelândia, tomando como guia o Atlas Vallard e em cruzamento com outros dados, nomeadamente da etnografia e arqueologia e de relatos de viajantes europeus posteriores (caps. 3-8), considerações sobre outras viagens, o 484

corso francês e a “escola de Dieppe” (cap. 9), uma viagem prévia de Cristóvão de Mendonça à costa ocidental da Austrália (cap. 10) e os rescaldos das suas explorações (cap. 11).

4.  Pode dizer-se que o livro nasce já torto. O ponto de partida – a verosimilhança da expedição de Mendonça à Austrália e o seu enquadramento explicativo, no contexto da época – contém distorções e erros elementares, pelo que discordo frontalmente do juízo feito por José Manuel Azevedo e Silva, quer no tom complacente e elogioso com que aprecia a obra, quer na classificação do primeiro capítulo como “uma síntese satisfatória, sem incorreções graves, da História dos Descobrimentos Portugueses”8. Pelo contrário, é manifesto, logo nesta parte inicial, o desconhecimento do autor acerca da História de Portugal e da expansão portuguesa. Qual o mote, o impulso para a expansão portuguesa, cujo primeiro passo foi a conquista de Ceuta? A “demanda pelo ouro”, seguida posteriormente pela procura do “acesso à riqueza das caravanas do ouro” e do “Rio do Ouro”. Segundo o autor, à data da morte do Infante D. Henrique, os portugueses já teriam chegado à “Mina do Ouro”, embora, na realidade, tal só tenha ocorrido 20 anos após a morte deste personagem. O mais importante, porém, é assinalar a forma como Trickett faz tábua rasa das complexas motivações e impulsos da expansão (políticas, sociais, ideológicas) e das suas hesitações e paragens, assim como o modo muito gradual como as viagens de exploração foram ganhando espaço, fôlego e autonomia. Para Trickett, tudo parece resumir-se à procura de ouro, exatamente do mesmo modo como, noutros tempos e para outros autores, tudo se resumia à busca de especiarias ou ao espírito de cruzada. Percebe-se porquê: para o autor, esta procura incessante viria a tomar a forma, no reinado de D. Manuel I, de uma busca quase obsessiva de uma “ilha do ouro” de que alegadamente fala Marco Polo, e essa demanda é a sua chave explicativa para a viagem de Mendonça. Segundo Peter Trickett, “foram os escritos de Marco Polo que puseram em marcha a demanda portuguesa por esse reino

8

  “Viagens e mistérios nos mares da Indonésia e da Austrália no século XVI”, in Portugueses na Austrália, já cit., p. 15.

485

9   Juan Gil, Mitos y Utopías del Descubrimiento – 2. El Pacífico, Madrid, 1989. Escusado será indicar que Trickett desconhece este contexto e este contraste.

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lendário [da “Ilha do Ouro”]” (p. 24). O primeiro problema é que Marco Polo não menciona nenhuma “Ilha do Ouro” ou “Terra do Ouro”, da qual o jornalista australiano faz menção repetidas vezes. O relato do viajante veneziano, para além de misturar informações credíveis com histórias fabulosas (como a existência de homens com cabeça de cão nas ilhas Andaman), apenas refere uma terra a que chama de Locac, de localização muito confusa, e que possuiria ouro em grande quantidade. Trickett, claro, apressa-se a identificá-la com a região de Kimberley, na Austrália. E, logo depois, não se coíbe de afirmar perentoriamente que “muito antes do surgimento do famoso mapa de Mercator, os navegadores portugueses já tinham começado a procurar em segredo a Terra do Ouro de Marco Polo” (p. 26). O segundo problema, e mais grave, é que não há a mínima pista que indique, ainda que remotamente, que o relato de Marco Polo tenha influenciado os rumos da expansão portuguesa, que foi essencialmente prática e empírica; não só de Marco Polo, acrescente-se, mas de toda a mitologia bíblica envolvendo Társis, Ofir e o rei Salomão, em claro contraste com a expansão castelhana no Pacífico9. A influência de Marco Polo na cartografia portuguesa é residual, e nem as crónicas nem a documentação fazem menção relevante dos relatos do viajante veneziano. E mesmo que essa influência tivesse existido, os portugueses procurariam certamente o Grande Khan, o Cataio, o Cipango (como Colombo, por exemplo), e nunca uma terra tão obscura, incerta e pobremente descrita como Locac. Portanto, o elo não existe. Mas para o autor de Para Além de Capricórnio nada disso importa. Para que tudo encaixe no seu modelo explicativo, afirma que “diz‑se que o Infante D. Henrique teria possuído uma cópia do manuscrito de Marco Polo, o que faria com que tivesse conhecimento da fabulosa Terra do Ouro do viajante Veneziano” (p. 32). O “diz-se” não está, evidentemente, justificado, e a afirmação não tem qualquer fundamento. Esta ficção é gradualmente transformada em argumento. Mais adiante, Trickett descreve o sucesso da viagem de Vasco da Gama e os amplos horizontes que abriu aos portugueses,

nomeadamente a conquista de Malaca, em 1511, que lhes permitiu atingir as “Ilhas das Especiarias”. E rapidamente conclui: “agora, só faltava descobrir a fabulosa Ilha do Ouro” (p. 35). Assim, entre erros e suposições, o autor liga os descobrimentos henriquinos ao rei D. Manuel e a Cristóvão de Mendonça, tendo a tal busca da “ilha do ouro” como fio condutor, o que é absolutamente falso. Ainda no capítulo de enquadramento da expansão portuguesa, diversos pormenores revelam o seu grau de ignorância da temática e da época em causa. Seguem-se, a título exemplificativo, três exemplos: a) após a tomada de Ceuta, o Infante D. Henrique teria dirigido “a sua atenção para os relatos de prisioneiros mouros de Ceuta” que falavam das caravanas do ouro (p. 32); “Segundo um desses relatos”, as margens do Nilo eram habitadas por uma raça de formigas gigantes que escavavam ouro. Seria interessante que Trickett dissesse que “relatos” são; é que, na verdade, trata-se apenas de uma das inúmeras histórias fabulosas que circulavam na Europa acerca da Índia, com origem na Indica do grego Ctésias de Cnido (séc. V a.C.); b) Trickett não entende para que servia e como se usava o astrolábio náutico desenvolvido pelos portugueses, dizendo que “era suspenso ao nível do olho por um anel do topo, o que permitia ao navegador obter um visionamento mais correto da estrela” (p. 40), quando, na verdade, o aparelho era suspenso na mão para ler a posição do Sol ao meio-dia – “pesar o Sol” – como então se dizia. Por fim, afirma que o papel “na altura [século XVI] não era utilizado na Europa cristã” (p. 43). A alegada obsessão portuguesa por histórias fabulosas de uma “terra do ouro” que Marco Polo supostamente descreve é o primeiro pilar que sustenta a argumentação do autor para enquadrar as viagens de Cristóvão de Mendonça. Como se viu, é totalmente inconsistente. O segundo é a famigerada “política de sigilo” que explica, segundo Trickett, porque é que as ditas viagens teriam sido feitas em segredo e porque razão não há vestígios das mesmas. Há um excerto que resume tudo: “Aquilo que [os portugueses] procuravam era a fabulosa «Ilha do Ouro» e competiam com o seu arqui-inimigo, a Espanha. Assim sendo, as viagens rodeavam-se de secretismo, uma política implementada pela Coroa, cuja pena era a morte” (p. 24). 487

A “teoria do sigilo”, é bom recordar, foi uma teoria explicativa dos descobrimentos portugueses, desenvolvida sobretudo por Jaime Cortesão (e aplicada às viagens de exploração do século XV), mas que hoje se encontra completamente desacreditada. O autor de Para Além de Capricórnio, porém, afirma o contrário: “a obsessão de Portugal com o segredo em assuntos como as cartas [isto é, os mapas] e as viagens de descoberta é confirmada por todos os historiadores europeus com alguma autoridade” (p. 88). Todos, diz; eu, no que me diz respeito, não conheço nenhum, pelo que esperei, em vão, ver mencionado, pelo menos, um nome. Não o faz. Pelo contrário, acrescenta que “a pena vigente para a revelação de tais segredos de estado era a morte, uma política minuciosamente seguida”. Também seria interessante saber a sustentação de tal afirmação categórica mas, uma vez mais, nada diz. Na realidade, justificar o silêncio das fontes com o “segredo de estado” é apenas uma forma fácil e preguiçosa de dar largas à imaginação. De cada vez que é necessário apresentar provas, dados elementares, fontes, lá vem a mesma explicação: não há nada porque era segredo, e o pouco que havia foi destruído no terramoto de 1755 ou foi cuidadosamente apagado pelos censores. No caso concreto das alegadas viagens (de Cristóvão de Mendonça e, antes dele, de Diogo Pacheco) à Austrália, o caso é mais grave: não apenas não há nada que aponte para a sua realização – Trickett limita-se, em muitas páginas, a encenar o vazio – como o que existe contraria fortemente essa possibilidade, como se verá mais adiante. Existe até uma razão de simples bom senso: se os portugueses não fizeram segredo da chegada a Malaca, do acesso às “Ilhas das Especiarias” e às costas da China, e se se consideram normais as lacunas informativas com que nos deparamos hoje acerca de tantos aspetos de várias jornadas pioneiras – por exemplo, não há certeza sobre a data exata da primeira chegada a Timor – por que razão teria tão rigoroso segredo sido aplicado a uma terra tão desinteressante para os mercadores asiáticos (logo, também para os portugueses) e que ficava fora das rotas regionais de comércio?

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5.  Antes de entrar no cerne da sua teoria (a viagem de Mendonça e o Atlas Vallard), o livro faz uma incursão sobre a expedição de Diogo Pacheco. Que se sabe? Que sim, foi incumbido – como Mendonça mais tarde – de procurar a “ilha do ouro”. Esqueçamos as fantasias que envolvem Marco Polo. O que era? Essencialmente, uma ilha misteriosa localizada algures a sul de Samatra, mencionada em tradições e lendas malaias (o próprio nome de “ilha do ouro” é uma tradução à letra do malaio pulau emas). Luís Filipe Thomaz expõe, em diversos trabalhos, o que se sabe acerca do assunto, mas Trickett não os conhece ou cita10. Fernão Mendes Pinto – que Trickett menciona, mas apenas num excerto que é mais favorável às suas ideias – di-lo com clareza, ao falar dos Batak, na “ilha Samatra da parte do Oceano [isto é, na costa sul], onde se presume que jaz a ilha do ouro, que el rei D. João o III algumas vezes tentou mandar descobrir, por informações que destas partes [de Malaca] alguns capitães lhe escreveram”11. Houve efetivamente ordens emanadas de Lisboa para “descobrir” essa ilha, antes e depois de Mendonça. Nada que nos deva espantar: quem conhece minimamente a expansão portuguesa (e espanhola, bem entendido) sabe que a busca de metais preciosos era uma constante e que foram seguidas inúmeras pistas – muitas vezes lendas e histórias locais – à procura de presumidas “minas” de ouro, nomeadamente no interior de África e no continente americano. Tanto Mendonça como Diogo Pacheco limitaram-se provavelmente a contornar Samatra, sem grande novidade e com alguma deceção. Houve viagens posteriores, igualmente sem resultados conhecidos e, mais importante, sem nada – que se saiba até ao momento – que as ligasse ao continente australiano. Só nos finais do século XVI é que surgiram projetos de “descobrimento” de uma “Ilha do Ouro” que, com toda a probabilidade, parecem estar relacionados com um conhecimento real da Austrália. Trata-se das informações e projetos de Manuel Godinho de Erédia, mas Trickett não menciona, sequer, este personagem no seu livro. Que se sabe de Diogo Pacheco? Que em 1519 chegou a Barus, na costa sul de Samatra, e que aí recolheu informações

10

  Por exemplo, em “Java”, no Dicionário da História dos Descobrimentos, dir. Luís de Albuquerque, Lisboa, I, 1994, pp. 541-554 (que Peter Trickett coloca na bibliografia do seu livro mas que comprovadamente ignora), em “O malogrado estabelecimento oficial dos portugueses em Sunda”, in Aquém e Além da Taprobana, Lisboa, 2002, p. 517, ou em “A expedição de Cristóvão de Mendonça e o descobrimento da Austrália”, in Portugueses na Austrália, já cit., pp. 67-69. Ainda do mesmo autor – e em língua inglesa – são elucidativos “The image of the Archipelago in Portuguese cartography of the 16th and early 17th centuries”, Archipel, 49, 1995, pp. 79-124 e “Sumatra’s Westcoast in Portuguese Sources of the Mid‑16th Century”, in Regions and Regional Developments in the Malay-Indonesian World. European Colloquium on Indonesian and Malay Studies (ECIMS), Wiesbaden, 1992, pp. 23-32. 11

  Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, cap. XIII, Lisboa, 2010, II, p. 58.

489

12   João de Barros, Décadas da Ásia, Déc. III, Liv. III, cap. III, Lisboa, 1777, p. 272.

13

  Manuel de Faria e Sousa, Ásia Portuguesa, parte III, cap. III, Porto, vol. II, 1945, p. 28.

490

sobre a localização da “ilha do ouro”; que regressou a Malaca e que, no ano seguinte, volveu a Barus. Aí, segundo nos conta João de Barros, foi atacado por navios de mercadores guzerates (que já o haviam recebido mal na jornada anterior); Diogo Pacheco morreu e só sobreviveram alguns homens da sua tripulação, malaios de Malaca, que conseguiram atravessar a ilha e alcançar esta cidade. A narrativa do cronista é límpida e não oferece dúvidas12. Trickett, espantosamente, apresenta uma versão completamente diferente, embora a sua única fonte seja o mesmo Barros. Eis a forma como descreve o evento: “O cenário mudou abruptamente. Os dois navios portugueses encontram‑se em águas baixas, ao largo de uma praia anónima. Sente-se um vento contrário e são atacados por um bando de nativos hostis, alguns deles a bordo de canoas” (p. 66). Conclusão do autor: este episódio ocorreu numa praia australiana. Para justificar tão absurda ideia, interpreta livremente uma expressão do cronista, que diz que Pacheco “foi o primeiro a perder a vida por descobrir esta ilha de Ouro”. Acrescenta, como alegada prova irrefutável, um excerto da Ásia Portuguesa de Manuel Faria e Sousa. Bom, e que escreveu este cronista do século XVII? Comparemos as duas versões: Faria e Sousa: “Diogo Pacheco perdeu a vida com muitos num naufrágio buscando com dois navios a ilha do ouro”13 [bold meu]. Faria e Sousa, segundo citação de Trickett (p. 67): “Diogo Pacheco perdeu a vida com muitos outros num naufrágio enquanto fazia pesquisas com dois navios na Ilha do Ouro” [bold meu]. Isto não passaria de um mero lapso de tradução, não fosse o autor concluir, entusiasmado, o seguinte: “o relato de Sousa confirma inequivocamente que Diogo Pacheco perdeu a vida enquanto procurava «na» Ilha do Ouro e não «por» ela. Sousa é um registador de acontecimentos meticuloso, por isso não há motivo para se julgar que se tratou de um mero descuido da sua pena” (p. 67). Portanto, Peter Tricket não só leu mal a crónica, como se apressou a usar o erro como argumento para a sua pretensão de que o capitão português

foi o primeiro descobridor da Austrália: “Diogo Pacheco tem o direito a ser distinguido como o primeiro português a pisar solo australiano” (p. 77). Ainda assim, esta interpretação absurda da viagem de Pacheco nem seria muito grave, se Trickett não lhe dedicasse todo um capítulo do livro, juntando dados da etnologia e da arqueologia, nomeadamente dois canhões descobertos no século XIX, uma tradição oral afim recolhida em 1909 e pinturas aborígenes em cavernas que, segundo o autor, constituem vestígios de jornada e, em especial, da tal batalha na praia. Como esta é negada pelo mais elementar bom senso na análise das crónicas, como se viu acima, cai tudo pela base. Chega mesmo a imaginar que um local que os aborígenes chamam de “Pago” poderia ter sido assim batizado pelos malaios sobreviventes da tripulação de Pacheco, que teriam dado ao local o nome da cidadela do sultão de Malaca, destruída pelos portugueses pouco antes. Como é óbvio, não explica, entre outras incongruências, como é que tais sobreviventes teriam regressado a Malaca sem navio – são milhares de quilómetros – e como entender as palavras de João de Barros, que afirma claramente que “se meteram pelo sertão da ilha, atravessando‑a toda, e vieram ter da outra banda no norte.” Para Samatra, faz todo o sentido; para a Austrália, é um completo disparate. 6.  Eis-nos chegado ao âmago da obra e da sua “tese”: a viagem de Cristóvão de Mendonça. Deveria dizer “as viagens” porque Trickett defende que este capitão português fez não uma, mas duas viagens ao continente australiano, no espaço de três anos: na primeira terá explorado a costa ocidental, depois regressou a Malaca e, novamente partido, terá percorrido e cartografado a costa norte e a costa oriental do continente australiano, até à Nova Zelândia. Se juntarmos a presumida viagem prévia de Diogo Pacheco, em 1520, estamos perante três viagens portuguesas à Austrália no curto espaço de 4 anos. Para terra desconhecida e remota, de localização incerta e situada para lá de Timor e das rotas de comércio asiáticas, é um feito extraordinário. Mas, claro, estamos no domínio da ficção, e nesse tudo é permitido. 491

14

  Barros, op. cit., Déc. III, Liv. IV, cap. III, p. 412.

15

  Barros, op. cit., Déc. III, Liv. IV, cap. VII, p. 465.

492

O grande erro de Trickett, ao interpretar os dados da missão de que Cristóvão de Mendonça foi incumbido, resulta, uma vez mais, de uma leitura incorreta de uma passagem das Décadas de João de Barros: o cronista diz que “entre outras cousas que el-rei [D. Manuel I] mandava a Diogo Lopes [governador da Índia] que fizesse naquele ano, era que na mesma nau com Pedro Eanes enviasse alguma pessoa de que ele confiasse esta ida a descobrir as ilhas do ouro através da ilha Samatra”14 [bold meu]. O autor de Para Além de Capricórnio, não dominando suficientemente os tempos verbais da língua portuguesa, diz que “uma [das cartas do rei] informava o governador de que um dos capitães daquela frota «em quem ele [o rei] confiava» fora designado por ordem real para liderar uma viagem de descoberta às «Ilhas do Ouro»” (p. 80) [bold meu]. Pode parecer – uma vez mais – apenas um pequeno erro de leitura, mas é muito mais do que isso. O cronista diz que D. Manuel ordenou ao governador que mandasse alguém em quem depositasse a sua confiança e, portanto, foi Diogo Lopes de Sequeira quem escolheu Cristóvão de Mendonça para a missão. Trickett, ao invés, afirma que foi o próprio rei que o fez. A partir daqui deduz todo um argumentário decorrente desta suposta ordem direta do rei, que Cristóvão de Mendonça estaria obrigado a cumprir, por dever e por receio de sofrer as consequências – terríveis, segundo Trickett – se falhasse ou desobedecesse (pp. 87-88, 303). A estas falácias e distorções, o autor acrescenta mais uma: o rei D. Manuel estaria obcecado em chegar à “ilha do ouro”, que consideraria um objetivo essencial e prioritário. Nada mais enganador; na verdade, era apenas um entre vários. Bastaria que Trickett tivesse lido a mesma crónica de João de Barros, umas páginas mais adiante, para ter entendido esta premissa: “Cá el-rei queria que se fizesse uma fortaleza em Maluco, outra em Samatra, outra nas ilhas de Maldiva, outra em Chaul, e que entrasse no Estreito [de Adem], e trabalhasse por tomar Diu, onde também fizesse outra fortaleza, e que mandasse à China, e descobrisse as ilhas do ouro, e a outras partes; cuidar nas quais cousas cansava o espírito, quanto mais pô-las em efeito”15.

Passemos aos factos. A viagem de Mendonça teve início a 4 de maio de 1521, data em que saiu de Cochim com uma armada de 4 navios com a missão de procurar a “ilha do ouro”. Esta informação é dada, não por João de Barros, mas por um documento avulso. É necessário mais um parêntesis para referir a dramatização que Trickett elabora em torno disto: afirma que este documento foi descoberto “apenas no ano passado” por um historiador português, José Alberto Barata, “que descobriu referências à expedição à «Ilha do Ouro» de Mendonça em arquivos oficiais portugueses oriundos de Moçambique” (p. 85). Num artigo publicado no Sol em 2013, Trickett vai mais longe e diz o seguinte: “O relato da partida da frota portuguesa só recentemente se tornou acessível, graças a um projecto financiado pela EU para digitalizar arquivos portugueses com relevo patrimonial. Este conjunto particular de documentos fazia parte de uma colecção intitulada ‘Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central’”16. Na verdade, toda esta informação está errada ou distorcida: trata-se de um documento publicado há mais de 50 anos – mais precisamente em 1963, numa coleção com aquele nome – e cujo original se encontra na Torre do Tombo17. Voltemos a Cristóvão de Mendonça. O cronista João de Barros descreve a forma como a sua armada se juntou a outras – como a de António de Brito, destinada às Molucas – em Pasai, no norte de Samatra, onde os portugueses intentavam construir uma fortaleza e firmar uma aliança com o sultão local. O agravamento da turbulência política no sultanato e a crescente hostilidade local levaram o capitão de Malaca a ordenar a Cristóvão de Mendonça, entre outros capitães, que por lá ficasse a auxiliar a construção da referida fortaleza, tanto mais que já tinha passado a época da monção favorável para prosseguir a sua viagem. E conclui: “a qual [fortaleza] depois que foi posta em estado que se podia bem defender, Cristóvão de Mendonça e Dinis Fernandes foram-se para Malaca”18.

16

  “Como os portugueses chegaram à Austrália antes de toda a gente”, Sol, 23 de maio 2013. 17

  “Rol das naus e navios que el rei tem na Índia”, 11.5.1522, in Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central, ed. A. da Silva Rego e T. Baxter, Lisboa, vol. II, 1963, p. 96.

18

  Barros, op. cit., Déc. III, Liv. V, cap. III, p. 549.

7.  A 10 janeiro de 1522, Mendonça está em Malaca. Tinha saído de Cochim a 4 de maio anterior e João de Barros descreve o que fez neste meio tempo, como se viu. Porém, para o 493

19

  Barros, op. cit., Déc. III, Liv. IV, cap. III, p. 413.

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autor de Para Além de Capricórnio, “esta história não parece completamente verídica”. Escudando-se, uma vez mais, na alegada ordem pessoal de D. Manuel, duvida que Mendonça tenha ajudado à construção da fortaleza em Pasai e, recorrendo novamente ao argumento do segredo e da censura, defende, em tom interrogativo, que o relato do cronista João de Barros deverá ser “uma informação errada propositada, uma cobertura para uma viagem secreta de exploração” (p. 303). Numa palavra, afirma que Mendonça fez uma primeira viagem à costa australiana neste lapso de tempo. É escusado dizer que nada disto tem a mais pequena sustentação histórica e é, até prova em contrário, pura ficção. Retomemos o fio à meada: a 10 de janeiro de 1522, Cristóvão de Mendonça está em Malaca. Só voltaremos a ter notícias dele em maio de 1524, quando passou o Cabo da Boa Esperança de regresso a Portugal. Uma vez mais, podemos interrogar-nos sobre o que fez neste meio tempo. Para Peter Trickett, foi por esta altura que fez a sua segunda viagem à Austrália, desta vez à costa oriental, e à Nova Zelândia. É a descrição desta jornada que ocupa a maior parte do livro e é verdadeiramente o coração da obra. Na verdade, nenhum cronista, nenhum documento atesta que Mendonça tenha efetivamente feito a sua viagem de procura da “ilha do ouro”. Trickett interpreta este silêncio, nomeadamente de João de Barros, da seguinte forma: o cronista “indica que voltará a mencionar mais tarde a viagem de descoberta da ilha do Ouro mas, por estranho que pareça, não o faz” (p. 87). Impõe-se rigor: o que Barros realmente escreve é que “da viagem do qual [Cristóvão de Mendonça] adiante faremos menção”19; da viagem deste capitão, note-se, e não da viagem à “ilha do ouro”. E faz efetivamente menção, quando descreve as suas peripécias em Pasai em capítulos posteriores, como se viu acima. E que deduz o autor australiano do silêncio de João de Barros sobre a expedição à “ilha do ouro”? Que a mesma “teve como resultado descobertas que foram classificadas como segredo de estado. Sabendo isso, Barros poderá ter considerado necessário manter um silêncio absoluto.” Em alternativa, sugere que terá sido vítima de censura, por motivos idênticos

(p. 88). Mais uma vez, tudo isto são especulações e deduções sem fundamento, manobras de diversão para ocultar o vazio. Não se sabe se Mendonça chegou a realizar alguma expedição em busca da “ilha do ouro”; se o fez, ter-se-á provavelmente limitado a contornar Samatra, como Diogo Pacheco, pouco tempo antes. Defender que teria percorrido todo o arquipélago malaio-indonésio e passado além de Timor, em águas raramente navegadas e cujas condições os portugueses desconheciam, que teria tocado o continente australiano, percorrido, reconhecido e cartografado todo o litoral até à Nova Zelândia, regressado a Malaca, seguido daí à Índia, e que já estivesse a meio caminho de regresso a Portugal em março de 1524, não passa de um exercício de imaginação fértil. A prová-lo, do ponto de vista documental, estão duas informações que Peter Trickett ignora: a primeira é que o documento que atesta a presença de Cristóvão de Mendonça e do seu navio em Malaca a 10 de janeiro de 1522 – que Trickett diz ter sido descoberto “recentemente” por José Alberto Barata (p. 95) mas que o foi, na verdade, por Luís Filipe Thomaz e citado num artigo já com 20 anos20 – apresenta ambos como prontos para seguir para Ormuz21; a segunda é que os restantes três navios da sua armada estavam em Malaca algures em 1523 (informação atestada por carta escrita em Goa em outubro desse ano)22. Deste modo, a longa descrição de cada passo da alegada viagem de Mendonça é inverosímil. É interessante, sim, e pode fornecer algumas pistas para futuras investigações no que diz respeito ao Atlas Vallard e a vestígios da presença portuguesa na Austrália, mas nunca envolvendo este capitão português.

8.  O chamado Atlas Vallard é um conjunto de mapas que contém, em três deles, uma representação de uma grande massa continental a sul da ilha de Java. O seu interesse particular reside no facto de conter pormenores da topografia, como rios, cabos, montes, acompanhados de uma toponímia de origem – pelo menos, de boa parte deles – indiscutivelmente portuguesa23. O Atlas é datável de meados do séc. XVI

20   No artigo “Java” do Dicionário da História dos Descobrimentos, já cit., vol. I, p. 551. 21

  Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Corpo Cronológico, II-98-62; agradeço a Miguel Rodrigues Lourenço a ajuda que me prestou na sua leitura. 22

  Carta de António da Fonseca a el-rei, Goa, 18.10. 1523, in Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central, já cit., vol. II, p. 226. Deve-se a Luís Filipe Thomaz a leitura correta do documento, nomeadamente do nome de Cristóvão de Mendonça, em “A Expedição de Cristóvão de Mendonça e o Descobrimento da Austrália”, já cit., p. 78, nota 126. 23

  O Atlas Vallard está disponível, com imagens de excelente resolução, na página da internet da Huntington Library (em http://sun site3.berkeley. edu/hehweb/HM29.html); existe uma recente ediçãoreprodução em pergaminho da editora M. Moleiro, com excelentes estudos e notas a acompanhar, da autoria de Luís Filipe Thomaz e de Dennis Reinhartz.

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24

  Um dos mais tenazes opositores a esta identificação é W. A. R. Richardson, em “Terra Australis, Jave la Grande and Australia: Identity Problems and Fiction”, in European Perceptions of Terra Australis, Farhman, 2011, pp. 83-110, entre outros trabalhos.

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e integra-se na chamada “Escola de Dieppe”, um conjunto de cartógrafos franceses que produziu um considerável número de mapas nessa época. Alega-se geralmente que esses mapas reproduzem informações de cartas portuguesas, hoje desaparecidas, mas cuja origem é facilmente detetável pelos nomes portugueses. A interpretação do significado da grande massa continental que vários (incluindo o Altas Vallard) representam a sul de Java e a que chamam de “Jave-la-Grande” ou nomes idênticos, tem despertado a curiosidade e estimulado o interesse de estudiosos da cartografia desde há muito. Se há quem defenda que se trata da Austrália, há quem argumente em sentido oposto24. Esta discussão está, portanto, longe de estar terminada e permanece um fascinante mistério ainda em aberto. Parece mais ou menos consensual que estes mapas indiciam seguramente algum conhecimento do continente australiano por parte dos portugueses, mas há inúmeros aspetos mal explicados e dúvidas que recomendam prudência na formulação de apreciações e juízos. Para Peter Trickett, não há dúvidas nem hesitações. É verdadeiramente uma pena que o autor tenha dispendido tanto tempo e esforço na “colagem” do Atlas a Cristóvão de Mendonça, porque a análise meticulosa a que se dedica, entre os capítulos 3 e 8 do livro, comparando os troços de costa da “Java” do Atlas Vallard com os acidentes da costa australiana real, é verdadeiramente interessante. Igualmente o é a forma como cruza estas informações com outros dados, nomeadamente com relatos de viajantes de épocas posteriores, vestígios arqueológicos e tradições orais. Mesmo a sua proposta de explicação para a anomalia do “apêndice” no mapa, sugerindo que se tratou de um erro de alinhamento dos originais portugueses (pp. 157-159), é plausível, embora uma mera hipótese. Todavia, Trickett ignora que boa parte dos topónimos do mapa foram provavelmente colocados de forma arbitrária, apenas para “encher espaço” e para tentar mostrar um conhecimento muito superior ao real – truque muitas vezes utilizado pelos cartógrafos para ocultar a sua ignorância – a juntar ao facto de se tratar de um atlas de luxo, ornamental, para ser admirado e invejado e não para ter uso técnico e prático a bordo de um navio.

Além disso, a “Austrália” do Atlas Vallard reconstituída por Trickett não deixa de parecer demasiado perfeita, tanto mais que outras regiões litorais asiáticas, que os portugueses comprovadamente conheciam muito melhor, surgem desenhadas de forma bem mais deficiente e incorreta. Não obstante, a investigação contida na obra poderia potenciar um real avanço no estado do conhecimento sobre a temática da chegada dos portugueses à Austrália no século XVI, não fosse a duvidosa fiabilidade dos critérios do autor. Por outras palavras, as enormes deficiências que revela na análise documental e a sua manifesta impreparação e desconhecimento da expansão portuguesa é um mau indicador para que as suas deduções e  conclusões noutras áreas sejam credíveis sem verificação apurada por especialistas. Esta cautela é necessária. Alguns exemplos no que toca à análise do mapa: Trickett lê “C: Arianj” e interpreta como “cabo Laranja” (p. 98) onde no Atlas Vallard está escrito “carianj”; lê “G: Ferro” (“Golfo Ferro”, p. 111) onde consta “G: Serra” e “Rio Ferondo” (corrupção de “Rio Ferroso”, segundo Trickett, p. 115) onde no Atlas está “Rio serondo”; “Rio Derniro” é interpretado como “uma corruptela de «Rio de [Ja]neiro»” (p. 188), “Rio Andrio” é “uma versão adulterada de Rio Áureo” (p. 331) e “Quaresma” é o “equivalente moderno português” do topónimo “Quarama” que aparece no mapa (p. 333). A cada acidente geográfico, o autor faz as esperadas deduções, invariavelmente associadas a Cristóvão de Mendonça e a supostos momentos da sua jornada. A sua interpretação das tradições orais locais suscitam igualmente grandes suspeitas e reservas. O seu método de interpretar palavras das línguas aborígenes “como soam” em português é arbitrário e nada fiável. São exemplos significativos a interpretação da tradição maori que, segundo Trickett, reproduz a chegada de Mendonça e a cantiga que os seus marinheiros entoavam a içar âncora (pp. 255-258), e a “leitura” de “Pettungerbe” (que diz ser outro nome de Bittangabee), que passa a “Pettunger”, depois a “Petungel”, “Pertungel” e, finalmente, a “Portingal”, e que Trickett associa à existência de um clã aborígene que, segundo afirma, vivia perto e que 497

era conhecido como “Katungal”. Ambos os nomes assemelham-se, evidentemente, a “Portugal” (pp. 218-219). Afirmar que o nome de uma determinada etnia, chamada de Jaudibaia, provém do português “gente da baía” (p. 315) é, no mínimo, insólito. Por fim, há que levar em conta o seu mau conhecimento da língua e das fontes portuguesas, visível ao longo de todo o livro: dizer que “aljôfar” (palavra muito comum na documentação portuguesa sobre a Ásia e que designa um tipo de pequenas pérolas) “parece ser uma palavra de origem polinésia e, na verdade, possui uma semelhança curiosa com a segunda parte do nome da capital do Tonga, Nukualofa” (p. 263) é um bom indicador da medíocre fiabilidade que merecem as suas deduções linguísticas. De entre as inúmeras manobras argumentativas que o autor do livro utiliza para compor a sua narrativa, há uma que não pode deixar de ser mencionada: se Cristóvão de Mendonça cartografou o litoral australiano, como é que os seus mapas foram parar às mãos dos franceses de Dieppe, que os teriam copiado para desenhar, entre outros, o Atlas Vallard? Muito simples, para Trickett: o navio em que Mendonça regressou a Portugal (o Vitória, que passou o Cabo da Boa Esperança em maio de 1524 e aí deixou uma placa) teria sido assaltado por corsários franceses, que lhe terão roubado os mapas (p. 294). Este evento, perfeitamente imaginário, é incongruente com a própria narrativa de Trickett: se Mendonça chegou a Lisboa sem os preciosos mapas, fruto de anos de explorações e que revelavam, finalmente, a tão cobiçada “ilha do ouro” – também não se percebe como é que os corsários só teriam roubado mapas –, como se entende que tenha sido “recompensado pelos seus serviços com um lucrativo destacamento no ultramar, concedido pelo grato rei D. João III” (p. 266)? Assim, a narrativa é transferida de Mendonça para Dieppe, onde os alegados mapas roubados terão ido parar e cujas informações os armadores franceses terão usado para a preparação de uma viagem à Ásia, pouco depois. De seguida, introduz o personagem Jean Alfonse, na verdade o português João Afonso, cuja vida misteriosa e escritos intri498

gantes suscitam ainda hoje várias interrogações. Para Trickett, era provavelmente um agente duplo ao serviço de Portugal que teria espalhado informações falsas nos círculos cartográficos franceses, de dois tipos: que Java e Austrália eram a mesma coisa, ou seja, que a ilha de Java estava “pegada” ao continente austral para induzir a ideia de que só era possível chegar às Molucas navegando pelo norte de Java, o que permitiria a Portugal “excluir outras nações do seu lucrativo comércio de especiarias”; em segundo lugar, colocar o continente australiano muito a oeste da sua localização real, de modo a “puxá‑lo” para a metade do mundo atribuída a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas (p. 297). Uma vez mais, trata-se de especulações mal fundamentadas. Uma nota final acerca da bibliografia, que é pobre, incompleta e desatualizada. A historiografia portuguesa está praticamente ausente. Não constam obras coletivas nem monografias ou estudos regionais sobre a presença portuguesa na Ásia. O único trabalho recente é o de José Alberto Barata25; afora isso, apenas Armando Cortesão e um artigo de 193926, que o autor cita como se fosse um livro e de que omite a segunda parte do título (“e a Questão das Molucas”). Mesmo em autores anglófonos, a lista é muito limitada: Sanjay Subrahmanyam, Anthony Disney, A. Russel-Wood, entre tantos outros especialistas da Ásia portuguesa, estão ausentes; apenas Boxer, Villiers e Pearson fazem a sua aparição. Este facto é um importante fator explicativo das enormes debilidades da obra: tivesse o autor dedicado mais tempo ao estudo das especificidades da presença portuguesa na região, dos enquadramentos explicativos, das fontes e das crónicas, e menos a puxar pela imaginação para construir todo um enredo preconceituoso em torno de Cristóvão de Mendonça, e o resultado teria sido seguramente mais feliz. Em 2009, Peter Trickett recebeu do estado português a Comenda da Ordem do Mérito, que se destina a “galardoar actos ou serviços meritórios praticados no exercício de quaisquer funções, públicas ou privadas, que revelem abnegação em favor da colectividade.” Ignoro que critérios presidiram a esta atribuição; credibilidade académica e valor científico

25

  José Alberto Leitão Barata, Os Senhores da Navegação, Lisboa, 2003. 26

  Armando Cortesão, “O descobrimento da Australásia e a «Questão das Molucas»”, in História da Expansão Portuguesa no Mundo, vol. II, Lisboa, 1939, pp. 129-150.

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relevante não foram, certamente, porque Para Além de Capricórnio, sem deixar de conter pistas de trabalho interessantes, é, fundamentalmente, uma ficção. Concluo, portanto, que o livro só mereceu tradução em português e o carinho da imprensa nacional, e o seu autor uma Comenda oficial, porque é lisonjeiro para com os portugueses e o seu ego. É, aliás, no terreno do elogio nacionalista que os seus defensores se movem e colocam o enfoque: aceitar as teses de Trickett é uma questão de patriotismo. O próprio autor não enjeita o aproveitamento deste fator em seu benefício, como é visível no seu artigo publicado no Sol, citado acima: “Há no mínimo uma certa ironia no facto de um professor português se juntar às hostes dos que contestam a hipótese [do descobrimento da Austrália pelos portugueses] (...)” ou “parece irónico que tenha sido deixada ao cargo de um académico australiano a tarefa de avaliar o significado da prova-chave [dos nomes da toponínia do Atlas Vallard] (...). Seria expectável que um académico português tentasse avaliar o seu significado. Na realidade, foram totalmente ignorados.” Portanto, a História continua a ser um joguete no quadro de sentimentos pseudopatrióticos, próprios ou alheios, exigindo um redobrado cuidado na análise e apreciação de trabalhos deste tipo.

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