A autonomia da verdade artística: Badiou e o \"gesto platônico\"

June 3, 2017 | Autor: Ítalo Alves | Categoria: Aesthetics, Philosophy of Art, Truth, Alain Badiou, Handbook of Inaesthetics
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A autonomia da verdade artística: Badiou e o “gesto platônico”1

Ítalo Alves IA/UFRGS PPGFIL/PUCRS [email protected]

Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica! — Álvaro de Campos, ‘Lisbon Revisited’.

Introdução Quando falamos sobre arte, assumimos, por assim dizer, o léxico de um discurso particular sobre um objeto universal. Por exemplo, se falo na alta renascença e nas condições do florescimento da arte de Michelangelo na Itália, poucos discordarão que me valho de um discurso próprio à história da arte. Se me refiro à obra de Cézanne, por outro lado, discorrendo sobre sua característica de “ligação da ilusão tridimensional a um efeito decorativo de superfície”,2 parece que falo segundo um discurso da crítica de arte. Da mesma forma, se me refiro a uma obra de arte como manifestação sensível de uma verdade transcendente, tudo nos leva a crer que falo de filosofia da arte. Apesar de muitas vezes a distinção entre os discursos não se dar de maneira tão clara como no meu exemplo, a particularidade de cada discurso pode ser definida a partir daquilo que lhe é próprio. O próprio do discurso filosófico, sustento aqui a título de hipótese, é o tema da verdade. À filosofia cabe lidar, acima de tudo, com o conceito de verdade – qual sua natureza, como se manifesta, como é apreendida e como é pensada? Ao darmos esse passo – atribuindo a verdade como objeto da filosofia – questões adicionais aparecem quando pensamos em filosofia da arte: qual é a relação, agora, da verdade com a arte? É possível, ou faz sentido, falar em valor filosófico do objeto artístico? Pretendo abordar essas questões, já bastante familiares à história da filosofia da arte, a partir de dois conceitos do filósofo francês contemporâneo Alain Badiou: primeiro, o conceito de “gesto platônico”, a tentativa de retomada ou resgate pela filosofia contemporânea, do conceito de verdade, ao qual a filosofia tem sido pouco simpática, 1

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Trabalho apresentado no III Seminário de História da Arte da UFRGS, em 1º de junho de 2016, na Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre/RS. Agradeço aos professores Luís Edegar Costa e Norman Madarasz, cujas discussões em aula me auxiliaram na composição desta apresentação. Greenberg, 2001, p. 69.

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dada sua tendência antiplatônica do século XX. Segundo, o conceito de “inestética”, uma proposta de instauração de um novo regime de entrelaçamento entre a arte e a verdade. Minha apresentação será dividida em duas partes. Na primeira, retomo brevemente a abordagem da arte por Platão, sobretudo na República, que imagino ser de conhecimento dos presentes, bem como apresento concepções posteriores, a saber, a clássica e a romântica. Na segunda parte, introduzo a noção de inestética, argumentando por uma autonomia do fazer artístico como produtor de verdades.

Parte I Platão trata do tema da representação artística mais detidamente dentro da República, sobretudo no livro X, através da crítica à arte mimética. A mimese, ou imitação, segundo Platão, está afastada em muitos níveis da verdade, ou do Real, e dela constitui uma deturpação muito grande. Se há alguma identidade entre a obra de arte e a verdade, essa identidade não passa de uma coincidência, pois o artista, como imitador, não tem acesso à realidade da coisa, apenas já a uma manifestação rapsódica dela. O sistema platônico pode ser divido em três níveis: no primeiro, há as coisas-em-si, as Ideias. É nesse âmbito que circulam as verdades das coisas. É um campo puramente intelectual. O segundo nível é o nível da efetividade, ou da manifestação material das coisas em si, já constituindo, portanto, uma forma de sua limitação ontológica. O terceiro nível é o nível da representação artística imitativa. Neste nível estão as obras de arte: imitações das aparências das coisas-em-si. Platão usa o exemplo da cama para ilustrar: no primeiro nível, há a cama de Deus – perfeita, ideal; no segundo, a cama do marceneiro, que constitui uma representação menos perfeita da cama ideal; no terceiro nível, a cama que o artista representa, que toma como base a cama do marceneiro, necessariamente, não a cama ideal. A crítica platônica à mimese está intimamente ligada à sua concepção de verdade como una e filosófica. Una porque indivisível – não se fala em múltiplas verdades possíveis e coexistente, mas em uma única. E filosófica porque alcançada apenas pela atividade do pensamento. A proposta de Badiou, a partir desse cenário, através de seu “gesto platônico”, é de retomada de um conceito de verdade como categoria central do pensamento filosófico. Badiou, porém, propõe um “platonismo do múltiplo”3 – nossos tempos não comportam mais, sobretudo após Nietzsche ter declarado a morte de Deus, o pensamento da totalidade do uno. Em seu lugar, a verdade deve ser pensada como essencialmente múltipla. Cito Badiou: Aqui, novamente, Nietzsche inaugura o julgamento da verdade em nome da potência múltipla da vida. Como não podemos nos furtar da jurisdição dessa potência do pensamento do ser, somos forçados a propor uma doutrina da verdade compatível

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Badiou, 1999, p. 103.

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com a multiplicidade irredutível do ser enquanto ser. Uma verdade pode ser apenas a produção singular de um múltiplo.4

A criação dessas verdades múltiplas Badiou identifica como sendo possível através de quatro categorias, independentes da filosofia: a matemática, capaz de verdades científicas; a arte, capaz de verdades artísticas; a política, capaz de verdades políticas; e o amor, capaz de verdades eróticas. Sua tese a respeito dessa divisão se encontra em sua teoria do acontecimento, que não terei tempo de expor aqui e peço que tomemos como axioma. *** Voltando a Platão: Badiou identifica no filósofo grego o que chama de esquema “didático” de entrelaçamento entre arte e verdade. Já que Platão ostraciza a arte em relação à verdade, a arte só pode ser tratada de maneira instrumental, mediante a vigilância filosófica das verdades. Segundo Badiou, o esquema didático-platônico teve em Beckett um representante no século XX: Para Beckett, o palco seria construído sobre a verdade científica do materialismo dialético. A arte estaria separada dessa verdade, mas serviria, de qualquer forma, como instrumento pedagógico – instruiria no sentido da verdade científica. Um segundo esquema de entrelaçamento arte–verdade é o “romântico”. Se para o esquema didático a arte, apesar de instruir, não seria capaz de verdade, para o romântico apenas a arte está apta à verdade. Ela “realiza o que a filosofia pode apenas indicar”5. “Nesse sentido”, diz Badiou, “é a própria arte que educa, porque ensina o poder de infinidade contido na coesão suplicada de uma forma. A arte entrega-nos à esterilidade subjetiva do conceito. A arte é o absoluto como sujeito, é a encarnação”6. Entre o “banimento didático” e a “glorificação romântica” existe o que Badiou chama de uma “paz relativa entre a arte e a filosofia”, identificada como o esquema “clássico”, que pode ser resumido em duas teses aristotélicas: Primeira, a arte, da mesma forma que sustenta Platão, é essencialmente mimética, da ordem da aparência; Segunda, isso, porém, não é um problema, já que o propósito da arte não é nem verdade nem pedagogia, mas terapia. Isto é, a arte é catártica, e refere-se “à deposição das paixões numa transferência sobre a aparência”.7 A arte não tem função cognitiva, mas de tratamento das afecções da alma. Recapitulando: no didatismo, a filosofia tem um papel de vigilância educativa da verdade, que não é capaz de verdade; no romantismo, a arte realiza plenamente a verdade da qual a Ideia é capaz; no classicismo, a arte capta o desejo e educa em sua capacidade terapêutica, aqui a filosofia surge como estética propriamente – diz sobre o aspecto do “agradar” da obra de arte. 4 5 6 7

Badiou, 1999, p. 104. Badiou, 2002, p. 13. Badiou, 2002, p. 13. Badiou, 2002, p. 14.

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O século XX, apesar de ter sido o século das rupturas, não teria, segundo a análise de Badiou, proposto nenhuma forma nova de concatenação de arte e filosofia. Ao contrário, seria então que os entrelaçamentos estabelecidos teriam chegado em um momento de saturação. Sintoma dessa saturação seria um movimento de “desenlaçamento” dos termos, característico da época contemporânea.

Parte II Nessa situação de saturação, é proposta uma modalidade nova de relação entre arte e filosofia, a inestética. Esse entrelaçamento surge, primeiramente, da análise de duas categorias dos esquemas anteriores em suas propostas de relação entre os termos: a de “imanência” e de “singularidade”. A relação que um entrelaçamento propõe é imanente se a verdade é interna ao efeito artístico da obra. Da mesma forma, ela é singular se essa verdade testemunhada pela arte é própria à arte e a nenhum outro registro. A constatação, portanto, é a seguinte: No esquema didático, a relação é singular, mas não imanente: a arte tem um papel pedagógico singular, mas a verdade continua externa a si; No esquema romântico, a relação é imanente, mas não singular – nas palavras de Schelling: “Propriamente falando há apenas uma obra de arte absoluta, que pode de fato existir em versões completamente diferentes, porém continua sendo apenas uma, mesmo que ainda não existe em sua forma mais completa”;8 No esquema clássico, não há nenhuma relação entre arte e verdade. A arte é relegada ao campo dos efeitos, como verossimilhança, catarse e transferência. Temos, em resumo, o seguinte quadro: Imanente

Não imanente

Singular

~Inestética~

Didático

Não singular

Romântico

Clássico

Fonte: Shaw, 2007.

A posição que a inestética procura ocupar, nesse quadro, é o de esquema que conceba a relação entre arte e verdade tanto como singular quanto como imanente: a arte como produtora de verdades inerentes aos seus efeitos e que não sejam dadas em nenhum outro lugar a não ser a arte. A arte existe e é verdade. O papel da filosofia em relação a ela restringe-se a mostrar essa verdade como tal. Da mesma forma que se espera que seja saborosa a comida e não o chefe de cozinha, encontra-se a verdade na arte, não na filosofia. Subsistem, porém, algumas questões a respeito da natureza dessa verdade artística e da forma de apreensão dela pelo pensamento filosófico, bem como da unidade daquilo que é determinado “obra de arte”. Para abordar o problema, Badiou introduz alguns conceitos, entre os quais o de “configuração artística” e “ponto-sujeito”, que podem servir na formulação de um esquema e podem ser sintetizados nas sete proposições seguintes: 8

Shaw, 2007, p. 187-188.

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1) Como regra geral, uma obra não é um acontecimento. É um feito da arte, é aquilo com que o procedimento artístico é tecido. Aqui é importante destacar que o conceito de “acontecimento” tem um lugar bastante particular no sistema de Badiou. Em “Ser e Acontecimento”, sua maior obra, Badiou se propõe pensar o surgimento do novo. A solução que aponta é a noção de acontecimento: uma ruptura no “estado da situação” capaz de instaurar, retrospectivamente, um regime novo de ser. Badiou diz que a obra não é o acontecimento, mas, de certa forma, seu produto. 2) Uma obra tampouco é uma verdade. Uma verdade é um procedimento artístico iniciado por um acontecimento. Esse procedimento só é composto por obras. Mas não se manifesta – como infinidade – em nenhuma. A obra é, portanto, a instância local, o ponto diferencial de uma verdade. Ou seja, um acontecimento, uma ruptura, instaura um procedimento artístico novo. Esse procedimento artístico é o que se identifica como a verdade artística. Essa verdade, por sua vez, é manifesta através de obras. 3) Vamos chamar esse ponto diferencial do procedimento artístico [isto é, a obra] de seu sujeito. Uma obra é sujeito do procedimento artístico considerado, ou ao qual essa obra pertence. Ou ainda: uma obra de arte é um ponto-sujeito de uma verdade artística. O conceito de “ponto-sujeito”, entendido como sequência de obras representativas e resultantes de um acontecimento, é a forma que Badiou encontra de evitar que a obra seja, por um lado, considerada como um objeto absoluto e, de outro, afastá-la de ser entendida como produto de um gênio. 4) Uma verdade não tem nenhum outro ser que não obras, é um múltiplo (infinito) genérico de obras. Mas essas obras somente tecem o ser de uma verdade artística segundo o acaso de suas ocorrências sucessivas. 5) Pode-se dizer também: uma obra é uma investigação situada sobre a verdade que ela atualiza localmente ou da qual é um fragmento finito. 6) A obra está assim sujeita a um princípio de novidade. Pois uma investigação é retroativamente validada como obra de arte real enquanto é uma investigação que não teve lugar, um ponto-sujeito inédito da trama de uma verdade. 7) As obras compõem uma verdade na dimensão pós-acontecimento, que institui a imposição de uma configuração artística. Uma verdade é, finalmente, uma configuração artística, iniciada por um acontecimento (um acontecimento é em geral um grupo de obras, um múltiplo singular de obras), e arriscadamente exposta sob a forma de obras que são seus pontos-sujeitos.

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Em suma: a unidade do pensamento da arte como verdade não é propriamente nem a obra nem o autor. A verdade artística deve ser pensada olhando-se para a configuração artística, que é, ela própria, iniciada por um acontecimento, uma ruptura que, em geral, torna a configuração anterior obsoleta. Essa configuração, Badiou, diz, “não tem nome próprio, nem contorno finito, nem mesmo totalização possível sob um único predicado. Não é possível esgotá-la, apenas descrevê-la imperfeitamente. É uma verdade artística, e todos sabem que não existe verdade da verdade”. A configuração artística, ponto-chave na proposta da inestética, não é nem uma arte, nem um gênero artístico, nem um período da história da arte, nem uma técnica. Como já mencionado, ela é verdade. É o conjunto de um evento-ruptura, que gera um procedimento e do qual se depreendem obras. À filosofia cabe apontar em que medida essa configuração é verdade, ou seja, apontar a verdade da configuração. Esse apontamento, por sua vez, dependerá da própria configuração artística do tempo. Por esse motivo, é impossível criar um discurso pronto da inestética. Como a filosofia, em sua relação com a arte, dependeria da verdade da configuração artística, seu instrumental para mostrar verdades é sempre determinado, isto é, dependente do estado da situação. Por isso, diz Badiou, a configuração “é pensável na junção do processo efetivo da arte e das filosofias que a apreendem”.

Conclusão Recapitulando: Platão pensa a arte mimética como afastada da verdade, já que sua concepção de verdade é una e filosófica. Com isso, inaugura a primeira de três formas de entrelaçamento da filosofia com a arte. As outras duas são a romântica, que entende que apenas a arte é capaz de verdade, e a clássica, que não vê nenhuma relação nem de imanência nem de singularidade da verdade em relação à arte. Badiou, em sua proposta de inestética, propõe um retorno ao conceito de verdade para a filosofia da arte, porém concebendo essa verdade como múltipla, e garantindo ao fazer artístico autonomia em relação a outras verdades. A proposta de entrelaçamento entre filosofia e arte da inestética é de que àquela, filosofia, cabe apenas apontar, e não pensar, uma verdade que é inerente a esta, a arte. Esse pensamento é diretamente dependente, por sua vez, da configuração artística da qual e de onde fala. Apesar do tema da autonomia da arte ter entrado em voga no século XX, me parece que a proposta da inestética é que a que consegue levá-la a seu maior desenvolvimento conceitual. Rancière, por exemplo, também pensa a arte como campo autônomo, mas ao mesmo tempo a põe como diretamente ligada à política. Danto, por outro lado, entende que a história da arte acabou como tal, mas subsume o campo artístico ainda ao pensar filosófico. Badiou, por sua vez, eleva a autonomia do campo à sua totalidade: a verdade artística pensa a si mesma. Se há algum papel da filosofia, é o de apontar esse pensamento.

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Referências Badiou, Alain. Manifesto for philosophy. [Tradução Norman Madarasz]. Albany: SUNY Press, 1999. Badiou, Alain. Pequeno manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. Connole, Edia. The ‘event’ in Art: Inaesthetics? Art in the Contemporary World. [online]. 19 nov. 2009. Disponível em: < http://www.acw.ie/images/uploads/event.pdf>. Acesso em: 25 mai. 2016. Greenberg, Clement. Arte e Cultura. São Paulo: Ática, 2001. Rancière, Jacques. Aesthetics, Inaesthetics, Anti-aesthetics. In: Hallward, Peter (Ed.). Think Again: Alain Badiou and the future of philosophy. London: Continuum, 2004. Shaw, Devin Zane. Inaesthetics and truth: the debate between Alain Badiou and Jacques Rancière. Filozofski vestnik, v. XXVIII, n. 2, p 183-199, 2007. Werle, Marco Aurélio. Platão e as vanguardas artísticas do século XX. Artefilosofia, n. 10, p. 54-65, abr. 2011.

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