A azulejaria barroca e a invencao do espaco

July 23, 2017 | Autor: José Meco | Categoria: Decorative Arts
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A azulejaria barroca e a invenção do espaço

JOSÉ MECO


Portugal pode orgulhar-se de ter produzido os azulejos barrocos mais
fantásticos, teatrais e cenográficos de toda a Europa. Realizados na maior
parte nas oficinas de Lisboa, esta produção imensa de azulejaria atingiu
uma difusão extraordinária por todo o território português continental, as
Ilhas Atlânticas e antigas colónias, como Angola e, muito em especial, o
Brasil, onde forma uma das mais destacadas componentes do património
artístico de raiz portuguesa.
Esta originalidade foi conseguida através da adaptação perfeita aos
mais variados espaços arquitectónicos, resultante da medição rigorosa dos
mesmos e da concepção específica para cada caso, permitindo que os painéis
figurativos, frequentes neste período, não fossem quadros soltos, mas antes
composições perfeitamente integradas, através da diversidade de pedestais,
enquadramentos e outros adereços decorativos, tanto nas construções civis,
onde enriquecem os átrios e escadarias, as diversas salas e corredores, as
cozinhas, os terraços e, nos espaços dos jardins, os logradouros, escadas,
fontes, casas de fresco, alegretes, pombais, como nos inúmeros edifícios
religiosos, multiplicando-se pelas naves, capelas e sacristias das igrejas
e, nos conventos, pelos restantes espaços, como portarias, claustros, salas
de capítulo, escadas, corredores, refeitórios, jardins de cercas.
Por outro lado, a própria representação espacial constituiu um dos
aspectos mais sugestivos dos azulejos barrocos, na recriação de espaços
fictícios através da perspectiva e da profundidade de campo dos painéis que
ampliam ou destroem o carácter mais fechado e rígido das estruturas
arquitectónicas. Igualmente fascinantes são a variedade e a volumetria dos
complementos ornamentais que envolvem os diversos vãos e composições, com
inúmeras sugestões escultóricas, por vezes autonomizando-se, como as
figuras de convite das entradas e escadas e as imagens de jardins, ou ainda
a representação frequente de elementos arquitectónicos em trompe l'oeil nos
espaços religiosos, como portas, janelas, confessionários, púlpitos,
lavabos, chegando, por vezes, a revestir integralmente abóbadas e cúpulas,
dominadas pelas quadraturas arquitectónicas e a representação perspectivada
do espaço.
Contribuiu decisivamente para a obtenção destes efeitos a adopção,
pela azulejaria barroca, da pintura azul de óxido de cobalto, pigmento
metálico de fácil dissolução que permitia a obtenção de variados tons,
desde os mais diluídos e transparentes até aos mais densos e carregados,
contribuindo este claro-escuro para a caracterização dramática das cenas e
a acentuação dos variados complementos e ornatos. Esta cor azul da pintura
dos azulejos barrocos, por outro lado, desempenhou também um original papel
cenográfico, desmaterializando os edifícios através da fluidez e
profundidade da mesma, quer revestindo integralmente os espaços quer
associando-se ao colorido das restantes artes, nomeadamente aos fulgores da
talha dourada, numa combinação de "ouro sobre azul" bem característica do
barroco português e luso-brasileiro.
A região Norte possui magníficos conjuntos da azulejaria barroca,
entre os quais se encontram alguns dos mais monumentais e notáveis
exemplares nacionais deste estilo. São relativamente escassos os exemplares
em edifícios civis, como o antigo Paço Arquiepiscopal e o Solar dos
Biscainhos, em Braga, e o palacete Barbosa Maciel, em Viana do Castelo
(Museu municipal), entre outros, ao contrário dos numerosos existentes em
construções religiosas como igrejas, capelas e antigos conventos, onde se
encontram bem representadas as principais tendências artísticas e
decorativas do período, formando revestimentos extensos e variados como os
das dependências da Sé do Porto, da Igreja do Pópulo, em Braga, do antigo
Mosteiro de Santa Marinha da Costa, junto a Guimarães, da Igreja Matriz de
Barcelos ou do Santuário de Nossa Senhora do Porto de Ave, perto de Póvoa
de Lanhoso.
A Igreja de São Vítor, em Braga, foi possivelmente a primeira em
Portugal a ser integralmente revestida de painéis historiados barrocos
azuis e brancos, pintados cerca de 1692-1694 por Gabriel del Barco (1649-c.
1701), artista nascido em Siguenza (Espanha) e fixado em Lisboa em 1669,
que durante a última década do século XVII se tornou o primeiro grande
criador de azulejos barrocos, estando bem representado nas cenas da Vida de
São Vítor, na capela-mor desta igreja, nos painéis monumentais da nave, que
Robert Smith designou como o "panteão dos Santos do Minho", e na composição
grandiosa do coro alto. Do mesmo período, mas mais arcaizantes, são as
imagens de santos aplicadas em algumas capelas da igreja do Convento dos
Lóios, em Vilar de Frades (Barcelos), que inicialmente revestiam a capela-
mor desta igreja. Já do início do século XVIII são os interessantes
painéis, com temas profanos, na escadaria doantigo Paço Arquiepiscopal de
Braga (Reitoria da Universidade do Minho), que lembram o estilo do pintor
António Pereira (falecido em 1712).
A oficina dos Bernardes foi a mais destacada durante as primeiras
décadas do século XVIII, dominando a produção do chamado "Ciclo dos
Mestres". Teve colaboradores destacados, como o chamado "Mestre P M P", e
entre os seus discípulos encontram-se os pintores de azulejos Teotónio dos
Santos e Nicolau de Freitas, activos durante a segunda fase da azulejaria
barroca, a chamada "Grande Produção Joanina", entre a segunda década e os
meados do século XVIII.
António de Oliveira Bernardes (1662-1732), excelente pintor a óleo,
têmpera e fresco, iniciou a produção de azulejos nos últimos anos do século
XVII, tornando-se o artista mais destacado deste período, pela excepcional
mestria das composições e do doseamento das tonalidades azuis, em especial
na obtenção de efeitos esfumados. Está bem representado nos cenográficos
painéis das capelas de São Pedro de rates e de São Geraldo, na Sé de Braga,
da sua fase inicial, bem como nas monumentais cenas da Vida de São Bento,
na nave da Igreja do terço, em Barcelos, de 1713. São ligeiramente
posteriores os painéis da capela lateral de Santa Apolónia, na Igreja do
Pópulo, em Braga, valorizados pelo carácter escultórico das cercaduras.
Um dos filhos de António, Policarpo de Oliveira Bernardes (1695-
1778), foi o seu principal discípulo e continuador, destacando-se
igualmente como um excepcioinal pintor de azulejos, activo até cerca de
1740. Uma das suas primeiras obras é possivelmente o gracioso revestimento
da capela de São Sebastião das Carvalheiras, em Braga, de 1717. O
revestimento integral da Igreja da Misericórdia, em Viana do Castelo, de
1720-1721 (cuja nave vários historiadores têm considerado obra de António
de Oliveira Bernardes) é a obra mais notável de Policarpo no Norte, e uma
das mais grandiosas de toda a azulejaria portuguesa, pela concepção
monumental das representações, Obras de Misericórdia e Cenas Bíblicas, e
pela pujança dos elementos escultóricos e ornamentais dos enquadramentos.
Do mesmo pintor assinalam-se ainda os reduzidos painéis da capela do
palacete Barbosa Maciel, em Viana do Castelo, e o revestimento Mariano da
capela-mor da Igreja de Nossa Senhora da Penha, mais tardio e evoluído,
semelhante ao da sala do Capítulo da Sé de Lamego.
O enigmático Mestre P M P, pintor activo no primeiro quartel do
século XVIII, cujo nome ainda não foi identificado, mas reconhecível pelo
seu estilo gracioso e sintético, aparece associado a algumas obras de
António de Oliveira Bernardes, como a da Igreja do Terço, em Barcelos, já
referida, para a qual pintou o silhar inferior da nave, com medalhões
alegóricos, bem como os painéis da capela-mor, onde se encontram as
iniciais pelas quais é conhecido. Outras obras, autónomas, têm forte
carácter, como os painéis com cenas do Brasil Colonial, na Igreja de São
Lourenço de Montaria (Viana do Castelo), de c. 1714, o revestimento da
capela-mor da Igreja de São Paulo, em Braga, com cenográficas paisagens, os
decorativos painéis da Casa do Cabido e da escadaria, na Sé do Porto, de
1719-1723, vários conjuntos em Guimarães (Igreja das Capuchinhas,
De 1717, capela-mor da Igreja de São Dâmaso, nave da Capela de Nossa
Senhora da Conceição), mas, de todas, destaca-se o original revestimento do
corpo circular da Capela do Nossa Senhora do Socorro, em Vila do Conde,
formando uma sequência de cenas da Vida da Virgem sobre pedestal com
algumas cartelas barrocas espectaculares.
Teotónio dos Santos foi o primeiro criador destacado da "Grande
Produção Joanina". Discípulo de António de Oliveira Bernardes de 1707 a
1711, esteve activo at´r aos anos 1730 e caracterizou-se por uma produção
muito baseada em receitas decorativas e no uso de aguadas azuis na pintura,
mostrando uma boa assimilação do estilo dos Bernardes mas sem a elaboração
e individualidade destes mestres. As suas obras iniciais, relativamente
sóbrias, estão representadas pelo revestimento figurativo da capela-mor da
Igreja de São Bento, em Viana do castelo, assinado e de cerca de 1715, no
imponente conjunto de painéis da Vida de São Bernardo, na sacristia do
Mosteiro de Santa Maria do Bouro (Amares) e nos belos painéis com cenas
galantes, caçadas e outros temas profanos, no salão nobre do Solar dos
Biscainhos, em Braga. Mais monumental e complexo é o conjunto de painéis e
adereços decorativos do transepto e da capela-mor, com Cenas Antonianas, do
Convento de São Francisco, em Guimarães, de cerca de 1720-1726.
Outro pintor destacado desta corrente, em especial pela sua produção
vasta (que se prolongou pelo período rococó, na segunda metade do século
XVIII), foi Valentim de Almeida (1692-1779), cujo estilo é mais pesado e
complexo. Este artista foi inicialmente identificado por Flávio Gonçalves,
nos painéis que revestem as galerias do claustro da Sé do Porto, com cenas
do Cântico dos Cânticos, de 1729-1731, a partir dos quais foi possível
atribuir-lhe muitas outras obras, entre as quais se incluem os painéis com
temas profanos, em três salas do palacete Barbosa Maciel, em Viana do
Castelo, o revestimento da nave da Igreja de Nossa Senhora da penha, em
Braga, com cenas da Vida de São Francisco, de c. 1728, as composições da
Igreja do Senhor da Cruz, em Barcelos, com temas da Paixão de Cristo, de
1728-1730, e o vasto conjunto de painéis monumentais da Igreja da
Misericórdia, em Chaves, com temas do Novo testamento. Podem ainda se
associados à influência deste mestre, ou à sua oficina, as composições
ornamentais, tardias, da Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Pelames e
os painéis da nave da Igreja do Pópulo, ambas em Braga, o grandioso
revestimento Mariano do Santuário de Nossa Senhora do Porto de Ave (Póvoa
de Lanhoso), e o conjunto espectacular de painéis, de espaldares recortados
e carácter palaciano, do antigo Mosteiro de Santa Marinha da Costa
(Guimarães), de cerca de 1747, incluindo os da escadaria (cenas de
Batalhas), sala do Capítulo (alegorias às Artes e aos Quatro Elementos) e
varanda (cenas conventuais), sendo de lamentar a perda dos painéis do
corredor das celas, destruídos por um incêndio em 1951.
As obras mais elaboradas e perfeitas da "Grande Produção Joanina"
foram pintadas por Nicolau de Freitas (1703-1765), discípulo de António de
Oliveira Bernardes, de 1720 a 1724, com obra igualmente vastíssima, à qual
tem sido associada com frequência o nome de Bartolomeu Antunes, seu sogro,
o qual era um destacado "mestre azulejador", responsável por muitas das
encomendas do período (conforme a indicação "fez", incluída em algumas
legendas destas obras). Estão assinados por Freitas os painéis da capela-
mor da Igreja dos Terceiros de São Francisco, em Braga, de 1734. De duas
das capelas laterais da igreja do Mosteiro dos Lóios, em Vilar de Frades,
integralmente revestidas de painéis e cartelas barrocas, uma tem a
referência de que foi feita por Antunes, em 1736, e a outra de ter sido
feita por Antunes, em 1742, e pintada por Nicolau de Freitas. Deste mesmo
pintor é a decoração da capela de Santa Rita, na Igreja de São João Novo,
no Porto (com a referência de que foi feita por Bartolomeu Antunes, nas
Olarias de Lisboa, em 1741), o monumental revestimento figurativo da capela-
mor da Igreja do Pópulo, em Braga, com cenas da Vida de Santo Agostinho, e
provavelmente a decoração integral da Capela de São Bento, na cerca do
Mosteiro de Tibães, pequena jóia da azulejaria barroca de Lisboa.
Outros azulejos do período barroco foram pintados nas oficinas de
Coimbra por António Vital Rifarto, artista nascido em Elvas, em 1700, e que
após passar por Lisboa se fixou no porto, em 1727, onde trabalhou como
pintor e desenhador de retábulos. Estes azulejos apresentam características
distintas da produção de Lisboa e destacam-se pela rudeza das partes
figurativas, compensada pela grande fantasia e extroversão dos complementos
ornamentais. São especialmente notáveis as teatrais composições da Sé do
Porto, realizadas entre 1733 e 1738, em especial as do terraço do claustro
(prejudicadas pela demolição das galerias superiores, durante os restauros
dos meados do século XX), da sala do Cartório e das capelas de Santa
Catarina e de São Vicente. Do mesmo artista, e igualmente pintados em
Coimbra, são as composições mitológicas da escada do Solar dos Biscainhos,
em Braga, e um conjunto de painéis com temática profana, aplicados no pátio
do Museu Nacional de Soares dos reis, no Porto.


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