A bagagem do viajante

June 6, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: ESCULTURA, Pintura, Artistas Plásticos, Artistas portugueses
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A bagagem do viajante1 Emília Ferreira

1. A viagem e o objecto O que é viajar, senão ampliar os sentidos? Partir (estar disponível para o imprevisto) e voltar (regressar diferente de quem fomos antes do conhecimento adquirido) balizam o território em que nos movemos, no qual os nossos passos e entornos nos vão pondo à prova, dando a experimentar sensações novas, sabores, saberes, sons, luzes, cores, temperaturas. O mesmo é dizer que a viagem é o território da estética. A bagagem de recordações que transportamos connosco é, por isso, quase infinita. Eis porque no exercício do regresso, o mais complicado seja lidar com a estranheza que o quotidiano nos oferece. Que a nossa pele habitual nos coloca. Porque nesse exercício pendular, no itinerário traçado na jornada, o tempo que passou semeou também em nós um pomo de inquietação. No edifício identitário que vamos criando, na construção dessa arte da memória, o objecto (postal, fotografia, utensílio, pedra, semente, moeda, estátua,

carimbo

de

passaporte,

rótulos...)

representa

um

papel

de

incontornável relevo no processo construtivo. Porém, mais do que os testemunhos físicos da nossa errância, é o universo que permanece em nós que nos torna outros. O que trazemos, afinal, de uma viagem, para lá dos vestígios do mundo material? Na Idade Média, o desejo viajante foi motivado pela busca da visão interior. Pelo alento espiritual, idealmente materializado no encontro com a sonhada relíquia. A época Moderna expandiu o mundo, apropriou-se dele e fascinou-se também. Chegados a Setecentos, o fulgor informativo que o mundo conhecido ostentava pedia divulgação. Os Gabinetes de Curiosidades, alimentados por viajantes incansáveis, que não cessavam de fazer chegar, aos grandes centros urbanos europeus, testemunhos dos múltiplos esplendores da natureza e da cultura, encheram-se de tesouros. Recolectora, a paixão pela viagem teve, 1

Texto do catálogo da exposição Africânia, de José de Guimarães. Almada, Casa da CercaCentro de Arte Contemporânea, 22 de Junho-17 de Setembro de 2006.

então, uma moldura racional, que o século XIX acentuou, categorizando os objectos a expor e organizando-os por famílias facilitadoras da sua análise científica. E se, por se encontrarem fechadas nos museus, essas maravilhas do mundo perderam parte do seu significado e do seu destino, ganharam, no entanto, o poder de despoletar a imaginação. 2. O viajante É conhecida a importância dos gabinetes de curiosidades e dos museus na alteração dos pressupostos formais e estéticos da arte ocidental. Numa tradição do fascínio pela diferença, as viagens depois empreendidas por muitos artistas foram movidas pela busca do paraíso perdido (Gauguin e o Taiti), pela síntese com o familiar (Picasso e as máscaras), ou por um acaso inicial que gerou a apetência de “conjugar plena modernidade com um sentido da ancestralidade”2, como já se escreveu sobre José de Guimarães. Com uma consciência da memória, que não excluiu jamais os referentes culturais, plásticos e paisagísticos da sua cidade natal, José de Guimarães juntou primeiro os de África, depois os da América do Sul (sobretudo México) e mais tarde os da Ásia (com particular incidência na China)3 para construir a sua gramática

pessoal.

Viajante

incansável

(por

paixão

e

por

questões

profissionais, que o têm levado aos quatro cantos do globo), o artista encontrase ciente do poder dos itinerários de encontros e desencontros4.

2

In PERNES, Fernando [Mesa redonda sobre José de Guimarães], José-Augusto França et al. – José de Guimarães na arte portuguesa dos anos 90. Porto: Edições Afrontamento, 1999, p. 18. 3 “Mas o facto de ser um grande viajante, e sobretudo um grande viajante atento ao panorama das culturas do mundo, não impede que tenha guardado referências morfológicas muito portuguesas com elementos destacados desta realidade: é o seu lado amoroso, até mesmo sexualmente sublinhado; e todos esses elementos somados constituem um conhecimento que lhe é próprio, mesmo se ela não se fixou numa heráldica sistematicamente codificada. Trata-se simplesmente de se acumular todos esses elementos, todas essas experiências, e disso fazer uma linguagem experimental.” (RESTANY, Pierre, José de Guimarães. In “José de Guimarães: novos relicários”. Paris: Catálogo da Exposição no Instituto Camões de Paris, 2000, p.11) 4 “Guimarães demonstra uma enorme voracidade informativa, procura em toda a realidade exterior resposta para as suas inquietações próprias. A apropriação de informação foi garantida pela sua biografia profunda (África) e, depois, pela biografia proporcionada pela posterior circulação internacional do autor e da sua obra.” (PINHARANDA, João Lima, “Delenda est Cartago”. In José de Guimarães: A Batalha de Cartago. Catálogo da Exposição realizada na Galeria Neupergana, Torres Novas, 2003. p. 5)

3. Caixas Nas 10 obras apresentadas nesta exposição, da autoria de José de Guimarães, bem como nas outras 6 peças escultóricas antigas, do Mali, Gabão e Congo, da colecção particular do artista, evocam-se de imediato duas viagens: a dos objectos e a dos sentidos. Tomemos primeiro as caixas. Estas peças de José de Guimarães falam-nos de um território híbrido, em que material e ficcional, corpóreo e espiritual se tocam. Porque antes de se tornarem objectos de exposição, elas tiveram uma vida mais prosaica: a de embalar e proteger obras de arte. Anos depois, e como que evidenciando a sedimentação de experiências, adquirida nas suas deambulações pelo mundo, essas caixas transformaram-se. Sobre o seu corpo geométrico e fechado, o lápis experimentou desenhos. Tais linhas foram depois abertas a serra, e os recortes podem agora elevar-se no ar, abrir asas sobre as formas originais e oferecer corpos e silhuetas novos, evoluindo no espaço. Retomando as caixas que José de Guimarães já trabalhara no final do anos 60, mas actualizando-as e reeinventando-as em termos plásticos, estas novas peças sintetizam a gramática do artista. Num espaço de miscigenação entre pintura e escultura, obviamente tridimensionais, elas exigem ser vistas a toda a volta. Remetem, portanto, para as suas “picto-esculturas” ou “pinturas objectuais”, como já lhes chamou Fernando Pernes; são obras a dois planos, sobre as quais as imagens são inscritas. Mas além de suportarem as imagens, estas peças contêm-nas também. Estas pinturas nas quais nos podemos esconder, por terem fisicamente um espaço possível para aí nos fecharmos, como na infância, no escuro do armário, acolhem e reflectem abismos diversos dos infantis. Com os armários elas partilham algumas memórias e vocações: ambos são lugares habitados pelo mistério, pela significação (ficcionamos sobre o seu interior e carregamo-lo de um poder que alimenta a nossa imaginação). Porém, ao contrário daqueles, estas navegaram efectivamente outro mares, outras paragens. E também ao contrário dos armários, as fantasias que crescem nestas caixas não nascem do desconhecimento total do mundo, antes surgem do confronto com o outro, de uma assimilação maturada da realidade, cujos monstros e espectros resultam mais pesados e finais. Por isso estas caixas propiciam o surgimento de uma

genealogia que apesar de lúdica pelas cores, pelos jogos lumínicos que o néon estabelece com as pinturas, os vidros esmagados, até a brilhante superfície dos fragmentos azulejares, é simultaneamente perturbadora. A inquietação ontológica expressa na pergunta “quem da pátria sai, a si mesmo escapa?”5 tem uma resposta claramente negativa. Porque, no exercício de construção

do

eu,

circunstâncias

e

sombras

perseguem-nos,

independentemente dos lugares por onde passemos. Contudo, quem da pátria sai não escapa também ao processo sedimentar da construção identitária, processo cumulativo, de informação e vivências, de experiências perseguidas e convocadas por mundos e realidades nunca vistos. Não escapar a si mesmo, mas simultaneamente fascinar-se com o outro (ou temer a si mesmo por temer o outro) e incorporar a alteridade no nosso mapa íntimo, na nossa cartografia pessoal, não a excluindo, antes convocando fantasmas, presenças, memórias, enfim, todos os fragmentos do ser, é por isso a resposta possível. Citação de relicário (algo que, como reflexão, surge na obra de José de Guimarães no início dos anos 90), a caixa que transportou as obras transporta hoje a história e, num exercício simbólico, abre as portas ao jogo da revelação, embora nunca o esclareça por completo. Se o relicário é também a afirmação do valor do fragmento – espaço de contemplação perante o que já foi e não voltará, uma saudade –, as caixas (que também podem ser as arcas, as naves, até gabinetes de curiosidades elas próprias, como já observou Belinda Grace Gardner6) bisam essa vocação, incorporando as naturezas das paisagens, das gentes (rostos, medos, pretéritos) dos locais por onde passaram. Ora, de que modos realizam a sua narrativa? Através de processos de acréscimo (assemblage) à sua natureza funcional de origem. Como ponto de partida, conhecemos o passado destes objectos. Depois, percebemos o que sobre eles se passou: o desenho, os exercícios escultórico, pictórico. A cenografia. A inclusão de objectos que de imediato se tornam narrativos: fragmentos de corpos, máscaras, papéis colados, pneus, vidro esmagado, azulejos partidos, lantejoulas, o néon – que logo se despe da sua função de 5

Título de um romance de Rui Nunes. Cf. “The Magic of Containing the World”, Texto de Catálogo da Galeria Levy, Hamburgo, 2005, p. 9.

6

sublinhar a arquitectura ou da outra mais trivial missão publicitária, para partir em direcção ao mundo do desenho, riscando as composições, instalando sobre elas o brilho da luz, dominando as nuances lumínicas e tácteis. Todos estes elementos são personagens criadoras de ficções. Com elas combinam-se outras: recortes, pintura (lisa, texturada, com ou sem drippings, mas sempre de cores fortes, cores de um Minho originário, cores que por serem da natureza íntima do pintor se mesclam com bonomia com a festa cromática de outras geografias) e a própria madeira do suporte que se ergue no espaço em jogos escultóricos. Esta escrita do mundo, sugerida ainda nas apropriações de pictogramas (colagem), nas citações de pictogramas (pintura), nas remissões mais ou menos evidentes para as culturas assimiladas (China, México), só não é uma festa inocente porque sabe da finitude da vida, da fragilidade do mundo. O amor é aí, com o erotismo em clara presença. Veja-se, por exemplo, Garde Robe, cuja figura de topo é uma silhueta feminina. Voluptuosa a vermelho e negro, encima um armário no qual a perna – citação que evoca as duplas faces da pele e da meia, codificações de sedução já com vasto historial – se encontra “arrumada” ao lado de um sapato de homem. Ambos se apresentam num palco sígnico cujo pano de fundo é o néon azul, que cita o sexo feminino. A fragilidade é retomada no tema da viagem interrompida, metáfora maior para a morte. Eros e Thanatos de mão dada, como classicamente sempre foi. E não só no armário, como na citação da queda em O Grande Desastre, ou ainda a bordo da citação mexicana, na sua festa a propósito dos finados (veja-se Corpo). Mas sobretudo porque o tempo – a finitude – tem uma presença fortíssima nestas obras. O tempo que nos dá os despojos, o que resta das vidas e dos possíveis fios narrativos (Que requiem?). O tempo que traça itinerários dentro de nós, que nos desenha rugas na pele e metamorfoseia a nossa imagem no espelho. O tempo que transforma meras recordações em memórias amorosas. O tempo que nos fala da morte das civilizações, da efemeridade dos seus poderosos, da parcial preservação da história através de vagos objectos, como em Sarcófago para um faraó. O tempo que em tudo esculpe e deixa a sua marca. O tempo que, na evocação directa de uma cartografia efectivamente percorrida – atente-se nas peças Viagem na China

ou Cantata Interrompida – traça os nossos mapas pessoais, cita coordenadas de orientação que também recriamos (Pontos Cardeais). Partes do mundo, estas caixas apelam à nossa imaginação através do recurso ao fragmento narrativo, que nos permite completar livremente a imagem (com) que nos defrontamos. E estas caixas mágicas, das quais saem animais, fantasmas, despojos, fracções, cenário e relicário das nossas vidas e trajectos tornam a história e as geografias presentes, evocam, convocam, ritualizam. E assim chegamos às máscaras. 4. Máscaras e outros seres E eis as convidadas de honra. Peças que, na sua origem, podiam já ter sido habitantes ocasionais destas caixas, na sua primeira natureza. Peças cujo uso já se cumpriu nos ritmos do calendário, de acordo com as linhas projectuais, que o animaram: mais comezinho ou mais raro, de préstimo diário ou ritual. Cada uma delas comporta, portanto, uma história, uma valia. A das máscaras é sobretudo lembrar-nos que o mundo tem mais faces, para além dos cenários imediatos, apontando a relação com o para além. Com a busca de sentido. Marcando o mundo com a excepção, unificando-o. Destituídas das suas funções, despidas da sua simbólica intrínseca, estas máscaras e esculturas transformaram-se em fontes plásticas. Porém, não se pense que também nessa viagem de sentidos não houve inquietação, confronto. O contacto com o outro raramente propicia de imediato um entendimento mútuo. Assim aconteceu também com José de Guimarães nos seus primeiros tempos de África, a que chegou pela porta de Angola. Só com o tempo, a posse de códigos de acesso à diferença, se tornou possível a leitura das novidades com que defrontou. Antes disso, foram “anos de angústia e de intensa convivência com o mundo africano”7. E depois disso, enfim, a

7

In GUIMARÃES, José, “Eu, coleccionador”. Texto do catálogo da exposição de José de Guimarães, África e Africanias de José de Guimarães, espíritos e universos cruzados. S. Paulo, Museu Afro-Brail, 2006.

compreensão da cultura, a apreensão dos símbolos, a criação de uma “arte miscigenada”8. Criava-se assim uma gramática própria, que assumiu desde cedo a relação com essas formas de arte ancestrais às quais se juntaram os alfabetos literários ou plásticos (imagéticos) de Camões ou Rubens e, mais tarde, o mexicano ou o chinês. “Contentor” e sintetizador plástico e poético da informação recolhida em viagem, José de Guimarães, o viajante, incorpora o mundo nas obras, como sinais na pele, como os desenhos (nesse caso, como vimos, costumamos chamar-lhes rugas, embora haja outros: tatuagens, mutilações, piercings) que o tempo traça sobre o nosso corpo e as culturas impõem à nossa imagem. Assim nos vai dando a conhecer um itinerário repleto de estórias. Mas, como que para não perder o fio à meada, como quem convoca outras vozes para partilhar o seu quotidiano, ele coleccionou, ao longo dos anos, mas sobretudo a partir dos anos 70, inúmeras peças de arte africana, “não só de Angola, mas principalmente de toda a região centroafricana”9, de que são exemplo as peças incluídas nesta exposição. Porém, cabe aqui sublinhar que não o fez num registo de troféu, antes numa atitude reverente, de atenção a um pensar, crer e fazer diversos do seu mas que ao seu se misturaram para o complementar, enriquecer, simbolizar. Peças que o coleccionador transporta consigo no acto criação, na demora dos passos, nos compassos de espera, no adentrar do prodígio, como nas peças de sua autoria Selva ou Caça. Há mais de cem anos, Wenceslau de Moraes, um oficial de marinha que se apaixonou pelo Japão, mostrou como pode um homem escapar ao seu tempo fechado em nacionalismos rígidos e ir ao encontro do outro, de peito aberto e alma amorosa. Do Culto do Chá aos Traços do Extremo Oriente, passando pelas muitas páginas de cartas e outras narrativas, chegou-nos um mundo prenhe de estranheza mas sobretudo de fascínio pela diferença, num testemunho de alguém que soube enriquecer-se na multiplicidade. E, tal como Moraes escreveu ao iniciar as páginas dedicadas ao chá, também aqui José de Guimarães poderia dizer, com a mesma abertura, inquietação e respeito, sobre

8 9

Idem. Idem.

estas suas convidadas que não esquece como elementos fundadores da sua própria voz: “isto é só para crentes.” Emília Ferreira Almada, 26 de Maio de 2006.

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