À beira de mulheres: notas à flor da pele de Pedro Almodóvar.

June 14, 2017 | Autor: Leonardo Soares | Categoria: Cinema, Pedro Almodóvar, Feminino
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Referência: SOARES, Leonardo. F. À beira de mulheres: notas à flor da pele
de Pedro Almodóvar. In: Lucio Alves de Barros. (Org.). Mulher, Política e
Sociedade.Belo Horizonte; Brumadinho: Editora Faculdade ASA, 2009. p. 91-
107.

À BEIRA DE MULHERES: NOTAS À FLOR DA PELE DE PEDRO ALMODÓVAR
Leonardo Francisco Soares(

Não, solidão, hoje não quero me retocar
Nesse salão de tristeza onde as outras penteiam mágoas
Deixo que as águas invadam meu rosto
Gosto de me ver chorar
Finjo que estão me vendo
Eu preciso me mostrar
Bonita
Pra que os olhos do meu bem
Não olhem mais ninguém
Quando eu me revelar
Da forma mais bonita
Pra saber como levar todos
Os desejos que ele tem
Ao me ver passar
Bonita
Hoje eu arrasei
Na casa de espelhos
Espalho os meus rostos
E finjo que finjo que finjo
Que não sei
Chico Buarque – " A mais bonita"

I. Mulher e Cinema

Se Louis e Auguste Lumière, os irmãos franceses que realizaram a
primeira projeção pública de apresentação do cinematógrafo em 28 de
Setembro de 1895, são considerados os pais do cinema, foi outro francês,
Georges Méliès, quem abriu uma nova possibilidade de agenciamento entre o
real, o fictício e o imaginário, um novo jeito de contar histórias, através
das imagens em movimento. Depois de assistir a exibição dos Lumière,
Georges Méliès, mágico e ilusionista, encanta-se pela novidade, sendo o
pioneiro no uso de atores, cenários, figurinos e maquiagem. Opondo-se ao
estilo documetarista dos Irmãos Lumiére, Méliès será o primeiro a
desenvolver as potencialidades narrativas do cinema.[1]

Conta-se que, certa vez, ao projetar uma cena quer rodara na Praça
da Ópera, com uma câmara defeituosa, Méliès viu um ônibus transformar-se
num carro. O defeito virará efeito em Escamotage d'une Dame chez Robert
Houdin, quando Méliès filma uma mulher sentada ao ar livre, e espera ela
sair do quadro para depois filma a cadeira vazia: na cena projetada, a
mulher parece evaporar-se. Visando aperfeiçoar o truque, Méliès substitui a
mulher por um diabo, um jarro, um quadro, uma flor, um relógio, um
cachorro, uma fotografia, em um jogo de aparição e desaparição.[2] Não há
registro preciso, mas essa mulher que aparece e desaparece na superfície do
ecran, transformando-se, por sobreimpressão de imagens, em outras figuras,
pode ser tomada metonímicamente como figuração de todas as mulheres que,
desde então, estabelecem uma relação mítica e mágica com a câmara.

Na sala escura, espaço por excelência do erotismo difuso, da
liberdade dos corpos e dos afeto possíveis,[3] muitas foram as vamps,
femmes fatales, divas, musa, marginais, martirs, que invadiram o nosso
imaginário. Sem pretender ser exaustivo: Teda Bara, Pola Negri, Glória
Swanson, Lilian Gish, Louise Brooks, Maria Falconetti, Mary Pickford, Joan
Carwford, Hedy Lamar, Greta Garbo, Barbara Stanwick, Marlene Dietrich,
Bette Davis, Katherine Hepburn, Ingrid Bergman, Rita Hayworth, Audrey
Hepburn, Lauren Bacall, Giulieta Masina, Marilyn Monroe, Brigitte Bardot,
Monica Vitti, Liv Ullmann,Cláudia Cardinale, Norma Bengell, Anita Ekberg,
Helena Ignez, Jeanne Moreau, Vanessa Redgrave, Leila Diniz, Jane Fonda,
Sônia Braga, Meryl Streep, Kathleen Turner, Michelle Pfeifer, Sharon Stone,
Juliete Binoche... Na maior parte das vezes, essas atrizes eram focalizadas
no registro do masculino, isto é, atrás da câmara estava um cineasta. Nas
palavras de Ruth Silviano Brandão, "a personagem femina, construída e
produzida no registro do masculino, não coincide com a mulher. Não é sua
réplica fiel, como muitas vezes crê o leitor ingênuo [podemos dizer também
o espectador ingênuo]. É, antes, produto de um sonho alheio e aí, ela
circula, neste espaço privilegiado que a ficção torna possível"[4]

Por outro lado, na Espanha, em meados dos anos 70 do século
passado, surgirá um cineasta que, além de fazer da mulher o grande fetiche
de seus filmes, irá se mostrar um conhecedor, como poucos e poucas, do
universo feminino: Pedro Almodóvar. Como diria o escritorGuillermo Cabrera
Infante, falando também de Almodóvar, "há autores, como Manuel Puig, que
conhecem as mulheres melhor do que a maioria dos homens e evidentemente
mais do que muitas feministas, que transformaram o feminismo em uma causa:
a contrapartida exata do machismo."[5]

II. Pedro Almodóvar: um homem que ama as mulheres

Antes mesmo do sucesso estrondoso do filme Mulheres à beira de um
ataque de nervos (1988) pelo mundo afora, o cinema de Pedro Almodóvar já
era conhecido e admirado pelos brasileiros – Matador (1986) e A lei do
desejo (1987) foram exibidos com grande sucesso no FestRio III e IV,[6] e
também já existiam ciclos de exibição inteiramente dedicados a sua obra.
Essa identificação do público brasileiro com o cinema de Almodóvar reside,
além da semelhança entre as duas culturas, no fato de, nos início dos anos
80, uma brisa comum soprar na Espanha e no Brasil: os ventos da abertura
política. Ambos saíam de um longo período de ditadura militar e a atmosfera
era semelhante, o desejo de varrer as marcas projetadas por estereótipos
nacionalistas. Pedro Almodóvar, ao retratar uma sociedade disposta a
reescrever seu passado, reinventando o futuro, deixando para trás
preconceitos e perdendo os medos das forças coercivas, mostrava um espelho
revertido de nossa própria história.[7]

Nascido em Calzada de Calatrava, província de Ciudad Real
(Espanha), em 25 de setembro de 1951, Pedro Almodóvar muito cedo abandonou
a paisagem rural e foi para Madrid, cidade feminina e também fetiche em
seus filmes. Segundo Bernardete Lyra:

Por certo que a Madri de Almodóvar – território feito de
becos e praças, mosteiros, conjuntos habitacionais,
escolas de tauromaquia, casas abandonadas e recantos
desertos – por si só não é mais a encantadora cidade
trivial dos turistas. É, antes, uma cidade entrelaçada a
melodramáticas ambigüidades e desvios. Trágica e
hilariante, a um só tempo.[8]

Na segunda metade dos anos 70 do século XX, com o fim da ditadura
franquista, a Espanha, e principalmente, Madrid, foi reinventada por toda
uma geração de artistas, que ficou conhecida como movida madrileña (1978-
1983): "Havia no ar uma alegria de viver, uma liberdade moral típica das
épocas radicais em que se respira experimentalismo e utopia."[9] Nessa
época, Pedro Almodóvar participa, entre outras atividades, do grupo teatral
Los Goliardos, do conjunto musical McNamara, e da revista La Luna. É nesta
última que ele cria a personagem feminina Patty Diphusa, uma atriz pornô
que escreve suas memórias.[10] A entrada para o cinema se deu como tantas
outras: de 8 mm. (o Super-8) para 16 mm. e de 16 mm. para 35 mm. Os
primeiros filmes, curtas-metragens de baixíssimo orçamento, primavam pelo
experimentalismo e bordejavam o pornográfico. Em 1980, filma Pepi, Luci,
Bom y otras chicas del montón em 16 mm, filme que parece ampliar o universo
artístico do diretor, tanto que logo o filme é ampliado para 35 mm. e
exibido comercialmente. Em seguida, viriam Labirinto de paixões (1982),
Maus hábitos (1983), Que fiz eu para merecer isto?(1984), que primam pelo
deboche, o grotesco, o escatológico, a crítica à religião e à própria
mídia.[11]

Em 1986, outra guinada, dessa vez atrelada a uma evolução técnica e
uma sofisticação do roteiro e da construção das personagens, com o belo
filme Matador. Para o sucesso internacional seria um pulo. Em 1988,
Mulheres à beira de um ataque de nervos entraria para os grandes circuitos,
o que culminaria com a indicação para o Oscar de melhor filme estrangeiro.
O tratamento escrachado e absurdo do roteiro alia-se ao refinamento e
elegância dos planos, o que redunda em desconcerto da platéia. Baseado na
peça A voz humana, de Jean Cocteau, o filme trata de uma mulher em crise
profunda. Na trama, Carmem Maura é Pepa, uma dubladora e atriz de Tevê que
é abandonada pelo amante e, à beira de um ataque de nervos, tenta suicídio.
O resultado é uma colcha de retalhos muito bem tecida pelo cineasta, que,
ao trabalhar a extravagância das cores, a excentricidade dos objetos de
cena, a mistura gêneros, cria um bordado singular. Também na mesma trilha
de Mulheres à beira de um ataque de nervos, Ata-me! (1990), De salto alto
(1991) e Kika (1993), trarão personagens femininas fortes tratadas pelo
viés cômico. Em De salto alto, por exemplo, a história gira em torno da
difícil convivência entre mãe/filha, vividas por Marisa Paredes e Victória
Abril. Na primeira cena, Rebeca (a filha) espera a mãe, depois de quinze
anos em vê-la, sentada em um aeroporto. Uma fusão faz surgir um flashback,
depois outro. Ambos apresentam momentos cruciais da relação de Rebeca com
sua mãe, Bechy del Páramo, cantora pop e estrela de cinema. O encontro das
duas arremata o que os flashbacks já prenunciavam: enquanto a filha venera
a mãe, a mãe, no fundo, pouco se importa com ela, preferindo a companhia
dos fotógrafos e jornalistas. Em sua primeira meia hora, o filme se
desenrola como um melodrama, ou como um drama psicológico na linhagem
daqueles clássicos de Joseph L. Mankiewicz, o mais famoso A malvada, com
Bette Davis (cujo título original All about Eve, é reverenciado em Tudo
sobre minha mãe). Aos poucos, sobretudo a partir da aparição do Juiz
Domingues e de sua mãe, o filme ganha ares de comédia e, em seguida, de
intriga policial. À história da relação da mãe com a filha se adiciona
outra, a do assassinato de Manuel – ex-amante de Becky e marido de Rebeca
–, e posteriormente a do amor que o juiz nutre por Rebeca. A sobreposição
de histórias termina por diluir a trama principal, por outro lado, De salto
alto já anuncia, com o perdão do trocadilho, o último, até agora, e grande
salto na carreira do diretor.

Em 1995, outra virada, e talvez a maior da carreira do diretor, o
filme A flor do meu segredo, no qual o diretor deixa-se levar para
territórios até então pouco explorados em seu cinema: a narrativa
eletrizada se eclipsa, os momentos melodramáticos sobrepõem os cômicos, os
personagens parecem ganhar mais relevo, desenhados em seus mínimos
detalhes. Este filme é a chave para a compreensão das obras-primas futuras
do cineasta: Tudo sobre minha mãe (1999), Fale com ela (2002) e Volver
(2006), e é nele que me detenho a partir deste momento.

III. Como una vaca sin cincerro
Considerado pela maioria da crítica como um autêntico melodrama, A
flor do meu segredo é um filme que realmente flerta com a tradição
folhetinesca espanhola, retomando as estruturas narrativas do "Cinema de
lágrimas" (nome pelo qual também eram conhecidos os melodramas), ao mesmo
tempo em que aponta variações, construindo uma releitura do gênero.

Mas o que é um melodrama? Pensando no âmbito do cinema, o melodrama
é um gênero cinematográfico, marcado por enredos demasiado sentimentais e
românticos, com diálogos pomposos e turbulentos, mas de caracterização
escassa e superficial. Daí, esse tipo de filme ter ganhado nos anos 30, 40
e 50, principalmente na América Latina e Espanha, os epítetos de "Filmes
para mulheres" e "Cinema de Lágrimas". Esse tipo de narrativa encena a
perda, o fim de um mundo, podendo ser desde a separação arrasadora de duas
almas gêmeas à mágoa infindável de uma paixão irrealizada. O germe dessas
produções encontra-se na literatura folhetinesca do século XIX, que também
deu origem, no século XX, aos romances cor-de-rosa, às novelas de rádio
(também conhecidas como soap opera) e às telenovelas.[12]

Pedro Almodóvar desde o início de sua carreira demonstrou uma
predileção por esse universo, não é à toa que seu primeiro longa-metragem,
ainda em 16 mm., tem como título Folhe, folhe, folheme, tim (1978). Os
filmes Matadores, A lei do desejo (1987), Mulheres à beira de um ataque de
nervos, Ata-me e De salto alto (1991) também são articulados/calcados no
melodrama. Temos o grau superlativo dado às relações afetivas, aliado à
artificialidade da encenação e ao tom cômico-paródico dos enredos. Nestas
películas, o cineasta relia a tradição do melodrama de forma a tornarem
cômicas as situações impostas pelas tramas, nas quais conviviam, harmônica
e coloridamente, estruturas narrativas oriundas da comédia de erros e do
melodrama latino-americano.

Não sendo por acaso que à época do seu lançamento, 1995, A flor do
meu segredo tenha causado certo desconforto em parte da crítica, que
esperava mais uma tresloucada história de personagens à beira de ataques de
nervos, perdidas em cenários "bregamente" barrocos. Aqui, a dicção é outra.
A partir de tons pastéis, matizes sóbrios, Almodóvar realizou um filme
lírico e emocionante, desenhando um retrato perfeito desSe inevitável,
doloroso e conhecido estado humano que é a dor-de-cotovelo. Trata-se de uma
opção estética. A mudança decorre da própria mudança de gênero, da comédia
para o drama. Daí o tom sóbrio, transparente, econômico e austero.

A flor do meu segredo é uma história triste, filmada de forma quase
impressionista, mas que também não deixa de ter momentos irônicos e
situações engraçadas, como aquela da bota que não sai do pé da
protagonista. Ela, Leo Macias (o apelido vem do nome Leocádia) é uma
escritora de romances cor-de-rosa que se encontra em um momento cinza de
sua vida, seu pseudônimo não poderia ser outro, Amada Gris. Sua primeira
fala é: "Indefesa frente ao assédio da loucura, todos os dias visto algo
seu. Hoje pus as botas que você me deu há dois anos. Lembra que teve que
tirá-las porque eu não conseguia?" e completa: "Suas lembrança como as
botas, me oprimem, e não consigo respirar". Seu marido, Paco, vive
literalmente em guerras (Saravejo, Bosnia, Bruxelas), para não estar em
casa — em um dado momento do filme ele dispara: "Nenhuma guerra se compara
a você". Ao perceber que o marido não mais a ama, Leo entra em um estado
lastimável, que culmina com o rompimento definitivo do casal, ponto de
virada na trama e na vida da protagonista. Numa belíssima seqüência,[13]
Leo lança uma pergunta desesperada a Paco: "Existe uma possibilidade, por
pequena que seja, de salvar o casamento?" e ele responde: "Nenhuma", ao
mesmo tempo em que desce as escadas; enquanto ela, do topo, ouve cada passo
do marido e chora um mar de lágrimas. Essa cena é descrita no roteiro do
filme da seguinte forma:

Os degraus que o separam de Leo soam como sinos que
anunciam a morte. E é isso que anunciam, a morte de seu
amor. (...) É o olhar torrencial do adeus. Não quis tirar
nenhum fotograma, nenhum degrau, nenhuma lágrima. A partir
desse instante Leo e Paco caminham em direções opostas. A
mesma escada que conduz Paco a uma nova vida, empurra Leo
para a morte. Leo tem que matar o amor que sente por Paco,
e a única maneira de fazer isso é matar-se a si mesma,
recipiente inseparável desse amor. (Tradução minha)[14]

A tentativa de suicídio funciona como essa morte simbólica. A
escritora ingeri dezenas de tranqüilizantes, a tela escurece... O telefone
toca, é a mãe de Leo; a personagem volta para o mundo dos vivos. Porém a
travessia não será fácil, há uma seqüência que se desenvolve à maneira da
"lei de Murphy", representando de forma lapidar o calvário da protagonista:
Leo está vestida a caráter: chapéu, cachecol, óculos escuros para esconder
as olheiras, carrega muitos lenços de papel. Ela está arrasada. Entra em um
bar, pede uma bebida. A televisão do bar está ligada e transmite um
inusitado concurso de gritos. A escritora pede para alguém mudar o canal,
na tela da tevê surge Chavela Vargas cantando "El ultimo trago", o que
multiplica a fossa da personagem. Ela sai do bar, mas, do lado de fora,
naquele momento, acontece uma manifestação de alunos de medicina contra o
Primeiro Ministro. A personagem é tragada pela onda de jovens que pulam e
gritam alegremente. A gradação de infortúnios termina quando Angel, editor
cultural do jornal El pais, aparece e a "resgata" dali. Como afirma o
próprio Pedro Almodóvar no roteiro do filme, este encontro entre Leo e
Angel parece saído de um filme musical, ao mesmo tempo em que tem também um
pouco de exaltação carnavalesca e pesadelo barroco.[15]

Depois de chafurdar na lama, ela volta à sua cidade natal,
reencontra-se com sua mãe e se refaz ali. "Tão jovem e já como uma vaca sem
sino", diz a mãe. Estar como uma vaca sem sino é estar perdida sem direção,
sem destino. Pedro Almodóvar usa essa frase para falar da solidão feminina,
a solidão da mãe viúva, que vive no vilarejo, a solidão da filha escritora,
que vive no coração de Madrid.[16] "Quando perdemos o marido, devemos
voltar ao lugar onde nascemos" diz a mãe de Leo. Apesar de não acreditar em
finais felizes, daí não mais escrever seus romances cor-de-rosa, ao final
do filme Leo é surpreendida pelo próprio cinema que lhe reserva um happy
end, com direito a citações de Casablanca e Ricas e famosas, e um beijo,
pois "se é Ano Novo, precisamos de Carne Humana".

Seria essa, resumidamente, a trama, o enredo de A flor do meu
segredo. Gostaria de salientar ainda alguns elementos importantes presentes
no tecido do filme e que nos ajuda a refletir sobre o cinema de Pedro
Almodóvar. Em primeiro lugar, a intertextualidade, a citação, o diálogo
travado pelo cineasta com outras obras artes. Leo Macias é escritora e a
referência à literatura será freqüente. Logo na primeira cena em que a
personagem aparece (deitada na cama), temos o close da cabeceira, na qual
aparecem pilhas de livros de vários autores significativos. Em outra cena,
Leo cita suas escritoras prediletas, na lista estão: Djuna Barnes, Jane
Bowles, Virgínia Woolf, Edith Warthon, entre outras. Um dos grandes temas
do filme é justamente o embate entre literatura e subliteratura, trazido à
cena através da figura da própria Leo, que provará, ao longo do filme, ser
capaz de se exercitar nos dois domínios: ela escreve ensaios
elaboradíssimos e romances cor-de-rosa que vendem como água, sob a alcunha,
como dito anteriormente, de Amanda Gris. A própria autora critica tais
romances que, segundo ela, não se referem a sentimentos; em tais livros não
há dor nem ruptura, apenas rotina, indulgência e sentimentalismo. Ao mesmo
tempo, o olhar de Almodóvar aponta para a contigüidade entre os dois
registros. Neste sentido, não podemos deixar de citar o momento em que Leo
fala da distinção feita por Truman Capote – escritor também retomado no
belo Tudo sobre minha mãe –, entre escritor e datilógrafo..

Outra arte que também é privilegiada por Almodóvar é a música, que
surge como um eixo concêntrico de seus filmes, construindo um clima
sentimental e sexual. Como nos filmes musicais, toda tensão ou suavidade é
construída junto com a música. Aqui, por exemplo, nós temos Bola de Nieve
cantando o belíssimo bolero assinado por Ignacio Villa, "Ay amor", cujos
versos inspiram um título de artigo de Leo: "dor e vida" ("Si solo queda em
mi dolor y vida,/ ay amor, no me dejes vivir"). Outros sons que marcarão
todo o desenrolar do filme são os do sapateado, que abrem o filme, e que,
em um dado momento, como já aludido anteriormente, serão confundidos com as
batidas da bota de Paco que vai embora. Tem-se também o encontro entre
Miles Davis e o flamenco, no espetáculo encenado por Blanca – empregada de
Leo – e seu filho Antonio, que resignifica a trajetória de Leo. Além disso,
ao final do filme somos ninados pela voz de Caetano Veloso interpretando
"Tonada de luna llena", do compositor venezuelano Simon Diaz. A respeito da
escolha da interpretação de Caetano Veloso, o cineasta afirmaria na época
do lançamento do filme:

Na seqüência final, eu queria deixar um sabor doce, um
sabor agradável, e tudo isso a voz de Caetano Veloso tem.
Mais do que utilizar uma canção que uma as culturas (o que
é maravilhoso, quando ocorre, e neste caso adoro o fato de
ele ser um cantor brasileiro que se ouve na Espanha),
escolhi Caetano porque ele tem uma voz preciosa e canta a
"Tonada" como se fosse uma canção de ninar.[17]

Mas o grande diálogo de Almodóvar é com o seu próprio cinema. Na
primeira seqüência de A flor do meu segredo, que, na verdade, funciona como
um prólogo, uma mãe (Manuela) recebe dos médicos a notícia de que seu filho
(Juan) teve morte cerebral e, portanto, eles solicitam a cessão dos órgãos
para um transplante. Ela se descontrola à medida que os médicos tentam
convencê-la de que o estado do filho é irreversível. Quando ela sucumbe às
lágrimas, ouve-se (em off): "Corta!", o espectador é revelado a uma câmara
de vídeo e fica sabendo que se tratava de uma encenação. Além do jogo entre
ficção e realidade que é problematizado , essa cena será reencenada quatro
anos depois, em Tudo sobre minha mãe, filme que conta a história de Manuela
e a perda do seu filho, Juan..Podemos dizer que trata-se de uma encenação
em abismo, a seqüência traz o enredo de um filme futuro, artifício
claramente borgeano. Também o sofrimento pelo qual passa a protagonista de
A flor do meu segredo – a espera, o abandono, a tentativa de suicídio – é
muito semelhante àquele da personagem Pepa, de Mulheres beira de um ataque
de nervos. O que se conta é o processo de abandono, o processo de solidão,
o que muda é o tom de cada filme – em Mulheres à beira de um ataque de
nervos, o tom é ligeiro, amalucado; em A flor do meu segredo, o tom é
dramático, a ausência, a perda em estado puro.

Outro tema importante em A flor do meu segredo é a multiplicidade
de identidades/nomes e a conseqüente perda/esvaziamento do sujeito. Leo
esconde-se por trás dos nomes/máscaras de Amanda Gris e de Paz Sufrategin
–a autora dos ensaios publicados no El Pais –, ou do apelido, um nome
neutro, de Leo. Ao se esconder por trás dos pseudônimos e do apelido, ela
pensa que sabe quem é — "Não devem saber que sou eu", diz ao editor —, mas
na verdade faz uso desse artifício por não saber/reconhecer quem realmente
é. Na última parte do filme, ao retornar à região de La Mancha, terra de
Dom Quixote e de seu criador Cervantes, e também de Almodóvar, ela se
encontra ao se (re)descobrir e se reconhecer como a Leocádia da aldeia.

Nesse jogo de imagens, rostos, máscaras e personas, o espelho, a
vitrine aparece com uma dupla função, marcar o encontro e o desencontro.
Esse duplo papel dos espelhos fica nítido em duas cenas quase simultâneas.
Na primeira, Leo visita Angel. Durante a conversa, na sede do jornal, as
imagens de Leo e Ángel se misturam/aglutinam na transparência de uma porta
de vidro. Na outra cena, Paco chega da guerra, Leo o recebe eufórica e
apaixonada, mas os espelhos, vidros e lentes espalhados pela casa insistem
em separá-los e distorcê-los. Na seqüência final, finalmente, as figuras de
Leo e Angel refletem seus contornos nítidos na superfície de um espelho.

Por fim, enfatizo mais uma vez o universo feminino tão bem
retratado pelo cinema de Almodóvar. As mulheres surgem como o grande
fetiche de seus filmes, mas por trás da irreverência e do exagero com que
as despe e veste, Pedro Almodóvar revela-se um profundo conhecedor desse
universo. Como ele próprio disse, A flor do meu segredo é um filme sobre as
emoções de uma mulher que sobrevive a uma grande crise. Leo é humana,
demasiado humana, não é fatal, nem fútil, frágil ou leviana, como costumam
ser a personagens femininas no cinema. Sua dor também é comum e
estarrecedora, como todas as dores de amor. No fundo, tudo parece banal,
simples demais, lugar-comum, mas também maravilhoso, pois tem as cores,
mesmo que sóbrias, e o diálogos de Pedro Almodóvar, o homem que ama as
mulheres, mulheres como Pepa, Carmem Maura, Paula, Chus Lampreave, Kika,
Veronica Forqué, Rebeca, Victoria Abril, Rosa, Rossy de Palma, Huma, Marisa
Paredes, Agrado, Antonia San Juan, Manuela, Cecília Roth, Raimunda,
Penélope Cruz, Leocádia da Aldeia, Irene, Elena, Clara, Marina,
Maria...[18]

REFERÊNCIAS
ALMODÓVAR, Pedro. Memória Roda Viva. São Paulo: FAPESP, 06 nov. 1995.
Entrevista concedida ao Programa Roda Viva. Disponível em:
. Acesso em: 13 set. 2008

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ALMODÓVAR, Pedro. La fleur de mon secret. Trad. Hélène Fournier. Paris:
Éditions du Levant, 1995.

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Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 427-433.

BRANDÃO, Ruth Silviano. Passageiras da voz alheia. In: CASTELLO BRANCO,
Lúcia; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Casa-Maria
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CAPUZO, Heitor. Lagrimas de luz: o drama romântico no cinema. Belo
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NAZÁRIO, Luiz. As sombras móveis: atualidade do cinema mudo. Belo
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OLIVEIRA, Rodrigo Santos. La mala educación, narrativa de entranhas
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Horizonte. Caderno de Resumos. Belo Horizonte: UFMG, 2008. p.531-532.

FILMOGRAFIA DE PEDRO ALMODÓVAR

Curtas-Metragens (8mm.)

FILME político. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1974. (Tradução de
FILM político)

DOS putas o una estoria de amor que termina em boda. Direção de Pedro
Almodóvar. Espanha, 1974.

EL SUEÑO o La estrella. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1975.

HOMENAJE. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1975.

LA CAÍDA de Sodoma. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1975.

BLANCOR. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1975.

SEA caritativo. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1976.

MUERTE em la carretera. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1976.

SEXO VA, SEXO VIENE. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1977.

Curta-Metragem (16mm.)

SALOMÉ. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1978.

Média-Metragem para televisão

TRAILER para amantes de lo prohibido. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha,
1984.

Longas-Metragens

FOLLE, folle, folleme tim. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1978.

PEPI, Luci, Bom y otras chicas del montón. Direção de Pedro Almodóvar.
Espanha, 1980.

LABIRINTO de paixões. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1982. (Tradução
de LABERINTO de passiones).

MAUS hábitos. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1983. (Tradução de ENTRE
tinieblas).

QUE FIZ eu para merecer isto?. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1984.
(Tradução de ¿QUÉ HE HECHO yo para merecer esto?!!).

MATADOR. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1986.

A LEI do desejo. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1987. (Tradução de LA
LEY del deseo).

MULHERES à beira de um ataque de nervos. Direção de Pedro Almodóvar.
Espanha, 1988. (Tradução de MUJERES al borde de um ataque de nervios).

ATA-ME!. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1990. (Tradução de ÁTAME!)

DE SALTO alto. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1991. (Tradução de
TACONES lejanos).

KIKA. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1993.

A FLOR do meu segredo. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1995. (Tradução
de LA FLOR de mi secreto).

CARNÊ trêmula. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1997. (Tradução de
CARNE trémula).

TUDO sobre minha mãe. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1999. (Tradução
de TODO sobre mi madre).

FALE com ela. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 2002. (Tradução de HABLA
com Ella).

MÁ educação. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 2004. (Tradução de LA
MALA educación).

VOLVER. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 2006.


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[1] Para mais informações a respeito dos pioneiros da sétima arte, ver:
NAZÁRIO, Luiz. As sombras móveis: atualidade do cinema mudo, em especial
o primeiro capítulo, "Um mundo feito para câmara", p.15-48.

[2] NAZÁRIO, Luiz. As sombras móveis: atualidade do cinema mudo, p.22-23.

[3] Cf. BARTHES, Roland. Ao sair do cinema, p.428-429.

[4] BRANDÃO, Ruth Silviano. Passageiras da voz alheia, p.17

[5] INFANTE, Guillermo Cabrera. Costelas de Adão, p.7.

[6] Criado em 1984, o FestRio foi um dos primeiros festivais de Cinema da
cidade do Rio de Janeiro. Em 1989, mudou o nome para Mostra Banco
Nacional de Cinema, tornando-se a principal vitrine do cinema nacional e
internacional. Após a falência do Banco Nacional, mudou novamente o nome
para Mostra Rio de Cinema, mantendo as características dos anos
anteriores. Em 1999, se fundiu ao Rio Cine, outro festival de cinema,
criado em 1984, passando a chamar-se Festival do Rio, considerado o
maior festival de cinema da América Latina.

[7] MASSI, Augusto. Semelhanças unem diretor ao Brasil., p.7.

[8] LYRA, Bernardete. O jogo dos Três Desejos, p.98.

[9] MASSI, Augusto. Semelhanças unem diretor ao Brasil., p.7.

[10] Cf. ALMODÓVAR, Pedro. Patty Diphusa e outros textos.

[11] Cf. OLIVEIRA, Rodrigo Santos. La mala educación, narrativa de
entranhas especulares, p.531.

[12] Sobre o drama romântico no cinema, em especial Hollywood, ver: CAPUZO,
Heitor. Lagrimas de luz: o drama romântico no cinema.
[13] "É possível dizer que filmei 'A Flor do Meu Segredo' porque queria
filmar a visita do marido e sua despedida" (Cf. ALMODÓVAR, Pedro. La
fleur de mon secret, p. 155.

[14] ALMODÓVAR, Pedro. La fleur de mon secret, p. 155

[15] Cf. ALMODÓVAR, Pedro. La fleur de mon secret.

[16] O cineasta pretendia chamar o filme exatamente de Como vaca sin
cincerro, mas mudou de idéia, pois em espanhol a expressão soa muito
cômica, e ele não pretendia tal conotação. (Cf. ALMODOVAR, Pedro. Memória
Roda Viva. Entrevista Programa Roda Viva. Disponível em:
http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/20/entrevistados/
pedro_almodovar_1995.htm).

[17] ALMODÓVAR, Pedro. O homem de La Mancha, Entrevista concedida a
Fernanda Scalzo, p.5.

[18] Aqui, faz-se referência a atrizes e personagens femininas de diversos
filmes de Almodóvar para figurar a relação do diretor com o universo
feminino.


( Doutor em Letras- Estudos Literários (Literatura Comparada - 2002-2006)
pela Universidade Federal de Minas Gerais [Prêmio ANPOLL de Melhor Tese
-2002-2006], mestrado em Letras-Estudos Literários (Literatura Brasileira -
1997-2000) e licenciatura em Letras - Língua Portuguesa e suas literaturas
(1993-1996) pela mesma universidade. É professor de literatura. Desenvolve
pesquisas que abordam o diálogo entre literatura e cinema.
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