A benção escondida

June 1, 2017 | Autor: Rafael Carazolli | Categoria: Religion, History of Religion, Religion and Politics, Igreja Católica, Anthropology of Religion
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A benção escondida Nós nos habituamos a ver o papa como um senhor gentil e simpático, muitas vezes divertido, que generosamente estende as mãos para conceder a graça de sua benção aos éis ou aos fãs. Guardamos na memória a imagem do papa ao lado de políticos importantes e nos recordamos de suas palavras consoladoras e paci cadoras. Ouvimos pessoas importantes dizendo que o papa é a reserva moral do ocidente e nos sensibilizamos ao vê-lo defender os pobres e doentes com tanta ênfase. Eu vou chamar essa imagem a qual nós nos habituamos de “papa contemporâneo”, um novo tipo de papa, diferente de todos que o antecederam. João XXIII foi, provavelmente, o primeiro papa contemporâneo, e todos que o seguiram conservaram e exploraram ainda mais esse novo caminho, fortalecendo a gura do papa como um homem de paz, generoso, inspirado por deus todo poderoso e fortalecido pela fé. Nesse post eu quero discutir o que tornou possível a existência do papa contemporâneo. Por que o estilo tradicional, duro e conservador dos papas mudou tanto em tão pouco tempo? Por que a imagem do papa contemporâneo é tão associada a um campeão da justiça, da caridade e da paz? E se você acha que isso é um milagre, obra do espírito santo ou o poder da fé, saiba que nós discordamos. Antes de João XXIII, os papas ainda seguiam um estilo quase medieval, e Pio XII pode ser considerado o último expoente dessa tradição. Ele e seus antecessores enfrentaram situações muito delicadas e quase sempre se mostravam extremamente conservadores, não apenas nas opiniões mas também na rígida formalidade em que se mantinham.  

Papa Pio XI   Entre as muitas situações embaraçosas e complicadas desses papas, eu acredito que vale a pena destacar o ponti cado de Pio IX e o sequestro de Edgardo Mortara pela igreja católica, com o próprio papa di cultando e impedindo o acesso dos pais ao garoto e ignorando os apelos de alguns dos homens mais importantes da Europa que pediam a libertação do menino. Também podemos lembrar a dureza do anti semitismo que era praticado explicitamente nos Estados Pontifícios onde os judeus eram, entre outras barbaridades, obrigados a seguir um código de vestimenta que os diferenciava das outras pessoas. Judeus não podia testemunhar contra católicos nos tribunais, eles eram forçados a ouvir sermões católicos que tentavam convertê-los e eram forçados a viver em guetos que eram trancados durante a noite. Quem não chegasse antes dos portões fecharem podia ser preso. Vocês podem imaginar isso acontecendo a mais ou menos 150 anos? Não é tanto tempo assim. Outro fato interessante sobre Pio IX foi sua fuga de Roma em 1.848. Vai parecer que eu estou fugindo do assunto, mas eu gostaria de lembrar que nosso ponto de vista sobre outras atrocidades que aconteciam na mesma época não mudou. Nós ainda achamos que a segregação racial foi uma barbaridade, que a escravidão foi um crime contra tudo que pode ser

considerado humano em nós. Ainda condenamos a violência e a ganancia do colonialismo europeu ao redor do mundo, mas nos esquecemos dos con itos, da violência e de toda a barbaridade que os Estados Pontifícios praticavam na mesma época e em nome de deus. De certa forma é sobre isso que eu quero falar, sobre a capacidade da religião católica em se recriar, em fazer apagar ou aprovar seu passado, mesmo que ele seja tão ressente e tão condenável quanto qualquer outra atrocidade cometida por qualquer estado belicoso da mesma época. A religião católica já vinha atravessando momentos difíceis a muito tempo e sua resposta para as di culdades era sempre mais conservadorismo. A duras penas o papa ainda conseguia manter o seu poder temporal como soberano dos Estados Pontifícios, que na década de 60 do século XIX, depois de muitas batalhas militares e muitas tramas políticas, já estavam reduzidos a pouco mais do que a cidade de Roma.  

Papa Pio XII   Quando a Itália foi uni cada em 1.870, o papa excomungou meio mundo e se trancou dentro dos muros do vaticano, se considerando um prisioneiro. Os papas medievais, vivendo em uma das épocas mais ricas da humanidade, continuavam repreendendo o mundo a sua volta, falando contra quase tudo que fosse novo e moderno, fazendo comentários anti semitas e ngindo para si mesmos que ainda tinham o poder temporal como chefes de estado. Essa situação durou até 1.929 quando o papa Pio XI se reuniu com o ditador Benito Mussolini para assinar o Tratado de Latrão que reconheceu a independência da Santa Sé no minúsculo território de 44 hectares da colina do Vaticano, sob a autoridade temporal e absoluta do papa. O tratado também

deu a igreja católica uma generosa indenização nanceira pela perda dos territórios dos Estados Pontifícios que o papa perdeu para a Itália quando esse país foi reuni cado. Havia ainda uma grande série de vantagens que a igreja católica receberia na Itália. O que atualmente é conhecido como Vaticano, na verdade é o que restou dos Estados Pontifícios, popularmente chamados de Estados Papais, que em outros tempos tinham ocupado grandes áreas na parte central da Itália e além de enormes receitas nanceiras rendiam a igreja católica uma in uência política considerável na Europa. O papa era senhor absoluto desse território e era chefe do exercito que o protegia e garantia que tudo continuasse como sempre tinha sido. O governo temporal dos papas sobre os Estados Pontifícios era exercido de forma atrasada e burocrática. Os Estados Pontifícios, que eram governados pelo representante de deus na terra, estavam entre os piores lugares para se viver na Europa, e era ainda pior para quem não era católico. Judeus e protestantes eram perseguidos e sofriam muito, penas medievais ainda eram praticadas. Enquanto o mundo se industrializava, se modernizava, se abria para novas ideias, os Estados Pontifícios resistiam arcaica e duramente. Haviam mendigos, pessoas passando fome, esgotos a céu aberto e todo tipo de necessidades e di culdades imagináveis, que cavam ainda mais difíceis de serem enfrentadas por causa do estilo medieval e duro do governo ine ciente e corrupto que valorizava mais a outra vida do que esta e acreditava que o sofrimento nesta vida assegurava um bom lugar na próxima. Hoje o papa continua sendo o chefe de estado secular dos 44 hectares que restaram dos Estados Pontifícios, favelas e guetos já não existem no minúsculo território que sobrevive com doações e turismo. Não existem mais situações precárias para seus poucos e selecionados habitantes, o papa não governa mais um grande território, ele não tem mais a responsabilidade de governar de forma e ciente ou de garantir boas condições de vida para uma grande população.  

Papa Pio X consagra o bispo Giacomo Paolo Giovanni Battista della Chiesa, o futuro Papa Bento XV, em 1907   Não foi uma surpresa quando, pouco tempo depois da assinatura do Tratado de Latrão, o papa se manifestou contra o Fascismo de Benito Mussolini, que tinha lhe devolvido o status de chefe de um estado secular, e em seguida desferiu críticas contra o capitalismo. Imediatamente depois de ser aliviado da responsabilidade sobre o bem estar de um povo necessitado, o papa começou a criticar nos outros as características que ele mesmo, e outros representantes de deus na terra antes dele tinham. Houve mesmo um boato em Roma de que Pio XI morreu envenenado por ordem de Mussolini. E considerando que a descrição de Dante sobre o inferno estava certa, eu diria que ele está no nono círculo do inferno, junto de Judas e Brutus, onde cam os traidores. Eu não acho que o papa estava errado em suas críticas ao capitalismo e ao fascismo, mas acredito que ele só pode fazer isso por que o seu território foi tomado pela Itália para a sua reuni cação. Se o papa enfrentasse, como chefe de estado, problemas sociais como os outros países enfrentavam, agravados por um conservadorismo ferronho, eu duvido que ele fosse capaz de proferir uma só palavra contra a situação social em qualquer outra nação.

Perder os estados pontifícios foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para a igreja católica, foi uma benção escondida, e graças a isso o papa pode se dar ao luxo de falar contra outros países criticando os comportamentos que os representantes de deus tinham enquanto eram responsáveis por um grande território e pelo bem estar da sua população. Os papas que seguiram Pio XI continuaram apontando o dedo e compondo críticas para a situação de outras nações e se posicionando em favor dos menos privilegiados, mas continuavam conservadores, medievais… Foi o papa João XXIII que começou a derrubar o conservadorismo com o Concílio Vaticano II. Muitas situações e costumes medievais que ultrapassavam o ridículo e alcançavam o hilário, foram abandonados durante o ponti cado de João XXIII, isso permitiu que a religião católica pudesse competir com outras igrejas na luta pelas almas dos eis. Mesmo assim, depois de João XXIII, uma ou outra vez, os papas ainda nos brindaram com comentários anti semitas.  

Coroação do Papa João XXIII   Eu realmente acredito que os católicos não queimam mais gente em praça pública, não segregam mais os judeus e nem queimam livros por uma única razão: Eles não podem. O papa perdeu seu poder temporal, ele não tem mais um grande e bem armado exercito militar, os próprios católicos desobedecem muitos fundamentos da fé católica, e isso signi ca que atualmente, na prática, não é mais o papa e outros bispos que de nem o que é ser católico. Isso força o avanço na modernização da igreja católica.

Depois de João XXIII, cada papa foi mais ferronho em suas críticas ao capitalismo e em sua defesa dos desfavorecidos do que os anteriores. Além de não serem responsáveis por um estado de verdade, sua religião agora era mais aceita devido as mudanças do Concílio Vaticano II. Nunca chegaram a ser modernos, acho que eles vivem continuamente, pelo menos 50 anos no passado, mas deixaram de ser medievais e se tornaram papas contemporâneos. Durante os anos 80 do século XX o papa João Paulo II teve um papel importante nos eventos que levaram ao m da guerra fria. O governo dos Estados Unidos da América do Norte reconheceram a contribuição da igreja católica e o papa ganhou muita visibilidade e elogios públicos feitos por pessoas muito poderosas. Sua in uência cresceu ainda mais.  

Tiaras   A defesa dos desfavorecidos e a crítica a situação social dos outros países continua rendendo muita popularidade, e sim, é disso que se trata, é essa popularidade que garante a in uência da igreja católica nas negociações políticas. Mesmo que os católicos transem antes do casamento, mesmo que se masturbem e usem camisinha e ignorem outras centenas de a rmações que o representante de deus faz em nome da fé católica. A gura do papa e várias décadas de discursos políticos paci cadores e cada vez mais socializados, junto com uma situação confortável onde ele não precisa implementar politicamente as mudanças que ele diz que devem ser feitas nos países dos outros, garantem a sua in uência e a sua permanência, principalmente na nossa sociedade do espetáculo!

Quase 100 anos depois do Tratado de Latrão, as pessoas esqueceram o que eram os Estados Pontifícios, ninguém se lembra dos guetos e nem dos livros proibidos e queimados, a única lembrança é a do velhinho gentil dizendo coisas bonitas e populistas.

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