A BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO E A DISTORÇÃO IMPOSTA PELO INTÉRPRETE NO PROCESSO DE REALIZAÇÃO DO DIREITO.

June 13, 2017 | Autor: Marcelo Lemos | Categoria: Direito Civil
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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS GRADUÇÃO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS CURSO DE DIREITO

MARCELO AUGUSTO RODRIGUES DE LEMOS

A BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO E A DISTORÇÃO IMPOSTA PELO INTÉRPRETE NO PROCESSO DE REALIZAÇÃO DO DIREITO.

SÃO LEOPOLDO 2013

MARCELO AUGUSTO RODRIGUES DE LEMOS

A BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO E A DISTORÇÃO IMPOSTA PELO INTÉRPRETE NO PROCESSO DE REALIZAÇÃO DO DIREITO.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, pelo Curso de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS Orientador: Prof. Dr. Marcos Jorge Catalan

São Leopoldo 2013

Dedico esta obra ao meu pai, Olindo Lemos, por sempre desafiar os meus conhecimentos jurídicos, me proporcionando motivação para buscar o meu próprio caminho.

AGRADECIMENTOS

Primeiro, é importante que se agradeça às pessoas que me proporcionaram a oportunidade do estudo, não só acadêmico, como também de todas as nuances da vida, tais como respeito, educação e amor. Por tal motivo, obrigado ao meu pai, Olindo Lemos e a minha mãe, Fátima Lemos, pelo intenso apoio e amor incondicional. Também se faz necessário o agradecimento aos meus irmãos, Adriano e Fabrício Lemos, os quais nutrem a mesma dedicação ao Direito quanto a minha pessoa e, ainda, compartilham suas dúvidas e esclarecimentos, a fim de que, juntos, possamos evoluir e sermos melhores juristas. Agradeço, especialmente, à minha namorada, Cecília Tonial, por sempre estar ao meu lado, tanto nas dificuldades que afrontam o nosso cotidiano, como também naqueles momentos de glória, tais como o que ora se apresenta, qual seja, na apresentação de uma árdua monografia de conclusão de curso. O seu apoio incondicional e o seu amor se transformam em motivação para buscar o meu caminho. Por fim, é imperioso que se faça um agradecimento ao Profº. Dr. Marcos Jorge Catalan, um brilhante jurista, o qual me orientou com toda a sua dedicação e, principalmente, sabedoria, a fim de que eu pudesse apresentar o melhor trabalho possível.

“Uma vez tomada a decisão de não dar ouvidos mesmo aos melhores contra-argumentos: sinal do caráter forte. Também uma ocasional vontade de ser estúpido”. Friedrich Nietzsche

RESUMO

Com a evolução doutrinária, a boa-fé objetiva se consolidou como princípio que gera deveres de conduta e cria standards de comportamento que os contratantes deverão respeitar durante toda a relação contratual, compreendendo não só as negociações preliminares, mas também o período posterior ao advento final do pactuado. O que se percebe, todavia, é que quando se tem a utilização deste princípio em ações consumeristas, verificar-se-á a superposição deste em face do princípio da equivalência das prestações, agregando-lhe uma função corretora de desequilíbrio contratual e, igualmente, atribuindo-lhe uma função instrumental de tutela do contratante débil. A boa-fé objetiva é um princípio jurídico que norteia as relações contratuais, com base nos valores atinentes à lealdade, honestidade e probidade e não poderá ser sobreposta a outro princípio jurídico igualmente relevante para o processo obrigacional. Para chegar a esta conclusão, mister se faz apresentar a estrutura do aludido princípio, com base na cronologia jurídica que incute a boa-fé objetiva como hoje a conhecemos. Neste ínterim, a evolução jurídica das formas de realização do Direito são apresentadas no presente trabalho, evocando à história, iniciando-se no jusracionalismo até a Constitucionalização do Direito Civil que derrocou a constituição dos privados. Isto é, centralizou o epicentro da civilística na Constituição e superou a antiga arqueologia jurídica do Código Civil como o principal instituidor das relações privadas. Imperioso se faz a compreensão histórica do princípio da boa-fé, tanto no Direito Romano, quanto no Direito Brasileiro. Ressalte-se que é importante que se tenha consciência de que tal princípio é conhecido desde os meandros do século XIX, com a sua inserção no Código Comercial de 1850, mesmo que tal restou frustrada. A aludida distorção/superposição da boa-fé objetiva nas relações de consumo se procede na prática jurisprudencial, por intermédio da apreciação equivocada por parte de intérpretes do Direito. Neste interregno, far-se-á uma análise jurisprudencial para, de alguma forma, voltar às raízes da boa-fé e não divorciar as suas funções quando sobrepostas ao caso concreto. Palavras-chave: Boa-fé objetiva, relações de consumo, superposição, desequilíbrio contratual.

ABSTRACT

With the doctrinal evolution, the good faith has consolidated as the principle that generates duties of conduct and standards of behavior that the contractors shall respect throughout the contractual relationship, including not only the preliminary negotiations, but also the subsequent period to the final advent of the agreement. What is noticeable, however, is that when you have the use of this principle in consumers issues, checking will be the superposition of this over the principle of equivalence of benefits, adding to it a function brokerage contractual imbalance and also giving it an instrumental role of supervision of the weak contractor. The objective of good faith is to guide contractual relations, based on the values relating to loyalty, honesty and integrity and can not be superimposed on another legal principle equally relevant to the obligatory process. To reach this conclusion, is necessary to present the structure of the aforementioned principle, based on the legal chronology instills the good faith as we know it today. In the meantime, the legal evolution of the embodiments of the law are presented in this work, evoking the history, starting in jusracionalism to constitutionalization of civil law that overthrew the private constitution. In other words, put the civil Law as the epicenter of private Law, and surpassed the old legal archeology of the Civil Code as the main founder of private relations. Becomes imperative the understanding of the historical of the principle of good faith, such in Roman law, as in Brazilian Law. It must be noted that it is important to be aware that this principle is known from the intricacies of the nineteenth century, with its inclusion in the 1850 Commercial Code, even if it was left frustrated. The alluded distortion / superposition of good faith in consumer relations is carried in judicial practice, through a mistaken appreciation by interpreters of law. In this interregnum must have a jurisprudential analysis to somehow go back to the roots of good faith and analyze how can not divorce their functions when superimposed on the case.

Keywords: Good faith, consumer relations, superposition, contractual imbalance.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................9 2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ............................................................................................. 9 2.1 ABANDONANDO A EXEGESE: O PAPEL DOS PRINCÍPIOS NA CONTEMPORANEIDADE JURÍDICA BRASILEIRA ..................................................... 12 2.2 CODIFICAÇÃO, DESCODIFICAÇÃO E RECODIFICAÇÃO DO DIREITO CIVIL 31 2.3 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: A DERROCADA DA CONSTITUIÇÃO DOS PRIVADOS ................................................................................... 38 2.4 A ARQUEOLOGIA JURÍDICA DA BOA-FÉ .............................................................. 46 2.5 A ATUAÇÃO DA BOA-FÉ NO DIREITO PRIVADO BRASILEIRO ........................ 61 2.6 TUTELANDO VULNERABILIDADES: UM PALCO NO QUAL A BOA-FÉ NÃO PODE ATUAR ..................................................................................................................... 74 3 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 84 REFERÊNCIAS BIBILIOGRÁFICAS ................................................................................ 87

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1 INTRODUÇÃO Esmiuçar o princípio da boa-fé objetiva é o desígnio inequívoco do presente trabalho, com vista a enquadrá-lo na sua real função dentro da relação obrigacional. Todavia, para tanto é imperioso referir a cronologia histórica do Direito Privado. É de salientar, a priori, que o contexto no qual se desenvolveu o Direito Privado advêm de uma série de revoluções jurídicas que se alastraram no tempo. Observa-se que o Direito deixou, ao menos teoricamente, a compreensão de unidade. Isto é, em tempos atuais não mais se admite a acepção de análise reduzida do Direito. Não deve mais este ser observado somente a partir de códigos. Estes, por sua vez, são meros condutores das relações privadas, ao passo que a intervenção do intérprete e a sua compreensão são preponderantes para o processo de realização do Direito na era pós-positivista. São válidas, porém, as críticas ao modelo atual. Não sob o viés estrutural, mas sim no que ocorre na prática. De fato, o intérprete agregou uma notória responsabilidade em realizar o Direito. Entretanto, jamais pode este se abster de consultar as fontes legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais. A decisão com base em sua própria compreensão pode acarretar severas aberrações jurídicas. Pode-se, por exemplo, dar respaldo a criação de princípios que são desconexos à realidade. Ou, até mesmo, a utilização equivocada destes em dadas relações obrigacionais. Neste ensejo, a utilização errônea da boa-fé objetiva nas relações de consumo não compreende a real função do aludido princípio. A determinação de standards de comportamento a serem observados em todas as etapas de uma relação obrigacional é função agregada à boa-fé objetiva. Obviamente, que esta singela conceituação não compreende a extensa gama de considerações que devem ser feitas acerca do princípio. Imperioso ressaltar que no contexto da Contemporaneidade, a boa-fé objetiva é uma das principais norteadoras das relações contratuais, possuindo uma relevante função no plano obrigacional. Contudo, cumpre destacar que a utilização equivocada se dá na prática jurisprudencial, em razão do extenso rol de possibilidade de inserção do princípio da boa-fé objetiva. O intérprete não pode, sobremaneira, buscar reequilibrar uma dada relação contratual, tendo por gênese o aludido princípio. Mais precisamente é o que ocorre, por vezes, nas relações de consumo. O consumidor possui condição de vulnerabilidade em virtude de origem constitucional. Em sendo assim, nas relações consumeristas o intérprete, por vezes, pode

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agregar à boa-fé objetiva um sentido de princípio de tutela de vulneráveis, o que não está correto. Em outras palavras, adiciona uma função corretora de desequilíbrio contratual, assim, se sobrepondo ao princípio da equivalência das prestações. Nesta cronologia se desenvolverá o estudo ora realizado. No primeiro capítulo apresentar-se-á a evolução do sistema jurídico, iniciando no jusracionalismo e atravessando séculos, até chegar no positivismo jurídico. Neste ínterim, verificar-se-á a estrutura das codificações civis brasileiras. Primeiro, o Código Civil de 1916, com as suas características estritamente patrimonialistas, que se desenvolveu em um contexto desconexo à realidade na qual foi promulgado. O Código Civil de 2002, em seu turno, foi inserido hodiernamente com uma estrutura até então não utilizada na juridicidade brasileira. As chamadas cláusulas gerais solidificaram a utilização de princípios jurídicos para o desenvolvimento de casos concretos. Passou-se, então, o intérprete da codificação a ter uma notória função: a de construção jurídica. Os princípios, por sua vez, ganharam notoriedade e passaram a ser utilizados como norteadores das relações obrigacionais – como ocorre com a boa-fé objetiva. Desta feita, princípios são normas e as regras a espécie. Ou seja, consagrou-se a normatização dos princípios jurídicos. No capítulo II, ressalta-se a arqueologia jurídica da boa-fé objetiva em determinados períodos históricos: Direito Romano, Germânico e Canônico. Demonstrar-se-á como se deu o nascimento da boa-fé (bona fides) na romanística, inclusive ressaltando-se o contexto jurídico da época. Após, no Germânico, desenvolveu-se a ideia de boa-fé aliada a concepção de crença e lealdade (trent und glauben), paralela a estrutura utilizada a posteriori na acepção Schuld und Haftung. Por fim, a boa-fé foi apresentada ao Direito Canônico com um viés oposto à máfé. Unificou-se o princípio em uma definição estreitamente oposta à Eclesiástica, ao passo que tudo que não fosse de acordo com a boa-fé, seria pecado. Passada a construção histórica da boa-fé na idade média, passou à edificação do princípio na primeira e na segunda sistemática, representadas pelo humanismo e jusracionalismo, acarretando no surgimento do princípio em duas grandes codificações oitocentistas: O Código Civil Francês de 1804 e o Código Civil Alemão (“BGB”). Toda essa evolução histórica desencadeou a utilização da boa-fé no direito brasileiro. A primeira tentativa de inserção do aludido na codificação tupiniquim surgiu em 1850 com o Código Comercial. Apresentada em seu viés subjetivo, não se adaptou às estruturas da

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sociedade da época. Com a derrocada do Código Civil (como a constituição dos privados), a boa-fé objetiva passou a ser um dos principais princípios jurídicos da Contemporaneidade. Por fim, ressalte-se que a utilização da boa-fé objetiva nas relações de consumo acometeu uma série de distorções. Ao princípio, fora agregado uma função de corretor de desequilíbrio contratual a ser utilizado nas relações de consumo, o que, inequivocamente, se sobrepôs a outros remédios jurídicos compatíveis com tal incumbência. É nesse contexto que esta pesquisa será realizada.

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2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 2.1 ABANDONANDO

A

EXEGESE:

O

PAPEL

DOS

PRINCÍPIOS

NA

CONTEMPORANEIDADE JURÍDICA BRASILEIRA Inequivocamente, o Direito Natural está diretamente ligado a uma ideia de justo. Neste sentido, apresentou-se preliminarmente em três vertentes: Cosmológico, teleológico ou teocêntrico e antropocêntrico1. Em síntese, o primeiro período se manifestou com uma característica preponderante de uma redução do Direito a problemas filosóficos oriundos da justiça, em um sentido cosmológico. Isto é, um Direito emanado da essência do universo. Na transição entre a História Antiga e a Idade Média surgiu a segunda manifestação do Direito Natural, com uma concepção voltada à centralização do Direito em Deus. Neste sentido, o que não fosse de acordo com a lei divina, não seria considerado Direito ou até mesmo não teria validade. Verificou-se, destarte, que neste período o Direito estava institucionalizado na igreja e na fé cristã. Contrario sensu, a terceira vertente, pautada no antropocentrismo, buscou livrar-se dos preceitos divinos, fazendo com que o homem assumisse o papel de construtor dos fundamentos do Direito. Buscou-se, assim, a independência da filosofia teológica, para dar lugar à razão humana2. O jusracionalismo também se apresentou em três manifestações (racionalista, empírico e mecanicista, bem como iluminista e formalista) nas quais as duas primeiras caracterizam o apogeu deste, ao passo que o terceiro já demonstra a sua superação, culminando com a sua transição ao Positivismo3. No período racionalista, dois foram os precursores desta doutrina: Grócio e Pudendorf. O primeiro tinha como cerne de sua obra jusracionalista, a concepção de uma salvaguarda à 1

CAVALCANTE, Marcos. O Sentido do Direito: A polêmica Jusnaturalismo X Positivismo. Disponível em: . Acesso em: 04 set. 2013. p. 177. 2 CAVALCANTE, Marcos. O Sentido do Direito: A polêmica Jusnaturalismo X Positivismo. Disponível em: . Acesso em: 04 set. 2013. p.184 3 CAVALCANTE, Marcos. O Sentido do Direito: A polêmica Jusnaturalismo X Positivismo. Disponível em: . Acesso em: 04 set. 2013. p. 185.

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autonomia do racional, defendendo, igualmente, a independência de que existe um Direito que advém anteriormente a uma vontade humana e, mormente, divina. Pudendorf, em seu turno, creditava a sua doutrina a uma ideia advinda de uma “construção de um direito natural perfeitamente racional, fundado na natureza humana, que seria então o critério normativomaterial para a validade do Direito”. Sintetizando, buscou este dar uma concepção científica matemática, adstrita a um preceito individualista-construtivo, à moralidade e à política4. A segunda vertente, qual seja, empírica e mecanicista, foi representada, principalmente por Thomas Hobbes e John Locke. Hobbes pautou a sua doutrina jusfilosófica em uma ideia de que a realidade humana era percebida por intermédio da razão, negando veementemente a vontade divina, estabelecendo-se “um contrato [...] como forma de convivência pacífica”. Locke, por sua vez, “defendeu que o conhecimento seria a percepção da conexão e da concordância ou discordância e contraste entre nossas ideias”. Não obstante, a concepção de jusracionalismo entre os dois filósofos está umbilicalmente ligada à “natureza livre e racional do homem, independentemente de ter sido ele criado por Deus (Locke) e de haver uma vontade divina que é um mandamento”5. O epílogo do Direito Natural clássico se acentuou com Emmanuel Kant e Jean-Jacques Rousseau. Ambos trouxeram “a racionalidade da lei consubstanciando as exigências normativas da juridicidade, procurando uma justiça racional da universalidade que trouxesse igualdade e segurança”6. A filosofia de Rousseau estava consubstanciada em uma desmistificação de crenças do pecado original e versando que o homem em sua índole natural é um “bom selvagem”, na medida em que a sociedade é o que o corrompe. Assim, o indivíduo deve compactuar com um contrato que garanta a continuação de seu estado natural, qual seja, o contrato social. O seu preceito jusnaturalista deriva de que os direitos civis já estão corroborados no contrato, espraiado na vontade geral. Desta feita, a fundamentação normativa deve advir de uma noção 4

CAVALCANTE, Marcos. O Sentido do Direito: A polêmica Jusnaturalismo X Positivismo. Disponível em: . Acesso em: 04 set. 2013. p. 186. 5 CAVALCANTE, Marcos. O Sentido do Direito: A polêmica Jusnaturalismo X Positivismo. Disponível em: . Acesso em: 04 set. 2013. p. 187. 6 CAVALCANTE, Marcos. O Sentido do Direito: A polêmica Jusnaturalismo X Positivismo. Disponível em: . Acesso em: 04 set.2013. p. 188.

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de justiça, oriunda do contrato social, bem como de toda e qualquer convenção humana. Também a sua doutrina demonstra que “não é da ideia de Deus ou da revelação através de Seus profetas, ou de uma força metafísica, que emana a justiça das leis, mas dos próprios homens que sabem respeitar os limites de legislar segundo a natureza”7. Kant delineou a sua doutrina jusfilosófica com base em sua Crítica da Razão Prática, discorrendo sobre a forma que o homem deve se portar, a partir do seu imperativo categórico de dever. Isto é, o homem deve proceder com uma dada ação, respeitando a lei, não sendo possível confrontar estas duas pontes porque pela “razão do Ser (sein) não pode nunca se inferir o Dever-Ser (sollen)”. Kant também acreditava não haver Direito sem coação, ao passo em que este seria somente efetivado, se pautado em uma (necessária) coercitividade. Esta filosofia kantiana representou o limbo entre o direito natural e o Positivimo “na medida em que o seu imperativo ético, sobrevalorizando o dever, levou à heteronomização do direito, que passa a ser eminentemente técnico e instrumental”8. O Positivismo foi apresentado ao mundo jurídico em forma de lei expressa em códigos. Era um modo legalista de expressar o direito, no qual o juiz nada mais desempenhava do que a subsunção9 do fato à regra. Consoante apontam Carolina Salbego Lisowski e Santiago Artur Berger Sito, a Escola Positivista se caracterizaria pelo: (a) o alijamento da esfera do prático, que desnuda a cisão [...] entre “questão de direito” e “questão de fato”, “teoria” e “prática”, ou “validade” e “legitimidade”; (b) ou a negação completa da moral como parte da vida 7

CAVALCANTE, Marcos. O Sentido do Direito: A polêmica Jusnaturalismo X Positivismo. Disponível em: . Acesso em: 04 set. 2013. p. 190. 8 CAVALCANTE, Marcos. O Sentido do Direito: A polêmica Jusnaturalismo X Positivismo. Disponível em: . Acesso em: 04 set. 2013. p. 191. 9 Uma importante ressalva é a caracterização de subsunção, a qual pode ser entendida como a inserção de um preceito particular a uma perspectiva universal. Fernando Andreone expõe um exemplo que sustenta esta argumentação no sentido de que se todo o assassino deve ser punido com prisão perpétua, logo se M cometeu um homicídio, este deve ser condenado à prisão perpétua. Via de regra, não analisa as intempéries que o homicida possa ter tido ao executar o crime, tampouco se verifica as condições psicológicas deste e os motivos que levaram-no a cometer tal barbárie. Em contrapartida, o mesmo jurista, fazendo coro à doutrina de Robert Alexy, discorre sobre a bom emprego de uma subsunção secundária, denominada como metassubsunção, a qual consiste na existência de outra regra que se mostre aplicável ao mesmo caso concreto, no qual a primeira lei não se mostrou conivente para o deslinde da solução do fato. Isto é, uma análise dupla para permitir a realização do Direito através da subsunção da lei ao fato. (VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. O Conceito De Derrotabilidade Normativa. Dissertação de Mestrado na Universidade Federal do Paraná. 2009. IN: BARCELOS, Débora Ceciliotti. Linguagem, Regras e Princípios. Disponível em: . Acesso em 28 fev. 2013).

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(positivismo normativista de Kelsen) ou sua plena aceitação como instância reguladora da aplicação do direito (moral que corrige o direito – teorias argumentativas); (c) a consideração dos princípios, ou como Princípios Gerais do Direito, ou seja, meros (e últimos) mecanismos de resolução de lacunas (alheio, portanto, ao avanço trazido pelo neoconstitucionalismo), ou na forma de um panprincipiologismo, ou ainda, instrumento de criação de standarts (ou padrões) interpretativos, bem como de inserção de valores na ordem jurídica a partir de um comportamento solipsista e antiético; e a mais importante marca da chaga positivista, (d) a aposta na discricionariedade do intérprete que, por não saber lidar com cisão aristotélica de razão prática vs. razão teórica, entrega-se à exclusividade da razão teórica, e alija a razão prática (que no positivismo se chama discricionariedade) para fora das preocupações jurídico-epistemológicas10.

As formas do Positivismo se manifestaram em variadas nuances nas leis europeias. Na Inglaterra, expressou-se de forma utilitarista, na qual a regra era avaliada unicamente em razão de suas consequências; na França, espraiada pelo Código Napoleônico, predominava a exegese de lei, isto é, o que estava disposto no código, prevaleceria sobre o fato; na Alemanha foi apresentada com um formalismo conceitual, o qual possuía seu fundamento na Jurisprudência dos Conceitos11. No sistema jurídico francês e alemão, as experiências fundadas na Exegese se deram em razão da forte influência do Direito romano. Tal influência não se deu pelo fato de que os romanos criaram as leis escritas, mas sim por desenvolverem todo o seu Direito em torno de uma pré-codificação denominada Corpus Juris Civillis. A codificação efetua a seguinte “marcha”: antes dos códigos, havia uma espécie de função complementar atribuída ao Direito Romano. A ideia era simples, aquilo que não poderia ser resolvido pelo Direito Comum, seria resolvido segundo critérios oriundos da autoridade dos estudos sobre o Direito Romano – dos comentadores ou glosadores. O movimento codificador incorpora, de alguma forma, todas as discussões romanísticas e acaba “criando” um novo dado: os Códigos Civis (França, 1804 e Alemanha, 1900)12.

Na escola exegética, o código era caracterizado como “texto sagrado” 13, no qual toda a argumentação jurídica girava no entorno da legislação, tendo uma estrutura perfeita e acabada, apta a abranger todas as situações jurídicas que a sociedade poderia criar14. 10

LISOWSKI, C. S.; SITO, S. A. Pública Direito - www.publicadireito.com.br. Disponível em:< http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=23d2e1578544b172>. Acesso em 09 abril 2013. 11 STRECK, Lenio. Aplicar a Letra da Lei é uma Atitude Positivista? Revista NEJ - Eletrônica, v. 15, n. 1 p. 158-173, jan.-abr. 2010. 12 STRECK, Lenio. Aplicar a Letra da Lei é uma Atitude Positivista? Revista NEJ - Eletrônica, v. 15, n. 1 p. 158-173, jan.-abr. 2010. 13 STRECK, Lenio. Aplicar a Letra da Lei é uma Atitude Positivista? Revista NEJ - Eletrônica, v. 15, n. 1 p. 158-173, jan.-abr. 2010.

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A Exegese criou uma ideia sistemática, de que as regras jurídicas seriam o norte da relação jurídica, na qual esta própria deveria dar retorno a ela mesma. Sob esta perspectiva, a solução de determinado imbróglio, sempre deveria estar disposto na lei. O sistema jurídico então se criou como um sistema perfeito e acabado, recheado de silogismos, sem mensurar uma possível necessidade de interpretação do magistrado, de modo que a este cabia apenas a aplicação e não a interpretação da lei15. O poder legislativo era quem criava o direito, enquanto que o mediador (intérprete) possuía um papel tão somente de aplicação da lei, adaptando o caso concreto a esta. O objetivo era separar o material jurídico (normas) do material não-jurídico (moral, política, religião). Implicava, portanto, em um método dogmático, através da interpretação puramente sistemática. A intenção, portanto, era criar um Código que abrangeria todas as situações possíveis da vida humana, de modo que a tarefa do intérprete seria tão somente a de aplicar silogisticamente o Direito16. Esta forma de realização do Direito consagrou a quebra do dogmatismo eclesiástico, nos primórdios do século XIX, por um novo meio de enxergar o Direito através de decisões corretas e repleta de silogismos. Trocava-se, portanto, o dogmatismo sacro, pelo Positivismo Exegético17. A Modernidade, com traços exegéticos, inviabilizava a possibilidade de evolução do Direito18, bem como criava diversas lacunas no ordenamento jurídico. Isto é, a realização do direito se restringia à letra da lei. Com o passar do tempo, os conceitos de subsunção do fato à regra começaram a perder amparo, eis que a realização do Direito não poderia se resumir à simples interpretação do texto legal. Tal característica abreviava a evolução do direito, considerando

que

não

haviam

sido

previstas

muitas

das

novas

problemáticas

contemporâneas19.

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STRECK, Lenio. Aplicar a Letra da Lei é uma Atitude Positivista? Revista NEJ - Eletrônica, v. 15, n. 1 p. 158-173, jan.-abr. 2010. 15 GALUPPO, Marcelo Campos. O Direito Civil no Contexto da Superação do Positivismo Jurídico: A Questão do Sistema. Direito Civil: Atualidades, Belo Horizonte, volume único, 2003. p. 159-183. 16 GALUPPO, Marcelo Campos. O Direito Civil no Contexto da Superação do Positivismo Jurídico: A Questão do Sistema. Direito Civil: Atualidades, Belo Horizonte, volume único, 2003. p. 159-183. 17 LISOWSKI, C. S.; SITO, S. A. Publica Direito - www.publicadireito.com.br. Disponível em:< http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=23d2e1578544b172>. Acesso em 09 abril 2013. 18 Paulo Lobo ressalta que na Modernidade, as relações civis eram reguladas pelo patrimônio do indivíduo e não pela sua pessoa. Isto é, era o “predomínio do ter sobre o ser”. LÔBO, Paulo. Princípio da Igualdade e o Código Civil. Palestra proferida na XVIII CONFERÊNCIA NACIONAL DOS ADVOGADOS, São Paulo, 12 de novembro de 2002. 19 NETO, Francisco dos Santos Amaral. A Interpretação Jurídica Segundo o Código Civil. Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro, v. 29, p. 17-41, 2007.

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O sistema Positivista explicitava uma falsa realidade, não condizente com o desenvolvimento tecnológico e das sociedades hipercomplexas, gerando a necessidade do Direito ser constituído através de “sistemas abertos” 20 para estar apto a oferecer soluções aos problemas surgidos no âmbito social. Com base nisto, percebeu-se que aquilo que estava disposto nos códigos – incidentes da prática da subsunção - não cobria a realidade e então, passou-se a pensar o Direito sob uma nova perspectiva que desencadeou, prima facie, na Escola da Exegese francesa e na Jurisprudência dos Conceitos, na Alemanha. O primeiro, Lênio Streck, unindo vozes à Castanheira Neves, denomina como Positivismo Legalista. O que caracteriza esta manifestação na codificação alemã e francesa era o uso da conexão lógica dos preceitos do Código o qual seria o necessário para resolver este imbróglio. Desta forma, o uso de conceitos em meio de analogia e a utilização dos princípios gerais do Direito seriam o suficiente para, em casos excepcionalíssimos, adequar os casos às regras legislativas21. Com a crescente disseminação dos sentimentos nacionalistas, movimentos ultranacionais, o preceito interpretativo se enalteceu. Nos primórdios do século XX, espalhavam-se teorias fundadas na adequação da lei às decisões emanadas na jurisprudência, mormente pelo advento da Jurisprudência dos Interesses e a Escola do Direito Livre, na Alemanha e França, respectivamente, as quais estavam assolando o avanço do Positivismo22. Neste contexto e contra este movimento, surgiu o Positivismo Normativista difundido por Hans Kelsen, no qual houve uma significativa mudança no modo de pensar do Positivismo. Espalhou-se nas primeiras décadas do século XX, em função da inadequação dos modelos semânticos de interpretação do Direito, eis que estes estavam defasados diante da evolução da sociedade. Houve, então, a primeira externação da indeterminação do Direito23. Isto é, o primeiro momento no qual se percebeu que o sistema jurídico perfeito e acabado não era capaz de mensurar tudo que poderia ocorrer. Kelsen tentou reforçar o método analítico exposto pela Jurisprudência dos Conceitos, para que fosse possível responder à perda de força do Positivismo diante da crescente corrente

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Para fins da presente monografia, utilizaremos o termo “sistema aberto” para referenciar a estrutura das leis, mesmo tendo conhecimento de que na contemporaneidade não existe sistema que não seja aberto, mormente pelo fato de que é impossível aplicar silogisticamente o processo de realização do direito, ao passo que um sistema fechado não se sustenta. 21 STRECK, Lenio. Aplicar a Letra da Lei é uma Atitude Positivista? Revista NEJ - Eletrônica, v. 15, n. 1, p. 158-173, jan-abr. 2010. 22 LISOWSKI, C. S.; SITO, S. A. Publica Direito - www.publicadireito.com.br. Disponível em:< http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=23d2e1578544b172>. Acesso em 09 abril 2013. 23 STRECK, Lenio. Aplicar a Letra da Lei é uma Atitude Positivista? Revista NEJ - Eletrônica, v. 15, n. 1, p. 158-173, jan-abr. 2010.

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representada pela Jurisprudência dos Interesses e pela Escola do Direito Livre, as quais fizeram surgir os argumentos psicológicos, políticos e ideológicos no decorrer da explanação do Direito. Kelsen, então, aduziu que o problema seria de semântica, em vez de sintático. Mas, em um ponto específico, Kelsen “se rende” aos seus adversários: a interpretação do direito é eivada de subjetivismos provenientes de uma razão prática solipsista. Para o autor austríaco, esse “desvio” é impossível de ser corrigido. No famoso capítulo VIII de sua Teoria Pura do Direito, Kelsen chega a falar que as normas jurídicas – entendendo norma no sentido da TPD, que não equivale, stricto sensu, à lei – são aplicadas no âmbito de sua “moldura semântica”. O único modo de corrigir essa inevitável indeterminação do sentido do direito somente poderia ser realizada a partir de uma terapia lógica – da ordem do a priori – que garantisse que o Direito se movimentasse em um solo lógico rigoroso. Esse campo seria o lugar da Teoria do Direito ou, em termos kelsenianos, da Ciência do Direito. E isso possui uma relação direta com os resultados das pesquisas levadas a cabo pelo Círculo de Viena 24.

O mesmo jurista aponta a sua crítica no sentido de que Kelsen já havia superado os preceitos da Exegese, tendo em vista que as nuances exegéticas já haviam perdido força no início do século XX e haviam influenciado o doutrinador austríaco. Contudo, este olvidou o problema da interpretação concreta do Direito25. Ainda, Lenio Streck expõe, nas vozes de Júlia Lafayette e Jânia Saldanha, que o Positivismo Normativista na realidade se operou como uma cisão entre validade e legitimidade, ao passo que a primeira era resolvida por uma análise lógico-semântica e a segunda, inserida num contexto problemático moral, ficando aos cuidados de uma teoria política infundada26. Marcelo Galuppo27 entende que o grande problema do Positivismo é que nunca haverão casos idênticos. Todo o caso concreto possui a sua particularidade que é passível de interpretação pelo juiz. Se a sociedade continuasse com esse pensamento Positivista, pautando o direito tão somente na lei, o rumo seria a criação de milhares de microssistemas que pudessem englobar as situações da vida humana, que, como bem se sabe, é impossível mensurar em apenas um código tudo que podemos ter no âmbito social28.

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STRECK, Lenio. Aplicar a Letra da Lei é uma Atitude Positivista? Revista NEJ - Eletrônica, v. 15, n. 1, 158-173, jan-abr. 2010. 25 STRECK, Lenio. Aplicar a Letra da Lei é uma Atitude Positivista? Revista NEJ - Eletrônica, v. 15, n. 1, 158-173, jan-abr. 2010. 26 LISOWSKI, C. S.; SITO, S. A. Pública Direito - www.publicadireito.com.br. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=23d2e1578544b172>. Acesso em 09, abril, 2013. 27 GALUPPO, Marcelo Campos. O Direito Civil no Contexto da Superação do Positivismo Jurídico: Questão do Sistema. Direito Civil: Atualidades, Belo Horizonte, volume único, p. 159-183. 2003. 28 Vide item 2.2 deste trabalho.

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Paolo Grossi aponta duas situações que fazem a Modernidade cair por terra frente à Contemporaneidade: O mercado e a rede. O primeiro em vista de seu caráter dinâmico e plástico que tem aversão ao disposto em lei ante a sua complexidade. A rede, por sua vez, a partir do momento em que existe, na sociedade atual, uma interligação de condicionamentos e integrações entre os indivíduos29. Segundo Francisco Amaral, a derrocada da Modernidade implicou na quebra do silogismo de subsunção, na qual a realização do Direito ocorria através da simples interpretação do texto legal30, para, então, iniciar o processo de raciocínio jurídico, consagrado, igualmente, no Código Civil de 2002, sob a mediação de práticas judicativodecisórias que caracterizam o sistema jurídico como uma atividade, não só dedutiva da codificação, como também prática31. Luiz Edson Fachin expõe a superação da Modernidade através da simbólica passagem da Carta Política que se converteu na tábua promissora da emancipação dos sentidos, da mitologia grega, narrando a analogia de Procusto, o qual era um salteador que morava em uma floresta e que possuía uma imensa cama de ferro. Todos que passavam pela estrada próxima a sua residência eram aprisionados em sua cama. Se grandes demais para couber na cama, Procusto cortava-lhes membros que ficassem de fora. Por outro lado, se fossem pequenos demais, este os esticava. Assim, o tamanho da cama seria o padrão utilizado por Procusto32. Desta forma, faz-se um paradoxo com o Direito Civil dogmatizante, o qual não possuía abertura para questões de cultura jurídica, justiça e ponderações sociais, para que, então, a “própria vida se adaptasse ao leito da forma”. Procusto teve seu fim, assim que Teseu, um aclamado herói ateniense, o qual havia recuperado as sandálias e a espada que haviam pertencido ao seu pai, Egeu, derrotou Procusto, tomando-lhe as suas armas. E assim, portanto, “a realidade rebelou-se contra o artificial mundo dos conceitos”. Com isso, novas características vieram à tona, consoante Fachin: Características embalavam esse soi-disant

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GROSSI, Paolo. A Formação do Jurista e a Exigência de um Hodierno "Repensamento" Epistemológico. Disponível em . Acesso em 29 jan. 2013. 30 NETO, Francisco dos Santos Amaral. A Interpretação Jurídica Segundo o Código Civil. Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro, v. 29, p. 17-41, 2007. 31 NETO, Francisco dos Santos Amaral. A Interpretação Jurídica Segundo o Código Civil. Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro, v. 29, p. 17-41, 2007. 32 FACHIN, L. E. Entre Duas Modernidades: A Constituição da Persona e o Mercado. Revista de Direito Brasileiro, São Paulo. p. 101-110, jul./dez. 2011.

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novo sonho: a troca de certeza pelo risco, a recusa da autoridade absoluta, a inexistência de modelos apriorísticos, e o nascimento jurídico do sujeito de necessidades33. Esta nova realidade concluiu que o pensamento jurídico não se trata de uma categoria científica, mas também ética, de modo que tal não pode se fundar tão somente na racionalidade técnico-intelectual, mas sim na prático-axiológica, tendo uma característica judicativo-decisória para proceder com o processo de realização do Direito, conforme os costumes e avanços do sistema jurídico, em razão da Contemporaneidade e os consequentes avanços que caracterizam a era34. Assim, o Direito passa a ter uma nova expressão de racionalidade, pautado na atividade judicial como ponto central, passando a ser um meio de concreção que se realiza por meio da decisão jurídica oriunda dos princípios jurídicos35. Desta forma, o intérprete36 passou a ter uma função permanente de construção jurídica e não só a mera interpretação do texto legal, outrora realizada na Modernidade. Neste sentido, ensina Amaral: (...) desenvolve-se um novo modelo, segundo o qual interpretar não é apenas compreender um direito pressuposto como objeto, mas sim elaborar soluções decisórias para casos jurídicos concretos, com eventual suporte em princípios jurídicos, cujo primado aumenta a importância do raciocínio jurídico e da sua revisão, não mais se admitindo o processo de aplicação dirigido pela lógica deôntica.

A teoria de hoje, e, diga-se de passagem, mui mais benéfica para as partes de uma relação jurídica é referida por Francisco Amaral, quando diz que as teorias positivistas de outrora se externavam como realidades pré-constituídas, de modo que a lei era o ponto de partida e o pensamento jurídico era unânime para aplicação desta ao caso concreto. Nos dias atuais, o fato é o ponto de partida, os princípios correspondem ao fundamento e o pensamento 33

FACHIN, L. E. Entre Duas Modernidades: A Constituição da Persona e o Mercado. Revista de Direito Brasileiro, São Paulo. p. 101-110, jul./dez. 2011. 34 CASTANHEIRA NEVES, A. O Actual Problema Metodológico da Realização do Direito. Digesta. Coimbra, v. 2, p. 248-282, 2010. 35 Paulo Lobo acentua que os valores atinentes às relações jurídicas não mais devem se basear no caráter patrimonial do indivíduo, mas sim prezando pela primazia do ser humano. Desta forma, teve conseqüências marcantes para a realização do Direito, como, por exemplo, na superação da ideologia dogmática da assertiva de “que o que é contratual, é justo”. (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Direito Civil: Atualidades, Belo Horizonte, volume único, p. 197-217, 2003). 36 Explicando o papel que o intérprete agrega no processo de realização do Direito, Fernando Andreone, referindo Paolo Comanducci, discorre, em uma perspectiva conceitual, as etapas de interpretação dos enunciados jurídicos da seguinte maneira: (i) primeira etapa consistente na identificação lingüística do enunciado; (ii) segunda etapa constituindo a associação da interpretação lingüística a uma regra; (iii) terceira etapa identificando a lei como princípio; (iv) a última etapa consistindo na atribuição de sentido interpretativo à regra. (VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. O Conceito De Derrotabilidade Normativa. Dissertação de Mestrado na Universidade Federal do Paraná. 2009. IN: BARCELOS, Débora Ceciliotti. Linguagem, Regras e Princípios. Disponível em: . Acesso em 28 fev. 2013).

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jurídico é a razão prática para a realização do Direito através de uma atividade criativanormativa37. A era de realização do Direito, com a utilização de princípios, é conceituada por A. Castanheira Neves, como dar uma solução, normativamente fundada, decidindo em termos juridicamente justificados. O jurista critica que o Direito deixou de buscar a justiça, a paz, abandonando a razão objetivo-material para prover tão somente os interesses sociais, assim, a razão funcionalmente instrumental38. Assevera, ainda, que a realização do Direito se divide em três pontos: (i) enquanto a intencionalidade a cumprir concretamente diante de sua realização – uma axiológica normatividade; (ii) enquanto espaço institucional da decisão, demarcado constitucionalmente por um estatuto orgânico e jurisdicionado por um processo; (iii) enquanto fundamento e critério do juízo ou da decisão que consubstancia a sua realização39. Mesmo assim, em regra parece que o jurista hodierno ainda se limita a subsumir o fato à regra. Desta forma, aduz que o que se encontra em crise não é a evolução constante da sociedade e a dificuldade do intérprete em assumir a função de adaptação do caso concreto à lei, mas sim os “modelos mentais de compreensão desta realidade”, caracterizado pelo pensamento “sistemático dogmático-conceitual” seguido pelo Positivismo Legalista do século passado40. Castanheira Neves41 expõe que o problema metodológico da realização do Direito tem o seu cerne no Direito Positivista, eis que extremamente lacunoso. Este é o ponto central: A dificuldade do jurista hodierno de superar a necessidade de simplesmente aplicar a lei ao caso concreto. Corroborando este entendimento, Paolo Grossi assevera que o jurista hodierno, com lassidão, não se adapta aos novos tempos, nos quais as problemáticas jurídicas são muito mais complexas do que outrora. Neste ínterim, os chamados “manuais jurídicos” caracterizam uma ideia da Modernidade, no qual o jurista age tão somente como um reprodutor da letra da lei.

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NETO, Francisco dos Santos Amaral. A Interpretação Jurídica Segundo o Código Civil. Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro, v. 29, p. 17-41, 2007. 38 CASTANHEIRA NEVES, A. O Actual Problema Metodológico da Realização do Direito. Digesta. Coimbra, v. 2, p. 248-282, 2010. 39 CASTANHEIRA NEVES, A. O Actual Problema Metodológico da Realização do Direito. Digesta. Coimbra, v. 2, p. 248-282, 2010. 40 NETO, Francisco dos Santos Amaral. O Direito Civil na Pós-Modernidade. Direito Civil: Atualidades. Belo Horizonte, volume único, p. 59-77, 2003. 41 CASTANHEIRA NEVES, A. O Actual Problema Metodológico da Realização do Direito. Digesta. Coimbra, v. 2, p. 248-282, 2010.

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Isto é, não há criticidade ao assunto que está sendo trabalhado, tampouco existe a renovação do Direito42. Luiz Edson Fachin também se manifesta e expõe que um dos desafios do sistema jurídico brasileiro para o porvir é “denunciar a manualística pedestre que dos Códigos fez o ‘seu código’ do pensar por repetições, memorizações e mitologias simplificadoras, num tocante pragmatismo rasteiro que vende parcos saberes, a peso de ouro, a famintos de pão e trigo verdadeiros” 43. Não obstante toda a problemática envolvendo a realização do Direito e a necessidade de adaptação do jurista a essa nova realidade, teoricamente, o Direito passa a funcionar com uma expressão prática, revelando-se na sua intenção e tarefas práticas, normativamente constituídas. Isto é, quem legisla é o intérprete44 e não só o legislador, de modo que este último deixou de ter o monopólio da realização do Direito45. 42

GROSSI, Paolo. A Formação do Jurista e a Exigência de um Hodierno "Repensamento" Epistemológico. Disponível em . Acesso em 29 jan. 2013. 43 FACHIN, L. E. Entre Duas Modernidades: A Constituição da Persona e o Mercado. Revista de Direito Brasileiro. São Paulo, p. 101-110, jul-dez. 2011. 44 Muito embora toda esse clamor dado ao intérprete para a realização do Direito, Júlia Lafayette e Jânia Saldanha, em obra conjunta e fazendo coro a doutrina de Lenio Streck, criticam a discricionariedade do Juiz, difundida pelo pós-positivismo, reforçando que se trata de uma matéria que concede ao intérprete uma extensa liberdade, de modo que eclode no problema do solipsismo. Isto é, em algumas hipóteses, o juiz decide com base na sua consciência. Trata-se de uma forma egoística de pensar o direito. Para corroborar o entendimento, cita a decisão do Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Gomes de Barros, no qual este aduz que não lhe importa o que dizem os doutrinadores, pois ele decide conforme a sua jurisdição e que decide assim, por pensar desta forma, ou seja, um mero preceito de sua própria moral. Ainda, o emérito Ministro afirma que seus colegas não são aprendizes de ninguém. Conforme expõem as juristas, discorrendo sobre a obra de Lenio Streck, após tantas conquistas que culminaram no Estado Democrático de Direito, acabamos por voltar ao mesmo ponto de partida, qual seja, o problema da democracia e da (necessária) limitação do poder. Esta ideia de decidir conforme sua própria consciência caracteriza o sujeito solipsista, aduzindo que se trata de uma construção teórica que possui raízes no paradigma metafísico. A vedação, ou ao menos a tentativa, de decisão do intérprete consoante os seus próprios preceitos morais auxilia no impedimento de crescimento do Panprincipiologismo o qual insurge como uma das conseqüências da discricionariedade do intérprete, uma vez que este adapta o texto jurídico a sua consciência, até encontrar a solução que mais lhe aparente ser compatível ao caso concreto. Afirmando Lenio Streck, Júlia Lafayette e Jânia Saldanha afirmam que no atual Estado Democrático de Direito não há mais espaço para que o juiz decida com base na sua convicção pessoal, eis que este deve estar apoiado a uma regra, pois não havendo esta, não terá como este partir para uma interpretação. Isto é, não entendendo plenamente o que a lei está querendo passar, não haverá como decidir com a sua própria convicção pessoal. Este terá que entendê-la, para, então, interpretá-la. O intérprete não irá fazer uma análise do texto, pois este se diferencia de lei, ao passo que o texto aparecerá ao intérprete já na qualidade de regra. Caso contrário, o juiz poderá, de modo solipsístico, auferir qualquer significado ao texto – o que baseia toda a crítica de Lenio Streck – contudo, para interpretar e aplicar a correta decisão ao caso concreto, deverá partir este de uma concepção prévia, buscando uma unidade de sentido. Para evitar o fenômeno do Panprincipiologismo, as juristas mencionadas afirmam que para institucionalizar um princípio é necessária a constituição de uma tradição. Ainda, propõem uma solução no sentido de que as decisões judiciais tenham uma voz única, de modo que sejam decididas com base no tratamento da equidade perante a Constituição, bem como o respeito à tradição e vedação ao Panprincipiologismo, garantindo a unicidade das decisões pautadas na discricionariedade do Juiz. (PEREIRA, Júlia Lafayette; SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Pós-Positivismo e Teoria da Decisão: A Recepção Giro Linguístico-Ontológico no Direito como Condição de Possibilidade para a Superação do Solipsismo Judicial. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/publicacao/uff.php. Acesso em 28 fev. 2013. 45 CASTANHEIRA NEVES, A. O Actual Problema Metodológico da Realização do Direito. Digesta. Coimbra, v. 2, p. 248-282, 2010.

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Em vista da descentralização do processo de realização do Direito, no qual a criação deste passou a ser tanto do legislador, como dos intérpretes, verificou-se a necessidade da utilização dos princípios para a concreção do direito, por intermédio do intérprete, com a sua função eterna de construção das normas e institutos do sistema jurídico, os princípios surgem como uma das principais fontes de direito, assim como a jurisprudência, com o objetivo de suprir as diversas lacunas deixadas pela Modernidade46. Os princípios foram inseridos no sistema jurídico brasileiro e, por isso, assumem uma posição de regra de aplicação imediata47. Deixam de ser meros norteadores do pensamento jurídico para se tornarem lei 48. Paulo Bonavides assevera que os princípios oxigenam as Constituições, e é graças a estes que os sistemas constitucionais auferem a unidade de sentido e a valoração da ordem normativa49. Os princípios assumem uma importância vital na Contemporaneidade, o que se torna cada vez mais evidente, mormente pela presença destes nas Constituições, aparecendo como pontos axiológicos fundantes do pensamento jurídico hodierno50. Bonavides explicita a esfera na qual os princípios chegaram na Contemporaneidade: Em resumo, a teoria dos princípios chega à presente fase do pós-positivismo com os seguintes resultados já consolidados: a passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (seu ingresso nas Constituições); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação da sua normatividade; a perda do seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo da sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente, por expressão

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Com o advento do Estado Democrático de Direito, o Positivismo acabou superado para dar lugar a uma nova era: A Constitucionalização do Direito Civil e o Neoconstitucionalismo, o qual iremos tratar minuciosamente no tópico subsequente, porém, não nos impede de ilustrar a sua importância na Contemporaneidade. A Constituição, no Estado Democrático de Direito, é o ponto de partida para o desenrolar de uma relação jurídica, muito embora ainda exista uma grande preocupação em não permitir que os juristas se mantenham restritos aos estatutos jurídicos. 47 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2000. 48 Paulo Bonavides explica que tal característica principiológica desencadeou uma onda doutrinária na qual alguns juristas, como Grabitz e Larenz, afirmam que deixando, os princípios, de ser ratio legis para se converter em Lex, passam a ser Direito Positivo. Assinalam que repartem-se, assim, em duas frentes: os que possuem como característica o norte das relações jurídicas, postulando por um lugar na jurisprudência e na lei; e aqueles que já desempenham uma aplicação imediata, em função da lei Os primeiros, então, denominam-se princípios “abertos” e os segundos princípios “normativos”. 49 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2000. 50 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

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máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios51.

Portanto, na Contemporaneidade o Direito passar a ser pensado através da Constituição e não a partir dela, de modo que deixa a antiga adequação legislativa, para se tornar uma atividade aplicativa/jurisdicional. Isto é, o objeto do Direito não se resume à simples interpretação do texto legal, necessitando de um universo valorativo de princípios os quais não são taxativos para serem aplicados ao caso concreto52. A necessidade de aplicação dos princípios é imprescindível no contexto da sociedade atual, uma vez que a codificação não basta para delimitar as situações jurídicas que existem e que ainda poderão existir. Franscisco Amaral, por sua vez, entende que a realização do Direito deixou de ser uma prática meramente lógico-dedutiva para tornar-se uma atividade prático-criativa, sendo o intérprete da codificação a maior influência para criação da lei53. Em suma, para cada problema não será necessária a criação de um microssistema que venha a regular um determinado instituto, sendo os princípios uma forma de regular as relações jurídicas de acordo com os preceitos que a ele são competentes. Neste sentido, leciona: Diversamente dessas concepções, as teorias de hoje têm como característica o ‘ponto de vista prático’ e a crença de que o intérprete cria o direito, gerando uma nova aproximação ao direito e produzindo um crescente interesse pelo raciocínio jurídico, conforme se verifica nos estudos mais recentes da teoria do direito54.

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BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2000. RADAELLI, Samuel Mânica. Teoria Constitucional do Direito: O Neoconstitucionalismo e a Ordem Jurídica Contemporânea. Revista Direitos Culturais. Curitiba, v.3, n. 5, dezembro 2008. 53 Desta forma, se verifica a pertinência dada a um juiz para realizar o direito. É ele o principal criador do direito na sociedade contemporânea, a principal figura da realização do direito. Por meio das decisões jurisprudenciais que os juízes emanam criam-se os conceitos jurídicos atinentes a um caso em específico, os quais poderão ser utilizados como precedente para a solução de outro eventual imbróglio. São estes que decidem o norte que será dado para o caso concreto, apoiado à norma, contudo não se fiando por inteiro a esta. Entretanto, há de se dar valor aos demais operadores do direito que trazem à tona as mais diversas problemáticas que a vida atual pode nos proporcionar. O advogado possui um papel importante e inovador de levar ao principal intérprete do direito (juiz) a solução para o imbróglio que se apresenta. De qualquer sorte, a ideia de que o juiz é a “boca da lei” permanece, todavia, a discricionariedade deste aumenta e muito, eis que este passa a fomentar o direito com precedentes jurisprudenciais (NETO, Francisco dos Santos Amaral. A Interpretação Jurídica Segundo o Código Civil. Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro, v.29, p.17-41, 2007). 54 NETO, Francisco dos Santos Amaral. Uma Carta de Princípios para um Direito como Ordem Prática. O Direito e o Tempo: Embates Jurídicos e Utopias Contemporâneas. Rio de Janeiro: Editora Renovar, p. 127-142, 2008. 52

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Para o aludido jurista55, a dogmática dos princípios caracteriza o pós-positivismo jurídico56, a partir do seu pensamento, no qual se reconhece as funções interpretativa metodológica, considerando que os princípios orientam o intérprete à criação de novas normas; função integrativa quando invocados para preencher uma lacuna da lei; função diretiva ou programática quando aos princípios se recorre para orientação, pelo legislador, para a organização política e social do país; construtiva para impedimento de transformação da legislação em vários textos legais incoerentes e de decisões judiciárias esparsas, garantindo a unidade sistemática do direito. Amaral ainda aponta que os princípios tornaram-se fundamentais para a construção da racionalidade jurídica, passando a ser de grande relevância para a criação de normas e institutos, a quem se recorre quando em face de situações indeterminadas57, o que explica o Código Civil de 2002 como um “sistema aberto”, abrindo a possibilidade de criação de norma ulterior ao princípio. Ademais, constituem estes os fundamentos que dão garantia e certeza ao conjunto de juízos, se enaltecem como o norte da construção de normas e institutos jurídicos, quando diante de uma nova problemática que não possui, por ora, um microssistema ou legislação58. Para aplicação principiológica é necessária uma ponderação de princípios, compostos pelos da proporcionalidade em sentido estrito, idoneidade e necessidade. Um exemplo que Pablo Malheiros usa para explicar a necessidade da referida ponderação é o impedimento da entrada de um veículo de imprensa para cobrir os treinos e jogos de uma determinada agremiação esportiva. Neste caso, teríamos uma confrontação entre o princípio da liberdade de trabalho e a liberdade de informação. Haverá esta ponderação principiológica em virtude de não haver hierarquia entre os princípios, excetuando o da dignidade da pessoa humana, o qual somente poderá ser relativizado se for defender a dignidade de outra pessoa humana. Pablo Malheiros59 explica a conceituação principiológica proposta por Castanheira Neves, no seguinte sentido: (i) positivos (expressos pelo direito posto); (ii) transpositivos (estruturantes das diversas formas de expressão do direito) e; (iii) suprapositivos (expressam 55

NETO, Francisco dos Santos Amaral. Uma Carta de Princípios para um Direito como Ordem Prática. O Direito e o Tempo: Embates Jurídicos e Utopias Contemporâneas. Rio de Janeiro: Editora Renovar, p. 127-142, 2008. 56 Francisco Amaral denomina este período de pós-modernidade, tendo o prefixo “pós” o sentido de oposição, isto é, pensamento contrário às práticas modernas. 57 NETO, Francisco dos Santos Amaral. O Código Civil e o Problema Metodológico de sua Realização. Direito Civil: Direito Patrimonial e Direito Existencial. São Paulo: Editora Método, p. 1-24, 2006. 58 NETO, Francisco dos Santos Amaral. O Código Civil e o Problema Metodológico de sua Realização. Direito Civil: Direito Patrimonial e Direito Existencial. São Paulo: Editora Método, p. 1-24, 2006. 59 MALHEIROS, Pablo. Os Deveres Contratuais Gerais nas Relações Civis e de Consumo. Dissertação de Mestrado na Universidade Autonôma do Estado de São Paulo. 2008.

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valores fundamentais do direito). Nesta linha, os positivos constituem os fundamentais, os quais se enaltecem sobre qualquer regra e os institucionais que abrangem diversos institutos do sistema jurídico, como o direito dos contratos. Os transpositivos caracterizam os princípios balizadores do Código Civil de 2002, quais sejam, da eticidade, da operabilidade e o da socialidade. Por fim, os suprapositivos são o da justiça, da liberdade, da segurança, da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Existem sete princípios contratuais civis sendo que três constituem os individuais ou cardinais – autonomia privada, pacta sunt servanda e relatividade contratual – e quatro sociais – função social, função ambietal, equivalência material e boa-fé. Em linhas gerais, há de se referir, também, a discrepância entre os princípios constitucionais e os princípios gerais de direito, ao cabo que o primeiro está vinculado a instituição do Estado Democrático de Direito, o qual culminou na institucionalização da moral, enquanto que o segundo está interligado ao Positivismo Normativista. Os princípios gerais do direito em nada inovaram na nova concepção de realização do Direito, uma vez que permaneceram cumprindo o mesmo papel que lhes foi dado na teoria kelseniana, que era de legitimar o poder discricionário do Juiz, “oportunizando a abertura interpretativa das regras a serem subjetivamente apreciadas”60. Segundo Jânia Saldanha e Júlia Pereira, os princípios constitucionais, por sua vez, possuem um objetivo de impedir que os juízes decidam conforme seus preceitos morais e, assim, oportunizar o fechamento interpretativo das regras. Em síntese, asseveram que estes estão acobertados pelas regras e é delas que eles surgem61. Por isso, o ingresso das características da Contemporaneidade na Constituição do Estado Democrático de Direito, no Brasil, em 1988, bem como no Código Civil de 200262, consolidou a utilização de princípios na mediação dos litígios.

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PEREIRA, Júlia Lafayette; SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Pós-Positivismo e Teoria da Decisão: A Recepção Giro Linguístico-Ontológico no Direito como Condição de Possibilidade para a Superação do Solipsismo Judicial. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/publicacao/uff.php. Acesso em 28 fev. 2013. 61 PEREIRA, Júlia Lafayette; SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Pós-Positivismo e Teoria da Decisão: A Recepção Giro Linguístico-Ontológico no Direito como Condição de Possibilidade para a Superação do Solipsismo Judicial. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/publicacao/uff.php. Acesso em 28 fev. 2013. 62 Cabe a ressalva de que o grande idealizador do Código Civil, Miguel Reale, o fez com um sentido de criação no qual estaria embasado, segundo o próprio, nos seguintes preceitos: (i) aderente aos problemas concretos da sociedade brasileira; (ii) unidade sistemática determinada pela parte geral; (iii) unificação linguística; (iv) unidade valorativa e; (v) sentido de concreção de que as normas possuem, fazendo uma conexão entre o direito doutrinário e jurisprudencial ao caso concreto. (BARROSO, Lucas Abreu; SOARES, Mário Lúcio Quintão. A Dimensão Dialética do Novo Código Civil em uma Perspectiva Principiológica. IN: Lucas Abreu Barroso Org. Introdução Crítica ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. P. 1-14. Disponível em:

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Nesse momento, o novo Código Civil de 2002 surgiu com o condão de prevalecer os direitos coletivos sobre os individuais, consagrando a ruptura do patrimonialismo. Como pontos de mobilidade e de abertura do sistema jurídico, estariam dispostas as cláusulas gerais e conceitos indeterminados passíveis de interpretação pelo operador do direito63. Este pensamento que trouxe o Código Civil de 2002 já havia sido pensado muito antes de sua promulgação. A doutrina rebatia a necessidade de criação de um código com conceitos indeterminados para a concreção do direito. É o que expunha Judith Martins-Costa, quando conceitua as cláusulas gerais do código civil64 para a fundamentação de um sistema aberto, com conceitos indeterminados, que permitem a criação do Direito através da abertura de precedentes jurisprudenciais. Desta forma, para cada lacuna da lei, não se faz necessária a criação de norma, de uma legislação específica65. (...) a concreção das cláusulas gerais insertas no Código Civil com base na jurisprudência constitucional acerca dos direitos fundamentais evita os malefícios da inflação legislativa, de modo que ao surgimento de cada problema novo não deva, necessariamente, corresponder nova emissão legislativa 66.

Ademais, o aludido Diploma Legal ainda não absorveu as novas problemáticas contemporâneas, ao passo que tardou trinta anos para ser promulgado. Lucas Abreu Barroso alude que a sua promulgação em 2002 veio em meio a uma série de crises políticas, derivadas

http://www.portalibest.com.br/img_sis/download/645fb6f028172b35141a01c74e0c851a.pdf. Acesso em: 29 jan. 2013. 63 BARROSO, Lucas Abreu; SOARES, Mário Lúcio Quintão. A Dimensão Dialética do Novo Código Civil em uma Perspectiva Principiológica. IN: Lucas Abreu Barroso Org. Introdução Crítica ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. P. 1-14. Disponível em: http://www.portalibest.com.br/img_sis/download/645fb6f028172b35141a01c74e0c851a.pdf. Acesso em: 29 jan. 2013. 64 Judith Martins Costa aduz que a estrutura das cláusulas gerais se subdivide em três: (i) restritivo, de modo que delimita determinadas situações, que sejam confrontantes aos princípios estabelecidos; (ii) regulativo, que servem para regular fatos que não estão previstos casuisticamente; (iii) extensivo, ao passo que servem para permitir a regulação de determinados preceitos, consoante determinados em outras leis superiores hierarquicamente a esta (MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um "Sistema em Construção": As Cláusulas Gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 35, n. 139, p. 5-22, jul./set. 1998). 65 A atual composição do sistema jurídico brasileiro, o qual, com o advento do novo Código Civil, se tornou um sistema aberto permeado por cláusulas gerais que dão uma maior dimensão ao intérprete para aplicação da regra, concluiu-se que as problemáticas impostas pela realidade social impedem a construção de um sistema jurídico que não seja o aberto, pois não há como prever todos os problemas que a sociedade contemporânea pode acarretar, eis que hipercomplexa e cada vez mais abarrotada pelos contratos de massa e de adesão. Ou seja, é impossível um sistema jurídico pautado tão somente na aplicação lógico-dedutivo da codificação (MARTINSCOSTA, Judith. O Direito Privado como um "Sistema em Construção": As Cláusulas Gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 35, n. 139, p. 5-22, jul./set. 1998). 66 MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um "Sistema em Construção": As Cláusulas Gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 35, n. 139, p. 5-22, jul./set. 1998.

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de corrupção, com o objetivo de apagar a fumaça e baixar a poeira destes escândalos políticos. Afirma que o novo Código Civil já nasceu velho67. Barroso ainda aponta que a discrepância socioeconômica da sociedade brasileira faz com que os direitos atinentes ao cidadão sejam distorcidos consoante as vontades da elite dominante do país: O Direito Civil, nos dias que se seguem, deverá apartar-se dos interesses ensejados pelas elites política e econômica que o manipulam em proveito de si próprias e primar por uma igualdade substancial, atuando como fator decisivo na distribuição horizontal da riqueza e na consolidação do pleno exercício dos direitos atrelados à afirmação da cidadania68.

Nesta linha, a promulgação de novas leis estão diretamente ligadas a alguma dispersão do foco de determinados escândalos políticos que emanam de tempos em tempos em solo tupiniquim, como refere, o aludido jurista, que ocorreu quando da promulgação do novo Código Civil. Não obstante as críticas, Barroso assevera que a revolução doutrinária cada vez mais latente tenta aproximar a codificação civil dos novos problemas da vida privada69. Cabe salientar ainda, no que tange à estrutura da codificação civil, que existe uma contradição entre o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil que estabelece que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais do direito”, para com o art. 127 do Código de Processo Civil, o qual aduz que o princípio da equidade somente será aplicado nos casos previstos em lei. Portanto, com essa divergência entre os dois Diplomas Legais, de certa forma anula o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, uma vez que o Código de Processo Civil já estabelece que a equidade não tem o condão de suprir eventuais lacunas da lei, pois está reduzida à letra da lei, em um rol taxativo, considerando ainda que esta não constitui fonte de direito e, assim, não tem a incumbência de criação de normas70.

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BARROSO, Lucas Abreu. O Novo Código Civil no Momento Histórico de sua Realização. IN: CONFERÊNCIA REAL ACADEMIA DE JURISPRUDENCIA Y LEGISLACIÓN, Madri, 2010. Disponível em: https://docs.google.com/document/pub?id=1rL3e4OVNj4Bjiigrm6rPlLhmpr0NBhoCbJJRPmXwfH0. Acesso em: 29 jan. 2013. 68 BARROSO, Lucas Abreu. O Novo Código Civil no Momento Histórico de sua Realização. IN: CONFERÊNCIA REAL ACADEMIA DE JURISPRUDENCIA Y LEGISLACIÓN, Madri, 2010. Disponível em: https://docs.google.com/document/pub?id=1rL3e4OVNj4Bjiigrm6rPlLhmpr0NBhoCbJJRPmXwfH0. Acesso em: 29 jan. 2013. 69 BARROSO, Lucas Abreu. O Novo Código Civil no Momento Histórico de sua Realização. IN: CONFERÊNCIA REAL ACADEMIA DE JURISPRUDENCIA Y LEGISLACIÓN, Madri, 2010. Disponível em: https://docs.google.com/document/pub?id=1rL3e4OVNj4Bjiigrm6rPlLhmpr0NBhoCbJJRPmXwfH0. Acesso em: 29 jan. 2013. 70 BARROSO, Lucas Abreu. Situação Atual do Art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. Revista Brasileira de Direito Constitucional. São Paulo, n. 5, p. 236-242, jan./jun. 2005. Disponível em:

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Ademais a aludida discrepância ignora o papel dos princípios no ordenamento, eis que este - por ter normatividade - é fonte de incidência imediata. Tal pensamento jurídico de que os princípios gerais do direito somente poderão ser invocados quando esgotadas as tentativas de interpretação da regra e o insucesso na utilização de analogia e usos e costumes, fora superado no contexto da Contemporaneidade71. O dispositivo em comento afronta não só o Código de Processo Civil, mas como toda a civilística incorporada pelo sistema jurídico brasileiro, quando veda a utilização de princípios, da forma como expomos que estes devem ser empregados no processo de realização do Direito. Em virtude disto, a incidência do artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil mostra-se totalmente descabida na Contemporaneidade, eis que a sua aplicabilidade não corrobora o que entendemos por realização do Direito. Muito embora todas estas falhas estruturais da codificação civil brasileira, de fato, a inserção dos conceitos indeterminados e cláusulas gerais foi muito festejada pela doutrina majoritária brasileira. Muitos apontam que se tratou de uma inovação, outros a referem como a quebra da civilística dogmática. Discordamos deste posicionamento, eis que os princípios, conforme já apontamos, é fonte de incidência imediata. Portanto, possui caráter de lei. Lenio Streck72 entende que a aposta nas cláusulas gerais nada mais é do que um reforço à velha discricionariedade positivista, a qual somente distinguia Direito e moral, mas não vedava a interpretação da legislação. Ainda, o jurista aponta o perigoso campo que se abre com a discricionariedade e decisionismos, ao passo da distinção entre casos simples, que poderiam ser solucionados por dedução ou subsunção e no que tange aos casos complexos, que, para estes, seriam invocados os princípios, considerando que a legalidade que hoje se encontra permeada no sistema jurídico é a pautada nos princípios. Isto é, o texto legal já deriva da aplicação analógica dos princípios jurídicos73. https://docs.google.com/document/pub?id=1sya2va99vdOViYkVVrY74d0WRc85cDHisAZTCYo9UYg. Acesso em: 29/01/2013. 71 CATALAN, Marcos Jorge. Do Conflito Existente entre o Modelo Adotado pela Lei 10.406/02 (NCC) e Artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. Revista de Ciências Jurídicas e Sociais da Unipar. v.8, n.1, jan./jun., 2005. 72 STRECK, Lenio. Aplicar a Letra da Lei é uma Atitude Positivista? Revista NEJ - Eletrônica, v. 15, n. 1 p. 158-173, jan.-abr. 2010. 73 Fica evidente que a crítica de Lenio Streck diz respeito primeiramente à possibilidade de enaltecer o solipsimo judicial, um dos grandes problemas, segundo o próprio, do judiciário. Isto é, o decisionismo do juiz de acordo com a sua própria moral, sem a intervenção de doutrina e dos pensamentos jurídicos atinentes à prática jurídica contemporânea. Ainda, quando este se refere à utilização de subsunção para os casos menos complexos, remetese à doutrina de Ronald Dworkin, no tocante a sua teoria dos Easy Cases e Hard Cases. Corroborando o entendimento, no Positivismo a discricionariedade do juiz era acionada na eventualidade de obscuridade da lei, recorrendo-se à vontade do legislador, em vez da lei, através de uma análise gramatical. Em suma, a referida discricionariedade que o juiz tinha no Positivismo era de analisar tão somente a intenção que o legislador tinha ao aplicar à norma, adequando-se, portanto, esta ao caso concreto. Desta forma, voltaríamos ao problema do

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Paulo Lobo entende que a necessidade de aplicar o princípio normativo é imprescindível para a solução do caso em concreto, eis que com as modificações da sociedade contemporânea, é necessária para a realização da justiça social. Todavia, para a sociedade em mudanças, para a realização das finalidades da justiça social e para o trato adequado do fenômeno avassalador da massificação contratual e da parte contratante vulnerável, constituem eles ferramentas hermenêuticas indispensáveis e imprescindíveis74.

Até então, tudo bem. A aplicação principiológica é imprescindível para a solução de um imbróglio sem precedentes de lei expressa - quando nos referimos a “lei expressa”, será aquela a qual iremos aplicar diretamente ao caso concreto sem necessidade de qualquer ponderação. Todavia, o princípio, a partir do momento em que inserto à codificação, já se caracteriza como lei de aplicação imediata75. Então, por que este clamor às cláusulas gerais? A cada lacuna da lei certamente não haverá necessidade de criação de norma, eis que a utilização dos princípios já deriva uma ideia de lei. Assim entende a doutrina de Lenio Streck: Portanto (...), estamos falando, hoje, de uma outra legalidade, uma legalidade constituída a partir dos princípios que são o marco da história institucional do direito; uma legalidade, enfim, que se forma no horizonte daquilo que foi, prospectivamente, estabelecido pelo texto constitucional (não esqueçamos que o direito deve ser visto a partir da revolução copernicana que o atravessou depois do segundo pós-guerra)76.

A partir do estabelecimento dos princípios no texto constitucional, não há como negar a eficácia direta e imediata da norma, no que tange às emanadas do Direito Civil, como traduz Luiz Edson Fachin. O mesmo ainda expõe que pensamento adverso a este, importaria na morte da Constituição77. E, aliás, para complementar, qual conceito que não é indeterminado? Todos pendem de uma necessidade de aplicação ao caso concreto. Todos necessitam de uma fundamentação

sujeito solipsista, aduzida anteriormente, no qual o intérprete poderia decidir com base em sua própria moral, o que não traz segurança jurídica às partes de uma eventual litigância jurídica (STRECK, Lenio. Aplicar a Letra da Lei é uma Atitude Positivista? Revista NEJ - Eletrônica, v. 15, n. 1 p. 158-173, jan.-abr. 2010). 74 LÔBO, Paulo. Princípios sociais dos contratos no CDC e no novo Código Civil. Jus Navigandi. Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: . Acesso em: 04 set. 2013. 75 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2000. 76 STRECK, Lênio. Aplicar a Letra da Lei é uma Atitude Positivista? Revista NEJ – Eletrônica. v. 15, n. 1, p. 158-173, jan-abr, 2010. 77 FACHIN, L. E. Questões do Direito Civil brasileiro Contemporâneo. São Paulo: Renovar, 2008.

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para sua utilização. Fernando Andreone78, através de Jurgen Habermas, discorre que todas as normas são indeterminadas ao passo que todas pendem de interpretação, inclusive aquelas as quais somente podem ser encontradas como situações padronizadas e tipicamente aplicáveis79. 2.2 CODIFICAÇÃO, DESCODIFICAÇÃO E RECODIFICAÇÃO DO DIREITO CIVIL Há de se ressaltar, a priori, que a ideia de um Código não nos remete apenas a um compilado de dispositivos legais sobre uma determinada matéria. Para se codificar o Direito, através de um Código, é necessária a coordenação de regras atinentes às relações jurídicas de uma mesma natureza, correlacionadas com princípios, com unicidade e sistematização. Em razão disto, não pode ser designada para estabelecer as regras de uma legislação especial, assim ensina Caio Mário: A feitura de um Código não é apenas a reunião de disposições legais, relativas a determinado assunto. Exige um trabalho mais amplo, subordinado a uma técnica mais apurada. Codificar o direito é coordenas as regras pertinentes às relações jurídicas de uma só natureza, criando um corpo de princípios, dotados de unidade e deduzidos sistematicamente. É o que se observa no Código Civil, no Código Penal, nos Códigos de Processo. Somente aos monumentos revestidos dessas qualidades fundamentais, coordenadores de regras jurídicas sob a dominação de uma ideia de estruturação científica, é que se pode com propriedade denominar códigos. Falta adequação nominal àqueles diplomas que tratam de um assunto isolado e especial sem a ideia superior de codificação80.

A tendência à codificação é extremamente antiga, muito mais do que imaginamos, quando aludimos tão somente aos códigos modernos. Tem as suas origens fundadas no Código de Hammurabi, vinculando a sua existência a dos babilônicos. Na civilização helênica, tem o seu princípio na coordenação jurídica fundada por Licurgo, em Esparta, e por Sólon, em Atenas. Mais tarde, há de se referenciar aos romanos com compilações das Constituições imperiais que consagraram os nomes dos imperadores que as fundaram, como, por exemplo, o Codex Hermogenianus e Theodosianus, os quais foram de suma importância por um período no ocidente. Contudo, na era romanística, a codificação que mais influenciou

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Este defende a formação de uma compreensão jurídica paradigmática que visa diminuir a tarefa do intérprete, restringindo seu objeto através da utilização de paradigmas fechados que seriam dispostos através de “monopólios” doutrinários, judicialmente institucionalizados. 79 VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. O Conceito De Derrotabilidade Normativa. Dissertação de Mestrado na Universidade Federal do Paraná. 2009. IN: BARCELOS, Débora Ceciliotti. Linguagem, Regras e Princípios. Disponível em: . Acesso em 28 fev. 2013. 80 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 23. ed., v.1, Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 64.

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e perdurou foi a promovida por Justiniano, o Corpus Iuris Civillis, no século VI, que compreendia o Institutas, o Digesto, o Código e as novas constituições de Justiniano81. Entretanto, quando aludimos à codificação do Direito Civil, nos referimos ao fenômeno emanado no final do século XVIII, na França, através da Escola Racionalista do Direito Natural e do Iluminismo, bem como da pandectística surgida na Alemanha no século XIX. Os códigos modernos se diferenciavam daqueles surgidos anteriormente (codex gregorianus, hermogenianus, codex theodosianus, codex iustinianus, dentre outros) em dois aspectos: primeiro, em seu substrato ideológico e, segundo, no seu modo de realização do Direito. Em função dos novos preceitos ideológicos da época, o código passou a ter uma sistematização sob a unidade de dogma e completude82. Destarte, evidenciou-se a codificação do Direito Civil, uma vez que as regras jurídicas estavam previstas em textos unitários e sistematizados, com normas abstratas e gerais, sendo esta a única fonte jurídica para regulação de todas as matérias jurídicas possíveis83. Evoluiuse, porém, a codificação, deixando o caráter lógico-dedutivo exposto, para um caráter axiológico ou teleológico84, no qual a base de raciocínio deságua nos princípios gerais do Direito mais relevantes em toda a ordem jurídica85. A codificação jusracionalista da França, em 1804, afastou os dados histórico-culturais, abstraídos pela razão, caracterizando uma sistemática central, enquanto que a pandectística alemã, no século XIX, empregada pelo BGB, aceitou os dados histórico-culturais “mas exigia um adequado sistema de exposição. Isso quer dizer que o material recebido da história deveria ser reelaborado cientificamente em função de ponto de vista unitários”86.

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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 23. ed., v.1, Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 65. 82 TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008. p.04. 83 TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008. p.05. 84 Luciano Benetti Timm aduz que esta forma de pensar o Direito advinha de uma cultura romanística: “Na verdade, o próprio Direito Romano caracterizava-se por um pensamento tópico ou problemático, isto é, não partia de soluções pré-prontas, nem de deduções puramente lógicas com base em axiomas, mas era “[...] um pensamento dirigido rumo ao problema”, um pensamento que se aproxima dos sofistas e dos retóricos. “O problema atua como guia” do pensamento. Isto porque todo problema objetivo e concreto, dentre eles o jurídico, provoca um jogo de suscitações que pode ser chamado de tópico e que significa a arte de medir os prós e contras de uma questão, ou seja, “[...] ter presente as razões que recomendam ou que desaconselham determinado passo” (TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008). 85 TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008. p.06. 86 TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008. p.11.

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Neste período, no Brasil, surgiram as primeiras manifestações jurídicas genuinamente brasileiras, sem a influência direta do Império português. À época se encontrava vigente as Ordenações Filipinas, a qual era uma legislação de difícil consulta, extravagante e de complexa aplicação ao Direito, sem contar o fato de que já perdurava por mais de trezentos anos. Através da promulgação da Constituição Imperial de 1824, estabeleceu-se que fosse organizada, com a maior brevidade, um Código Civil e Criminal, que suportasse as necessidades brasileiras, bem como que se sujeitassem ao estado da ciência jurídica87. Em 1855, como forma preliminar, o Governo Imperial decidiu que fosse elaborada uma consolidação do Direito Civil, uma vez que as leis eram totalmente esparsas, sem sistemática, tampouco ordem. Desta ordem, surgiu a Consolidação das Leis Civis, em 1858, elaborada por Augusto Teixeira de Freitas. Concluída esta etapa, o mesmo jurista foi convocado para elaborar o projeto do Código Civil brasileiro. Entregou o esboço em 1865 com quase cinco mil artigos. Considerado pelo governo como prolixo, Teixeira de Freitas se mostrou irresignado e abortou a incumbência que lhe era dada. De sua prévia, fartou-se o código civil argentino, em virtude da influência da obra de Teixeira de Freitas em Velez Sarsfield, autor da codificação civil da Argentina88. A ideia de um código genuinamente brasileiro ainda perdurava no século XIX, sendo esta tarefa repassada a Nabuco de Araújo, o qual realizou os estudos atinentes a tanto. Contudo, em meio a sua morte, somente se aproveitou os apontamentos que o mesmo tinha efetuado no período e uma minuta que continha 182 artigos redigidos. Tentativa frustrada também foi a de Joaquim Felício dos Santos, em 1881, em razão de perda de membros de sua comissão. Houve, ainda, a tentativa de convertei em lei o projeto do Código Civil, em 1890, feito por Coelho Rodrigues89. Enfim, Campos Sales, então Presidente da República, designa, através do ministro Epitácio Pessoa, o jurista cearense Clóvis Beviláqua, iniciando seus trabalhos em 1899, concluindo o projeto no mesmo ano. Em 1902, o projeto de Beviláqua foi aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado, com pareceres de juristas, tais como de Rui Barbosa. Após um longo período no Senado Federal, é promulgado em 1º de janeiro de 1916 o primeiro Código Civil genuinamente brasileiro90. O Código de 1916 agasalhou influência tanto do sistema francês, como da pandectística alemã. Vale a ressalva que no início do século XX houve uma forte corrente 87

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 23.ed., v.1. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 67. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 23 ed. v.1. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 68. 89 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 23.ed. v.1. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 69. 90 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 23.ed. v.1. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 70. 88

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doutrinária, por parte de juristas sociólogos, que clamaram o direito sobre uma nova perspectiva, pautada na sua função social. Todavia, tal pensamento não fora suficiente para derrubar o movimento codificatório91. No entanto, logo se percebeu que a Código Beviláqua não absorveria as problemáticas impostas pela realidade social, eis que extremamente vinculando ao individualismo predominante do século anterior, bem como que não previa as conquistas já existentes, conforme acentua Caio Mário: O Código Civil foi recebido, e com toda razão, como a grande esperança, depois de três séculos de predominância romano-lusitana e de não contidas aspirações por um Código genuinamente brasileiro. Logo se observou que o Código, posto que novo, não absorvia a problemática de seu tempo. Muito preso ao excessivo individualismo predominante no século XIX, não soube desvencilhar-se dele. Deixou de inserir conquistas já existentes, e outras que despontavam e proporcionavam a abertura para a inspiração solidária do Direito no século XX. Embora como instrumento impecável, dentro das condições dogmáticas, logo se percebeu que o Código já “nascera velho”, como disseram muitos (e eu mesmo o repeti por mais de uma vez), se atentar em que não se acomoda a trepidante evolução jurídica nacional. De acrescer será que, não obstante aprovado dentro do quatriênio da I Guerra Mundial, amolda-se ao fato de ter sido elaborado em estrita fidelidade ao Projeto Beviláqua, que traz de sua conclusão o mês de dezembro de 189992.

Esta ideia de sistema fechado que trouxe o Código Napoleônico e o BGB, influenciando o Código Beviláqua, desencadeou, paralelamente ao Positivismo, uma enxurrada de promulgação de leis especiais para tampar os buracos legislativos. Com origem no segundo pós-guerra, ocorreu um fenômeno denominado Descodificação93. Trata-se de um período no qual foram criadas legislações esparsas que não estavam vinculadas às grandes codificações oitocentistas, resultado de ativos grupos intermediários, os quais eram a intermediação entre o sujeito eleitor e o Estado, que foram opositores do sistema codificado. Contudo, o que marcou este movimento foi a constitucionalização dos institutos pertencentes ao Código Civil, contrariando o Direito Moderno que incumbia a tal Diploma Legal “a definição dos institutos básicos aplicáveis a outros ramos jurídicos”94. Luciano Benetti Timm caracteriza a era da Descodificação no seguinte sentido:

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TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008. p.11. 92 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 23.ed. v.1. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 70. 93 DIEZ-PICAZO, Luis. Codificación, Descodificación e Recodificación. Anuario de Derecho Civil, Getafe/Espanha, volume único, pg. 472-484, 1958. 94 TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008. p.12.

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Caracteriza-se a era da descodificação, portanto, pela perda da característica de centralidade no sistema de fontes pelo Código Civil. A Constituição é a salvaguarda do indivíduo. As leis especiais têm seus próprios princípios gerais. Há uma diversidade de institutos que fogem da disciplina do Código Civil. Grupos de indivíduos, cada vez mais, escapam à sua disciplina, fundando leis especiais, através de escusas negociatas com o Poder Público, para se reservarem privilégios não extensíveis às demais pessoas não pertencentes aquele determinado grupo. É o próprio Irti quem diz não ser mais possível colocar o Código Civil como centro do sistema, mas que a lei nascida como excepcional e provisória se protrai no tempo e conquista uma inesperada estabilidade, em torno da qual novas leis surgem, delineando um microssistema, um pequeno mundo de normas com seus próprios princípios gerais e lógica autônoma, os quais não se coadunam com a principiologia do Código, que, portanto, não pode mais ser Direito geral. Assim, a relação entre Código e leis esparsas não é mais de geral e especial, mas de residual e geral: ou seja, a lei especial é o geral, e o código é o residual95.

Assim, o código passa a ser residual e a lei esparsa a geral. Isto é, o Código Civil não mais regula todos os institutos da vida social, mas sim assume um caráter residual. As leis esparsas justamente foram inseridas ao contexto da sociedade em função das lacunas que o sistema fechado, oriundo das codificações oitocentistas, deixou no período do segundo pósguerra. A Descodificação pode ser entendida em quatro subdivisões. Primeiramente com uma ideia de racionalização, de modo que todo e qualquer indivíduo da sociedade poderia ele próprio criar o direito, eis que o texto legal seria facilmente aplicável ao caso concreto; por segundo, como uma ideia de progresso, a partir do momento em que a nova codificação viria para renovar o direito penal, civil, processual, etc.; como pedagogia, eis que o direito não se tornaria tão amplo ao ponto de que o intérprete não conseguiria se encontrar no vasto sistema jurídico; Por fim, a quarta subdivisão entende o sistema jurídico como utopia, pois não havia como mensurar uma codificação legal por intermédio da realização dos próprios cidadãos, ante a complexidade das matérias diariamente trazidas ao sistema jurisdicional. La ideia de um derecho realizado por todos los ciudadanos, El Código representa; al miesmo tiempo, una utopia, porque es algo así como plasmar un instante de la realidad y pretender que la realidad sera siempre la mesma. El Código se encontraba, por ello, desaramado frente a lós nuevos problemas

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TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008. p.12.

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y a lãs nuevas necessidades, que, incesantemente fueren posteriormente surgiendo96.

Desta forma, se tinha um sistema policêntrico, “ou seja um corpo de leis especiais reguladoras de matérias específicas, sem qualquer relação uma com a outra, tirando a sua unidade de rigidez constitucional e da capacidade das classes dominantes de evitarem particularismos e privilégios”97. Assim, houve uma significativa mudança na estrutura jurídica, ao passo que mesmo com o Código Civil permanecendo com a sua característica dogmática, as nuances da vida contemporânea e os fatos impostos pela realidade desencadearam a necessidade de leis mais flexíveis, efêmeras e adequadas ao período. O código, entretanto, não perdeu o seu prestígio, mas sim a sua função. Se antes era um regulador exclusivo do Direito privado, agora passa a ser um norteador das leis especiais, que irão se respaldar na codificação civil para completarem ou modificarem os institutos jurídicos98. Com a necessidade de novas previsões legais para as novas problemáticas contemporâneas, que se alastravam em virtude da evolução da sociedade contemporânea, criou-se uma série de microssistemas no direito brasileiro, para poder perfectibilizar as relações jurídicas. No Brasil, o fenômeno descodificatório ocorreu com a fratura que houve entre a realidade e a previsão que havia nos códigos99 – o qual não prevalecia os interesses dos abastados -, a Descodificação deu ensejo à existência de vários microssistemas, dentre eles, o Código de Defesa do Consumidor, as normativas ambientais, dentre outros. Com a promulgação de códigos, recheados com cláusulas gerais e conceitos indeterminados, alinhados sob à égide da Constituição Federal, buscou-se a recodificação do sistema jurídico

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DIEZ-PICAZO, Luis. Codificación, Descodificación e Recodificación. Anuario de Derecho Civil. Getafe Espanha, volume único, p. 472-484, 1958. 97 TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008. p.13 98 TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008. p.13. 99 Muito embora não tenha nenhum texto escrito à respeito, alguns doutrinadores acreditam que o fenômeno iniciou com a Constituição brasileira de 1934: “Não há nenhum texto a respeito, mas o início do período descodificatório no Brasil, para quem acredite neste movimento legal, pode ser registrado na Constituição Brasileira de 1934, ao enunciar, no item “17” do art. 113, que o direito à propriedade não poderá ser exercido em desconformidade com o interesse social e coletivo. Ou, como normalmente se afirma, com a nova Constituição Republicana de 1988, com suas diversas normas programáticas e multirregulação jurídica no campo do Direito de Família, do Trabalho, do Processo”. (TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008. p.21).

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para que os códigos não fossem idealizados como o ponto de partida para a solução de um litígio, mas sim o ponto de chegada100. Para adaptar o Direito aos novos tempos, precisou se passar por tal processo recodificatório, para, por exemplo, inserir a possibilidade de julgamento de contratos atípicos, eis que estes não eram previstos na codificação civil. Transformou-se, portanto, o Direito Contemporâneo em um direito de legisladores, a medida que, com o avanço da sociedade, o Direito consegue se adaptar por intermédio de seus intérpretes, mais precisamente através da doutrina e da jurisprudência e não mais somente à letra da lei101. As leis especiais que foram emanadas no período descodificatório, na realidade, surgiram para desmistificar o Código Civil com uma unidade dogmática e de completude, contudo, a codificação não perdeu o seu efeito, tampouco a sua importância, em função do advento da Constituição102. Assim, se percebeu que o Estado contemporâneo perdeu o seu caráter interventor, nos moldes do estilo pós-guerra, para dar mais autonomia às relações jurídicas privadas. Neste sentido, assevera Luciano Benetti Timm, reproduzindo o jurista italiano Irti: [...] o Estado contemporâneo não é mais aquele interventor do pós-guerra, mas um Estado que sofreu as influências da queda do Muro de Berlim, do fim dos regimes políticos do Leste Europeu, do triunfo do capitalismo e da economia de mercado, redescobrindo sua função meramente reguladora; isto é, um poder público submerso na ideologia privatista, que força o Estado a dar mais autonomia à iniciativa privada, limitando-se a apenas regular o livre jogo do mercado103.

Desta forma, se conclui que o Código Civil brasileiro de 2002 chegou em boa hora para regular as relações privadas, no período da recodificação, não mais com uma unidade dogmática, mas sim com um grau de indeterminação semântica que permite a evolução autônoma do Direito, considerando o contexto de uma sociedade capitalista em constante evolução. Ademais, “propriedade, contrato e responsabilidade civil, na era da sociedade em redes e da globalização, deverão ser reconstruídos dogmaticamente a partir do sólido pilar da

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LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Direito Civil: Atualidades. Belo Horizonte, volume único, p. 197-217, 2003. 101 DIEZ-PICAZO, Luis. Codificación, Descodificación e Recodificación. Anuario de Derecho Civil. Getafe Espanha, volume único, p. 472-484, 1958. 102 TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008. p.25. 103 TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008. p.25.

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legislação civil e não apenas em cima de vagos princípios constitucionais que foram concebidos em um momento muito particular da história política brasileira”104. 2.3 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: A DERROCADA DA CONSTITUIÇÃO DOS PRIVADOS A constitucionalização do Direito Civil caracterizou uma nova era, na qual o Código Civil deixou de ser o principal regulador da vida privada, dando espaço a Constituição para exercer e ditar as regras fundamentais da sociedade. Portanto, é imperioso demonstrar como se deu este fenômeno, bem como aludir como este se desenvolve em uma perspectiva contemporânea, através do Neoconstitucionalismo. Também, imperioso a ressalva de que tais fenômenos incutiram na “repersonalização do Direito Civil”, fazendo com que a pessoa humana se tornasse o cerne do Direito Privado. Inicialmente esboça-se uma crítica, desenvolvida por Luiz Edson Fachin, o qual conclama a Constituição como um projeto que promete a erradicação da pobreza, a redução de desigualdades, e que, no entanto, não constrói campos de soberania popular, tampouco empenha as garantias constitucionais e o valor jurídico vinculante dos princípios. É uma nova lei que se legitima naquilo que, a priori, rejeita105. Importante salientar que quando falamos em constitucionalização do ordenamento jurídico, não implica dizer que será aquela tratada como impregnação das normas constitucionais no processo de realização do Direito. Pode-se referir também como o ingresso de uma primeira Constituição a determinado sistema jurídico, por exemplo, ou a inserção de outros temas do Direito a nível constitucional. Portanto, é preciso fazer esta diferenciação quando for se tratar de Constitucionalização do Direito106. A Constitucionalização do Direito, no sentido que pretende-se assumir, está associada a uma expansão de regras pautadas na Constituição, as quais possuem conteúdo material e axiológico, levando os valores, os fins públicos e os comportamentos oriundos dos princípios

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TIMM, Luciano Benetti. Descodificação, constitucionalização e reprivatização o no Direito Privado: O código civil ainda é útil? The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies. v.3, n.1, artigo 1. 2008. p.27. 105 FACHIN, Luis. E. Entre Duas Modernidades: A Constituição da Persona e o Mercado. Revista de Direito Brasileiro, São Paulo. p.101-110, jul/dez. 2011. 106 VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. O Conceito de Derrotabilidade Normativa. Dissertação de Mestrado na Universidade Federal do Paraná. 2009. IN: BARCELOS, Débora Ceciliotti. Linguagem, Regras e Princípios. Disponível em: . Acesso em 28 fev. 2013.

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e regras da Carta Magna. Desta forma, se condiciona validade a todas as leis infraconstitucionais107. A Constituição é a letra suprema da lei, muito embora não tenha caráter plenamente imutável, ao passo que a sua alteração, muito embora complexa, pode ser efetivada, excetuadas, por óbvio, as chamadas cláusulas pétreas. Indo de encontro à expressão, motivado pelo fenômeno da Constitucionalização do Direito Civil, os princípios constitucionais108 estão presentes nas três grandes searas do Direito civilístico: Família, Propriedade e Contratos109. No primeiro, estabelece a prioridade do princípio da dignidade da pessoa humana para estabelecer o norte desta relação. No segundo, o exercício do direito de propriedade é designado de modo a ser útil, não somente para o indivíduo, mas também para a coletividade. No que tange aos contratos, há uma discrepância entre o Código Civil e a Constituição, ao passo que o primeiro contempla o contrato entre indivíduos autônomos e formalmente iguais, de modo que se reduz ao termo já referido: o que é contratual é justo. Por outro lado, a Constituição somente estabelece que o contrato cumpra a sua função social110, importando na redução de desigualdades sociais e regionais111.

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VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. O Conceito de Derrotabilidade Normativa. Dissertação de Mestrado na Universidade Federal do Paraná. 2009. IN: BARCELOS, Débora Ceciliotti. Linguagem, Regras e Princípios. Disponível em: . Acesso em 28 fev. 2013. 108 Consoante ensina Paulo Lobo, partindo da Carta Suprema, pode se entender que o macroprincípio da relação jurídica é o princípio da equivalência material das prestações, o qual, dentre outros, abrange a boa-fé objetiva e o princípio do venire contra factum proprium. “O princípio é a espécie do macroprincípio da justiça contratual, que por sua vez abrange a boa-fé objetiva, a revisão contratual, o princípio venire contra factum proprium, o princípio da lesão nos contratos, a cláusula rebuc sic stantibus, a invalidade das cláusulas abusivas, a regra interpretatio contra stipulatorem”. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Direito Civil: Atualidades. Belo Horizonte, volume único, p. 197-217, 2003. 109 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Direito Civil: Atualidades, Belo Horizonte, volume único, p. 197-217, 2003. 110 Flávio Tartuce explica que o princípio da função social dos contratos possui um efeito inter partes e extra partes: “De qualquer forma, pertinente lembrar que, pela função social dos contratos, os negócios jurídicos patrimoniais devem ser analisados de acordo com o meio social. Não pode o contrato trazer onerosidades excessivas, desproporções, injustiça social. Também, não podem os contratos violar interesses metaindividuais ou interesses individuais relacionados com a proteção da dignidade humana, (...) Assim sendo, entendemos que a função social dos contratos traz conseqüências dentro do contrato (intra partes) e também para fora do contrato (extra partes). Como efeito intra partes, citamos a previsão do art. 413 do novo Código Civil, exemplo típico de relativação da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda), justamente uma das conseqüências da função social dos negócios jurídicos. Por esse dispositivo, o juiz deve reduzir o valor da cláusula penal se a obrigação tiver sido cumprida em parte ou se entender que a multa é excessivamente onerosa. Como o comando legal utiliza-se a expressão “deve” a redução é de ofício, sem a necessidade de argüição pela parte interessada. Isso é confirmado pela natureza jurídica do princípio da função social dos contratos, de ordem pública, conforme previsão do art. 2.035, parágrafo único, do próprio Código Civil. Como exemplo de efeitos extra partes, citamos um caso em que o contrato, pelo menos aparentemente, é bom para as partes, mas ruim para a sociedade. Podemos citar um contrato celebrado entre uma empresa e uma agência de publicidade. O contrato é civil e paritário, não trazendo qualquer desequilíbrio ou quebra do sinalagma. Entretanto, a publicidade veiculada é discriminatória (publicidade abusiva – art. 37, § 2º do CDC), estando nesse ponto presente o vício. Pela presença do abuso de direito, o contrato pode ser tido como nulo, combinando-se os arts. 187 e 166, VI, do novo Código Civil – nulidade por fraude à lei imperativa diante do ato emulativo”. TARTUCE, Flávio. A Função Social dos

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Consoante a doutrina de Riccardo Guastini, Alexandre Garrido da Silva elenca os sete requisitos atinentes à Constitucionalização do Direito, para que este resulte em uma impregnação de normas constitucionais, fazendo toda a interpretação jurídica passar por uma perspectiva constitucional, ou seja, para incidir em “um processo de transformação de um ordenamento ao término do qual o ordenamento em questão resulta totalmente impregnado pelas normas constitucionais”112. Para tanto, é necessária uma constituição, que contenha cláusulas intangíveis, que contenham uma rigidez relevante para que se assegure a inderrogabilidade de determinados direitos e garantias fundamentais, assim como de princípios aludidos no Estado Democrático de Direito. Em um segundo momento, é imperioso que exista um controle de constitucionalidade das leis, em forma de garantia jurisdicional, ou, até mesmo, de diversas. Há igualmente a necessidade da promoção da efetividade da norma constitucional perante toda a comunidade jurídica, traduzindo-se esta como norma jurídica imperativa e dotada de efetividade plena, suscetível de produção de efeitos jurídicos. A quarta condição para a constitucionalização é a necessidade de sobreinterpretação do Direito, condicionando a interpretação das regras jurídicas sempre sob uma perspectiva constitucional, sem que existam espaços livres no texto constitucional. Constitui-se a Carta Magna como o ponto de partida para toda e qualquer interpretação jurídica. A efetivação e aplicação imediata das normas constitucionais é o quinto pressuposto para a Constitucionalização, portanto, todas são dotadas de imperatividade e produzem efeitos jurídicos imediatos. A sexta perspectiva é a interpretação das leis sob a égide da Constituição sob o pretexto de manter a esta a sua validade jurídica. Por fim, referencia o jurista a condição de influência do texto constitucional sobre as relações políticas, citando o fenômeno da “Judicialização da Política” como um dos exemplos desta perspectiva, ao passo que temas de cunho moral e controverso, os quais possuem frequência na sociedade, começam a ser resolvidos no Poder Judiciário, sob as nuances emanadas da Constituição. Contratos, a Boa-fé Objetiva e as Recentes Súmulas do Superior Tribunal de Justiça. Revista Científica da Escola Paulista de Direito. São Paulo, ano I, maio/agosto, 2005. 111 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Direito Civil: Atualidades, Belo Horizonte, volume único, p. 197-217, 2003. 112 SILVA, Alexandre Garrido. Pós-positivismo e Democracia: em Defesa de um Neoconstitucionalismo aberto ao pluralismo. Disponível em: . Acesso em: 07 mar. 2013.

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Muito embora todos esses preceitos ensejadores do processo de Constitucionalização, Alexandre Garrido explicita que somente a existência de uma constituição rígida e o controle de constitucionalidade são extremamente preponderantes para proceder com tal fenômeno, ao passo que a promoção da efetividade a norma constitucional e a influência do judiciário nas questões políticas conferem uma distinção à Constitucionalização do Direito. Os demais pontos encontram-se densamente correlacionados113. Destarte, percebe-se a importância que o texto constitucional assume na Contemporaneidade, fazendo com que o Código Civil deixe de ter caráter imutável para passar a ser uma legislação infraconstitucional que jamais poderá confrontar os princípios constitucionais garantidos114. Como já exposto, é a necessidade de uma interpretação de toda e qualquer norma jurídica sob os preceitos constitucionais. Luiz Edson Fachin expõe que “nenhuma Constituição nasce Constituição, mas se faz Constituição”, ao passo que o legislador, o aplicador e a doutrina jurídica são preponderantes para cumprir a missão de promover a Carta Magna e os direitos fundamentais115. As normas constitucionais, aliadas aos princípios jurídicos e regras, conferem uma unidade sistemática ao ordenamento jurídico, vez que a orientação e funcionamento da Constituição se direciona para a proteção da pessoa humana. Isto é, o advento do Estado Democrático de Direito, emanado pela promulgação da Constituição Federal de 1988, importou na centralização do indivíduo como o centro das preocupações. Ademais, também se ressalta o abandono de uma postura patrimonialista, oriunda do século XIX, para uma nova concepção que se eleva o desenvolvimento humano e a dignidade da pessoa humana. Assim leciona Luiz Edson Fachin: Da morte por asfixia se salvou o Direito Civil contemporâneo ao abrir-se para além do neo-exegese. Do Direito formal chegou-se à legalidade constitucional. Nada obstante, de modo diferente dos civilistas tradicionais, o Direito Civil brasileiro contemporâneo tomou como norma vinculante os princípios constitucionais. Foi à fonte do novo constitucionalismo. O inverso também impende ser verdadeiro, para evitar que o Código Civil seja citado como sinônimo do Direito Civil, ou para os menos avisados, que tomam o

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SILVA, Alexandre Garrido. Pós-positivismo e Democracia: em Defesa de um Neoconstitucionalismo aberto ao pluralismo. Disponível em: . Acesso em: 07 mar. 2013. 114 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Direito Civil: Atualidades, Belo Horizonte, volume único, p. 197-217, 2003. 115 FACHIN, L. E. Questões do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. São Paulo: Renovar. 2008.

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pretérito como presente, e ao fazerem caricatura do passado estão se projetando no objeto do que perdeu sentido116.

Fachin desmembra a Constituição em uma tríplice dimensão: Formal, substancial e prospectiva. A primeira compreende os princípios e regras expressamente previstos no texto constitucional. A segunda, por sua vez, através da efetivação dos pronunciamentos da Corte Constitucional e pelo encontro dos princípios implícitos derivados dos princípios emanados explicitamente na Constituição. Por fim, o terceiro, o aludido jurista denomina como “a qual se vincula a ação permanente e contínua, num sistema jurídico aberto, poroso e plural de ressignificar os sentidos dos diversos significantes que compõem o discurso jurídico normativo, doutrinário e jurisprudencial, especialmente no que concerne à tríplice base fundante do governo jurídico das relações sociais, isto é, propriedade, contrato e família”117. Pablo Malheiros explica que a mitigação do caráter normativo supremo do Código Civil, em função do advento da Constituição, importou na Constitucionalização do Direito Civil, a qual surgiu para abrandar os efeitos da ausência de legislação que regulasse determinado instituto, de modo que nenhum princípio poderia sobressair-se sobre os preceitos constitucionais. Significa, portanto, a interpretação da legislação infraconstitucional consoante os valores e princípios determinados na Carta Magna. Segundo o jurista, os princípios que regem esta metodologia interpretativa são a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social, a igualdade material e formal, a proibição do retrocesso social e a funcionalização social e a ambiental118. Desta feita, a análise dos problemas jurídicos não passa por uma simples intepretação do texto legal e de conceitos abstratos, consoante minuciosamente exposto nos itens antecedentes, mas sim de uma verificação sob a perspectiva constitucional. Este novo paradigma do direito possui as suas bases em: (i) leitura crítica dos ramos do direito; (ii) compreender que o direito vai além de uma simples forma de expressão; (iii) reconstitucionalização do Código Civil de 2002; (iv) a vedação à redução do direito a simples interpretação do texto legal; (v) a visão de que a realidade do direito é a social119. Conforme já esboçado anteriormente, os dois requisitos preponderantes para haver uma Constitucionalização do Direito é uma constituição escrita, forte e rígida, que possua uma legislação ordinária, contendo princípios imutáveis e dotada de uma garantia do controle 116

FACHIN, L. E. Questões do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. São Paulo: Renovar. 2008. FACHIN, L. E. Questões do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. São Paulo: Renovar. 2008. 118 MALHEIROS, Pablo. Os Deveres Contratuais Gerais nas Relações Civis e de Consumo. Dissertação de Mestrado na Universidade Autonôma do Estado de São Paulo. 2008. 119 MALHEIROS, Pablo. Os Deveres Contratuais Gerais nas Relações Civis e de Consumo. Dissertação de Mestrado na Universidade Autonôma do Estado de São Paulo. 2008. 117

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constitucional das leis por intermédio de um órgão jurisdicional. Pablo Malheiros acrescenta que estes pressupostos são extremamente imperiosos para tal fenômeno, ao passo que os demais somente se caracterizam como distinção ou, então, possuem uma íntima ligação com os dois requisitos básicos120. Segundo Malheiros121, as consequências de uma perspectiva constitucionalizada são: (i) diálogo entre as formas de expressão do direito; (ii) força normativa dos valores e princípios constitucionais; (iii) validação da estrutura dos institutos jurídicos, permitindo a adaptação destes à realidade social; (iv) fortificação da normativa constitucional com base nas cláusulas gerais, conceitos indeterminados e de conceitos determinados pela função; (v) vedação da aplicação da teoria da justiça, aplicada ao caso concreto. Por isso, o Direito é tratado como uma atividade prática, com base nos preceitos constitucionais, atando a argumentação jurídica com as problemáticas contemporâneas. O Direito é pensado a partir dos valores e princípios constitucionais, sempre prezando, principalmente, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, da igualdade material e da formal, da cidadania formal e material e da solidariedade constitucional, com o propósito de saber para quem e a que serve o direito122. Verifica-se, portanto, que a Constitucionalização do Direito é uma forma justa de aplicar as decisões corretas aos litígios, sempre respeitando a Lei Maior, para que, caso não seja observada, haja um órgão jurisdicional que vede as decisões que vão contra as normativas destes princípios. Analisando os preceitos constitucionais, aplicados ao Direito Civil, em uma perspectiva contemporânea, verificamos a discrepância existente entre Constitucionalismo (ou “Constitucionalização do Direito Civil”) e Neoconstitucionalismo, uma vez que o primeiro é uma forma de defesa dos direitos fundamentais voltados exclusivamente ao passado, enquanto que o segundo visa a promoção e efetivação destes em uma perspectiva contemporânea123. Assim, superado o fenômeno que desencadeou na Constitucionalização do Direito Civil, o Neoconstitucionalismo se afirma como uma teoria do direito, pautada na (i) prática intepretativa, uma vez que a norma será aplicada ao caso concreto, consoante o seu campo de incidência; (ii) garantia de direitos fundamentais, ao passo que procura a efetivação, por intermédio da promoção destes, voltados à Contemporaneidade; (iii) fortalecimento da 120

MALHEIROS, Pablo. Os Deveres Contratuais Gerais nas Relações Civis e de Consumo. Dissertação de Mestrado na Universidade Autonôma do Estado de São Paulo. 2008. 121 MALHEIROS, Pablo. Os Deveres Contratuais Gerais nas Relações Civis e de Consumo. Dissertação de Mestrado na Universidade Autonôma do Estado de São Paulo. 2008. 122 MALHEIROS, Pablo. Os Deveres Contratuais Gerais nas Relações Civis e de Consumo. Dissertação de Mestrado na Universidade Autonôma do Estado de São Paulo. 2008. 123 RADAELLI, Samuel Mânica. Teoria Constitucional do Direito: O Neoconstitucionalismo e a Ordem Jurídica Contemporânea. Revista Direitos Culturais, Curitiba, v.3, n. 5, dezembro 2008.

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jurisdição, na qual visivelmente o poder judiciário ganha força para proceder com a efetivação dos direitos fundamentais sob à égide da Constituição; (iv) aproximação entre o Direito e moral, eis que estes dois campos se avizinham, considerando que no Neoconstitucionalismo o direito deve ser pensado a partir de uma leitura moral e; (v) utilização de princípios, uma vez que o seu campo de aplicação não pode ser delimitado, pois se trata de um conjunto de valores que respeitam os direitos fundamentais da Constituição, buscando promovê-los, sem ficar restrito a situações objetivas. Em suma, é a aplicação de um conjugado de valores que se aplicam a casos subjetivos, consoante determinam as problemáticas da Contemporaneidade124. O jurista Alexandre Garrido da Silva ressalta a importância de não confundir PósPositivismo com o Neoconstitucionalismo, sob pena de submeter questões de extrema relevância à apreciação dos limites institucionais da dimensão positiva do Direito Constitucional125. O doutrinador estabelece uma denominação ao fenômeno constitucional, o qual estamos tratando, de Neoconstitucionalismo não-positivista, ressaltando a importância desta distinção ao passo que permite diferenciar o desenvolvimento histórico e de teoria da Constitucionalização do Direito, nos diversos sistemas jurídicos, e principalmente no que tange à difusão de conceitos jurídicos acerca da normatividade dos preceitos constitucionais e de sua eficácia, enquanto que em uma segunda perspectiva que, além de referenciar o exposto, destaca “o íntimo relacionamento entre as dimensões descritiva e prescritiva na compreensão do Direito Constitucional, dos direitos humanos e da Constituição nas sociedades democráticas e pluralistas contemporâneas”126. O jurista ainda expõe que o Neoconstitucionalismo possui um duplo significado. Em uma primeira perspectiva acentua que este, no contexto do segundo pós-guerra, surge como uma nova teoria geral, atenta para as transformações atinentes a Constitucionalização do Direito Civil. Uma transformação jurídica de um paradigma focado no conceito legalista de Estado de Direito para um novo importando em um Estado constitucional de Direito. Na

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RADAELLI, Samuel Mânica. Teoria Constitucional do Direito: O Neoconstitucionalismo e a Ordem Jurídica Contemporânea. Revista Direitos Culturais, Curitiba, v.3, n. 5, dezembro 2008. 125 SILVA, Alexandre Garrido. Pós-positivismo e Democracia: em Defesa de um Neoconstitucionalismo aberto ao pluralismo. Disponível em: . Acesso em: 07 mar. 2013. 126 SILVA, Alexandre Garrido. Pós-positivismo e Democracia: em Defesa de um Neoconstitucionalismo aberto ao pluralismo. Disponível em: . Acesso em: 07 mar. 2013.

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segunda acepção, define-se o Neoconstitucionalismo como uma proposta alternativa ao Positivismo através de uma metodologia e ideologia do Direito127. Alguns autores acreditam que o Neoconstitucionalismo não passa de um Positivismo dos dias atuais, uma vez que se substituem as normas emanadas neste, sendo estas imutáveis, pelos direitos normatizados na Constituição. Todavia, não é o entendimento majoritário, de modo que a realização do direito passa por uma intermediação entre os princípios constitucionais garantidos e as situações concretas, pautados nos valores moral-ético para a solução do problema128. Em contrapartida, o Positivismo tão somente derivava de uma simples leitura e emprego do texto legal, sem adaptação ao caso concreto. Era uma visão restrita de realização do direito, no qual o legislador tinha a audaciosa ilusão de que poderia prever todos os imbróglios da sociedade contemporânea129. Tudo passa por uma ideia de que os códigos não tem o condão de prever o Direito como algo perfeito e acabado. Na sociedade de consumo, na qual os contratos estão cada vez mais complexos, é impossível antever situações através da simples promulgação de uma lei. Os princípios constitucionais servem de base para as relações jurídicas, as quais devem ser pautadas sempre levando em consideração os preceitos constitucionais, o que gera esta ideia de Positivismo atual por alguns juristas. Contudo, este utilizava a lei como regra suprema, sempre adaptando os fatos à norma. Pablo Malheiros130, a partir da obra de Paulo Lobo, discorre sobre a nova conceituação de contrato com uma perspectiva civil-constitucional e pós-positivista, moldando-se à observância dos deveres gerais de conduta (princípios contratuais), considerando os efeitos jurídicos do contrato perante terceiros de forma direta ou indireta. Uma das razões pela qual o jurista explica o porquê desta nova perspectiva é a necessidade de contratar em uma época de hiperconsumo, onde não existe mais a vontade propriamente dita. Neste ínterim, o instituto precisa ser modificado para atender as novas demandas da sociedade contemporânea. Isto é, a

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SILVA, Alexandre Garrido. Pós-positivismo e Democracia: em Defesa de um Neoconstitucionalismo aberto ao pluralismo. Disponível em: . Acesso em: 07 mar. 2013. 128 RADAELLI, Samuel Mânica. Teoria Constitucional do Direito: O Neoconstitucionalismo e a Ordem Jurídica Contemporânea. Revista Direitos Culturais, Curitiba, v.3, n. 5, dezembro 2008. 129 RADAELLI, Samuel Mânica. Teoria Constitucional do Direito: O Neoconstitucionalismo e a Ordem Jurídica Contemporânea. Revista Direitos Culturais, Curitiba, v.3, n. 5, dezembro 2008. 130 MALHEIROS, Pablo. A Repersonalização das Relações Contratuais Civis e de Consumo a partir da obra de Paulo Luiz Netto Lobo. Pensamento crítico do direito civil brasileiro. 1.ed. Curitiba: Jurua, 2011, v.1, p. 93-123.

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Constitucionalização do Direito Civil, no qual a interpretação da legislação infraconstitucional se dá pelos valores e princípios constitucionais. Consoante ensina Paulo Lobo, reproduzido por Pablo Malheiros131, os pactos contratuais começaram a ser visto sob uma ótica ontológica, concentrada na pessoa humana e deixando de lado alguns aspectos patrimoniais. Este fenômeno o jurista em comento ilustra como a “repersonalização do Direito Civil” ao passo que repõe a pessoa humana como centro de Direito Civil, passando o patrimônio ao papel de coadjuvante. Por fim, aduz que a sedimentação dos deveres de conduta expostos por Paulo Lobo, se tornam a solução para a repersonalização do Direito Civil, com característica pós-positivista, passando a pessoa humana a figurar no centro da relação. Destarte, tais fenômenos aludidos no presente capítulo, ensejaram na queda dos padrões restritos de visão do Direito, passando a enxergá-lo sob uma perspectiva constitucional e, consequentemente, implicando na disseminação da cultura jurídica e renovação autônoma do Direito, uma vez que na Contemporaneidade não existe mais espaço para a subsunção – até mesmo porque não há como sustentar tal técnica de realização do Direito, por ser limitada e retrograda.

A teoria se adapta perfeitamente à evolução da

sociedade. Entretanto, o problema enfrentado no sistema jurídico brasileiro passa por uma série de fatores, dentre estes – esboçados no decorrer deste capítulo – o solipsimo judicial, a decisão conforme a própria consciência do intérprete, que na Contemporaneidade desempenha um papel fundamental na construção jurídica, o Panprincipiologismo e, como de praxe, os atos corruptivos que, aparentemente, são inerentes ao operador do Executivo, Legislativo e Judiciário. 2.4 A ARQUEOLOGIA JURÍDICA DA BOA-FÉ O princípio da boa-fé, como bem se sabe, é um norteador da conduta dos contraentes em uma determinada relação contratual. Serve, lato sensu, para criar um standard de comportamento, com base nos preceitos de honestidade, lealdade e probidade. Por ora, não iremos no ater na sua real aplicabilidade nas relações jurídicas, mas sim no contexto histórico e na formação jurídica deste princípio. Para tanto, imperioso adentrar na tríplice raiz da boafé, representada pelo Direito Romano, Germânico e Canônico, para após referir as formas de

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MALHEIROS, Pablo. A Repersonalização das Relações Contratuais Civis e de Consumo a partir da obra de Paulo Luiz Netto Lobo. Pensamento crítico do direito civil brasileiro. 1.ed. Curitiba: Jurua, 2011, v.1, p. 93-123.

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expressão na primeira e segunda sistemática e, então, analisar a inserção da boa-fé no Code Napoleon e no Burgerliches Gesetzbuch (BGB). O culto à deusa Fides, esta que era a deusa romana da Palavra e do Destino e garantidora das estipulações negociais, influenciou a época. A adoração à deusa Fides era realizada em um dos templos do Capitólio, sempre no dia 01 de outubro132. Segundo Antônio Menezes de Cordeiro, a perspectiva dada a boa-fé primitiva no Direito Romano se apresentou em três aspectos: a fides sacra, a fides facto e a fides ética. Nestas três searas, a fides se manifestou em diferentes sentidos133. A fides sacra advém de Lei das Doze Tábuas134, muito embora alguns historiadores apontam que tal dimensão da boa-fé antevem a isto e se encontra esboçada nos primórdios da fundação de Roma, sendo esta tão antiga quanto a instituição da clientela135. Esta etapa da evolução histórica da fides denotava um sentido de que a quebra de lealdade contra o seu cliente, deixaria o patrono à mercê da ira dos deuses136. A segunda exteriorização, a fides facto, corroborou um entendimento de garantia associada, sem necessariamente possuir uma conotação moral ou religiosa, estando interligada a institutos como o da clientela137. Concepção antagônica foi dada a fides ética, que imputava a garantia expressa na qualidade do indivíduo. Ou seja, denotando um sentido moral, na qual explicitava uma acepção de dever, muito embora ainda não houvesse sido recepcionada pelo Direito138. 132

NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p.09-28. 2002. 133 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. 134 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 111. 135 A instituição da clientela implicava na vivência de deveres de lealdade e obediência do cliens face à proteção concedida a este pelo cidadão. Tratava-se de uma espécie de garantia pela promessa dada, isto é, no valor que a palavra possuía para estas relações (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 112). Nobre Junior também caracteriza a clientela “onde um cidadão , pelo ritual de manumissão, conferia a seu escravo uma parcela de liberdade. Isto porque o escravo não passava a ser totalmente livre, mas a integrar a classe dos clientes, com deveres a serem prestados em benefício de seu patrono, cabendo a este o encargo de proteção àquele”. Continua, ainda, referindo a manifestação do instituto do clientela na Lei das Doze Tábuas: “Assim, a fides atuava, embora subtendida, na tábua décima-segunda, a prescrever que o cliente não poderia ser defraudado da tutela do patrono. O emprego, em tom proibitivo, da expressão fraus, oposta ao valor encarnado na fides, retratava a influência desta” (NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p.09-28, 2002). 136 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. 137 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 23.

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Seguindo a ordem cronológica, a fides se manifestou, ainda, em suas relações internas como fides poder e fides promessa. A primeira caracterizava-se como “a posição do pater que possuía o poder de dirigir a gens”. Inicialmente, esta não proporcionava qualquer ambição do cliens contra o patrão, tão somente uma conexão moral entre ambos que imporia um respeito. A partir do instante em que o cliens já não era mais um escravo, o poder do patrão era regulado por outras ordens sociais e não mais por regulação jurídica. A fides promessa, por sua vez, denotava um “ato pelo qual o cliente era recebido na fides do outro e provinha da possibilidade de tornar-se cliens pós-alforria ou da cappitis deminutio, além da clientela hereditária proveniente da escravatura”. Esta permanece com a ideia de garantia a palavra dada139. A fides promessa ainda externava um sentido oposto à fides poder, pressupondo um estado de igualdade entre as partes, no qual determinava que as partes deveriam manter o empenho da palavra dada140. A demonstração prática do referido no parágrafo anterior, ocorreu neste período nas relações externas da cidade de Roma para com outros povos, decorrente da assinatura do Tratado entre Roma e Cartago (séc. III a.c), o qual foi o primeiro documento que demonstrou a presença da fides promessa e fides poder. Assim assevera Maisa Conceição Gomes Gontijo: Outra manifestação prática da fides com conotação diferente da fides-poder e da fides-promessa ocorre nas relações externas da cidade de Roma com outros povos, como atesta o Tratado entre Roma e Cartago, primeiro documento desse teor de que se tem notícia (séc. III a.C). Tal documento garantia proteção, na Sicília, assegura pela fé pública dos negócios dos cidadãos de ambas as partes onde a outra parte tivesse influência. Nesse caso, a fides era o núcleo normativo do tratado igualitário entre as partes141.

Neste documento, ambas as partes utilizaram da boa-fé como norteadora do pacto realizado, estipulando que os contratantes deveriam zelar pela assistência e proteção mútua, na zona de influência de cada um deles142.

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GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p.25. 139 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p.30. 140 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p.09-28, 2002. 141 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. 142 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p.09-28, 2002.

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A presença da fides na cultura jurídica romana ainda se apresentou em duas searas distintas, a instituição da clientela e a dos contratos internacionais ou de Direito interno. Desta feita, criaram-se duas vertentes. Na primeira, a fides se apresenta como o cerne de relações internas da coletividade, denominada por Paolo Frezza e referido por Judith Martins-Costa, como as relações intrasubjetivas; por outro turno, quando inserida em uma coletividade distinta uma de outra, se nomeia de relações intersubjetivas. O que difere estas duas perspectivas apontadas pelos juristas é que nas relações intrasubjetivas, a fides atua com uma função de autolimitação e proteção, enquanto que nas relações intersubjetivas a premissa parte da garantia da palavra dada143. Vale a ressalva de que o entendimento pleno do conceito de fides inserido à ideia de garantia, nas relações negociais, transmuta uma concepção de que o Estado não poderia proteger processualmente estas perspectivas, eis que não havia veste formal para tanto, o que vedava a possibilidade de ação. Neste sentido, explica Judith Martins-Costa144: No contexto das relações negociais entre os privados, fundamentalmente as relações mercantis, a fides atuava como o ‘elemento catalisador’ do conteúdo econômico dos contratos, porque, funcionalmente, constringe as partes a ter claro e presente qual o conteúdo concreto dos interesses que se encontram no ajuste, clarificação essa necessária para ‘vincular os contraentes ao leal adimplemento das obrigações assumidas’: tanto mais intensa é a necessidade privada de constrição quanto menor a força do Estado para constringir externamente os contraentes ao cumprimento das obrigações assumidas145.

Nesta seara, a boa-fé possui uma função de produção simultânea de definição das características balizadoras do negócio, bem como de configuração da responsabilidade das partes insertas na relação obrigacional146. Esta perspectiva emanada no Direito Romano primitivo, também advinha de outras sociedades jurídicas arcaicas, a qual se manifestava com um papel de criação de vínculo jurídico pré ou extra-estatal e como fonte geradora de novos direitos e deveres. Ocorre que no período clássico do Império Romano, houve uma transmutação no qual a fides bona nas relações privadas romanas, passou a ser utilizada como tópico e como expediente técnico-

143

MARTINS-COSTA, Judith. 1. p. 114. 144 MARTINS-COSTA, Judith. 1. p. 114. 145 MARTINS-COSTA, Judith. 1. p. 116. 146 MARTINS-COSTA, Judith. 1. p. 116.

A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v.

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jurídico de uso da jurisdição, no qual as partes possuíam um duplo grau de atuação. Esta técnica denominou-se bonae fidei iudicium147. Judith Martins-Costa explica a bonae fidei iudicium no seguinte sentido: (...) estes consistiam em um procedimento perante o juiz no qual o demandante apresentava uma fórmula especial – embora postulando actiones in ius conceptae – na qual, não podendo demonstrar uma intentio baseada na Lex, a fundava na fides, ordenando então o pretor que o juiz sentenciasse conforme os ditados da boa-fé. Esta fórmula especial, denominada oportet ex fides bona , era alegada pelos bonae fidei iudicia, isto é, os que postulando actiones in ius conceptae, não tinham um intentio baseada em texto expresso de lei, mas apenas na alegação da fides bona. Era pois, uma ‘intentio’ que recaía sobre um ‘incertum’, carecendo, pois, da ‘demonstratio’, a parte da fórmula na qual explicava o assunto objeto da demanda148.

Assim, criou-se uma perspectiva pautada na discricionariedade do intérprete da Lex em decidir não só consoante apontavam os fatos centrais da demanda, mas também por outros fatos ligados aos litigantes e ao caso concreto. Por isso, boa-fé em sentido objetivo, advindo de uma concepção filosófica deste termo149. Para corroborar o entendimento acerca do bonae fidei iudicium mister se faz a compreensão do sistema processual romano, eis que tal técnica apenas era invocada no processo formulário. O processo em Roma se depreendia com base nas ações dos indivíduos e não em direitos. Os direitos e interesses eram tutelados como direito subjetivo somente se houvesse uma ação que os abrigasse. Não havia subjetividade para o conceito de ação150. Na

história

do

Direito

Romano,

houveram

três

sistemas

processuais,

cronologicamente, o legis acttiones (sistema de ações), per formulas (sistema de fórmulas) e cognittio extraordinaria. Cada qual referindo-se a um período histórico, respectivamente, préclássico, clássico e pós-clássico. Entretanto, não houve uma divisão cronológica entre estes

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MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 117. 148 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 120. 149 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 122. 150 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p 23

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períodos, eis que o sistema de ações e de formulário vigorou conjuntamente até que o primeiro perdeu força151. O sistema de ações se caracterizava pelo formalismo, tipicidade e oralidade, consubstanciando-se em apenas cinco ações, o que viabilizava uma pequena parte de solução de litígios. Este caía em desuso assim que o sistema de formulários ganhava força no período clássico. O sistema per formulas, antagonicamente ao legis acctiones, se mostrava menos formal, mais célere, com documentos escritos, com uma maior atuação do magistrado e com sanções meramente pecuniárias. Gontijo explica que o ponto que chamava atenção deste sistema era a fórmula, na qual seria fixado o ponto litigioso e concedido ao juiz popular a incumbência de absolver ou condenar o réu, consoante o conjunto probatório da demanda152. Em suma, o que ocorria no procedimento de fórmulas era a apuração do litígio, por parte do pretor, com a pretensão autoral, e a ordem dada ao magistrado para condenar ou absolver o réu. Assim, o juiz dava seguimento ao processo, permitindo a concretização da fórmula. Neste processo que se enalteceu as ações de boa-fé (iudicia bonae fidei), no qual incutia ao magistado o poder de decidir de acordo com este princípio. Inserido neste contexto, se desenvolveu o bonae fidei iudicia, consoante explica Gontijo: Sintetizando acerca dos bonae fidei iudicia, Antônio Menezes de Cordeiro (2007) retira deles um sentido geral, ao afirmar que eram instâncias em que o iudex tinha por função procurar descer à substância das questões, não se atendo a formalismos estritos e procurando uma solução material, não apenas formal. Sua importância foi a introdução de expedientes simples e concretos que revelam o esforço dos romanos para aperfeiçoar o direito das obrigações, não podendo ser ampliado para se reconhecer a equivalência das prestações, a bona fides como norma de comportamento ou da funcionalidade das obrigações, o que se deu muito depois153.

Neste ínterim é que se desenvolve o elemento objetivo da fides, nomeada de bona. Esta atuaria consoante a lei em sentido duplo de modo que dominaria o dever de cumprir a prestação e “constituindo a própria fonte da exigibilidade judicial das figuras ex bona fides, que careciam de base legal”. Esta expressão teria sido criada pelo pretor com um viés técnico-

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GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 24 152 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p.25 153 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 26

art. 422 do em Direito, art. 422 do em Direito, art. 422 do em Direito,

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jurídico, hábil para o leigo, uma vez que o termo sensibilizava imediatamente e com uma potencialidade técnica e considerável utilidade para o jurista154. Ocorre que o conceito de fides bona perdeu força ao passo que fora utilizada para tratar demandas distintas, repetidamente, decidindo-a sem separação de outros princípios, assim expõe Judith Martins-Costa: Dilui-se a noção de fides, afirma Menezes Cordeiro, porque passa a ser utilizada repetidamente para traduzir situações jurídicas diferentes e expressar princípios gerais, sem separação clara de outros princípios, de modo a “estar em toda a parte e, quando isolada, pouco querer dizer” 155.

Nobre Junior refere que a bona fides se deu em face da necessidade da utilização da fides solene com uma fides informal, surgindo como uma forma de manter a palavra dada de acordo com o seu espírito e não só com a sua palavra. Esta, portanto, seria verifica com base no comportamento do individuo, utilizando como base para decisão o que seria esperado de um homem comum em um determinado caso156. A bona fides constituía uma forma de defesa para a posse nos institutos da praescriptio longissimi temporis, longi temporis praescriptio e usucapio. Ao contrário da fides bona esta explicitava a convicção do possuidor de que este não estava lesando o direito de outrem157. Gontijo assevera que a transposição da fides bona para bona fides se deu em razão da vulgarização do direito romano, a partir do império de Constantino Magno (307-370 a.C), no qual houve a perda do pensamento e expressão dos juristas clássicos. Em substituição a estes, surgiram leigos, práticos e professores que não sabiam lidar com a interpretação, falsificando o Direito clássico158. A boa-fé canônica, por sua vez, procurou dar um sentido uno a concepção do princípio, ao aliar o seu significado à visão de “ausência de pecado”. Desta feita, seria o

154

GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p.29 155 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 123. 156 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p. 09-28, 2002. 157 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p. 09-28, 2002. 158 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 30

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estado antagônico à má-fé. A igreja atribuía ao princípio uma conotação moral, sob o pretexto de que mentira seria pecado159. Assim, considerando a premissa de que o valor dado à palavra era deverás enaltecido no Direito canônico, a necessidade de formalismos era supérflua. Não havia a necessidade de compactuar formalmente uma obrigação, haja vista a moralidade com a qual haviam os contraentes pactuados. Isto é, “agir em boa-fé, no âmbito obrigacional, significa, pois, respeitar fielmente o pactuado, cumprir punctualmente a palavra dada, sob pena de agir em má-fé, rectius, em pecado”160. Desta feita, a noção de boa-fé restou privilegiada como a forma de “ausência de pecado”, revestida de uma atribuição moral e valorativa. Um dos mandamentos, por exemplo, era o dever de amar ao próximo. Logo, quem ama não trai ou mente. Destarte, a palavra dada era sagrada e não agindo de acordo com os seus próprios dizeres importava em não agir de acordo com a boa-fé, ou seja, cometer um pecado. Percebe-se que o fundamento teológico atribuído à boa-fé canônica acarretava somente na parte subjetiva do princípio. Assim, agir de boa-fé significa não estar de má-fé, logo, não cometer nenhum sacrilégio161. Procurou a eclesiástica em dar um sentido conceitual único à boa-fé, pautada na ideia de ausência de pecado, criando um princípio geral ordenador da matéria obrigacional. No âmbito contratual, criou-se ainda duas características: Dos deveres positivos, no qual obrigava-se as partes a prestação equânime e a de deveres negativos, abstendo-se o dolo, a fraude e a coação. Neste sentido, assevera Judith Martins-Costa: No âmbito do Direito canônico a boa-fé estava, pois, referenciada ao pecado, e este é um ponto pleno de significado. É que enquanto o direito romano, considerando a dimensão técnica da boa-fé, promoveu a sua bipartição – consoante aplicada às obrigações ou à posse -, o direito canônico operou a sua unificação conceptual sob o signo de referência ao pecado, o que equivale dizer da ausência de pecado, situando-a em uma dimensão ética e axiológica compatível com o sentido geral do direito canônico162.

A referência à boa-fé canônica se dá sob dois aspectos. Primeiro, refere-se no que tange à posse no Corpus Iuris Canonici, exigindo que a bona fides seja cumprida durante todo 159

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 129. 160 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 130. 161 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 34 162 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 130.

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o prazo prescricional. O segundo diz respeito aos contratos consensuais (nuda pacta), ao passo que tais pactos sempre deveriam ser cumpridos, sob pena de quebra de valores transcedentais163. Ainda, José Luis de los Mozos, referenciado por Nobre Junior164, explica que a boa-fé eclesiástica revelou-se sobre os domínios da (i) validação do pacta nuda, através do simples consentimento das partes, atribuindo a quebra deste a pecado; (ii) eficácia do matrimônio inválido aos cônjuges inocentes, bem como para seus filhos; (iii) exigindo a boa-fé a todo o período necessário ao usucapião, dando fim à máxima romana mala fides supervenientes non nocet165. A grande contribuição direta do Direito Canônico no princípio da boa-fé se deu no instituto do casamento, por intermédio do matrimônio putativo. Na hipótese de invalidade patrimonial, certos efeitos do casamento continuariam a viger, caso um dos cônjuges estivesse de boa-fé ao selar a união166. A boa-fé na cultura germânica, contrario sensu à fides romana, a qual denotava uma ideia de fidelidade ao pactuado, foi introduzida com uma fórmula de lealdade (Treu ou Treue) e crença (Glauben ou Glaube), traduzindo uma concepção de qualidades ou estados humanos objetivados167. É nesta esfera que surge a noção de boa-fé, em matéria obrigacional, como uma regra de comportamento social “necessário ao estabelecimento da confiança geral, induzida ao “alter” ou à coletividade pelo comportamento do que jura por honra”. É neste momento que se denota a concepção de que, no específico campo das relações comerciais, a obrigação do cumprimento exato dos deveres assumidos, assumindo exatamente os deveres do contrato, 163

GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 34-35. 164 O autor ainda referencia a discrepância entre a boa-fé romanística e a canônica: A dissensão entre romanos e canonistas ainda se faz presente na atualidade. Por exemplo, o art. 435 do Código Civil espanhol adota orientação, segundo a qual a posse adquirida de boa-fé ostenta este caráter até o instante em que existam atos que façam crer que o possuidor não ignora ser indevido o poder de fato exercido sobre a coisa, enquanto para o Código francês (art. 2.229) a má-fé superveniente não prejudica. O nosso Código Civil (art. 1.202), seguindo os passos do legislador de 1916 (art. 491), filia-se à orientação do sistema jurídico espanhol, de sorte que a boa-fé cessa quando as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora o vício de que padece a sua posse. (NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p.09-28, 2002). 165 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Lusíada. Série de Direito, Coimbra, nº 01 e 02, p;09-28, 2002. 166 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 36. 167 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 124.

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bem como a necessidade de se ter, no exercício dos direitos, a contrapartida do outro polo da relação obrigacional168. Nobre Junior refere que o desenvolvimento da boa-fé germânica se “deu com o juramento de honra, cujos efeitos jurídicos recaíam no empenhamento da lealdade, posto que, uma vez celebrado, implicava para o jurante sujeição ao poder pessoal do credor”169. Esta concepção que trouxe a boa-fé germânica não havia sido pensada até então, era absolutamente nova. Houve uma influência direta dos ideais de cavalaria, através da honra, bravura e lisura na boa-fé. Tal influência se deu em dois aspectos, conforme explica Gontijo: A influência dos ideais da cavalaria, como honra, bravura e lisura na boa-fé, se deu em dois aspectos: na objetividade e no irracionalismo. Objetividade no sentido de que a boa-fé germânica se preocupava com a exterioridade, e não com o estado de ciência. O que importava era a opinião pública, e sua aprovação ou censura iriam ditar a atuação jurídica medieval. Quanto ao irracionalismo, este é consequência do primeiro. A boa-fé germânica não foi utilizada como expressão técnico-jurídica, nem foi integrada em ciência do discurso criada para convencer juízes, contraditores ou assembleia. Ao contrário, provocava ela reações de adesão ou repulsa de acordo com o padrões culturais da época170.

Desta forma, a boa-fé surge com uma conceituação relacionada à confiança, reciprocidade de deveres, preocupação para com os interesses da parte adversa, enaltecendose como uma regra padrão de conduta do cumprimento das obrigações171. A fórmula Treu und Glauben é bipartida, interligando os pólos da lealdade e da crença. Judith Martins-Costa, nas vozes de Menezes Cordeiro, explica que a aludida fórmula possuía a mesma cultura de outra bastante desenvolvida pelo Direito germânico, qual seja, a do débito e responsabilidade (Schuld und Haftung). Desta forma, ao atribuir à boa-fé a conotação da necessidade de cumprimento dos exatos deveres e obrigações assumidos no contrato, aliada a ideia de consideração para com os interesses da contraparte, o Direito germânico utilizou uma estrutura que se repetiria no Direito obrigacional172.

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MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 126. 169 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p. 09-28, 2002. 170 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 38. 171 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 38. 172 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 126.

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A contribuição fundamental da boa-fé germânica na Idade Média foi ter introduzido a boa-fé em um conjunto de novos valores, perdurados até a codificação alemã, se radicando por outras leis espraiadas pela cultura romanística173. Esta tríplice raiz da boa-fé serviu como base para dar seguimento à evolução do princípio na ciência jurídica europeia. O Direito Privado moderno se iniciou com a redescoberta do Corpus Iuris Civilis de Justinianeu no início da Alta Idade Média, com os comentários e ensino do Trivium, o qual consistia no aprendizado de gramática, linguagem e retórica. Os juristas que tiveram a sua formação nesta escola começaram a se relacionar com questões atinentes a diplomacia, administração e jurisprudência dos territórios e estados europeus. Este fenômeno foi se alastrando e restou denominado como “recepção” do Direito Romano pela Europa central e ocidental174. Esta era caracterizou uma nova etapa, na qual superou-se uma forma irracional de pensar o Direito para, então, compor formas racionais, dando surgimento a uma ciência jurídica. É o que explica Gontijo: Passa-se de um estágio em que os litígios eram resolvidos irracionalmente para o estudo e pesquisa de formas racionais de composição e o surgimento de uma ciência. Foi o fenômeno da recepção, com a cientificação jurídica iniciada nas universidades e propagada na Europa pelos juristas que nelas se formavam, baseado no Corpus Iuris Civilis, promovendo a redescoberta da Ciência Jurídica romana175.

Neste período, a boa-fé consistia em uma conotação “subjetivo-psicológica do convencimento do possuidor de ser o proprietário ou de não lesar direitos alheios”. A boa-fé objetiva, por sua vez, somente entraria em cena a partir da sistematização, se concretizando com o humanismo e, posteriormente, com o jusnaturalismo176. Com o esgotamento da ciência europeia no período anterior a primeira sistemática, em vista de que esta chegava a um ponto no qual não havia mais como se sustentar, começou uma

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MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 127. 174 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 39. 175 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 39. 176 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 40.

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revolução trazida com o humanismo. Nesta época, o homem era o foco das relações, enquanto que os preceitos da Antiguidade serviam de modelo para a época177. O objetivo desta fase histórica era de resgatar os bons preceitos da ciência jurídica romana, utilizando-os como modelo, para então procurar uma evolução desta. A ideia era buscar os pontos centrais romanísticos e transformá-los em uma ponte para conexão com diversas regras, contrario sensu aos glosadores e pós-glosadores que extraiam as informações e memorizavam178. No que tange à boa-fé, a primeira sistemática buscou reviver algumas nuances olvidadas no Direito Romano, com a tentativa de aplicá-la em um sentido objetivo, ou seja, em uma perspectiva global. A segunda sistemática, representada pelo jusracionalismo, momento em que o jusnaturalismo179 ganhou força no Direito, foi o momento no qual o Direito Romano começou a perder amparo, uma vez que a busca pelo jusracionalismo de princípios que indicassem uma noção de justo. Neste período a boa-fé sofreu um aparente retrocesso, uma vez que fora reconduzida a uma ideia de princípio geral e único em função de uma influência cultural da época. Assim, parte-se de “conceitos diluídos à sua reconstrução unitária, ao passo que, em uma sistematização central, a diluição é mantida, não sendo possível a constituição do fator diluído”180. A tríplice raiz da boa-fé, representada pelo direito romano, germânico e canônico, bem como a presença desta na primeira e na segunda sistemática, foram, incontestavelmente, uma grande influência para a construção empírica do princípio da boa-fé. Sem prejuízo destes

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GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 41. 178 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 42. 179 Gontijo assim assevera os jusnaturalistas: “Os jusnaturalistas partem da premissa de que o homem, por necessidade, havia renunciado a alguns de seus direitos para o Estado, e, este, posteriormente, invadiu a esfera jurídica reservada ao indivíduo, motivo pelo qual se fazia necessária uma nova legislação com o intuito de reestabelecer os direitos individuais. Pregavam a elaboração de codificação do direito, conservando-se os princípios que coadunassem com os preceitos de Direito natural, e repudiando-se aqueles que não fossem coincidentes com tal doutrina. Tornou-se, pois, o Direito natural medida de aferição de valor do Direito romano, pois os seus princípios é que determinariam os preceitos romanos a serem considerados” (GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 43). 180 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 45.

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momentos históricos, não há dúvidas de que os sistemas francês e alemão foram os mais representativos para o aludido princípio. O Code Napoleon influenciou diversos sistemas jurídicos, dentre eles o brasileiro, tendo como principais características a clareza, precisão e completude. Ainda, o código napoleônico foi o único que restou imutável por um longo período, em virtude de ter surgido após a Revolução Francesa, a era napoleônica e a elevação econômica e cultural da Europa181. A boa-fé foi referida em tal código em diversos artigos, como com relação ao casamento putativo, ao possuidor de boa-fé, em vista dos frutos, à acessão, ao dever de executar as convenções de boa-fé, ao pagamento feito e recebido de boa-fé, à cessão judiciária de bens, à boa-fé na diluição da sociedade por renúncia, à venda da coisa depositada pelo herdeiro do depositário feita de boa-fé, aos terceiros de boa-fé na cessação do mandato, à boafé na prescrição, dentre outros dispositivos que referenciavam o princípio182. Segundo Antônio Menezes de Cordeiro, a boa-fé no código napoleônico também foi representada em duas formas de expansão, sendo a primeira o resultado da boa-fé ou má-fé e outras figuras codificadas e com outros nomes e a adição da boa-fé, por meio da jurisprudência, a institutos que não eram exigíveis, de acordo com o código183. O que impossibilitou, contudo, a evolução do princípio da boa-fé na França, durante a vigência do Code Napoleon era o fato de que, à época, reinava a escola da Exegese, provocando a decadência do mencionado princípio. Como já exposto neste trabalho, a Exegese era abarrota de silogismos que buscavam fundar o Direito em sistemas fechados. Para vingar a boa-fé, mister se faz a construção através de um sistema aberto. Mesmo com as tentativas de uma unificação conceitual, propostas de bipartição (objetiva e subjetiva) e tripartição, a boa-fé não prosperou na França. Não houve sequer aplicação jurisprudencial, motivo pelo qual restaram escassos os estudos que tratavam do tema, após a Segunda Guerra184.

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GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 48/49. 182 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 49. 183 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 49. 184 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 50/51.

art. 422 do em Direito, art. 422 do em Direito, art. 422 do em Direito, art. 422 do em Direito,

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O ingresso da boa-fé na codificação alemã, em seu turno, consagrou a utilização da boa-fé subjetiva em termos éticos e a objetiva na esfera contratual. Menezes de Cordeiro aponta que no Burgerliches Gesetzbuch (BGB), código civil alemão, foi introduzido com cinco dispositivos que versavam acerca da boa-fé estruturada com base na fórmula Trent und Glauben e dezesseis artigos que correspondiam à expressão guter Glauben185. Dentre estes dispositivos, importante atentar para os §242186 e §157187, este que trata da boa-fé objetiva em uma perspectiva geral188. Muito embora a vasta jurisprudência comercial alemã, a boa-fé objetiva foi pouco identificada, eis que limitada em sua positivação, em virtude da falta de base teórica para fundamentar a inserção desta no sistema jurídico germânico. Não obstante esta problemática verificada no período, os deveres contratuais assumidos se opuseram ao cumprimento formal, o que criou a ideia de obrigação de cumprimento do pactuado, com base na boa-fé, mesmo que este não seja o seu verdadeiro conteúdo. Verificou-se então um “fortalecimento e a materialização do contrato” 189. Na Alemanha, desde 1815, já existia um tribunal superior de apelação comercial que utilizava de várias fontes de consulta para fundamentar as suas decisões. À época não se referia jurisprudência, eis que as decisões eram tópicas. Neste momento surge a boa-fé subjetiva em um sentido de ignorância do contratante de boa-fé e da objetiva, em uma perspectiva tripla, como forma de indicar um exercício de posição jurídica, interpretação objetiva e fonte de deveres de conduta, além do que está estipulado no contrato190. Maisa Conceição Gontijo explica a forma pela qual o princípio da boa-fé objetiva foi inserido em matéria civil, no sistema jurídico alemão: Em 1861 surge o Código Comercial alemão, que não se refere à boa-fé por se tratar de um trabalho científico dos juristas (para os quais a boa-fé tinha apenas sentido cultural), sem levar em conta a atuação prática já consolidada. Tal fato fez com que a boa-fé continuasse na órbita jurisprudencial, inclusive depois da criação do Tribunal Comercial Superior 185

Expressão correspondente à boa-fé subjetiva no Direito Civil alemão. “O devedor está adstrito a realizar a prestação tal como exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego”. 187 “Os contratos interpretam-se como exija a boa-fé, com consideração pelos costumes de tráfego”. 188 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 53. 189 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 53/54. 190 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 54. 186

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da União (BOHG) em 1869, que prosseguiu em soluções baseadas na boa-fé objetiva como fonte de normas de conduta, delimitação ao exercício de posições jurídicas, elemento de reforço da ligação obrigacional e norma para interpretação negocial. Era pacífico o reconhecimento da boa-fé como princípio geral do tráfego comercial, apesar de não haver apoio legislativo. Em 1871 o BOHG foi convertido, depois da proclamação do Império, em Tribunal Comercial Superior do Império (ROHG), continuando com a mesma orientação acerca da boa-fé. Em 1879 foi o ROHG integrado no Reichsgericht (RG), o Tribunal Imperial, fazendo com que as decisões acerca da boa-fé se incorporassem no âmbito geral da ordem privada. E, a partir daí, as decisões em matéria civil consideravam o princípio da boa-fé objetiva191.

No que tange ao §242, este demorou a ser recepcionado na Alemanha, em face do sistema fechado192, que impedia a inserção de uma cláusula geral de boa-fé, eis que a aplicação do princípio somente se daria por uma forma de interpretação subsuntiva193. De qualquer sorte, a boa-fé na codificação alemã deu amparo à criação, através da jurisprudência civil, de figuras como a culpa na formação do contrato, o exercício inadmissível do Direito e a eficácia jurídica da alteração das circunstâncias. A evolução do princípio da boa-fé utilizado nas decisões jurisprudenciais civis do século XX decorreu da jurisprudência alemã, pois esta quem primeiro indicou a tríplice função do aludido princípio194. Esta estrutura histórica deu à boa-fé a sua dimensão de aplicabilidade com a qual é utilizada nos dias atuais. Desde o nascimento da fides romana até a consagração da boa-fé no BGB influenciaram diretamente na construção axiológica e epistemológica do princípio da boa-fé, tanto em seu caráter objetivo, quanto subjetivo. Hodiernamente, a boa-fé objetiva já é um princípio consagrado na doutrina e jurisprudência brasileira e comumente utilizada em matéria obrigacional, com o objetivo de criação de um padrão de conduta que agrega às partes uma fonte de deveres de conduta, vedação ao exercício inadmissível de posição jurídica e cânone para interpretação do contrato, consoante os valores de probidade, honestidade e lealdade.

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GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 54. 192 O BGB nasceu com uma pretensão de se tornar um código de aplicação por interpretação subsuntiva, ou seja, um código que abrangesse todas as situações do cotidiano. 193 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 55. 194 GONTIJO, Maisa Conceição Gomes. Análise do princípio da Boa-fé Objetiva estatuído no art. 422 do Código Civil Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2009. p. 55.

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2.5 A ATUAÇÃO DA BOA-FÉ NO DIREITO PRIVADO BRASILEIRO Superada a arqueologia jurídica da boa-fé, que norteou a inserção do aludido princípio em diversas codificações civis pelo mundo, não é novidade que uma das principais influências da boa-fé no Direito Civil brasileiro foi o Código Civil alemão, mormente em seu parágrafo 242: “O devedor deve (está adstrito a) cumprir a prestação tal como o exija a boa fé, com consideração pelos costumes do tráfego jurídico”

195

. Muito embora este tenha sido o artigo

mais significativo e referenciado pela doutrina, relembramos que o BGB aduziu a boa-fé em vários outros dispositivos. Contudo, a boa-fé tardou a ser inserida na legislação brasileira. Antes da inserção da cláusula geral da boa-fé ao Código Civil de 2002, não podemos olvidar que houve o ingresso da boa-fé no Código Comercial de 1850, no art. 131, n. 1º, fazendo menção à boa-fé para esta se conformar à inteligência simples e adequada. A realidade fática da época impossibilitou a aplicação da cláusula, mormente pelas diversas situações culturais que hoje já restaram superadas196. A sociedade existente quando da promulgação do Código Civil de 1916 também impossibilitou a redação da cláusula geral da boa-fé. À época, predominavam-se às práticas agrárias e escravistas, nas quais se pendia para o lado da autonomia da vontade, em face de atos que aproximassem o caso concreto e a justiça material197. Este entendimento não significa que não houve menção à boa-fé no Código Beviláqua. Pelo contrário, vários dispositivos aludiram a boa-fé tanto em sua perspectiva objetiva, quanto subjetiva. Nobre Junior aponta que a inexistência de uma cláusula geral de boa-fé não significa que ela não esteve presente na época. Para tanto, cita a decisão do Superior Tribunal de Justiça no RESP 256.456-SP. Convencionou-se, igualmente, que o comprador poderia, sem qualquer justificativa, recusar o pagamento de frutas que reputasse como inaptas à extração de suco ou revenda, cabendo aos vendedores arcar com os riscos resultantes de caso fortuito ou força maior. E mais: não poderiam os citricultores alienar qualquer quantidade de frutas a terceiros, não dispondo o ajuste acercada colheita das laranjas de maturação precoce, cujo prejuízo seria suportado por aqueles. Para compensar os agricultores, a compradora fixara, a seu exclusivo arbítrio, como preço dos frutos a cotação alcançada pela bolsa de mercadoria de New York. A safra de 1990/1991 apresentara 195

BGB, §2. NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p.09-28, 2002. 197 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p.09-28, 2002. 196

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quadro adverso aos plantadores, representado pela elevação dos custos de produção e pela sensível baixa da cotação da mercadoria. Daí seguiu ação, destinada a anular negócio, com a fixação de preço justo para os bens vendidos. O pleito fora acolhido, havendo o digno relator assim se pronunciado: “Tenho, no entanto, que o contrato de compra e venda celebrado para o fornecimento futuro de frutas cítricas (laranjas), ao lançar despesas à conta de uma das partes, contém desequilíbrio não admitido na nossa legislação, pois deixou ao critério da compradora a fixação do preço e lançou os custos sobre o produtor, sem risco para o adquirente, o que viola a regra do art. 1.125 do CCivil, invocada pelas recorrentes e não aplicada pela eg. Câmara. Além disso, a boa-fé objetiva impunha às partes a repartição dos prejuízos que decorreram da substancial modificação das condições do mercado, assim como observado na r. sentença. Reza o art. 131 do CComercial, que o contrato comercial deve ser interpretado conforme a boafé. O r. acórdão negou vigência a esse dispositivo ao consagrar a desigualdade expressa nos contratos de adesão”198.

Finalmente, em 2002, a boa-fé foi inserida no novo Código Civil em forma de cláusula geral. Assim permitiu ao intérprete a avaliação da situação fatídica para, então, aplicar o decisum com base no princípio. Vale a ressalva que o conteúdo da boa-fé não pode ser préconceituado casuisticamente de forma rígida, eis que sempre dependerá das circunstâncias do caso concreto. Em função disto, a forma na qual o referido princípio poderá surtir pleno efeito aos contratantes é tão somente através de um sistema aberto, deixando a critério do intérprete a valoração do princípio para determinado fato199. Apesar das críticas feitas, o novo Código Civil deu uma ampla margem ao intérprete para apreciar o caso concreto e aplicar os princípios de acordo com as disposições doutrinárias a ele inerentes. Não obstante ainda não esteja plenamente de acordo com a expectativa geral da doutrina, a legislação civil já tem uma maior dinâmica para preencher as lacunas que diariamente aportam o judiciário brasileiro, em razão da evolução tecnológica e industrial que a cada dia impõem novas problemáticas aos magistrados brasileiros. O Código Civil delimita a boa-fé como um conceito indeterminado, aduzindo que os contraentes deverão respeitar os princípios da probidade e da boa-fé tanto na execução, como na conclusão do contrato. Em função desta indeterminação do princípio na codificação civil, o juiz possui uma ampla discricionariedade para entendê-lo e decidir conforme a sua interpretação, com base nas fontes do Direito200.

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NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p.09-28, 2002. 199 MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um "Sistema em Construção": As Cláusulas Gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, volume nº. 139, 1998. 200 Não podemos esquecer a crítica que Lenio Streck faz à discricionariedade do intérprete, eis que este, por muitas vezes, decide com base na sua própria consciência (solipsismo). Por tal motivo, acrescentamos as fontes do Direito como forma de consulta para mediar a decisão do magistrado.

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Contrario sensu ao pensamento emanado quando do Código de Beviláqua, o Código idealizado por Miguel Reale mitigou a autonomia da vontade e rumou em direção ao princípio da função social do contrato, superando o individualismo reinante no século anterior201. No aludido Diploma Legal, a boa-fé representou um dos três princípios norteadores do Código Civil de 2002, a eticidade202. A boa-fé manifestada por meio da lealdade, correção, honestidade, dentre outros, é o que vai delinear os limites a serem respeitados na busca pela justiça contratual203. Francisco Amaral alude a forma na qual a boa-fé foi inserida no Código Civil de 2002, em seus respectivos dispositivos: O princípio da boa-fé objetiva, como norma interpretativa (CC, art, 113), que recomenda sejam os negócios jurídicos interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, e como regra de comportamento (CC, art. 422), que dispõe serem os contratantes obrigados a guardar, na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé, é significativa inovação do novo Código. Traduz um valor ético que se exprime em um dever de lealdade e correção no surgimento e desenvolvimento de uma relação contratual, pelo que os contratantes são obrigados a guardar, na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé (CC, art. 422) (...) A boa-fé objetiva tem a ver com os processos de formação, interpretação e execução dos negócios jurídicos, de modo geral, mas com alcance, também, na atividade extranegocial, já que aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se no que couber, as disposições legais do negócio jurídico (CC, art. 185). Destinatários do princípio da boa-fé são os intérpretes da declaração de vontade, as mais das vezes os magistrados chamados a resolver um conflito de interesses204.

Em um primeiro momento, importante salientar o art. 113, de modo que as partes deverão, sempre, interpretar o negócio jurídico, conforme postula a boa-fé: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Nesta hipótese, se deve buscar a melhor solução para o caso concreto, com base em uma 201

NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p.09-28, 2002. p.303. 202 O Código Civil possui três valores essenciais: Eticidade, Operalidade e Socialidade. O primeiro, como já referido, compreende a boa-fé objetiva como uma forma de delinear os limites impostos no aludido Diploma Legal. É a superação de um modelo formalista jurídico para a valorização dos preceitos éticos, em direção à busca de uma igualdade substancial. A socialidade, por sua vez, corresponde a um antagonismo ao individualismo do código anterior, ao passo que insere à legislação a função social da propriedade e do contrato. Por fim, a operabilidade foi o norteador da inserção das cláusulas gerais e conceitos indeterminados como melhor forma técnica para a realização do Direito (LOPEZ, Tereza Ancona. Princípios Contratuais. Contratos Empresariais: Fundamentos e Princípios. Wanderlei Fernandes – Coordenador, 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 2012. 203 LOPEZ, Tereza Ancona. Princípios Contratuais. Contratos Empresariais: Fundamentos e Princípios. Wanderlei Fernandes – Coordenador, 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 2012. 204 NETO, Francisco dos Santos Amaral. A Interpretação Jurídica Segundo o Código Civil. Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro, v. 29, p. 17-41, 2007.

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interpretação pautada na boa-fé, fazendo com que se afaste de um eventual abuso de direito205. Para solidificar este entendimento, Nobre Junior utiliza como exemplo a RESP 264.562206, na qual o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o contratante que adquire um plano de saúde com “cobertura total” não pode admitir quaisquer exceções no gozo deste, eis que a boa-fé não permite que tal estipulação seja compreendida fora dos ditames normais de entendimento da expressão207. Também encontra agasalho a revelação genérica de cumprimento à boa-fé, no art. 187: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. O aludido artigo “vislumbra a prática de ato ilícito no chamado abuso de direito, ou seja, no exercício anormal de uma faculdade ou poder jurídico. Com vistas a traçar uma definição objetiva do que constitua abuso de direito, elencou o novel diploma a exasperação manifesta das limitações impostas pelo princípio da boa-fé objetiva no que toca ao seu perfil ordenador de condutas”208. Tal dispositivo buscou dar um sentido de ocorrência de abuso de direito quando houver evasão dos limites impostos pela boa-fé. Para exemplificar, Nobre Junior cita que ocorre quando o credor impõe ao devedor remisso condições gravosas, em face de uma situação desproporcional entre a utilidade do adimplemento da obrigação e as consequências suportadas pelo obrigado209. Por fim, o art. 422 corresponde à cláusula geral da boa-fé, em matéria contratual, obrigando os contratantes a respeitarem os limites impostos pelo princípio tanto na execução, como na conclusão do contrato: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão 205

NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n 01 e 02, p. 09-28, 2002. 206 CIVIL. SEGURO DE ASSISTÊNCIA MÉDICO-HOSPITALAR – PLANO DE ASSISTÊNCIA INTEGRAL (COBERTURA TOTAL), ASSIM NOMINADO NO CONTRATO. As expressões “assistência integral” e “cobertura total” são expressões que têm significado unívoco na compreensão comum, e não podem ser referidas num contrato de seguro, esvaziadas do seu conteúdo próprio, sem que isso afronte o princípio da boa-fé nos negócios. Recurso especial não conhecido” (3.ª T., v.u., rel. Min. Ari Pargendler, DJU de 13-08-01. p. 150). No mesmo diapasão, confira-se o Agravo Regimental no AI 81959-RS: “SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. EQUIVALÊNCIA SALARIAL. ‘Plano de Equivalência Salarial’ é expressão que tem significado unívoco na compreensão comum, não podendo ser referida num contrato de adesão, esvaziada do seu conteúdo próprio, sem que isso afronte o princípio da boa-fé nos negócios. Agravo Regimental improvido” (2ª T., v.u., rel. Min. Ari Pargendler, DJU 30.10.95, p. 36766). 207 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n 01 e 02, p. 09-28, 2002.. 208 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n 01 e 02, p. 09-28, 2002. 209 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n 01 e 02, p. 09-28, 2002.

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do contrato, como em sua execução os princípios de probidade e boa-fé”. Muito embora o legislador não tenha constando expressamente a previsão de respeito à boa-fé nas fases preliminares à celebração de contrato, é pacífico que tal dever se encontra implícito no dispositivo. Nobre Junior acredita que ao empregar o vocábulo “conclusão”, foi tentado abranger as fases preliminares, ao passo que a formação do vínculo não se consubstancia somente quando as partes pactuam o contrato, mas sim em todas as negociações e acontecimentos que são necessários para aproximação dos dois sujeitos210. Ademais, Cláudio Luiz Bueno de Godoy aduz que na jurisprudência tal entendimento é pacífico, ao passo que é fixada a orientação de que as partes deverão agir segundo a boa-fé objetiva “de forma leal, sem causar danos à contraparte, sem deixar de informá-la e sem criar, para ela, a expectativa de que o contrato se firmará e, depois, injustificadamente, frustrar esta expectativa” 211. Dentre os julgados que corroboram a assertiva emanada no parágrafo anterior, está o famoso “caso dos tomates”, decidido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Em síntese, os fatos da lide correspondem a um agricultor de Canguçu, Rio Grande do Sul, o qual costumava plantar tomates com sementes fornecidas pela Companhia Industrial de Conservas Alimentícias (CICA), esta que costumeiramente adquiria a produção, para então industrializar. Em determinada safra, a CICA deixou de adquirir os tomates, após terem surtido a devida expectativa no agricultor, eis que meses antes disponibilizaram as sementes ao autor. Ruy Rosado, então Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pronunciou seu voto no sentido de que a CICA já havia criado uma expectativa na outra parte, ao passo que o cancelamento da compra da safra atendeu a uma vontade exclusiva desta. O agricultor, por sua vez, poderia estar laborando de outras maneiras, para outros clientes e cultivando outro produto. Desta forma, se reconheceu o dever de indenizar na fase précontratual212.

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NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n 01 e 02, p. 09-28, 2002. 211 GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. 4.ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p.88. 212 Ementa: CONTRATO. TRATATIVAS. "CULPA IN CONTRAHENDO". RESPONSABILIDADE CIVIL. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA ALIMENTÍCIA, INDUSTRIALIZADORA DE TOMATES, QUE DISTRIBUI SEMENTES, NO TEMPO DO PLANTIO, E ENTÃO MANIFESTA A INTENÇÃO DE ADQUIRIR O PRODUTO, MAS DEPOIS RESOLVE, POR SUA CONVENIÊNCIA, NÃO MAIS INDUSTRIALIZÁ-LO, NAQUELE ANO, ASSIM CAUSANDO PREJUÍZO AO AGRICULTOR, QUE SOFRE A FRUSTRAÇÃO DA EXPECTATIVA DE VENDA DA SAFRA, UMA VEZ QUE O PRODUTO FICOU SEM POSSIBILIDADE DE COLOCAÇÃO. PROVIMENTO EM PARTE DO APELO, PARA REDUZIR A INDENIZAÇÃO À METADE DA PRODUÇÃO, POIS UMA PARTE DA COLHEITA FOI ABSORVIDA POR EMPRESA CONGÊNERE, ÀS INSTÂNCIAS DA RE. VOTO VENCIDO, JULGANDO

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Flávio Tartuce, por outro lado, aduz que a mediação do magistrado para aplicar o conceito pode distorcer a necessidade de respeito ao princípio em todas as fases contratuais. Ademais, o mesmo jurista assevera que o intérprete deve necessariamente conhecer integralmente o sistema de cláusulas gerais inserto na codificação civil213, conforme o próprio explica: (...) o Código Civil está impregnado de cláusulas gerais, que se caracterizam como fonte de direito e de obrigações. É necessário portanto, conhecer-se o sistema de cláusulas gerais para poder entender-se a dinâmica do funcionamento e do regramento do Código Civil no encaminhamento e nas soluções dos problemas que o direito privado apresenta. Há verdadeira interação entre as cláusulas gerais, os princípios gerais do direito, os conceitos legais indeterminados e os conceitos determinados pela função. A solução dos problemas reclama a atuação conjunta desse arsenal214.

Avançando nas fases contratuais, quando da formação do negócio jurídico, é imposto às partes obrigações implícitas que devem ser cumpridas, a saber: a) informação, a atingir a necessidade de se dar à outra parte conhecimento de todos os fatos que possam influenciar a sua manifestação de vontade; b) confidencialidade, porquanto a boa-fé obriga à discrição, mesmo se o contrato não chega a concluir-se, impondo-se principalmente àqueles que detêm sigilo em decorrência da profissão; c) comportamento sério e leal, o qual será infringido pela ruptura sem motivo das negociações quando o estádio avançado destas tiver criado uma fundada confiança na outra parte, pela indução de alguém a ultimar um contrato, do qual sabia ou devia saber que aquele seria nulo, ou ainda pela celebração do negócio de forma a provocar lesão215.

A violação destes preceitos enseja na invalidade do contrato como um todo, repercutindo em uma possibilidade de ressarcimento dos danos devidamente comprovados. A boa-fé aduz na satisfação, com lealdade, das obrigações que são incumbidas as partes, para que estas não frustrem a expectativa do credor, de modo que não é somente

IMPROCEDENTE A AÇÃO. (Apelação Cível Nº 591028295, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Julgado em 06/06/1991 213 Alerta, ainda, que a rejeição da reforma do art. 422 do Código Civil, feita por Ricardo Fiúza, o qual tinha como objetivo a possibilidade de inserção de redação que absorvesse todas as fases do contrato, sob o argumento de que a interpretação ficaria a cargo do magistrado, pode fazer com que o princípio em comento seja novamente esquecido, como assim o foi no Código Comercial. (TARTUCE, Flávio. O Princípio da Boa-fé Objetiva em Matéria Contratual: Apontamentos em Relação ao Novo Código Civil e Visão do Projeto nº 6.960/02. Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2013). 214 TARTUCE, Flávio. O Princípio da Boa-fé Objetiva em Matéria Contratual: Apontamentos em Relação ao Novo Código Civil e Visão do Projeto nº 6.960/02. Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2013. 215 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p. 09-28, 2002.

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observado o sentido literal da cláusula contratual, mas também o espírito216. Esta se mostra como uma forte influência da cultura romano-germânica no Direito brasileiro. A observância da boa-fé na execução dos negócios jurídicos também corresponde a algumas consequências, quais sejam: a) o adimplemento substancial, de maneira que, cumprida parte relevante, o descumprimento de parcela diminuta das prestações não justificará a resolução contratual; b) a impossibilidade de um negócio ser desfeito em decorrência de insignificante transgressão de prazo; c) a incidência da teoria da base do negócio jurídico, a preconizar a alteração deste quando as circunstâncias existentes durante a sua formação sofrerem mutação anormal; d) o reconhecimento do implemento de condição suspensiva quando maliciosamente obstado pela parte, a quem desfavorecer, juntamente com a não verificação da condição maliciosamente implementada, por tal ocorrer em função da atuação do seu favorecido; e) a possibilidade de oposição de exceção de contrato não cumprido; f) a vedação de venire contra factum proprium, de modo a não ser concebida que, em uma relação negocial, uma das partes se comporte contraditoriamente a uma anterior conduta sua, como, por exemplo, o locador que, ao depois de dois anos recebendo, sem reclamação, o aluguel mensal no quinto dia posterior ao vencimento, resolve, por tal fato, pleitear a rescisão da locação; g) não admissão da exigibilidade de condições gerais do contrato contrárias à boa-fé; h) a possibilidade de moderação da incidência da cláusula penal estipulada, levando-se em conta as circunstâncias peculiares ao caso concreto217.

Na Lei Ordinária 8.078/90, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor, a boa-fé também se encontra presente. Sem levar em consideração a existência da boa-fé no art. 130 do Código Comercial de 1850, até mesmo porque não houve uma real utilização do princípio à época, o Código de Defesa do Consumidor foi o primeiro a positivar a boa-fé. O aludido princípio encontra-se no art. 6ª, inciso IV, proibindo o abuso de direito e impondo aos contratantes a transparência e boa-fé nas transações comerciais, na publicidade e nos contratos. Cláudia Lima Marques acentua que a boa-fé é o princípio norteador do Código consumerista, ao passo que se preocupa com os aspectos pré-contratuais, bem como com os de formação e de execução das relações contratuais de consumo. Assevera, ainda, que o princípio auxilia no reestabelecimento das expectativas legítimas do consumidor, compensando assim a sua vulnerabilidade fática218.

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NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p. 09-28, 2002.. 217 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Coimbra: Lusíada. Série de Direito, n. 01 e 02, p. 09-28, 2002. 218 BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual do Direito do Consumidor. 2 ed., RT – Revista dos Tribunais, São Paulo, 2009.

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Na lei do consumidor, ainda é possível encontrar referência à boa-fé no art. 51, IV, o qual aduz que: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”. No que tange ao dispositivo retromencionado, Paulo Lobo sustenta que a boa-fé está associada ou alternada com a equidade, nas palavras do autor: [...] No inciso IV do art. 51, a boa-fé, contudo, está associada ou alternada com a equidade [...]. No que respeita aos princípios do contrato, a equidade não se concebe autonomamente, mas como critério de heterointegração tanto do princípio da boa-fé quanto do princípio da equivalência material. O juízo de equidade é modelo aberto oferecido ao julgador, porém limitado à decisão do conflito determinado, na busca do equilíbrio dos poderes contratuais, com manejo apropriado de critérios objetivos e referenciáveis em abstrato, que não podem ser substituídos por convicções pessoais219.

De mais a mais, esta menção do legislador à boa-fé está contida na vedação ao abuso de direito decorrente das cláusulas unilaterais contidas nos contratos por adesão. Isto é, considerando a vulnerabilidade implícita do consumidor, bem como a sua comprovada hipossuficiência na maioria das hipóteses, o referido artigo surge como uma forma de disciplinar tais relações, com o propósito de orientar o contratante débil (consumidor) no pacto firmado. Paulo Lobo, por sua vez, direciona a sua doutrina no sentido de que, muito embora o art. 4º, III, do Código de Defesa do Consumidor importar o respeito à boa-fé para consumidores e fornecedores, é evidente que ao segundo que se destina o referido dispositivo, mormente pela vulnerabilidade a que está disposto o primeiro. Para corroborar o entendimento, o aludido jurista aduz o dever de informar quase que exclusivamente do fornecedor220. Explica também, Paulo Lobo, que o Código de Defesa do Consumidor, ao ingressar com a boa-fé no sentido de cláusula geral de abertura, permitiu que o intérprete procedesse com o teste de compatibilidade de cláusulas ou condições gerais dos contratos de consumo221. Conforme já aludimos anteriormente, a boa-fé deve ser respeitada em todas as etapas da relação obrigacional, tanto antes da celebração (in contrahendo), como após a extinção do contrato (post pactum finitum). Nesta linha, Paulo Lobo assevera que o Código de Defesa do 219

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva. 2012. p.74. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva. 2012. p.73. 221 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva. 2012. p.74. 220

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Consumidor rumou neste sentido, ao incluir o dever de informação precisa na oferta (art. 30), ao impor ao fornecedor a necessidade de clareza no conteúdo do contrato (art. 46), a partir do momento em que torna vinculantes os escritos particulares, os recibos e os pré-contratos (art. 48) e quando exige a continuação de ofertas para peças de reposição (art. 32)222. Surge, portanto, tal princípio como um standard de comportamento, pautado nos valores de probidade, lealdade e honestidade tanto na fase pré-contratual, como após o advento final da relação pactuada. Serve, desta feita, para conduzir as relações contratuais de uma forma honesta e leal. Esmiuçando a sua tríplice função, a boa-fé objetiva atua como fonte de deveres de conduta, ao passo que insurge na padronização de uma forma de agir, de acordo com os valores há pouco aludidos, no terreno obrigacional; cânone para interpretação dos negócios jurídicos, de modo que procede com o entendimento do pactuado da melhor forma possível para ambas as partes e; baliza para averiguação da licitude dos exercícios jurídicos223. Judith Martins Costa aponta que no plano eficacial, a boa-fé objetiva atua como uma “baliza da licitude”, na qual indica quando existem violações de confiança, o que caracteriza o exercício inadmissível de posição jurídica e importa em situações que vedam as manifestações eficaciais da boa-fé, quais sejam, a rejeição do venire contra factum proprium, supressio e surrectio e tu quoque. Assim sendo, no plano eficácial, a boa-fé (superposta à ‘confiança legítima’), atuando como ‘baliza da licitude’ indicará as variadas possibilidades técnicas de coibição do exercício de direitos e poderes formativos (dimensão negativa) quando violadores de uma confiança legitimamente suscitada. Essa violação importará em ilicitude por exercício inadmissível (abuso) como ocorre, por exemplo, nas situações que é vedado venire contra factum proprium; ou nos casos de paralisação do exercício do abuso de direito subjetivo em formas atípicas, aproximativas da preclusão ou decaimento que podem levar à supressão e à ressureição de direitos (supressio e surrectio), e, ainda, na coibição dos casos de contraditoriedade de condutas agrupados sob a rubrica tu quoque para além dos casos em que a boa-fé veda a alegação de nulidades formais, quando as nulidades não atingem a substância do ato, sendo conhecidas pela contraparte que as tolera224.

Paulo Lobo se manifesta com relação ao exercício inadmissível de direito ou posição jurídica, citando como exemplos a proibição do venire contra factum proprium e o 222

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva. 2012. p.74. MARTINS-COSTA, Judith, Os campos normativos da Boa-fé Objetiva: As três perspectivas do Direito Privado Brasileiro. Revista Forense. São Paulo, v. 382, p. 119-143, nov./dez. 2005. 224 MARTINS-COSTA, Judith, Os campos normativos da Boa-fé Objetiva: As três perspectivas do Direito Privado Brasileiro. Revista Forense. São Paulo, v. 382, p. 119-143, nov./dez. 2005. 223

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comportamento contraditório. Para o autor, “significa dizer que a ninguém é dado valer-se de determinado comportamento, quando não mais lhe interessar mediante comportamento contrário”. Ou seja, não pode o sujeito opor-se à aparência que deu ensejo a uma crença da verdade de uma determinada situação jurídica225. Tal vedação de um comportamento contraditório terá a sua aplicação voltada nas seguintes hipóteses: a) a existência de uma conduta anterior, relevante e eficaz; b) o exercício de um direito subjetivo pelo mesmo sujeito que cria a situação litigiosa, devido à contradição existente entre ambas as condutas; d) a necessidade e o merecimento de proteção do atingido com a conduta contraditória, pois tem de estar de boa-fé, por ter confiado na situação criada pelo ato anterior226.

Para corroborar este entendimento, a jurisprudência tupiniquim vem aplicando o venire contra factum proprium, conforme acentua Paulo Lobo: A jurisprudência brasileira tem aplicado o instituto de proibição de venire contra factum proprium, conforme REsp 95.539, no caso de recusa de escritura de compra e venda de imóvel, alegando a inexistência de promessa de compra e venda escrita, mas cujo contrato, executado durante dezessete anos, foi fundamentado para denunciação de outra lide. Ou REsp 60.129, no caso de deformidade física pelo uso de remédio licenciado pelo Governo Federal, com base em informações de pesquisas fornecidas pela fabricante, que pretendeu exonerar-se da responsabilidade civil atribuindo-a à União [...]227.

Outra manifestação de exercício inadmissível de posição jurídica, referido anteriormente, é a supressio, a qual pressupõe a surpresa de uma posição jurídica, na qual o titular do direito a deixara aparentemente desamparada. Trata-se de uma vedação do titular de eventual direito em pleitea-lo, caso este não tenha exigido durante um lapso temporal considerável. Assim, surge uma posição de tutela em favor do outro contratante. É uma conduta prévia de inatividade, incluída em um caráter temporal. A supressio foi consagrada no art. 330 do Código Civil de 2002, o qual aduz que “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir do credor relativamente ao previsto no contrato”228. Cláudio Luiz Bueno de Godoy assevera que é importante não confundir a supressio com os fenômenos da caducidade, prescrição ou decadência, ao passo que estes punem a inércia tendo como pressuposto o transcurso de um lapso temporal não atingido. Isto é, a 225

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva. 2012. p.75. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva. 2012. p.75. 227 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva. 2012. p.76. 228 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva. 2012. p.77. 226

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supressio não possui um período pré-determinado, enquanto que a prescrição e a decadência possuem229. O tu quoque, por sua vez, veda que um indivíduo que viola uma norma jurídica, possa inferir-se da mesma norma, mormente que este possa recorrer, em sua defesa, a essa mesma regra que o próprio não cumpriu. Em suma, trata-se de uma regra ética que obsta uma determinada conduta que o praticante não queira ter contra si. A expressão, consoante aponta Fernando Noronha, relembrada por Godoy, está no grito de Júlio César quando este percebe que o seu filho adotivo Bruto atentava contra a sua vida, junto à população: Tu quoque, fili? ou Tu quoque, Brute, fili mi?. Em suma, o tu quoque aponta em um sentido de que “quem descumpre o dever contratual atenta contra a própria dependência genética, condicional e funcional dessa prestação em relação à outra a que ligada, alterando a harmonia da estrutura do contrato”230. O exercício inadmissível de posição jurídica também pode ser entendido como comportamentos que, muito embora se mostrem lícitos, não se adaptam aos padrões éticos impostos pelo princípio da boa-fé e, por tal motivo, devem ser limitados, evitando o abuso de direito231. À guisa de exemplo, podemos levantar o adimplemento substancial do contrato, que consiste no impedimento de resolução quando o pactuado já estiver próximo do seu fim, cabendo, assim, ao credor, o direito de cobrar o valor integral acordado, além de perdas e danos232. Destarte, a criação de um padrão de conduta em consonância com a boa-fé (caracterizando o agir conforme a boa-fé) rompeu a concepção dogmático-formalista do Código Beviláqua, o qual recorria à assertiva de que tudo que não era ilícito seria, portanto, lícito. Assim, enalteceu-se a designação ética do referido princípio, não deixando esta

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GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. 4.ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p.105. 230 GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. 4.ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p.103. 231 Neste sentido, Mônica Y. Bierwagen conceitua o abuso de direitos: “Em tempos em que se impera a relatividade dos direitos, nada mais exato que reconhecer a ilicitude à conduta que extravasa os limites do regular, do normal (art. 188, I, NCC). Se antes o abuso do direito só se reconhecia na conduta predeterminada para o fim de lesar (com dolo, portanto), tem-se, contemporaneamente, especialmente à luz dos princípios da boa-fé objetiva e da função social, que há excesso no exercício de direitos sempre que não se verifique uma correspondência entre causa e fim, seja este econômico ou social” (BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil. 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2007. p.83). 232 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil. 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2007. p.82.

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liberdade mais tão ampla, sendo esta apenas legítima, quando verificado o atendimento aos princípios da boa-fé e função social233. No plano contratual, a boa-fé objetiva passou a ser de extrema relevância na Contemporaneidade. Flávio Tartuce explicita que a boa-fé é uma repulsa ao ilícito e um acolhimento do que é lícito na relação entre as partes, eis que a sua violação caracteriza abuso de direito, passível de responsabilização civil, consoante art. 187 do Código Civil, considerando que esta transgressão independe de culpa (responsabilidade objetiva). Refere que, em consonância com o modelo italiano, a boa-fé objetiva é um estado de espírito que conduz as partes a agirem dentro das regras da ética e da razão234. Isto é, a aplicação da boa-fé objetiva nos contratos independe de previsão contratual, é implícito nos instrumentos jurídicos, eis que é um padrão de conduta que, em razão de previsão legislativa, deve ser observado pelos contraentes. Este auxilia na compreensão do que as partes realmente quiseram dispor no contrato e não o que ali está disposto, necessariamente. Caracteriza, portanto, uma vedação ao “pacta sunt servanda”, eis que nem tudo que está disposto no contrato enseja a vontade das partes – mas isto não pode ser confundido com o princípio da autonomia privada, o qual estipula a liberdade em contratar e a se sujeitar a cláusulas adversas e não a sua intenção quando da celebração do pacto jurídico. Ou seja, a autonomia é do indivíduo e não da vontade. Em suma, a boa-fé objetiva possui aplicação implícita entre os partícipes, o qual independe de previsão contratual expressa, gerando deveres às partes235. No que tange aos aludidos deveres de conduta, encontram-se a lealdade, probidade e cooperação, ao passo que as partes devem se comportar com a mais estrita lealdade, devem agir com probidade e devem informar o outro contratante sobre todo o conteúdo do negócio. O desrespeito destas cláusulas enseja a violação positiva do contrato, que é uma espécie de inadimplemento a imputar a responsabilidade civil objetiva àquele que viola os direitos anexos236. Entendem-se como deveres anexos, laterais ou secundários às partes, aqueles os quais são respeitados durante todo o curso da relação obrigacional. Em algumas hipóteses podem, 233

BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil. 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2007. p.83. 234 TARTUCE, Flávio. O Princípio da Boa-fé Objetiva em Matéria Contratual: Apontamentos em Relação ao Novo Código Civil e Visão do Projeto nº 6.960/02. Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2013. 235 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. 7 ed., São Paulo: Editora Método, 2012. p. 89. 236 TARTUCE, Flávio. A Função Social dos Contratos, a Boa-fé Objetiva e as Recentes Súmulas do Superior Tribunal de Justiça. Revista Científica da Escola Paulista de Direito, São Paulo, ano I, maio/agosto 2005.

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inclusive, serem exigidos após o adimplemento da obrigação principal. Caracterizam-se por atos de cooperação, assistência, proteção, bem como o dever de afastar os danos, dentre muitos outros. Trata-se de um dever de colaboração entre as partes, o qual deve ser respeitado durante todo o período no qual os contraentes irão manter uma relação obrigacional237. Como exemplos de deveres de conduta, com base nos ensinamentos de Judith MartinsCosta e Clóvis Couto Silva, reproduzidos por Flávio Tartuce, podemos citar: O dever de cuidado em relação à outra parte negocial, o dever de respeito, o dever de informar a outra parte quanto ao conteúdo do negócio, o dever de agir conforme a confiança depositada, o dever de lealdade e probidade, o dever de colaboração ou cooperação e o dever de agir conforme a razoabilidade, a equidade e a boa razão238.

Outro exemplo que auxilia na compreensão dos deveres de conduta se pauta em uma decisão bastante recente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, o qual reconheceu o dever de indenizar à autora pela falta do dever de informação em procedimento de medicina estética. Em síntese, a autora procurou o requerido para proceder com uma lipoaspiração, adimplindo um considerável valor para tanto. Na oportunidade, o réu informou à demandante que ela perfeitamente teria a sua pretensão satisfeita, qual seja, a de diminuir a camada lipídica na região do seu abdômen. Entretanto, o resultado não foi almejado e a autora permaneceu com, praticamente, a mesma aparência com a qual havia adentrado o consultório do demandado. Meses após, a demandante compareceu ao local de laboro do réu, o qual lhe informou que o resultado não havia sido alcançado em razão da necessidade de uma lipoescultura. Em vista disso, os desembargadores gaúchos decidiram no sentido de condenar o réu à indenizar a autora, tendo em vista que este não cumpriu com o seu dever anexo de informação, no que tange à possível necessidade de se fazer uma lipoescultura após a operação estética239.

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TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. 7 ed., São Paulo: Editora Método, 2012. p. 90. 238 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. 7 ed., São Paulo: Editora Método, 2012. p. 90. 239 Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. LIPOASPIRAÇÃO DE ABDÔMEN. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. FALTA DE INFORMAÇÃO À PACIENTE ACERCA DA INSUFICIÊNCIA DO PROCEDIMENTO PARA A CONSECUÇÃO DO RESULTADO PRETENDIDO. DANO MORAL IPSO FACTO. VALOR INDENIZATÓRIO. 1. Lipoaspiração de abdômen. Procedimento de natureza estética: obrigação de resultado. Inexistência de incorreção na técnica empregada. 2. Caso em que perícia indicou a necessidade de abdominoplastia apenas três meses após a lipoaspiração, frustrando legítima expectativa da autora de alcançar os efeitos desejados a partir da "lipoescultura" e impedindo que ponderasse sobre o interesse em submeter-se à única intervenção inicialmente anunciada pelos demandados. 3. Responsabilidade advinda da ausência de informação pelos réus de que o procedimento proposto seria insuficiente para alcançar o resultado almejado pela paciente. 4. Dever de informação descumprido. Ofensa positiva do contrato por descumprimento

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2.6 TUTELANDO VULNERABILIDADES: UM PALCO NO QUAL A BOA-FÉ NÃO PODE ATUAR E, finalmente, se atinge o propósito que este trabalho visa: demonstrar a superposição da boa-fé e a sua consequente banalização nas relações de consumo. Ainda que o Código de Defesa do Consumidor facilite a aludida superposição240, sabe-se que tal distorção se deu pela prática jurisprudencial, destarte, a análise de julgados se faz necessária. Se as decisões do judiciário seguirem um norte no qual a boa-fé objetiva é utilizada para reequilibrar uma relação contratual, estar-se-á diante de uma superposição do aludido princípio, em face da equivalência das prestações. Não se utiliza, por exemplo, a justificativa do dever de informar como parâmetro para a revisão de um contrato com condições desiguais, no que tange à relação econômica, técnica e jurídica241. Ainda que a boa-fé seja um princípio jurídico e assim deva ser utilizada por via de conexão com outros princípios do sistema jurídico, não pode esta perder o seu âmago na prática. O aludido princípio deve ser posto consoante determinam os seus preceitos, quais sejam, a criação de deveres e o respeito aos padrões de conduta que vedem o exercício inadmissível de posições jurídicas. Serão consideradas nulas, em algumas hipóteses, cláusulas que visivelmente transgridam os valores da boa-fé objetiva242.

do dever anexo (Nebenpflichten) de informação e ao princípio da boa-fé contratual objetiva. Lição jurisprudencial em precedentes desta Corte. 5. Dano moral ipso facto, evidenciado em vista da insuficiência dos resultados estéticos atingidos no procedimento de lipoescultura abdominal a que se submeteu a parte autora. Frustração de justa expectativa da consumidora. 6. Indenização ao prejuízo extrapatrimonial que não deve ser em valor ínfimo, nem tão elevado que torne desinteressante a própria inexistência da ofensa. Atenção às particularidades das circunstâncias fáticas. Montante compensatório fixado na sentença de 1º Grau - importância equivalente a 20 salários mínimos - que não se mostra excessiva. Manutenção do quantum. NEGARAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70048457501, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Alberto Schreiner Pestana, Julgado em 23/05/2013) 240 Tal facilitação se mostra presente pelo art. 4º do Código de Defesa do Consumidor: “A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção dos seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transferência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; II – [...]; III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”. 241 MARTINS-COSTA, Judith. Os campos normativos da Boa-fé Objetiva: As três perspectivas do Direito Privado Brasileiro. Revista Forense. São Paulo, v. 382, p. 119-143, nov./dez. 2005. 242 Para solidificar o entendimento e a aplicação da boa-fé nas relações de consumo, é imperioso referir o papel do intérprete nas relações de consumo, estas reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor. Tal possui uma função preponderante para o deslinde do processo, vez que tem a incumbência de verificar se os requisitos dispostos no diploma consumerista encontram-se nítidos no caso concreto. Também este deve identificar a figura do consumidor e do fornecedor dentro da relação de consumo, verificar o poderio econômico destes, o tipo de consumo e se o caso concreto se enquadra na concepção consumidor-fornecedor, observado a hipossuficiência

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Ocorre que o Código de Defesa do Consumidor243, em vista de seu caráter protetivo244, pode ter confundido uma grande parte dos intérpretes. Segundo Judith Martins-Costa, estes foram além da tríplice função mencionada anteriormente e agregaram à boa-fé objetiva nas relações de consumo, uma função corretora de desequilíbrio contratual, de forma que os valores oriundos do princípio em comento se distorcem e são erroneamente utilizados para a proteção do contratante débil. Conjugou-se, então, à boa-fé objetiva, além da função originária, a de equilíbrio entre o polo fornecedor e o polo consumidor. Desta forma, na prática a boa-fé surge como

ou vulnerabilidade de uma das partes (EFING, Antônio Carlos. Direito de Consumo e Direito do Consumidor: Reflexões Oportunas. Revista Luso-brasileira de Consumo, São Paulo, v. 1, n. 1, mar. 2011). 243 A proteção do consumidor na esfera das relações de consumo contida na Constituição garantiu os preceitos fundamentais para, após, efetivar o princípio com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor. O constituinte apontou a defesa do consumidor em vários dispositivos da Carta Magna, de modo que com a edição do código consumerista, estes preceitos se efetivaram. Entre as principais inovações do Código de Defesa do Consumidor foi o acesso à justiça por parte do consumidor. Exemplificando a vedação de eleição de foro que dificulte o ingresso do consumidor ao judiciário é um dos pontos que corroboram este entendimento. Ou seja, a jurisprudência anula esta cláusula. A proteção do direito do consumidor está inserida em duas vertentes: De direito material e de direito processual. A primeira, versando acerca da caracterização de hipossuficiência. Esta denominação se dá exclusivamente quando existe uma disparidade econômica entre as partes, de modo em que exista uma diferença esmagadora, mas não significa que todos os indivíduos que adquirirem produtos para revender ou utilizar em seu laboro serão descaracterizados como consumidores. Para coadunar esta assertiva, há o exemplo do taxista que adquire um veículo para trabalhar. Este irá comprar um veículo de uma empresa com um capital muito alto, mas mesmo assim, em virtude da larga discrepância econômica, este deverá ser indicado como consumidor. Ou seja, a denominação “consumidor” deve ser feita, consoante o caso concreto e as circunstâncias econômicas das partes. Assim, leciona Sálvio de Figueiredo Teixeira: [...] destinatário final nem sempre é suficiente para abranger todos os casos na cadeia das relações jurídico-econômicas. É o que se observa, por exemplo, na relação entre o taxista que adquire o automóvel para utilizá-lo em sua atividade lucrativa, como instrumento de trabalho, e o fabricante ou fornecedor. Em caso de defeito do produto, seria questionável a inclusão do comprador entre os consumidores, porquanto não propriamente destinatário final do veículo. De outro lado, existe a relação entre uma fábrica de automóveis e seus fornecedores de peças, ambos de porte econômico elevado. A diferença que se evidencia entre um caso e outro não se situa no destino final do produto, mas sim na disparidade econômica entre as partes na relação jurídica, ou, em outras palavras, a hipossuficiência ou a vulnerabilidade de um lado em relação ao outro. No que tange ao propósito de proteção do direito do consumidor na esfera processual, se enaltece como uma das amostras a possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do consumidor hipossuficiente e cujas alegações sejam aparentemente verossímeis. Isto é, em virtude da dificuldade que o consumidor terá – e até mesmo dispêndios financeiros – a legislação consumerista inova no sentido de incumbir ao fornecedor a produção de provas, pois este possui mais recursos para trazê-las aos autos. Em suma, o consumidor, por sua natureza, já é vulnerável em função de estar adquirindo um produto que está passível – sempre – de vícios ou defeitos, todavia, nem sempre será hipossuficiente, caso não comprovada uma disparidade econômica. De mais a mais, um dos objetivos preponderantes da proteção do direito do consumidor é fazer com que este tenha acesso à tutela jurisdicional, para isso, foram criados os órgãos fiscalizadores, os juizados especiais cíveis, etc. (TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A Proteção ao Consumidor no Sistema Jurídico Brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 39, n. 155, p. 7-28, jul./set. 2002). 244 Antônio Carlos Efing estabelece que as inovações trazidas com a legislação consumerista objetivaram dar acesso à justiça, por parte dos consumidores, eis que normalmente são vulneráveis e hipossuficientes. A posição de vulnerabilidade prescinde de comprovação, uma vez que é garantia constitucional. Em contrapartida, a hipossuficiência deste deve ser demonstrada. Por exemplo, o ônus da prova em favor do consumidor é uma espécie de tutela, contudo, esta deva ser demonstrada no processo, comprovando que o consumidor não tem recursos para criar provas para trazer aos autos (normalmente é deferida) (EFING, Antônio Carlos. Direito de Consumo e Direito do Consumidor: Reflexões Oportunas. Revista Luso-brasileira de Consumo, São Paulo, v. 1, n. 1, mar. 2011).

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“mandamento de otimização do equilíbrio contratual”, e, ainda, na esfera metodológica percebeu-se a superposição da boa-fé ao princípio da equivalência das prestações. Destarte, se conclui que a boa-fé objetiva se torna, nas relações consumeristas, um instrumento geral de tutela, não obstante a existência de outros princípios e institutos do Direito Civil que melhor se adaptariam a esta incumbência245. O caráter que a boa-fé objetiva assumiu no campo das relações de consumo246 parte de uma extensa conexão de pressupostos, presunções e princípios do referido Diploma Legal, que, em virtude da discrepância socioeconômica muitas vezes existente na relação consumidor-fornecedor247,

mesclou

o

referido

princípio

com

o

pressuposto

da

vulnerabilidade248, a interpretação pro consumidor e, assim, atribuiu-lhe a função de corretor do desequilíbrio contratual. Desta feita, se perde a função e descaracteriza o princípio o qual tem por função nada mais do que a criação de standards de comportamentos nas relações obrigacionais, pautado nos valores da probidade, lealdade e honestidade249.

245

MARTINS-COSTA, Judith, Os campos normativos da Boa-fé Objetiva: As três perspectivas do Direito Privado Brasileiro. Revista Forense. São Paulo, v. 382, p. 119-143, nov./dez. 2005 246 Para facilitarmos a compreensão, é necessária a diferenciação entre direito do consumo e direito do consumidor, definindo o primeiro como de ampla dimensão, abrangendo todos os potenciais consumidores que estão à mercê da organização econômica da sociedade, enquanto que o segundo é mais precisamente com relação a tutela do consumidor no que tange às normas diretamente aplicadas a estes – no qual iremos focar o objetivo da monografia e a discussão proposta por esta. Em suma, o direito do consumo é mais amplo, pois abrangeria não só o Código de Defesa do Consumidor como os demais diplomas legais que se aplicam ao caso concreto. Por outro lado, o direito do consumidor serve para regular os litígios originados das relações de consumo. Neste sentido, as demais legislações, que não sejam o Código de Defesa do Consumidor, podem ser efetivadas na relação de consumo entre fornecedor e consumidor, se, porventura, for necessário o suprimento de eventuais lacunas deixadas pelo referido diploma legal (EFING, Antônio Carlos. Direito de Consumo e Direito do Consumidor: Reflexões Oportunas. Revista Luso-brasileira de Consumo, São Paulo, v. 1, n. 1, mar. 2011). 247 Portanto, para restar caracterizada a relação de consumo, deve estar expressamente verificado que as partes da relação jurídica estejam em posição de fornecedor e consumidor. Ainda, uma das características da relação de consumo do sistema jurídico brasileiro é a sua dinamicidade, eis que tanto consumidor, como fornecedor podem figurar em posições invertidas em outra relação de consumo (EFING, Antônio Carlos. Direito de Consumo e Direito do Consumidor: Reflexões Oportunas. Revista Luso-brasileira de Consumo, São Paulo, v. 1, n. 1, mar. 2011). 248 Nas relações de consumo, o consumidor é presumido sempre vulnerável, sendo este um pressuposto fático e normativo, quando se tratam de relações regidas pelo Código de Defesa do Consumidor. Pablo Malheiros expõe os tipos de vulnerabilidade do consumidor, sendo elencados da seguinte forma: (i) vulnerabilidade técnica – quando este não detém conhecimento técnico capaz de mensurar a qualidade, os meios e o risco da relação consumerista; (ii) jurídica ou científica – quando o consumidor não possui conhecimento jurídico, contábil ou econômico do objeto; (iii) fática ou econômica – quando o fornecedor possui um monopólio ou quando verificada uma grande disparidade econômica; (iv) informacional – ausência de informações precisas do objeto; (v) ambiental – ausência de conhecimento do consumidor com relação aos possíveis danos ambientais que o objeto poderá fazer e; (vi) ambiental – no caso de consumidores idosos, Estatuto da Criança e do Adolescente, analfabetos, etc. (MALHEIROS, Pablo. Os Deveres Contratuais Gerais nas Relações Civis e de Consumo. Dissertação de Mestrado na Universidade Autonôma do Estado de São Paulo. 2008 ) 249 MARTINS-COSTA, Judith, Os campos normativos da Boa-fé Objetiva: As três perspectivas do Direito Privado Brasileiro. Revista Forense. São Paulo, v. 382, p. 119-143, nov./dez. 2005.

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De acordo com a doutrina de Judith Martins-Costa, ontologicamente a boa-fé objetiva não é um preceito protetivo, mas sim “de uma sujeição de ambas as partes, e em igual medida, aos padrões objetivos da lealdade e colaboração para os fins contratuais”250. Ou seja, o referido princípio perde, na jurisprudência, os seus padrões objetivos que visam a cooperação entre as partes contratantes dentro da relação obrigacional, em virtude da finalidade, por vezes, protetiva do Código de Defesa do Consumidor, mesmo que a boa-fé não seja a medida mais viável para corrigir um eventual desequilíbrio contratual, tampouco agir com uma função que proteja o contratante vulnerável. Esta distorção ocasionada nas decisões jurisprudenciais se deve ao fato da facilidade de descaracterização da função da boa-fé objetiva frente a uma relação entre consumidor e fornecedor. Não obstante o Código de Defesa do Consumidor tenha sido criado para evitar que o contratante vulnerável (consumidor) não sucumba ante as exigências exorbitantes de alguns fornecedores, a sua função de corretor de desequilíbrio contratual não se deve à boa-fé objetiva. Como entende Martins Costa251, a função do princípio em comento, é a intermediação da relação contratual pautada nos padrões objetivos de lealdade e colaboração para fins contratuais, bem como envolvendo todas as relações obrigacionais. A utilização da boa-fé objetiva necessita da análise do caso concreto, em razão da abrangência teórica desta. Ademais, este princípio deve ser interligado aos outros princípios do sistema jurídico, estabelecendo-se uma hierarquia de ponderação dentro de uma relação obrigacional. Em tese, a boa-fé objetiva deve surgir como standard de comportamento nas relações jurídicas e não para promover a desigualdade das partes, face, até mesmo, a condições econômico-sociais discrepantes. A distorção do sentido atribuído à boa-fé objetiva implica em uma “simplificação” do princípio, quando este se opera sobre um sujeito estatutário, caracterizado pela legislação e com um viés abstrato, sendo este pré-definido juridicamente. Não se abre um amplo espaço para “a consideração concreta e complexa das efetivas e reais relações de força social subjacentes à relação jurídica em causa”252. A boa-fé objetiva não pode ser confundida com o princípio da equivalência das prestações, tampouco com a equidade. Igualmente, não pode esta desempenhar uma função 250

TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, A. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil, Revista da EMERJ, v.6, n.23, out/2003. p. 139-151. 251 MARTINS-COSTA, Judith, Os campos normativos da Boa-fé Objetiva: As três perspectivas do Direito Privado Brasileiro. Revista Forense. São Paulo, v. 382, p. 119-143, nov./dez. 2005. p. 125. 252 MARTINS-COSTA, Judith, Os campos normativos da Boa-fé Objetiva: As três perspectivas do Direito Privado Brasileiro. Revista Forense. São Paulo, v. 382, p. 119-143, nov./dez. 2005. p. 127.

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corretora de desequilíbrio contratual, visto que tal incumbência é, em sua majoritária extensão, suportada pelo princípio da equivalência material das prestações253. Neste ínterim, também não pode desempenhar a função da equidade que por muito se assemelha ao justo que pressupõe um tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais. A equidade possui funções que a este são concernentes, quais sejam interpretativa quando o juiz, diante da dificuldade do caso concreto, busca o justo e o equitativo; corretiva, reequilibrando uma relação contratual, com apoio de outros meios, como os próprios princípios jurídicos; quantificadora fixando um quantum a título de ressarcimento; integrativa, na qual age de modo a integrar e; processual como conjunto alternativo de medidas e princípios que o magistrado utiliza, quando a lei o autoriza, como ocorre nos casos de arbitragem254. Enquanto a equidade utiliza a base do que é justo, a boa-fé utiliza a honestidade, lealdade e probidade para definir uma certa posição jurídica. Por exemplo, enquanto a equidade utiliza o padrão do justo para definir um quantum a título de ressarcimento, de modo que não venha a onerar demasiadamente uma das partes, desempenhando uma função corretora de desequilíbrio contratual, a boa fé se enaltece para medir a gravidade de uma infração, com o objetivo de verificar a amplitude da mensuração da indenização pleiteada. Ademais, “permite a legitimidade da oposição de exceções ao ato praticado em desconformidade ao standard de conduta configurado pelo princípio e, ainda, a oposição de medidas preventivas de ordem processual”255. De mais a mais, a boa-fé tão somente implica aos partícipes da relação jurídica obrigacional os deveres leais, pautados nas disposições do princípio, impondo a estes uma correção de suas condutas. E basta. É comum que a boa-fé seja confundida com equidade ou vulgarmente utilizada para atuar como base em múltiplos casos, uma vez que os seus traços originários não serão úteis para delimitar a problemática256. Destarte, a boa-fé não pode ir além da tríplice função referida, de modo que não é um instrumento que será utilizado para equilibrar uma relação obrigacional, mas sim para adotar 253

MARTINS-COSTA, Judith, Os campos normativos da Boa-fé Objetiva: As três perspectivas do Direito Privado Brasileiro. Revista Forense. São Paulo, v. 382, p. 119-143, nov./dez. 2005. p. 126. 254 NETO, Francisco dos Santos Amaral. A Equidade no Código Civil Brasileiro. Revista CEJ, Brasília, v. 8, n. 25, p. 16-23, abr./jun. 2004. 255 MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela Boa-fé. In: Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro, 2008, Rio de Janeiro. Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2006. p. 57-95. 256 MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um "Sistema em Construção": As Cláusulas Gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 35, n. 139, p. 5-22, jul./set.1998.

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padrões de conduta a fim de regular um pacto jurídico, sem que uma das partes seja manifestamente prejudicada pela outra257. O REsp 485.760258 nos auxilia na aludida compreensão. Em síntese, se trata de uma lide na qual a autora ingressou com uma ação de cobrança de seguro de vida e acidentes pessoais para que tivesse a sua pretensão satisfeita, qual seja, a diferença entre os valores recebidos, previstos na égide das “Condições Gerais do Contrato”, para com o montante gravado no “Certificado Individual”. Os valores correspondem à uma significativa discrepância, sendo óbvio que a pecúnia recebida pelo autor foi a menor. A relação de consumo caracterizada incutiu ao autor a pretensão de pleitear a contrariedade aos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, a partir do momento em que não teve acesso às “Condições Gerais do Contrato” antes da celebração do contrato. O valor constante no “Certificado Individual”, o qual o demandante teve acesso correspondia a um montante largamente superior. Aduziu, ainda, que nas relações de consumo os contratos firmados não obrigam as partes, caso não houver acesso e compreensão do consumidor às cláusulas gerais da contratação. O emérito Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira contemplou a tese postulada pelo recorrente, ressaltando a necessidade do dever de informar na fase in contrahendo. Ademais, ressaltou a necessidade das cláusulas contratuais sempre serem interpretadas em favor do contratante débil – o consumidor – conforme aduzido na legislação consumerista. Destarte, se verifica no julgado que o eminente Ministro procedeu com a revisão contratual, com base no princípio da boa-fé objetiva, mais precisamente utilizando-se da linha argumentativa da ausência do dever de informar na fase pré-contratual. O que corroborou o entendimento foi a inexistência de conhecimento do autor para com as cláusulas contidas nas 257

MARTINS-COSTA, Judith, Os campos normativos da Boa-fé Objetiva: As três perspectivas do Direito Privado Brasileiro. Revista Forense. São Paulo, v. 382, p. 119-143, nov./dez. 2005. p. 126. 258 DIREITO DO CONSUMIDOR. CONTRATO DE SEGURO. INVALIDEZ PERMANENTE. VALOR DA INDENIZAÇÃO. DIVERGÊNCIA ENTRE OS DOCUMENTOS ENTREGUES AO SEGURADO. PREVALÊNCIA DO ENTREGUE QUANDO DA CONTRATAÇÃO. CLÁUSULA LIMITATIVA DA COBERTURA. NÃO-INCIDÊNCIA. ARTS. 46 E 47 DA LEI N. 8.078/90. DOUTRINA. PRECEDENTE. RECURSO PROVIDO. I - Havendo divergência no valor indenizatório a ser pago entre os documentos emitidos pela seguradora, deve prevalecer aquele entregue ao consumidor quando da contratação ("certificado individual"), e não o enviado posteriormente, em que consta cláusula restritiva (condições gerais). II - Nas relações de consumo, o consumidor só se vincula às disposições contratuais em que, previamente, lhe é dada a oportunidade de prévio conhecimento, nos termos do artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor. III - As informações prestadas ao consumidor devem ser claras e precisas, de modo a possibilitar a liberdade de escolha na contratação de produtos e serviços. Ademais, na linha do art. 54, §4º da Lei n. 8.078/90, devem ser redigidas em destaque as cláusulas que importem em exclusão ou restrição de direitos. (REsp 485760/RJ, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 17/06/2003, DJ 01/03/2004, p. 186)

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“Condições Gerais do Contrato”, eis que este não havia recebido o documento na sua íntegra antes da celebração do pactuado. Ou seja, criou uma expectativa legítima de que o “Certificado Individual” correspondia a toda a extensão do pacto firmado com a seguradora. Desta forma, não incidiriam os valores constantes nas “Condições Gerais do Contrato”, eis que, para o autor, este documento sequer existia. Constata-se, entretanto, que tal argumentação do mérito da demanda não foi o melhor remédio para decidir. Já fora aludido no presente trabalho que a inobservância dos deveres de conduta pautados na boa-fé enseja o descumprimento contratual, gerando inadimplemento que acarreta na responsabilidade civil da parte infratora. Tal infração incute no dever de indenizar da parte infratora, tanto na esfera moral como patrimonial, sem prejuízo da resolução do contrato. Então, caso fosse a intenção do Ministro em decidir com base na linha argumentativa utilizada, o exame certo do caso seria a resolução do contrato de seguro, bem como a eventual indenização por danos patrimoniais e morais casualmente suportados. Pela resolução do contrato, teríamos a volta das partes ao status quo ante, com a restituição integral dos valores adimplidos mensalmente até a ocorrência do sinistro que ensejou na retirada do prêmio. Entretanto, com bem sabemos é imprescindível ao advogado a provocação do magistrado para que este decida com base em sua sustentação intelectual, o que não ocorreu no processo referido. Como não foi a causa de pedir, não havia como o Ministro julgar o caso com base nas disposições contidas neste parágrafo. O caso em si já acomete à uma ideia de revisão contratual a partir do momento em que duas partes firmam um contrato, sendo que uma parte é beneficiada com a presunção absoluta de vulnerabilidade. Enquanto que do outro lado, uma grande seguradora com um notório conhecimento de mercado, com apoio jurídico e com um abismo financeiro frente ao consumidor. Verifica-se, destarte, que o caso em tela já pressupõe os três requisitos necessários para a boa aplicação do princípio da equivalência das prestações, quais sejam: (i) a existência de uma desproporção manifesta entre os direitos e deveres das partes; (ii) desigualdade de poderes negociais, isto é, um poder negocial dominante e um vulnerável e; (iii) o reconhecimento da hipossuficiência da parte contratante, pelo Direito259. Esmiuçando os três pressupostos e sobrepondo estes ao caso concreto temos que: existe uma manifesta desproporção à medida em que o valor do prêmio não corresponde à

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LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva. 2012. p.72.

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contratação auferida pelo consumidor, gerando uma excessiva vantagem para a seguradora, ao passo que recebeu todas as parcelas correspondentes ao seguro e adimpliu um prêmio muito abaixo do esperado pelo consumidor; existe na contratação uma efetiva desigualdade negocial, eis que não existe autonomia do consumidor em alterar as cláusulas para que melhor se apropriassem às suas pretensões. A autonomia que este teria seria a de tão somente contratar ou não com a outra parte; por fim, existe a presunção absoluta de vulnerabilidade, de caráter normativo, que assegura a tutela do consumidor, com base nas disposições contidas no Código de Defesa do Consumidor. Paulo Lobo assevera a utilização do princípio da equivalência material das prestações em duas vertentes, subjetiva e objetiva: O primeiro leva em consideração a verificação do poderio contratual de cada uma das partes e a sua consequente vulnerabilidade legal. Dentre os legalmente vulneráveis estão o consumidor, o inquilino, o trabalhador, bem como o aderente do contrato por adesão às condições gerais de contratação. Tal presunção é manifestamente absoluta, eis que não se admite o afastamento quando interposta ao caso concreto. O liame objetivo, em seu turno, explicita o desequilíbrio real entre direitos e deveres contratuais dos partícipes da relação obrigacional, podendo tal estar disposto em contrato ou na hipótese de algum desequilíbrio econômico-financeiro ocasionado por circunstâncias supervenientes que venham a acarretar uma onerosidade excessiva a uma das partes260. Destarte, se conclui que a melhor argumentação para corroborar o decisum seria com base no princípio da equivalência das prestações e não com fulcro na boa-fé objetiva, eis que esta não se mostra o melhor remédio para reequilibrar uma contratação que se tornou manifestamente desproporcional. A boa-fé objetiva, igualmente, não pode ser justificativa, no caso que se verá, para a reparação de um dano, conforme se verifica no REsp 595.631261. O aludido REsp trata de ação de indenização por danos morais decorrentes de protesto de título já pago. Em síntese, o banco financiador não se deu conta de que o autor havia quitado o débito pendente e protestou título supostamente inadimplido. O autor, em mora por 260

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva. 2012. p.71. Recurso especial. Civil. Indenização. Aplicação do princípio da boa-fé contratual.Deveres anexos ao contrato. - O princípio da boa-fé se aplica às relações contratuais regidas pelo CDC, impondo, por conseguinte, a obediência aos deveres anexos ao contrato, que são decorrência lógica deste princípio. - O dever anexo de cooperação pressupõe ações recíprocas de lealdade dentro da relação contratual. - A violação a qualquer dos deveres anexos implica em inadimplemento contratual de quem lhe tenha dado causa. - A alteração dos valores arbitrados a título de reparação de danos extrapatrimoniais somente é possível, em sede de Recurso Especial, nos casos em que o quantum determinado revela-se irrisório ou exagerado. Recursos não providos. (REsp 595631/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/06/2004, DJ 02/08/2004, p. 391) 261

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mais de dez dias, não conseguiu adimplir o boleto que havia consigo. Destarte, efetuou depósito em nome da ré.

Ambas as partes recorreram da decisão de segundo grau e

interpuseram recurso especial, com base em divergência jurisprudencial quanto à culpa da ré (demandada) e no tocante ao valor da indenização (autor). A emérita Ministra Nancy Andrigui decidiu por não dar provimento a ambos os recursos. Na fundamentação no que tange à culpa da requerida, fundamentou que a boa-fé é um princípio que se tornou um dos pilares de toda e qualquer relação contratual. Enalteceu o dever de cooperação como azo para que as partes não impeçam o efetivo cumprimento das obrigações contratuais. Afirmou que “a assunção de que o princípio da boa-fé paira sobre as relações contratuais vigentes impõe a sua imperatividade, dando, consequentemente, em caso de inadimplemento, azo à reparação de danos decorrentes por configurar a inadimplência ilicitude originária do descumprimento dos deveres anexos”. Concluiu que por ter permitido a liberalidade de depósito em conta corrente, bem como por ter sido negligente e temerária, a ré não observou a sua obrigação contratual anexa de procurar aferir a quitação de todos os pagamentos realizados pela autora. Assim, surgiu a obrigação de reparar o dano. E, segundo a Ministra, tal obrigação surgiu da quebra do dever de cooperação, oriundo da boa-fé objetiva. Cumpre salientar que a obrigação de reparar um dano não pode, neste caso, ter gênese na boa-fé objetiva, porquanto esta busca imprimir às partes um padrão de conduta, conforme expomos ao longo desta obra. A ocorrência do dano pode ter origem na quebra de um dever de conduta, todavia, tal não é o remédio adequado para obrigar à parte infratora a ressarcir a outra, por eventuais danos materiais ou morais eventualmente suportados. Para justificar esta obrigação de reparar um dano, o ideal é se aprofundar nos preceitos oriundos da responsabilidade civil e do próprio instituto do dano moral. A interpretação contratual, por sua vez, deve sempre ser feita de acordo com a boa-fé objetiva. Nesta linha e com base na REsp citada, a autora agiu consoante a boa-fé ao efetuar o depósito na conta corrente da demandada, com o propósito de solver uma dívida vencida, eis que não tinha como quitá-la através do boleto bancário. Assim, se denota que a boa-fé objetiva deve ser sempre o “paradigma da interpretação do aplicador da lei nos contratos de consumo”262. Também, há de se salientar que o aludido caso não corresponde a quebra de um dever de cooperação, mas em uma simples negligência que se dotou a requerida, tendo em vista que 262

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. v. 1. 1435p .

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se absteve de verificar previamente ao protesto do título, um eventual depósito bancário em sua conta. Sendo assim, não procedeu com a cautela necessária para poder protestar um título que fosse líquido, certo e exigível. Não houve a criação de uma barreira que impediria o depósito bancário do valor em atraso, pois o autor efetivamente logrou êxito ao proceder com tal. Desta feita, não se verificou uma negativa da ré frente ao autor, o que não se encaixa dentro dos liames do dever de cooperação, segundo a boa-fé objetiva. Para corroborar este entendimento, é necessário entender que a cooperação pressupõe deveres de conduta dos contratantes, de acordo com a boa-fé objetiva. É o proceder com lealdade, pautado na colaboração entre os partícipes de uma relações obrigacional, a fim de que cada um possa alcançar as suas legítimas expectativas e, consequente, interesses em um determinado tipo contratual. Significa, ainda, não se abster ou vedar o acesso do consumidor à justiça, proporcionando a este o livre arbítrio de reclamação ou efetivação de seus direitos legítimos. Assim, “cooperar é, em resumo, não criar barreiras contratuais para que o ‘outro’ consiga alcançar os seus fins legítimos no contrato”263. A partir do instante em que a ré apontou o título a protesto, por conta de uma negligencia, evidenciada estará a culpa no ato que importou dano ao autor. Culpa, no sentido de a ré ter negligenciado o depósito da autora. Isto é, não ter verificado que o título já havia sido pago mediante depósito em conta corrente. Não houve, portanto, uma quebra da cooperação contratual, mas sim um simples ato culposo da ré que gerou um ônus ao demandante. E tal ônus deve ser reparado, contudo, a sua gênese estará contida na responsabilidade civil da demandada, que, equivocadamente, em uma atitude temerária e negligente, protestou um título já adimplido. Portanto, conforme fora exposto no presente item, a boa-fé objetiva, por vezes, é vulgarizada na prática jurisprudencial, porquanto os intérpretes da codificação a utilizam para justificar um reequilíbrio contratual e para justificar a reparação de um dano sofrido. Toda e qualquer relação contratual deve ter assento na boa-fé objetiva, até mesmo porque tal princípio possui uma aplicabilidade com grande abrangência que consegue acobertar diversas situações da sociedade do século XXI, a qual é cada vez mais acometida por situações hipercomplexas. Entretanto, a justificativa para reequilibrar uma relação contratual e reparar um dano pode ser melhor utilizada, pela jurisprudência, com base nos demais princípios e institutos da cultura jurídica brasileira.

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3 CONCLUSÃO À guisa de conclusão, é notória a distorção que é efetuada à boa-fé objetiva quando operada sobre um sujeito estatutário. Isto é, quando esta é inserida em uma relação obrigacional, na qual existam dois polos completamente incompatíveis no que tange a sua condição técnica, econômica e financeira, a boa-fé é equivocadamente utilizada como a justificativa para o reequilíbrio das prestações assumidas pelas partes. Para chegar a tal conclusão, se fez necessário um estudo de toda a extensão cronológica do Direito Civil. Relembra-se que a boa-fé objetiva é um princípio que possui um escopo relativamente novo, mais precisamente no que tange a cláusula geral do princípio. Apesar das críticas, a cláusula geral, querendo ou não, consagrou a utilização de princípios jurídicos sob o viés específico da análise do caso em concreto. É importante frisar que com esta “inovação”264, o intérprete passou a suportar uma responsabilidade extremamente complexa, a de construção jurídica. Neste sentido, é importante que os magistrados e juristas em geral, nos dias atuais, tenham inequívoco conhecimento jurídico e, principalmente, estejam estes conectados às realidades sociais, uma vez que hodiernamente vive-se em uma sociedade consumista, cada dia mais, tecnológica e, consequentemente, hipercomplexa. . Portanto, é de imperiosa repercussão a presente discussão, partindo-se do pressuposto que a sociedade hodierna cada vez mais pende para o lado consumista. Havendo consumidor, existe mercado e, assim, cada vez mais existirão relações díspares e eivadas de atrocidades contra os consumidores, exigindo-se, cada vez mais, uma maior segurança nas relações de consumo. Não obstante não se tratar do tema, é intimamente ligado ao objeto deste trabalho a discussão no entorno da sociedade de consumo na qual hoje se vive. Por conta disto é que se desenvolvem as acepções equivocadas da boa-fé como corretora de desequilíbrio contratual. Entretanto, não é esta a sua função e não pode esta ser sobreposta desta forma. A boa-fé não se restringe a tão somente impor aos partícipes standards de comportamento, ela possui toda a gama extensiva de utilização, consoante exposto no Capítulo II do presente trabalho. Em nenhum momento, em todas as pesquisas doutrinárias, se 264

Já salientamos no presente trabalho que, não obstante a cláusula geral ter sido inserida na codificação como uma inovação, entende-se que os princípios possuem normatividade e, sendo assim, possuem aplicação imediata em qualquer relação jurídica.

evidenciou à boa-fé um caráter de corretora de desequilíbrio contratual, o que enseja a pertinência deste tema. Corroborando o entendimento, a boa-fé objetiva visa dar aos partícipes uma intermediação da relação obrigacional com gênese nos padrões de honestidade, probidade e lealdade. Para tanto, imperioso se faz a análise esmiuçada do caso concreto, muito em virtude da ampla extensão aplicativa deste princípio. Neste ínterim, deve haver uma ponderação dentro da relação obrigacional, quando da utilização da boa-fé objetiva, a fim de que não exista uma “superposição” entre um e outro, como ocorre, por vezes, nas relações de consumo porquanto a boa-fé objetiva é sobreposta ao princípio da equivalência das prestações. Há de se ressaltar o fato de que se as decisões judiciais rumarem para um lugar no qual a boa-fé objetiva tenha por escopo a correção de desequilíbrio contratual, correr-se-á o risco de haver a mencionada “superposição” fazendo com que tanto o princípio aludido como a equivalência das prestações, de certa forma, percam a sua identidade. A função do segundo é o reequilíbrio de relações obrigacionais díspares com base nos preceitos já referidos no Capítulo II, quais sejam, a existência de uma discrepância econômica, técnica e jurídica. O primeiro, por sua vez, tem por escopo a vedação ao exercício inadmissível de posição jurídica, o que nada mais é do que a criação de deveres e condutas que vedem atitudes que são desconexas à boa-fé objetiva. Frisa-se também o fato de que o Código de Defesa do Consumidor, por possuir um caráter protetivo, pode ter dado ensejo a esta distorção, confundindo os intérpretes da codificação. Por ter esta característica marcante – quiçá revolucionária – a legislação consumerista embaraçou alguns intérpretes, porquanto estes agregaram à boa-fé objetiva o papel de corretora de desequilíbrio contratual, surgindo esta com um objetivo de proteção do contratante débil. Destarte, nas relações consumeristas, a boa-fé objetiva, por vezes, possui um caráter de instrumento geral de tutela do contratante vulnerável. Neste ínterim, o papel agregado nas relações de consumo se deve a extensa vinculação de pressupostos, presunções e princípios do Código de Defesa do Consumidor, os quais se entrelaçaram a boa-fé objetiva, em razão das discrepâncias jurídicas e eventuais desequilíbrios existentes nas relações de consumo. Deste aludido entrelaçamento, enaltecem-se a vinculação da boa-fé objetiva ao pressuposto da vulnerabilidade e da interpretação pro consumidor. Contudo, como visto no presente trabalho, historicamente a boa-fé objetiva não possui um viés protetivo, mas sim de sujeição dos partícipes de uma relação obrigacional aos padrões

de lealdade, probidade e honestidade com fins contratuais. Com isso, a boa-fé objetiva perde na jurisprudência, em diversas hipóteses, os padrões objetivos outrora referidos.

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