A Brecha em Maio de 68 na França

June 1, 2017 | Autor: Gabriela Macedo | Categoria: Claude Lefort, May 68
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS FLF0113 Introdução à Filosofia Profa. Dra. Silvana Ramos

COMO PODEMOS COMPREENDER A IDEIA SEGUNDO A QUAL MAIO DE 68 ABRIU UMA BRECHA NO TECIDO DA EXPERIÊNCIA

GABRIELA MACEDO PEREIRA DE SOUZA Nº USP: 9339891 (VESPERTINO) SÃO PAULO JULHO DE 2015

Maio de 1968 foi um acontecimento com um grande leque de interpretações. De possível revolução à pequena agitação sem objetivo, as leituras possíveis do evento são amplas. No primeiro momento, Maio demandou uma necessidade de converter o desconhecido em conhecido, causando um espanto filosófico por parte de todos aqueles que tentavam julgar e entender o evento. Claude Lefort disse que “não, nada anunciava um futuro próximo de barricadas nas ruas de Paris e dez milhões de grevistas.”1, a sociedade parecia estar em “ordem”, não havendo motivos aparentes para uma explosão como aquela. Dessa maneira foi necessário um momento de pausa para a leitura desses fatos empíricos com uma real reflexão sobre o ocorrido, já que o testemunhar minucioso apenas, não seria suficiente para compreender o que acabava de acontecer. A recusa pelos indivíduos de suas funções estabelecidas na individualidade e a “descompactização”2 da sociedade deram conveniência para a ocupação e disputa do espaço público, gerando novas formas de relação entre o meio e os indivíduos. Com isso, Maio de 1968 trouxe uma nova experiência na história, um evento feito de traços excepcionais e extraordinários, uma “nova desordem”3. A recusa da ordem por parte dos indivíduos presente em Maio, antes do evento, sempre acabava absorvida pela funcionalização que o capitalismo faz desses mecanismos. Porém, como em 68 essa funcionalização não foi o suficiente para barrar a dissidência, acarretou-se um impacto no tempo lógico, gerando uma nova fonte de desejo de saber, onde houve uma construção de novos conceitos que ultrapassaram o próprio Maio de 1968. Todos esses fatos nos levam a tratar do ponto mais importante que resultou dos eventos ocorridos na primavera francesa de 1968: a brecha que foi aberta no tecido da experiência, a criação de um “possível indeterminado”4. Para analisarmos esse ponto, duas interpretações sobre o evento serão abordadas, a de Claude Lefort e a de Gilles Lipovetsky. O movimento, que começa com os estudantes de Nanterre, ao contestar e colocar em cheque a autoridade de professores e reitores, abre uma brecha na Universidade 5. E esta brecha se abre também, simultaneamente, em outras pequenas instituições burocráticas, a partir do momento em que elas admitem as reivindicações da luta revolucionária. E na verdade, a brecha que se abre é a mesma, pois a sociedade está ordenada de forma que as 1

(Morin, Lefort, & Castoriadis, 2009). (tradução minha). Termo usado em sala de aula. 3 (Morin, Lefort, & Castoriadis, 2009). (tradução minha). 4 (Morin, Lefort, & Castoriadis, 2009). (tradução minha). 5 Segundo Lefort em (Morin, Lefort, & Castoriadis, 2009) 2

organizações, sendo amplas ou restritas com objetivos opostos ou parecidos, só podem produzir uma “estrutura análoga”6. Para Lipovetsky - um dos intelectuais da época que defendem que Maio foi um agitação sem causa - qualquer possível brecha aberta por Maio não deixou nenhum fruto a não ser uma “era do vazio”.7 Lipovetsky enxergou uma despolitização e “dessindicalização”8 da sociedade que atingiu, segundo ele, padrões jamais vistos onde a esperança revolucionária e contestação estudantil desapareceram. Lefort defende que com a suspensão da ordem que ocorreu durante Maio foi possível a “descompactização” da sociedade francesa - que antes se encontrava compactada em pequenas instituições de poder burocráticas que nunca dialogavam entre si, como a universidade, as fábricas, a polícia - criando espaços públicos de diálogo entre os cidadãos. Esses espaços públicos de diálogo, até então não existentes, possibilitaram que pessoas que antes não dialogavam ou não estavam sensíveis umas as causas das outras pudessem se encontrar. Pode-se tomar como exemplo para ilustrar isso uma cena do filme A Chinesa de Jean-Luc Godard, onde na cena “Diálogo 3 – Véronique” pergunta-se para a personagem como ela descobriu o marxismo-leninismo, e em sua resposta ela diz o seguinte: “e pelas manhãs eu via as crianças argelinas e os mecânicos da Simca. Pois então, eu passava reto por eles, mas íamos aos mesmos cafés, às mesmas estações de trem, na mesma hora, tínhamos a mesma chuva, e praticamente o mesmo trabalho. [...] E isso me levou a estudar o marxismo-leninismo.”9.

Na fala da personagem podemos ver indivíduos de diferentes setores da sociedade, como os estudantes e trabalhadores, que estavam submetidos às mesmas formas de coerção, ao mesmo governo, em uma mesma sociedade, porém não dialogavam entre si. Essa foi uma das mudanças que Maio trouxe a simpatia de uns pelas causas de outros. Este contexto desencadeou uma nova forma de ser e de existir na política e na sociedade para esses homens, o que muitos outros intelectuais argumentaram ser uma discussão de problemas individuais no meio público, como Lipovetsky ao afirmar que após a “agitação política e cultural da década de 1960”10 houve um desinteresse generalizado que imponentemente se expandiu no social, tendo como consequência o reflexo dos interesses para as preocupações puramente pessoais. Lefort considerava que cada debate ou contestação 6

(Morin, Lefort, & Castoriadis, 2009) (tradução minha). (Lipovetsky, 2005) 8 (Lipovetsky, 2005) 9 (Godard, 1967) 10 (Lipovetsky, 2005) 7

do que poderia ser considerado uma discussão pessoal se traduzia em discussões políticas também. Ocorreu uma sensibilização das causas. Por exemplo, ao tratar de relações amorosas está se tratando também de formas de poder e papeis estabelecidos pela sociedade dentro de um relacionamento, ou seja, a discussão de uma ideia política (estruturas de poder e o papel de gêneros na sociedade) no âmbito do privado, do individual. E é exatamente essa nova circulação de ideias e indivíduos, que Maio ocasionou, a ideia de brecha para Lefort. Em contraponto à defesa de Lefort de um novo indivíduo que se expressa no privado mas mantém o debate político, Lipovetsky defendia que o narcisismo havia se tornado um dos temas centrais da cultura pós 1968, inaugurando um novo estágio de individualismo onde o narcisismo designou o surgimento de um perfil inédito do indivíduo nas suas relações consigo mesmo. Defendendo um novo eu individualista, egocêntrico, preocupado apenas com questões pessoais relacionadas a si mesmo e o seu presente politicamente alienado. A brecha aberta possibilitou a revelação de transtornos antes velados pela sociedade democrática, fazendo com que os mesmos afluíssem para as ruas criando o que Lefort chama de “democracia selvagem”11. Isso se explica de maneira que dentro da democracia existem normas vigentes que devem ser contestadas, o simples fato delas estarem ali já é motivo para que os cidadãos exerçam seu julgamento para colocar em cheque a necessidade dessas normas. Lefort diz que dentro de uma democracia deve haver espaços para conjunturas como as de Maio, onde ocorre a contestação da ordem, e que mesmo depois de um momento de rompante como esse, a democracia pode sobreviver. Esses momentos de contestação e dissidência, chamados de “democracia selvagem”, são imprescindíveis para termos uma democracia que não seja substituída puramente pelas normas do capitalismo. Mesmo partindo da colocação que Maio de 68 abre uma brecha no entendimento em uma leitura vinte anos depois do acontecido12 - não se pode considerar que o evento foi uma revolução em si, porém para Lefort não foi de total insignificância os seus fatos. Não foi revolução pois a maioria da população se encontrava dividida, alguns queriam um governo diferente mas não pretendiam a mudança para outro sistema. As agitações ficaram restritas, em sua maioria, ao universo do “campus”, apesar de seus efeitos terem atingido uma boa parte da população. Lefort argumenta que os estudantes não teriam poder para fazer uma revolução

11 12

(Lefort, 1988) (tradução minha). (Lefort, 1988) (tradução minha).

e apenas uma pequena parte deles tinham em si o projeto de fazê-la. O apoio e simpatia recebido pelos estudantes, segundo Lefort, foi no máximo moderado, e os trabalhadores quando se mobilizaram - fizeram demandas limitadas que não ameaçavam o poder do Estado. Lefort diz que todos os pequenos incidente de Maio tomados ao todo é que revelam a real natureza do evento. Para Lipovetsky, vinte anos depois do ocorrido, Maio trouxe um esgotamento da contracultura que cria uma indiferença pelo tempo histórico e instala um narcisismo coletivo, sintoma social da crise generalizada das sociedades burguesas, incapazes de enfrentar o futuro de outro modo, a não ser com desespero. Não existe mais o sentimento de pertencer a uma geração com um contexto histórico e político anterior, fazendo com que todas as questões políticas e sociais acabem amortecidas e vulgarizadas. Onde grandes questões filosóficas, econômicas, politicas ou militares perdem o total interesse da população. Concluindo, tudo isso é para Lipovetsky o que cria e caracteriza uma sociedade narcisista. Lefort, em oposição à essa leitura de Gilles Lipovetsky, diz que ao tentar julgar sentimentos e ações extraordinárias por padrões de conduta ordinária, irá apenas encontrar em Maio de 1968 ações que podem ser consideradas de delírio ou como outros colocam, “psicodrama coletivo”13. As circunstâncias ordinárias têm um certo entorpecimento que impede o exercício de nosso julgamento, onde a autoridade tradicional e um tipo de obediência automática são naturalizados, silenciando qualquer tipo de dissidência. Já as “circunstâncias extraordinárias”14 - que foram as de Maio de 1968 - tornam necessário fazer julgamentos sobre o contexto em que elas estão, fazendo com que o indivíduo tenha que olhar novamente para as estruturas de poder presentes na sociedade, tanto no meio público como no meio privado. Criando espaços de diálogo onde se necessita falar sobre as possíveis “servidões voluntárias”15 abertamente. A brecha de Lefort traz uma perspectiva positiva do que Maio de 1968 trouxe para a sociedade, porém em sua análise pós Maio, Lefort identifica um traço paradoxal do evento ao analisar que de um lado temos uma paixão inflamada dentro de Maio que faz com que não importando de que lado as pessoas estejam, as noções entre real e imaginário e o possível e impossível se percam. E de outro lado temos um desencadeamento de um desejo de autoafirmação por parte dos cidadãos, para separar o verdadeiro do falso. E esse desejo não se 13

(Lefort, 1988) (tradução minha). (Lefort, 1988) (tradução minha). 15 (Boétie, 1997) (tradução minha). 14

manifesta somente entre aqueles que nunca antes duvidaram de suas prerrogativas, mas também, e mais importante, entre aqueles que estavam acostumados ao silêncio e a submissão. Maio de 68 pode ser considerado como o fim da utopia, do ponto de vista dialético. Onde a ideia de felicidade do indivíduo se torna um direito político e reivindicado, para que se pudesse ter a realização do homem quanto sua liberdade. Com as novas formas de ser e existir do “eu individual” na sociedade pós-moderna, novos espaços privados são criados, onde depois de Maio, a luta se dá para que o “eu individual” e livre possa fluir sem entraves. Maio de 68 pode não ter sido revolução, e não ser grandioso aos olhos de alguns intelectuais, mas a brecha, o possível indeterminado criado por aqueles rebeldes transformaram-nos nos indivíduos que temos a liberdade de ser hoje.

Referências Bibliográficas:

Boétie, È. d. (1997). Discours de la servitude volontaire. Paris: Mille et une nuits. Godard, J.-L. (Diretor). (1967). La chinoise [Filme Cinematográfico]. Lefort, C. (1988). 1968 Revisited: A French View. Not Revolution, but Creative Disorder. (J. Rothschild, Trad.) Dissent, 341-346. Lipovetsky, G. (2005). A era do vazio: ensaios sobre o individualismo comtemporâneo. (T. M. Deutsch, Trad.) Barueri: Manole. Marcuse, H. (1999). Herbert Marcuse fala aos estudantes. In: H. Marcuse, A grande recusa hoje (I. Loureiro, & R. d. Oliveira, Trads., pp. 57-70). Petrópolis: Editora Vozes. Morin, E., Lefort, C., & Castoriadis, C. (2009). Mayo del 68: la brecha - Veinte años después. (R. Figueira, Trad.) Buenos Aires: Nueva Visión.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.