A BUSCA HUMANA POR VALORES

June 30, 2017 | Autor: Jéssica Valente | Categoria: Resumo
Share Embed


Descrição do Produto

Ética e Cidadania

A Busca Humana por Valores Sociais Universais




Ricardo Quadros Gouvêa




Resumo

Neste texto busca-se demonstrar a crescente importância do tema "ética e
cidadania" e a urgente necessidade de debater as grandes questões éticas e
sócio-políticas de nosso tempo. Procura-se estabelecer algumas definições
fundamentais e realizar uma distinção metodológica entre ética e moral. Faz-
se um percurso histórico em que se procura relembrar alguns dos momentos
cruciais da história das idéias éticas e sócio-políticas do ocidente para
que possamos traçar considerações acerca da busca humana por valores
sociais universais no passado e hoje. Os principais temas éticos e sócio-
políticos contemporâneos são enumerados e explicados, ainda que
superficialmente, com a finalidade de promover o debate sobre os diversos
temas mencionados. O texto termina com uma orientação bibliográfica
informal que permite ao leitor visualizar os caminhos literários a
percorrer para o desenvolvimento de uma consciência ética arguta.

Palavras-chave: Ética e Cidadania, ética filosófica, pensamento sócio-
político, moral, valores sociais.



1. O Grande Tema: Algumas Observações Preliminares




a) A Importância deste Tema Hoje

Vivemos em um momento fascinante da aventura cósmica. A espécie
humana, de suas origens perdidas no passado enevoado pelos mitos e
especulações científico-filosóficas e religiosas, após séculos de
conquistas intelectuais e tecnológicas, iluminada pela riqueza cultural e
espiritual de suas tradições, encontra-se hoje no inconfundível
florescimento de uma nova era. Esta nova era que se inicia é marcada, acima
de tudo, pelo aceleramento progressivo no século XX de duas grandes cadeias
de acontecimentos na história das idéias. A primeira delas foi a revolução
comunicacional-cibernética, que tem transformado o planeta numa pequena
aldeia e nos oferece a possibilidade de melhora incalculável da capacidade
intelectual por meio de aparelhos que promovem a união das mentes humanas
às inteligências artificiais. A segunda, a liberação das energias atômicas
e o início das explorações espaciais, que tornam a humanidade pela primeira
vez na história tecnologicamente capacitada de executar sua própria
extinção e, ao mesmo tempo, mostram-nos a nossa pequenez diante de
insondáveis e, aparentemente, infinitos desafios deste futuro incerto.

Todos aqueles que entendem a intensidade e a importância destas
transformações também compreendem, cheios de ansiedade, que é necessário
que pensemos acerca de todas as implicações éticas, políticas, sócio-
culturais, filosóficas e religiosas que tais transformações acarretam. Eis
por que é tão importante que surjam cursos universitários, estudos e textos
que discutam estas questões humanísticas. Em suma, a pergunta que hoje
temos que nos fazer é a seguinte: como vamos viver neste mundo novo que se
nos descortina, como levaremos adiante nossas vidas particulares em nosso
cotidiano e como nos relacionaremos uns com os outros, isto é, como
manteremos ou reconstruiremos a nossa existência em sociedade.

Coloquemos o problema de uma outra forma. Os fantásticos
desenvolvimentos científicos e tecnológicos do último século produziram
dois grandes efeitos simultâneos na humanidade: primeiro, eles tornaram a
humanidade, pela primeira vez, consciente de si mesma enquanto espécie
singular, em todos os sentidos profundos deste adjetivo. Hoje reconhecemos,
por várias razões, que as diferenças étnicas e culturais que nos
diferenciam são tolices quando comparadas às fascinantes semelhanças e
equivalências biológicas e culturais que nos unem como uma grande família
humana. Hoje temos também plena consciência da fragilidade de nossa casa
comum, o planeta Terra, nossa única casa até o momento, casa esta que pode
ser facilmente destruída tanto pelo acaso de uma colisão cósmica (uma vez
que navegamos neste imenso mar que chamamos de espaço sideral no qual
também navegam muitos outros astros formando um universo de velocidades e
energias difíceis sequer de imaginar) quanto pela fatalidade de assistirmos
o desgaste progressivo de nosso meio-ambiente por meio do uso desordenado
de todas estas novas tecnologias.

Nossos pais nos deixaram de herança um mundo muito complexo às vezes
chamado de "sociedade tecnológica". É um mundo de incontestáveis vantagens
no que se refere à nossa qualidade de vida e também de inestimável valor
cultural. Ele, no entanto, possui seu lado escuro. A sociedade tecnológica
pode ser autodestrutiva. Mas isso é só a superfície do problema, a ponta do
iceberg. A sociedade tecnológica e filha da ciência moderna e da aplicação
sistemática do método científico indutivo. Isto, por um lado, comprova a o
sucesso inquestionável da ciência moderna, que nos deu este admirável mundo
novo. Por outro lado, aponta para um fato até agora reconhecido por poucos,
mas, cada vez mais evidente: a ciência não possui respostas para os
problemas éticos e sociais que cria. Pior que isso, a ciência é, por sua
própria natureza, intrinsicamente incapaz de satisfazer esta necessidade e,
conseqüentemente, ao tentar fazê-lo deixa de ser mera ciência. É preciso,
portanto, buscar o auxílio de outro tipo de pensadores: filósofos, poetas,
teólogos, artistas, antropólogos, psicanalistas, gente envolvida em estudos
humanísticos e sócio-culturais, políticos, juristas, economistas, sábios e
adivinhos. Toda ajuda é bem-vinda neste empenho multidisciplinar pela busca
de valores sociais universais, uma busca hoje que, longe de ser supérflua,
é indispensável para o futuro da espécie humana e para o nosso bem-estar.
Resolveu-se dar o nome "ética e cidadania" à disciplina acadêmica que ora
representa este empenho e que serve de interface entre os envolvidos e o
corpo discente universitário.




b) A Onipresença das Questões Éticas

Alguém poderia indagar: por que "ética"? Bem, por muitas razões. Desde
a antiga Grécia, o nome "ética" sempre foi utilizado por aqueles que se
dispunham a investigar as questões referentes ao comportamento humano e à
vida em sociedade. Mais adiante examinaremos alguns conceitos éticos
fundamentais. É bom esclarecer desde já, no entanto, que existe uma
diferença entre ética e etiqueta (a palavra deriva de ética, e significa
"pequena ética" ou "ética menor"). Existe muita gente hoje, escritores,
religiosos e até professores universitários, que usam a palavras ética mas,
na verdade, demonstram ter preocupações que se encaixariam melhor sob o
rótulo de "etiqueta" (coisas como o que vestir em determinado lugar, ou
qual linguagem deve ser usada em tais e tais ocasiões). O mesmo pode ser
dito de muitos panfletos e opúsculos que têm surgido com o pretencioso nome
de "código de ética". Os códigos de ética são necessários e alguns até são
bem escritos, mas trata-se aqui, na melhor das hipóteses, meramente do uso
de uma palavra homônima que não possui o mesmo significado da disciplina
conhecida como "ética", clássica e milenar. E é para esta última que
queremos aqui chamar a atenção do leitor.

As questões éticas e sócio-políticas (isto é, de cidadania) envolvem
direitos e deveres, justiça e injustiça, lei e punição, proibição e
liberdade, responsabilidade e marginalidade, conduta pessoal e
relacionamentos humanos. Elas não podem ser desprezadas por ninguém, uma
vez que se fazem presentes no nosso cotidiano e podemos até mesmo dizer que
são onipresentes. Não há um só momento de nossas vidas que não esteja
impregnado de problemáticas que mereceriam esta rotulação. Vivemos todos,
instante após instante, mergulhados num mar de escolhas éticas e sócio-
políticas que somos obrigados a fazer por força das circunstâncias, e nós
as fazemos consciente ou inconscientemente. O objetivo maior da disciplina
"ética e cidadania" é o de auxiliar os alunos a se tornarem cidadãos
conscientes.

Viver não é fácil. Viver inteligentemente é ainda mais difícil. O
mundo em que vivemos é por demais complexo. Se pudermos e quisermos, no
entanto, abandonar uma elementar luta pela sobrevivência (que para muitas
pessoas socialmente desfavorecidas já é complicadíssimo, mas certamente não
para o leitor deste livro) e passar a lutar por tornar-se um indivíduo que
não vive todo o tempo somente para si, ensimesmadamente, mas que assume sua
condição de ser humano e sua responsabilidade enquanto cidadão, e engaja-se
na luta por uma sociedade mais bem organizada e feliz, então é preciso
reconhecer a seriedade desta vocação, é preciso compreender a complexidade
da vida sócio-cultural do início do século XXI, é preciso, acima de tudo,
abandonar a preguiça e reconhecer as múltiplas implicações éticas de cada
mínimo ato e palavra proveniente de nós, lembrando que ignorar este fato
também é uma escolha pessoal com profundas implicações éticas e sócio-
políticas. Em outras palavras, quer queiramos ou não, em cada atitude
tomada e em cada discurso proferido, cada um de nós ajuda a definir o
futuro de nosso ambiente sócio-cultural, de nossa cidade, de nosso país e
de toda a humanidade. E por que não acrescentar: o futuro da insondável
aventura cósmica iniciada antes que existissem seres humanos, antes que
existisse a Terra, na eternidade insondável do passado. Eis a nossa
responsabilidade. O futuro está em nossas mãos, com a graça de Deus.




c) A Formação de um Cidadão

Há quem pense que basta nascer para ser um cidadão. Esta é uma meia-
verdade. Por um lado, tornou-se uma verdade universalmente aceita que todas
as pessoas possuem certos direitos naturais inalienáveis. Por outro lado,
podemos perguntar se estes direitos "inalienáveis" não dependem, para que
sejam de fato inalienáveis, de que sejam reconhecidos pela autoridade
vigente como tais em relação ao indivíduo em questão. Em outras palavras, é
possível que exista um indivíduo que vive em uma sociedade na qual não
possui todos os direitos de um cidadão típico. Numa sociedade escravagista,
por exemplo, um escravo é um indivíduo que vive naquela sociedade sem
possuir direitos básicos de cidadania. Nos tempos do Império Romano, para
dar outro exemplo, havia moradores livres do império que não possuíam, no
entanto, direitos fundamentais de cidadania. Esta reflexão nos remete a uma
série de perguntas. Por exemplo, podemos nos perguntar se há, em nossa
sociedade, pessoas cujos direitos de cidadania não são de fato
reconhecidos, ou, o que dá no mesmo, são reconhecidos "de direito", mas não
"de fato".

Outra pergunta importante a que esta reflexão nos remete tem a haver,
não com os direitos, mas sim com os deveres dos cidadãos. Em suma, é
questionável se o indivíduo que, tendo reconhecidos seus plenos direitos de
cidadão, não assume em contrapartida seus deveres de cidadão é, de fato, um
cidadão no mais pleno sentido da palavra. No mínimo, seria necessário
reconhecer sua incapacidade de tornar-se consciente de sua plena cidadania
e das responsabilidades inerentes a ela.

A plena consciência da cidadania como parte da formação educacional de
cada indivíduo é absolutamente necessária para a construção de um país
democrático e bem-sucedido. Mais que isto, é uma necessidade para que a
haja um futuro feliz para toda a humanidade. Cabe, portanto, aos pensadores
e educadores que se empenhem para que a plena consciência da cidadania
torne-se uma realidade para todos, tanto no que se refere aos direitos
quanto no que se refere aos deveres.

Se há, portanto, um valor social universal que pode ser estabelecido a
priori, dependendo apenas de um único compromisso ideológico, a saber, o
compromisso com a democracia, é precisamente a cidadania, incluindo
conseqüentemente a plena consciência da cidadania por todos e o esforço
educacional que permite aos indivíduos alcançarem esta consciência. Sem
isto, a democracia estará comprometida, e toda sociedade sem democracia
torna-se refém de déspotas e tiranos ou de aristocratas e oligarcas.

Eis a fundamental importância deste tema. Não é casual a escolha dos
termos "ética" e "cidadania" para esta reflexão, este empenho, esta
disciplina. Sem liberdade não pode haver êxito ou felicidade individual ou
social, e sem estes dois pré-requisitos básicos, consciência ética e
consciência plena de cidadania, não há liberdade nem futuro para a
sociedade humana, seja a nível nacional ou global. Em outras palavras, a
busca humana por valores sociais universais começa mesmo aqui, com o
reconhecimento destes dois requisitos, consciência ética e plena
consciência de cidadania, como valores sociais universais basilares.




2. Ética e Moral: Algumas Definições Conceituais



Como muitos outros, sugiro que aceitemos a distinção hoje já bastante
difundida entre "ética" e "moral". A distinção é muito benéfica para a
reflexão teórica sobre questões éticas. Enquanto o termo "moral" deve ser
usado em referência aos costumes e opiniões sobre conduta individual e
relacionamentos interpessoais aceitos por um determinado grupo social,
étnico ou religioso, seja ele grande ou pequeno, o termo "ética" deve ser
usado em referência à reflexão humana sobre o tema, teórica, racional e
sistemática, uma reflexão que, sem desrespeitar, ignora por princípio e por
definição todas as relatividades inerentes à moral. A grande e principal
vantagem desta distinção está no fato de tornar a moral de qualquer grupo
social um assunto privado, que deve ser tratado cientificamente pela
antropologia e pelas outras ciências humanas a partir de uma metodologia
descritiva. A partir de um ponto-de-vista filosófico, a moral de um povo ou
de um grupo social interessa apenas do ponto de vista linguístico-
analítico, ou seja, a investigação filosófica serve, neste contexto, para
esclarecer o sentido dos termos empregados nos discursos morais, para torná-
los claros e, conseqüentemente, permitir ao leitor uma compreensão plena do
sentido do discurso, seja na sua estrutura semiótica de superfície, seja
nas estruturas persuasórias crípticas mais profundas. A ética, por outro
lado, não é descritiva (o que cabe primordialmente às ciências humanas) nem
meramente linguístico-analítica, mas sim prescritiva, e é prescritiva em
termos universais (sendo que toda proposta de impossibilidade de
universalização de valores éticos inserir-se-ia igualmente dentro deste
mesmo contexto teórico-acadêmico). A moral social ou religiosa também pode
ser, e em geral é, prescritiva, mas é evidente que sua prescritividade
somente será reconhecida pelos indivíduos inseridos neste mesmo grupo
social. Como já disse um grande pensador do passado, moral é uma questão de
geografia. Vale completar esta noção salientando que ela é também uma
questão de história, uma vez que a moral de um povo ou de qualquer grupo
social pode variar muito através dos tempos.

Pode-se, portanto, fazer uma distinção subseqüente entre consciência
moral e consciência ética. A primeira implica em conhecer os preceitos
morais e a proposta de conduta aceita pelo(s) grupo(s) social(ais) ao(s)
qual(ais) se pertence. Se eu obedeço a estes preceitos e sigo a estes
padrões, vivo de acordo com a moralidade vigente. Se eu desobedeço aos
preceitos e não sigo os padrões de conduta, vivo na imoralidade. Se os
preceitos e padrões do grupo social a que pertenço tornam-se irrelevantes
para mim, então posso ser chamado de "amoral". Se confundo a moral de minha
cultura ou de meu grupo social com a ética, torno-me um moralista. O
moralismo é a absolutização e universalização da minha própria moral.

Consciência ética, no entanto, refere-se a outra espécie de
conscientização. Ser uma pessoa eticamente consciente (ou meramente ética)
significa importar-se com a possibilidade da existência de e com a
tentativa de encontrar valores e também de tentar viver segundo princípios
e padrões de conduta inteiramente calcados na razão, lembrando que estes
valores, princípios e padrões terão que ser, por definição, universais.

Alguém sempre poderá, evidentemente, e com toda justiça, perguntar se
é mesmo possível encontrarmos estes tais valores, princípios e padrões de
conduta universais e totalmente racionais. E ainda que tenha sido esta a
intenção de alguns dos mais brilhantes pensadores que já passaram pelo
planeta, de Platão e Aristóteles a Charles Taylor, Edgar Morin e Emanuel
Levinas, outros pensadores possivelmente tão brilhantes quanto esses têm
abertamente questionado que existam, ou que ao menos possam ser encontrados
racionalmente, os tais valores sociais universais. De qualquer forma, a
existência e o acesso a estes valores, bem como os esforços humanos no
sentido de encontrá-los, são temas legítimos daquilo que pode ser chamado,
sem nenhum constrangimento de ética. Conseqüentemente, a compreensão destas
dificuldades e o engajamento sincero nesta polêmica faz parte daquilo que
poderíamos chamar legitimamente de consciência ética.

Existem numerosos conceitos éticos que precisam ser muito bem
definidos e compreendidos antes que se possa iniciar qualquer discussão
séria sobre o tema, conceitos como dever, virtude, lei, princípio,
sociedade, política, responsabilidade, etc. Seria, no entanto, impossível
discorrer responsavelmente sobre cada um deles aqui, e seria contra meus
princípios. É importante, no entanto, que o leitor esteja consciente de seu
dever de buscar esclarecimentos sobre estes temas, e o leitor virtuoso
certamente fa-lo-á, recebendo para isto o auxílio de outros com quem viva
em sociedade como, por exemplo, seus professores, como lhe é de direito,
até mesmo legal, dependendo da política adotada pela escola em que estuda.




3. Retrospectiva




a) Antiguidade

Quando os grupos humanos, ainda em tempos pré-históricos, foram se
tornando sedentários devido à grande revolução tecnológica e sócio-cultural
caudada pelo domínio de técnicas agro-pecuárias há cerca de nove mil anos,
surgiram as primeiras grandes concentrações populacionais à beira dos
grandes rios. Ante a necessidade de organizar a vida e as relacões
interpessoais nestes grandes aglomerados populacionais, os muitos grupos
étnicos acabaram por desenvolver diferenciados e complexos sistemas legais
e consuetudinários. Eles eram a princípio de natureza oral mas, à medida em
que as culturas neolíticas evoluíam e desenvolviam formas rudimentares de
registro escrito, há cerca de quarro mil anos, gradualmente foram se
cristalizando na forma de códigos escritos como o famoso Código de
Hamurábi, da Babilônia, produzido há pouco mais de três mil anos, um dos
mais antigos dentre os recuperados pelas pesquisas arqueológicas. Surgiram,
ao mesmo tempo e misturados indissoluvelmente a estes esforços pragmáticos,
uma grande quantidade de tabus e superstições oriundas de noções
religiosas, míticas, mágicas e metafísicas. Somavam-se a isto tradições
culturais surgidas ao acaso e irracionalmente e que eram incorporadas à
moralidade vigente por meio de lendas etiológicas, sustentadas pela arte e
pelo folclore. Estes desenvolvimentos culturais, ainda que representem
avanço, não podem ser vistos como explicitamente éticos, no sentido estrito
do termo. Esta moralidade primitiva surgia pragmaticamente como fruto da
necessidade de organização social, por fim impostos sobre a população na
forma de leis por parte de um soberano ou uma aristocracia, e como fruto de
crendices e especulações religiosas. Não havia, portanto, nenhum esforço
concreto no sentido de pensar abstrata e racionalmente o comportamento dos
indivíduos e as relações sócio-políticas.

Nas civilizações de cultura mais exuberante surgiram, entre 3.000 e
2.500 anos atrás, escritos de sabedoria proto-filosóficos (notadamente na
China, no Egito e em Israel, mas também em outras civilizações) que se
propunham a dar instruções morais que iam de regras de etiqueta e protocolo
(por exemplo, como portar-se à mesa, como comportar-se ante pessoa de
autoridade, como preparar-se para a morte, como realizar um funeral, etc.),
típicas particularmente dos escritos egípcios, até noções ético-metafísicas
sofisticadas, típicas da China, como a idéia de harmonia com as forças da
natureza no Tao Te Ching de Lao-Tsé, ou o complicado sistema proto-ético de
Confúcio (Kung Fu Tsé) com suas noções de solidariedade amorosa (Jen) e de
piedade filial e culto aos ancestrais. Em Israel, é notável o surgimento
das escolas proféticas que se caracterizavam, entre outras coisas, pela
reivindicação dos direitos dos menos favorecidos e pela denúncia das
injustiças praticadas pelos ricos e poderosos. Todos estes escritos eram
indissoluvelmente ligados a (quando não inteiramente fundamentados em)
convicções e práticas cultuais e religiosas.

A ética, portanto, no sentido mais estrito do termo, é filha da
cultura dos antigos helenos, e não surgiu plenamente senão durante o grande
iluminismo ateniense que teve lugar a partir do século V antes da era
cristã, há cerca de 2.500 anos atrás. Armados de uma língua e de uma
cultura privilegiadas e da liberdade advinda da falta de uma monarquia
absolutista e de uma religião estatal, os gregos puderam desenvolver sem
impedimentos aquilo que hoje chamamos de filosofia clássica, envolvendo
tanto investigações científicas e naturais quanto abstração teórica
racional acerca de questões claramente metafísicas e também explicitamente
éticas e políticas. Os pensadores gregos não chegaram à ética de imediato.
A preocupação primordial dos primeiros grandes sábios helenos era a
explicação dos fenômenos naturais, a descoberta da natureza última das
coisas, e os livros que se voltavam às coisas humanas, à cultura, eram
poucos e tinham as mesmas características dos textos já mencionados
existentes em outras culturas. Pitágoras, por exemplo, parece ter
apresentado uma proposta de conduta, mas esta era ainda calcada em noções
religiosas e mágicas. Heródoto e Tulcídides, pais ocidentais dos estudos
históricos, estavam mais preocupados em descrever as diferenças culturais e
os acontecimentos que em buscar conclusões lógicas a partir de especulações
racionais sustentadas pelas evidências empíricas. Isto só passaria a
ocorrer com o apogeu da cultura de Atenas, com Sócrates, Platão e
Aristóteles.

Com Sócrates e os sofistas a filosofia grega virou-se para o ser
humano, entendido agora como "medida de todas as coisas" (Protágoras). O
fundamental não era mais conhecer o mundo, mas antes "conhecer-se a si
mesmo" (Sócrates). Os conceitos passaram a ser analisados cuidadosamente
por Sócrates e seus discípulos: a justiça, a piedade, a coragem, a amizade,
a virtude, o amor, o conhecimento, a alma, a beleza, nenhuma idéia
importante poderia continuar sendo usada de forma irresponsável, como se o
seu significado fosse óbvio. Sócrates mostrava de forma inequívoca aos seus
ouvintes que uma das mais comuns falácias dos discursos humanos é o uso
confuso de termos que não são definidos com a clareza necessária que
permita uma real troca de idéias, um real diálogo entre pessoas.

Se fôssemos, no entanto, definir o "pai" da ética, eu penso que
teríamos que escolher Platão. Cerca de 350 anos antes do início da era
cristã, Platão construiu um complexo sistema filosófico que é extremamente
popular e influente até os nossos dias. Como sugeriu em tom jocoso Alfred
North Whitehead, toda a história da filosofia são notas de rodapé para os
diálogos de Platão. E como disse A. Jolivet, no ocidente somos todos
discípulos de Platão. Não se trata de exagero. Mesmo o cristianismo, o
islamismo e o judaísmo moderno são calcados no platonismo e não existiriam
na forma atual sem ele. A ética ocupa um lugar de imenso destaque, senão
primaz, na filosofia platônica, uma vez que ela estabelece a idéia de bem
como a principal e maior dentre todas as idéias. A tradição platônica
identificaria a idéia de bem ou sumo bem com Deus.

Platão desenvolveu uma teoria racional sobre a constituição da alma
humana que julgava ser eterna, estabelecendo a supremacia e autonomia da
razão sobre as emoções e os impulsos ou a vontade. No diálogo República ele
aplica sua teoria sobre a alma às relações sócio-políticas, desenvolvendo
uma sofisticada utopia em que a sociedade é dividida em castas fixas e
rígidas, não há propriedade privada, as mulheres são propriedade comum de
todos os homens, as crianças são retiradas dos pais para serem mais ou
menos educadas pelo estado de acordo com a casta a que pertencem e os
artistas, quando não considerados párias (como é o caso dos poetas),
trabalham sob severa vigilância dos filósofos governadores, a classe alta
da república platônica. Platão foi o primeiro a discutir racionalmente qual
seria a melhor forma de governo, e rejeitou a democracia tanto quanto a
tirania e a oligarquia como formas despóticas em que não existe justiça.
Mesmo que rejeitemos a tradição ética e sócio-política platônica e até
vejamos Platão como um inimigo da liberdade e da democracia contemporânea,
Platão tornou evidente a centralidade da ética na filosofia e a necessidade
de pensar racionalmente as questões éticas e sócio-políticas bem como a
dificuldade de fazê-lo.

Seria, no entanto, a ética de Aristóteles, o maior dentre os
discípulos de Platão, que tornar-se-ia a base de toda a reflexão ética
ocidental. No clássico Ética a Nicômaco, ele sugere ser a virtude,
entendida como perfeição da condição humana, a base de toda reflexão ética
racional. Viver eticamente é buscar a atualização de todas as potências do
ser humano. O desenvolvimento intelectual, o estudo, o conhecimento de si e
do mundo é o que Aristóteles considera primordial. Nada é melhor ou mais
importante que isso, inclusive do ponto-de-vista ético. Eis por que a ética
e a felicidade são para aqueles poucos homens (nunca mulheres) que não
precisam trabalhar duro, que possuem escravos e podem dedicar seu tempo ao
estudo e à reflexão filosófica. O comportamento eticamente adequado e feliz
é fruto, portanto, do aperfeiçoamento intelectual do indivíduo, e as
principais virtudes advindas deste desenvolvimento são a justiça (que
inclui honestidade e retidão nos julgamentos), a prudência (que inclui a
paciência, a mansidão, a cautela), a coragem (que inclui a ousadia, a
disposição ou prontidão, a perseverança e a resistência) e a moderação (a
virtude está no equilíbrio). Esta última acaba sendo a virtude suprema, uma
vez que as próprias virtudes são, segundo Aristóteles, pontos de
equidistância intermediários entre os "vícios", isto é, sentimentos,
estados-de-espírito ou atitudes que se opoem às virtudes.




b) Era Cristã

A tradição ética judaico-cristã contemporânea é fruto de um longo
processo de confluência das culturas greco-romana ou helenista e judaica.
Quase tudo que se entende como ética cristã é, na verdade, fruto da
absorção por parte da moral cristã de noções advindas da filosofia
helenista. Dentre as contribuições originais desta nobre tradição para o
desenvolvimento da reflexão ética ocidental salientamos aqui quatro noções
fundamentais: uma delas é a noção de criação; outra é a noção de mandamento
divino; a terceira é a noção de pecado e a última é a idéa de amor
sacrificial (agape).

Criação não é um conceito científico, mas sim um conceito teológico.
Ele é importante porque, ao contrário da tradição platônica (e aqui
percebemos quão platônico tornou-se o cristianismo) que menospreza o mundo
material, a noção de criação faz-nos crer que o mundo material é bom,
criado por Deus cheio de potencialidades maravilhosas. Esta idéia de um
mundo criado essencialmente bom foi crucial no desenvolvimento de uma ética
menos ascética, buscando uma pura espiritualidade e distanciamento do
mundo, e sim mais "mundana", preocupada com as questões cotidianas,
políticas, econômicas e com as melhorias da condição de vida dos seres
humanos na Terra. Este caminho, por incrível que possa parecer para alguns
desavisados, é o legítimo caminho de uma moral cristã, em contraste com o
desinteresse pelas coisas do mundo e o ascetismo que representam um desvio
da tradição judaico-cristã.

O mandamento é o princípio ético universal compreendido ou assimilado
na forma de um comando divino. Uma vez assim compreendido, o princípio
torna-se inquestionável, divinamente sancionado, sendo que caberia ao
pensamento humano apenas a interpretação e a aplicação prática dos
mandamentos. Além disso, a novidade na tradição judaico-cristã é entender
os mandamentos como universalmente válidos, independentemente das
convicções religiosas dos indivíduos, o que estabelece uma diferença
crucial entre normas meramente religiosas presentes em toda e qualquer
religião e os mandamentos da tradição judaico-cristã que estabelecem
valores sociais universais. Kant percebeu a grandeza desta concepção ao
afirmar que todo princípio ético entendido racionalmente (isto é,
independentemente de religiosidade, magia, superstição ou especulação
metafísica) como universalmente válido pode, logicamente, e deve,
pragmaticamente, ser entendido como um comando divino.

A noção de pecado é uma contribuição muito importante também, pois
alerta para um mal radical que habita o coração, a mente ou o espírito
humano, um mal radical do qual o ser humano não pode se livrar e com o qual
tem que aprender a conviver. Segundo o pensamento cristão, o ser humano
pode livrar-se da culpa do pecado por meio da fé e da união espiritual com
Jesus Cristo, mas isto, que é um ato da graça divina, não significa livrar-
se do pecado nem da pecaminosidade que mantém-se presente por toda a vida e
que leva o indivíduo a ser cauteloso com seus hábitos e ações. Os mestres
cristão medievais criam que todos os pecados se originam a partir de sete
tendências pecaminosas básicas chamadas de "pecados mortais" ou "pecados
capitais", ainda que não se tratem de atos pecaminosos, mas sim de
tendências espirituais que levam ao pecado. Os sete pecados mortais são o
orgulho, a preguiça, a inveja, a ira, a luxúria, a avareza e a gula. Aqui
não é o lugar apropriado para aprofundar o assunto, mas há estudos muitos
interessantesa sobre esta rica tradição da teologia moral cristã.

O Novo Testamento fala em três virtudes supremas: a fé, a esperança e
o amor, mas salienta que a maior das três é o amor. Há quem diga que o amor
não é uma idéia judaico-cristã. Não é o Banquete de Platão um diálogo sobre
o amor? Deve-se, no entanto, ter em mente que o amor discutido em Platão e
outros autores clássicos é Eros, o amor que se define pelo desejo do
sujeito em relação a um objeto. Eros pode ser um sentimento nobre se o
objeto do desejo for nobre: uma pessoa que se ama, o conhecimento que o
sábio almeja, a união com Deus a que o místico aspira. O amor cristão, no
entanto, é Agape, um amor sobre-humano, que só nos é possível pela
inspiração ou graça divinas, em que somos recipientes ou canais do amor de
Deus. Além disso, Agape não é um sentimento natural como Eros, mas um
sentimento, atitude ou virtude que só surge por meio do constrangimento de
sentir-se amado desta mesma forma. Diferentemente de Eros que sempre faz
buscar algo em benefício do que ama, por mais nobre que seja este desejo e
esta busca, Agape não é um desejo nem uma busca e sim um sacrifício, um
doar-se sem esperar nada em troca.

Para que o amor (agape) não se torne uma noção por demais etérea em
nossas mentes, ajuda lembrar sempre que o mandamento cristão do amor fala
em amor a Deus e amor ao próximo, isto é, a um indivíduo concreto que está
ao meu lado, e não a humanidade como um todo abstrato. Além disso, o amor
não é um sentimento indefinido, mas uma atitude concreta que implica em
simpatia ou empatia para com o sofrimento do próximo, em misericórdia ou
clemência e perdão para com as falhas do próximo e, por fim, em
solidariedade e sacrifício em favor do próximo.

Foi por meio da força do conceito de amor (Agape) que a fé cristã
sobrepujou suas concorrentes no mundo romano a ponto de tornar-se religião
oficial do Império, momento em que se inicia também o longo processo de sua
decadência por meio da formalização ritualista e institucionalização
eclesial. As reformas religiosas do século XVI visavam trazer a fé cristã à
sua essência neo-testamentária. Infelizmente, as denominações evangélicas
que foram se proliferando a partir da reforma protestante, notadamente no
século XX, são vítimas dos mesmos males que levaram a antiga Igreja
Católica à sua decadência. Os grandes pilares da fé são esquecidos e
substituídos por propostas de conduta legalistas que visam, acima de tudo,
o controle social dos crentes e a opressão e o abuso psíquico e econômico
dos mesmos. O dogmatismo substitui a reflexão e impede os questionamentos,
permitindo o controle das idéias.

Felizmente há igrejas e denominações que têm como propósito manterem-
se fiéis a esta busca pela essência da fé cristã calcada nos textos
fundantes e autoritativos do Novo Testamento e à necessidade de manter um
espírito de reforma, de auto-crítica, uma atitude que permita a
reconsideração das doutrinas e das práticas eclesiais á luz dos novos
estudos do texto bíblico e da história da tradição judaico-cristã, bem como
também à luz das transformações sócio-culturais do mundo em que vivemos de
forma que a mensagem essencial do evangelho da graça e do amor de Deus
possa permanecer viva e possa ser comunicada de forma inteligível. Somente
esta compreensão pode tornar a tradição judaico-cristã relevante ainda hoje
na reflexão sobre as questões éticas e sócio-políticas e na reforma e
aperfeiçoamento da cultura e da sociedade.




c) Modernidade

As reformas religiosas, assim como o renascimento das artes e da
cultura, foram um resultado do movimento humanista que representou, na
história das idéias, a transição entre a mentalidade tipicamente medieval e
o surgimento do pensamento moderno. O humanismo buscava, acima de tudo, um
retorno às raízes culturais da Europa e, consequentemente, às fontes
literárias da cultura ocidental. Este retorno às fontes permitia uma nova
apreensão das idéias helenistas e judaico-cristãs que não passariam pela
interpretação das mesmas pela escolástica medieval e pela Igreja Católica.
O resultado disto foi uma redescoberta da verdadeira natureza da fé cristã
expressa no texto bíblico, finalmente disponível para estudo nas línguas
originais, e também uma redescoberta da filosofia clássica, incluindo a
reflexão ética e sócio-política dos sábios da antiguidade.

Não tardou para que surgissem na modernidade pensadores originais que
representavam um genuíno renascimento da filosofia como entendida pelos
gregos, o cultivo da abstração teórica puramente racional e sem
compromissos ideológicos externos à mera razão livre, autônoma e suprema.
Não cabem aqui juízos de valor, isto é, se isto foi bom ou ruim, se é ou
não o melhor caminho para a humanidade e o avanço da reflexão ética e sócio-
política. A modernidade teve que conviver com seus muitos críticos, céticos
do progresso intelectual que a modernidade representou, questionando seus
fundamentos teóricos. Os autores pós-modernos estão aí para apontar os
numerosos enganos e descaminhos da reflexão e prática modernas.

Surge também, na modernidade, o método científico indutivo, com
Galileu, Francis Bacon e René Descartes. Este último desenvolve um sistema
amplo de filosofia que serviria de padrão para a nova filosofia moderna. As
primeiras questões a serem discutidas pelos filósofos modernos foram mais
relacionadas à epistemologia e à metafísica que à ética e à política, ainda
que grandes nomes tenham surgido, particularmente na Inglaterra, que
estavam particularmente interessados em questões sócio-políticas. O
progresso e popularização das idéias modernas criou um ambiente intelectual
e um movimento cultural que foi designado "Iluminismo" ou "Esclarecimento".
Cada vez mais os ideais éticos da antiga Grécia ganhavam terreno sobre as
idéias conservadores defendidas pela maioria dos nobres e religiosos ainda
sustentadas pela cosmovisão medieval. Ideais democráticos, republicanos e,
por fim, socialistas tornavam-se cada vez mais comuns e populares. Idéias
como o direito divino de realeza, unção papal ou episcopal para cargos
públicos, a idéia de lei divina ou natural, noções fatalistas acerca da
distribuição de renda e de propriedades privadas e de divisões de classe,
entre outras, foram perdendo espaço para noções a-religiosas ou seculares e
supostamente oriundas da reflexão puramente racional. Exemplos disso são as
reflexões de Thomas Hobbes e John Locke sobre o estado, as teorias de Jean-
Jacques Rousseau sobre educação e relações sócio-políticas respectivamente
no Emílio e no Contrato Social, as críticas mordazes e ironias de Voltaire,
Diderot, Holbach e outros autores iluministas franceses e os ideais da
revolução francesa simbolizados no lema "liberdade, igualdade,
fraternidade". Aos poucos não somente a reflexão sócio-política mas também
a ética desligou-se das considerações religiosas. No apogeu deste
despertamento intelectual surgiram os dois mais brilhante pensadores da
modernidade, os alemães Immanuel Kant e G.W.F. Hegel. Com eles, a reflexão
ética desenvolveu-se de uma forma que só pode ser comparada ao avanço que
resultou do aparecimento de Platão e Aristóteles no apogeu do iluminismo
ateniense.

A multifacetada, porém, ordenadamente sistemática filosofia de Kant
apresenta uma proposta ético-política inteiramente racional que envolve,
entre outras singularidades, o chamado "imperativo categórico" segundo o
qual cada ato deve ser avaliado pela sua potencial universalidade. Quão
mais elevado for o potencial para a aplicação da ação articular como um
princípio universal de conduta, maior será seu valor ético. Em outras
palavras, a genialidade de Kant foi inverter a questão fundamental da
ética: não se tratava mais, como entre os gregos, de encontrar os
princípios, virtudes e valores racionais e universais, mas antes de
encontrar ou não a universalidade dos princípios, virtudes e valores. Isto
era apenas mais uma faceta da revolução copernicana que o pensamento
kantiano representou na história intelectual do ocidente, uma revolução
que, ao lançar a epistemologia moderna de uma linha objetivista para uma
direção subjetivista, sob a inspiração de David Hume, colocou os
fundamentos racionalistas da filosofia moderna sob suspeita e deu início ao
processo inevitável que resultou por fim no colapso da modernidade.

Antes que o pensamento kantiano levasse a modernidade para seu
colapso, acabou por dar subsídios para o novo irracionalismo romântico e
para o idealismo, movimento que representa os esforços desesperados de um
racionalismo terminal de encontrar bases sólidas para a construção de um
sistema filosófico coerente e inteiramente racional. Hegel, o maior dentre
os idealistas, construiu o mais sofisticado sistema filosófico da história
ocidental desde Platão, um sistema que é, aliás, inteiramente dependente da
tradição platônica e representa possivelmente a versão final e definitiva
dessa tradição. É claro que o hegelianismo, ainda que na verdade um
neoplatonismo metafísico e místico, disfarça-se de lógica e ciência
rigorosa e quer fazer-nos crer que é, enquanto sistema, de fato a conclusão
inevitável da trajetória intelectual do ocidente.

A ética de Hegel é muito complexa para ser resumida aqui de uma forma
respeitável. O fundamental é compreender que Hegel sugere que a há uma
síntese que sucede logicamente a tensão existente entre a moralidade
relativa de uma etnia, tradição, religião ou grupo social, entendida como
tese, e a ética racional da tradição filosófica, entendida como antítese. A
síntese acontece quando uma cultura superior assume a ética racional da
tradição filosófica como sua moralidade e simultaneamente transforma sua
moralidade particular em uma ética racional com valores sociais universais.
Para Hegel, este era o destino inevitável da cultura germânica.

A impossibilidade de atualização do delírio hegeliano serviu para
acordar a nata da intelectualidade européia para o colapso da tradição
filosófica. Ludwig Feuerbach, Karl Marx, Søren Kierkegaard, Friedrich
Nietzsche, John Stuart Mill, William James, Henri Bergson, Charles Darwin e
Sigmund Freud, entre outros, e cada um a seu próprio modo, iriam agora dar
as cartas da reflexão teórica. Para uns, uma nova onda irracionalista, um
neo-romantismo. Para outros, profetas maiores e menores da chegada da pós-
modernidade. Com eles, as questões éticas se transformaram
caleidoscopicamente em questões fundamentalmente antropológicas e
humanísticas, concluindo o processo de subjetificação da filosofia iniciado
por Kant.

Feuerbach, identificando a fundamentação místico-teológica da
filosofia de Hegel e dos outros idealistas (Fichte, Schelling, etc.),
sugeriu que a filosofia teria que ser inteiramente reconstruída sobre novas
bases puramente antropológicas. A ética desta nova filosofia surgiria de
uma base empírica, através da análise dos processos históricos de
transformação cultural. Marx, seguindo seus passos, utiliza-se da dialética
hegeliana para construir uma filosofia materialista inteiramente
fundamentada na história. O resultado foi uma filosofia de ação
revolucionária: chega de pensar sobre o mundo; chegou a hora de transformá-
lo. A ética marxista fundamenta-se na busca da justiça entendida como
comunhão universal dos bens materiais: de cada um segundo sua
possibilidade, a cada um segundo sua necessidade. A utopia marxista sonha
com um mundo sem classes sociais e eventualmente uma anarquia, isto é, a
abolição de qualquer forma de governo. Antes que cheguemos a isto, todavia,
é necessário que todos os trabalhadores se unam e se engagem no processo
revolucionário que promoveria a ditadura do proletariado, com o fim da
propriedade privada e o fim da múltipla alienação causada pela estrutura
sócio-econômica construída pelo poder do capital e pelas super-estruturas
culturais que a sustentam enquanto aparelhos ideológicos do estado.

Dentre as muitas contribuições da filosofia de Kierkegaard, cabe aqui
destacar sua insistência no primado do indivíduo que, enquanto indivíduo,
havia desaparecido tanto em Hegel quanto em Marx, indiferenciado para
sempre seja na concepção abstrata de um Espírito Absoluto, seja na
construção concreta de uma massa uniformizada e manipulável, uma
monstruosidade que não é de forma alguma exclusiva do marxismo mas que,
muito pelo contrário, tem sido almejada nas sociedades de consumo do mundo
capitalista. Kierkegaard procurou demonstrar que toda ética racional é, por
natureza, universalizante e, portanto, ignora e por fim anula a figura do
indivíduo. Como nada pode ser mais anti-ético que a anulação de uma pessoa
na sua individualidade única, a ética filosófica é uma contradição em
termos. O que nos resta é somente a moralidade, que é sempre relativa
geográfica, histórica e culturalmente. Nietzsche, por sua vez, esmerou-se
em defender a tese que toda moralidade é, por definição, um moralismo, isto
é, um reducionismo na melhor das hipóteses, e na pior, uma fraqueza e uma
forma de abuso e opressão do mais forte sobre o mais fraco.

Enquanto isso, o mundo anglo-saxônico via nascer o pragmatismo, filho
do utilitarismo de Stuart Mill e Jeremy Bentham, pelas mãos de William
James, dentre outros. Completamente coerente com as noções sócio-econômicas
liberais capitalistas e com a tradição positivista, o pragmatismo resolvia
o problema da crise da tradição filosófica racionalista e da crise da
modernidade por meio de uma radicalização desta mesma modernidade e deste
mesmo racionalismo. Agora a ética passava a ser uma técnica de controle
social e desenvolvimento econômico. Os chamados valores sociais universais
seriam equalizados aos interesses econômicos dos plutocratas que dirigem
direta ou indiretamente as grandes nações capitalistas. Idéias abstratas
como paz, liberdade ou democracia seriam a partir de então vendidas como
slogans (mas impostas muitas vezes por meio da guerra, da retirada de
liberdades civis e do financiamento de ditaduras ao redor do globo), mas na
verdade escondendo os interesses capitalistas de aculturação e globalização
para abertura de novos mercados e controle econômico da sociedade
planetária.

O desenvolvimento dos estudos humanísticos na Europa (sociologia,
antropologia, psicologia, etc.) auxiliaram muito a reflexão ética no século
XX. Dentre os muitos estudos sobre o assunto, vale destacar a obra do
pensador francês Henri Bergson, As Duas Fontes da Religião e da Moralidade.
Assumindo a relatividade e as raízes histórico-culturais das idéias éticas
e religiosas, Bergson defende que estas podem ser benéficas ou maléficas
para o bem-estar social e para o florescimento de uma cultura. Em suma, uma
moralidade e uma religiosidade dinâmicas, vivas e abertas, são desejáveis e
benéficas para o ser humano, educando, libertando e capacitando-o mais e
mais. Enquanto isso, uma moralidade e uma religiosidade estáticas,
cristalizadas e fechadas tendem a ser opressivas e abusivas, embotando a
inteligência e a vida cultural bem como o desenvolvimento de uma
civilização.

As questões éticas complicaram-se ainda mais com o aparecimento da
teoria da evolução e a tradição intelectual que originou-se com ela. Agora
o ser humano não podia mais ser entendido como inteiramente distinto das
outras espécies animais. Tornou-se muito difícil, particularmente com o
surgimento dos estudos semióticos de comunicação não-verbal e a biologia
social, distinguir entre comportamentos instintivos e naturais de
convenções sociais antes entendidas até mesmo como comportamentos nobres e
moralmente recomendáveis. Mais complicações surgiram com o aparecimento e
franco desenvolvimento das idéias psicanalíticas. Agora o ser humano não
podia mais das garantias de suas reais intenções em tudo que faz, uma vez
que suas verdadeiras razões podem ter permanecido ocultas em seu
inconsciente. Isto é, por mais nobres e belos que sejam os atos e as
palavras de uma pessoa, seus reais motivos para agir ou falar assim podem
não ser nada nobres e até bastante perversos.

A principal resposta filosófica a esta crise multiforme foi a chamada
filosofia da existência ou existencialismo que, calcada na fenomenologia de
Edmund Husserl, propõe um retorno às questões elementares da vida
cotidiana, à experiência humana subjetiva e aos relacionamentos
interpessoais para a busca de uma nova ética. Esta ética existencialista,
ciente do fim da metafísica clássica, não possui as pretensões da ética
clássica de encontrar valores absolutos e universais. Toda situação humana
é única e, consequentemente, cada dilema ético tem que ser analisado em sua
particularidade e em sua relação com a complexidade da realidade em que se
insere. A maioria dos pensadores desta tradição não possui o otimismo
necessário para ansiar por melhorias das condições sócio-políticas ou achar
que o ser humano pode ser capaz de controlar sua maldade inerente, seus
instintos destrutivos, coisa rara na tradição filosófica, mas ponto em
comum entre a tradição cristã, a filosofia de Kant e a filosofia da
existência.

Uma contribuição importante da reflexão ética do século XX foi a
crescente preocupação com as relações interpessoais e o respeito pela
alteridade. Foi o filósofo judeu Martin Buber, dentre outros, quem deu
grande popularidade ao respeito pelo outro enquanto sujeito e condenou
veementemente a objetificação ou instrumentalização do semelhante. A
consequência deste movimento intelectual foi a busca de um crescente
respeito pelas diferenças dos outros. Já disse um sábio que quem ama o
próximo somente quando ele é parecido consigo, não ama o próximo mas
somente a si mesmo. A reflexão ética pós-moderna, encabeçada pelo argelino
Jacques Derrida e o lituano Emanuel Levinas, ambos professores na França,
levou esta idéia às últimas consequências, fundamentando a ética na
tolerância e na recepção do diferente, o que resulta em pluralidade
intelectual e cultural bem como em variedade de costumes e práticas
sociais. Esta importante mudança paradigmática que implica em uma nova
cosmovisão, foi gerada paulatinamente por todo o século XX e gerou
movimentos de contestação e de busca de direitos humanos como o feminismo,
o movimento dos direitos civis dos afro-americanos nos Estados Unidos, o
movimento hippie, o movimento gay, as lutas pelos direitos de minorias
étnicas e religiosas, etc. O ímpeto provocado por esta nova postura ética
pós-moderna levou a sociedade planetária a um verdadeiro despertamento
ético. Hoje já não se admitem muitas coisas que sempre foram toleradas como
a desigualdade entre os sexos, o descaso para com deficientes físicos, o
abuso de menores, a ridicularização de minorias, o racismo, o genocídio, as
guerras de expansão territorial, a destruição do meio-ambiente, o
desrespeito aos direitos humanos e aos direitos do cidadão. Nunca se viveu
em um ambiente tão consciente dos deveres éticos que nos constrangem ao
respeito a todo semelhante e até mesmo a toda forma de vida e ao planeta. A
multiplicação dos cursos de ética e cidadania são também uma evidência
deste despertamento e deste tremendo interesse contemporâneo nas questões
éticas.




4. Problemas Éticos Contemporâneos e as Questões da Cidadania Hoje




Assumindo a priori as distinções entre ética e moralidade e entre
questões éticas ou morais e questões de etiqueta ou de protocolo, evitando
confusões muito comuns, não é difícil enumerar alguns dos principais
problemas éticos e sócio-políticos contemporâneos para podermos analisar os
principais aspectos do debate que cada uma destas dificuldades teóricas e
práticas gera.

Qualquer leitor atento de revistas e jornais sabe quais são os
principais problemas sociais de nosso país. Eles são desemprego,
alimentação, saúde, habitação, educação e violência urbana. O difícil não é
reconhecê-los, mas resolvê-los. Tão difícil que, entra ano sai ano,
políticos e seus partidos prometem resolver os problemas sem jamais fazê-
lo. Os eleitores brasileiros estão cansados de ouvir as eternas promessas
de campanha que nunca são cumpridas.

O problema do desemprego é, na verdade, a questão do trabalho, ou
melhor, da importância e do direito ao trabalho. O velho bordão diz: o
trabalho dignifica o ser humano. Na verdade, apenas o trabalho digno
dignifica. Uma sociedade feliz é uma em que há trabalho digno para todos os
adultos, não uma em que 20% da população adulta está desempregada ou uma em
que a maioria da população é obrigada a trabalhar em condições desumanas,
insalubres e insuportáveis. Não seria o trabalho digno um direito de
cidadão? Quais seriam as leis trabalhstas necessárias para que todos os
trabalhadores pudessem desfrutar de uma boa condição de trabalho associada
a uma boa qualidade de vida que implicaria em descanso e lazer em
proporções condizentes com a quantidade de trabalho? Quais são os direitos
de protesto e greve dos trabalhadores? Quais são as causas justas pelas
quais um empregador pode demitir ou deixar de contratar um trabalhador?
Estas são apenas algumas das questões éticas importantes relacionadas ao
problema do trabalho.

Mais evidente ainda que o direito ao trabalho e ao descanso é o
direito de todos os seres humanos à alimentação. A fome em larga escala ou
generalizada é uma vergonha em um mundo, ou mesmo em um país como o nosso,
em que há plenas condições de evitá-la. Qualquer sacrifício seria
justificável no esforço pelo fim deste absurdo. O que impede, então, que o
governo e a sociedade se mobilizem para acabar com este mal? Muitas são as
teorias sobre o assunto. Alguns pensadores têm sugerido que há pessoas
(empresários, fazendeiros, políticos) que ganham dinheirocom a ajuda da
fome, e criaram o slogan "a indústria da fome". Outros têm dito que o
problema não pode ser resolvido a não ser por meio da educação e da criação
de empregos, o que faria da tragédia da fome em larga escala uma
consequência indireta de outros graves problemas sociais do país. Muitas
perguntas relacionadas a este problema permanecem sem resposta.

Outra questão bastante complexa refere-se ao direito ao tratamento
médico. Tem o cidadão direito a ser atendido em hospitais gratuitamente, ou
melhor, com o atendimento e o tratamento subsidiado pelo governo, isto é,
com o dinheiro dos impostos pagos pelos cidadãos? Mesmo a classe média
sofre hoje o problema dos preços altos e as restrições dos planos de saúde
que representam a privatização da saúde.

Aproveitamos esta questão para introduzir outra muito maior e mais
importante, a saber, o papel e o tamanho da intervenção do estado na vida
dos cidadãos. Os socialistas defendem um estado maior em tamanho, mais
intervencionista, mais paternalista, menos ausente, menos conivente com os
interesses dos mais favorecidos economicamente. Os liberais defendem um
estado menor em tamanho, menos intervencionista, menos paternalista,
permitindo à sociedade que se auto-organize, mantendo-se, pelo menos em
tese, como um poder moderador que faz as necessárias checagens e
balanceamentos numa organização social que se auto-gere e auto-regula por
forças inerentes a si mesma.

O problema da habitação não é menos importante. Que fazer com quem não
tem onde morar? Que fazer com aqueles que, por não ter onde morar, invadem
propriedades de outros para construir casebres ou cultivar trechos de terra
para sua subsistência? Não seria morar com dignidade mais um direito de
todo ser humano?

Estamos falando em direitos humanos como se este conceito não fosse,
ele mesmo, repleto de dificuldades. São estes direitos inatos ou
convencionais, culturais ou divinamente outorgados, ninguém nunca os perde
independentemente do seu comportamento na sociedade? Quem determina quais
são os direitos do cidadão? Na verdade, parece-me claro que estes direitos
só se tornam reais quando os governos, as organizações civis não-
governamentais, a sociedade como um todo, os grandes organismos
internacionais, os pensadores e os formadores de opinião, subscrevem,
respeitam, defendem, patrocinam, reclamam estes direitos e exigem que todos
façam o mesmo. Do contrário, os direitos humanos e de cidadania não passam
de idéias abstratas, papel e tinta, sem nenhuma consequência concreta na
vida das pessoas. Em suma, os direitos e os deveres das pessoas são
descobertos e estabelecidos por uma sociedade esclarecida, por um grupo
social responsável, uma nação justa, mas precisam ser reivindicados pelos
cidadãos sob o risco de os ver desaparecer esquecidos para sempre na
memória ruim dos poderosos e nos alfarrábios dos juristas ocupados com a
difícil arte de acumular riquezas.

É por essas e outras que uma das questões crucias da reflexão ética e
sócio-política é a do direito à educação. Sem educação não há pessoas
conscientes de seus direitos e deveres e, inconscientes, iludidas pela
dureza de sua sina e anestesiadas pelos narcóticos ou pela indústria
cultural, também não poderão reivindicar os seus direitos. Quanto menos
educação, mais está a porção menos favorecida da sociedade sujeita às
tiranias e abusos por parte dos ricos e poderosos. Não é de se estranhar,
portanto, que haja tantos poderosos desinteressados em patrocinar, ou que o
governo patrocine, uma educação de qualidade para toda a população, e
muitos menos ainda uma educação reflexiva, voltada para as humanidades e a
filosofia, e costumam privilegiar uma educação nitidamente técnica e
profissionalizante.

A falta de educação, de trabalho e de justiça social geram a violência
e a criminalidade. É claro que o ser humano é violento por natureza e que
algumas vezes os criminosos agem movidos por psicopatologias e que,
portanto, nem toda a educação e toda justiça podem pôr fim à violência e à
criminalidade, mas podem sim minimizá-las a níveis relativamente
confortáveis. Por outro lado, não resta dúvidas que as pessoas querem e
devem ter restaurado seu direito de ir e vir, de não sentir-se amea,cado
todo o tempo, de proteção policial e um sistema judicial e carcerário justo
e confiável. No entanto, é preciso nunca esquecer que mesmo o encarcerado
possui seus direitos inalienáveis e que desrespeitá-los (como acontece com
frequência) significa abrir um precedente que pode gerar um paulatino
descaso para com todos os direitos de todas as pessoas.

Dentre as muitas questões específicas discutidas pela ética
contemporânea está o problema da crise ambiental ou da relação entre os
seres humanos e o meio-ambiente em que habitam, a saber, a biosfera. Hoje
tornou-se claro que não é mais possível explorar os recursos naturais de
forma irresponsável, pois isto significaria o fim da espécie humana. É
preciso aprender a conviver de forma saudável com o meio-ambiente, com
consciência ecológica, isto é, consciência de que nós somos parte de uma
organização sistêmica que envolve muitos seres e sutis arranjos bioquímicos
que uma vez prejudicados podem gerar desconforto, crises graves de saúde e
até mesmo eventualmente a extinção da vida humana no planeta.

O aumento do número de problemas que são por natureza universais ou
planetários levou, com o auxílio da revolução das comunicações, ao
surgimento da sociedade planetária, a aldeia global. A fraternidade e a
igualdade universal são hoje realidades empíricas facilmente verificáveis e
psicologicamente absorvíveis. Surge daí o problema da globalização,
processo inevitável pelo qual a sociedade planetária se forma,
independentemente de obstáculos nacionais, culturais, linguísticos ou
religiosos. A globalização pode, no entanto, tornar-se muito facilmente uma
desculpa e um veículo de exploração econômica dos países pobres pelos
países ricos e uma forma de dominação cultural e aculturação que contribuem
decisivamente para a dominação política de uma nação sobre outra. A
preservação e o estímulo da cultura nacional, mesmo em pequenas coisas como
culinária, vestuário e folclore, passam a ser uma questão de soberania
política, de proteção contra a dominação cultural pura e simples que é uma
forma sofisticada de limpeza étnica. Por outro lado, a inevitável
globalização permite-nos aprender com outras culturas e enxergar nossos
erros e preconceitos. Em suma, a questão não é se deve ou não haver
globalização, mas sim como ela deve acontecer, para que não se permita que
ela sirva de pretexto para uma forma hiper-moderna de colonialismo.

Isto nos leva à questão da guerra e, mais particularmente, à difícil
questão acerca da guerra justa. Em outras palavras, são todas as guerras
ilegítimas ou anti-éticas ou há guerras justas como, por exemplo, o revide
a uma agressão externa? Devo oferecer sempre a outra face ou há momentos em
que uma reação mais violenta se faz necessária e é eticamente justificável?
Não há respostas fáceis a estas perguntas. Toda pessoa eticamente
consciente gostaria de ver o fim de todas as guerras (e muitas vezes uma
guerra é justificada como "a guerra que terminará com todas as guerras")
com todoo derramamento de sangue, destruição e sofrimento que uma guerra
produz. Não seria, no entanto, ingenuidade pensar que a maldade, que parece
inerente à condição humana, possa um dia ser inteiramente eliminada de
forma a jamais haver risco de um grupo social ou uma nação erguer-se contra
outra novamente? E não seria, por outro lado, terrível se tivéssemos que
abandonar a esperança de que um dia isto ocorra? Hoje, no entanto, diante
da realidade da guerra, cabe perguntar acerca da guerra justa, isto é,
acerca dos critérios que determinam a justiça de uma agressão e encontrar
meios que impeçam o início ou a continuidade de guerras consideradas
injustas pela comunidade internacional.

Muitas das guerras que somos obrigados a assistir são guerras civis,
confrontos pelo poder acointecendo dentro de um país. Elas são muitas vezes
motivadas por graves injustiças sociais, má distribuição de renda, um
sistema judiciário corrupto que só condena os pobres e que nunca atua
contra os poderosos, legisladores que legislam em causa própria ou em causa
dos ricos que lhes compram a consciência. Até quando um povo pode e deve
agüentar esse tipo de injustiça? Quando é que chega o momento em que torna-
se justo e eticamente justificável que um povo pegue em armas para defender
os seus direitos? Foi o que aconteceu, por exemplo, na França em 1789,
naquilo que hoje chamamos de revolução francesa, um evento celebrado até
hoje como grande marco na história das lutas pela liberdade e pela justiça
social. A paz social que tanto queremos é um produto da justiça social.
Somente quando tivermos um governo justo, uma legislação justa, um
judiciário imparcial e uma distribuição de renda considerada minimamente
aceitável é que poderemos almejar pela plena paz social.

A liberdade é um dos fundamentos da ética. As liberdades civis são
parte dos direitos do cidadão e a luta pela sua manutenção é um dever de
todos. Dentre estas liberdades fundamentais estão a liberdade de opinião, a
liberdade de expressão, o direito de ir e vir, a liberdade de imprensa e da
mídia em geral em veicular as notícias, o direito de votar e de ser votado
para cargos públicos, a liberdade de escolher os aspectos basilares de meu
destino como, por exemplo, minha profissão, meu cônjuge e meu lar. Estas
são algumas das liberdades individuais dos cidadãos tendem a desaparecer
uma a uma quando um governo totalitário sobe ao poder (ou um governo que
está no poder passa a assumir colorações totalitárias). A censura, em todas
as suas formas, é uma afronta à cidadania. Há, no entanto, uma forma
terrível de censura, muito atuante numa sociedade de mercado como a nossa,
que é extremamente difícil de detectar e de combater: é a censura
econômica. Ela faz com que nada, por mais verdadeiro e justo, seja dito ou
feito se for contra os interesses dos que visam, acima de tudo, o lucro ou
o equilíbrio financeiro de um país ou de uma instituição. O amor ao
dinheiro é a raiz de todos os males. Quando uma sociedade torna-se cativa
dos interesses econômicos a ponto de sacrificar sua alma em nome da
estabilidade e do progresso financeiro, chega-se à ruína da ética, pois
esta é não pode conviver com a plutocracia.

A mídia exerce um papel da mais alta importância na luta pela justiça
e pelo desenvolvimento de uma consciência ética ao apresentar denúncias e
pesquisar irregularidades de toda espécie nas tramas sócio-políticas. A
cultura midiática, no entanto, é ela mesma um problema para a ética, pois
possui um tremendo poder persuasório e muitas vezes, em nome do lucro,
acaba por trabalhar em favor do embrutecimento e entorpecimento da
população em vez de promover a educação, o esclarecimento e a
conscientização da população. A mídia promove o que se costumou chamar de
"indústria cultural" (um conceito bastante distinto, diga-se de passagem,
do conceito de "cultura popular"), um nome irônico. A indústria cultural
não produz cultura, como poder-se-ia pensar mas sim, ao contrário, a falta
de cultura. A indústria cultural trabalha na contramão da ética à medida em
que oferece ao cidadão tudo que satisfaz seus instintos básicos e tudo que
lhe dá prazer imediato sem nunca oferecer aquilo que ele precisa ou aquilo
que pode lhe oferecer uma visão mais elevada de si mesmo e de seu destino
enquanto cidadão e personagem da história de seu povo.

Outro tipo de entorpecimento é produzido pelas drogas. Muitas questões
éticas giram em torno do problema do consumo e do combate ao consumo de
entorpecentes. Eles exercem um tremendo fascínio sobre os seres humanos,
provocando sensações muito agradáveis de maravilhamento, de tranqüilidade,
de disposição ou de euforia. Elas são combatidas por causarem danos à
saúde, particularmente quando consumidas em excesso e sem fiscalização da
produção, o que favorece a má qualidade do produto. Por isso, muitos
defendem que, dado o fracasso do combate às drogas, o melhor seria
descriminalizá-las, ou ao menos organizar o uso por parte dos consumidores.
Muitos países têm feito experimentos deste tipo com resultados ambíguos.
Muitos especialistas têm falado ultimamente em tratar o assunto de forma
diferente, almejando a diminuição dos danos mais que a eliminação do
problema, pois esta última alternativa parece ser impossível.

O pior problema social não é causado pelas drogas ilícitas ou
proibidas, mas sim pelas lícitas e liberadas para o consumo como é o caso
das bebidas alcoólicas, do tabaco e do café e outras bebidas à base de
cafeína. Estas últimas são tidas como as drogas de recreação menos
perigosas para a saúde humana. Já o tabaco provoca diversos males e custos
sociais. O consumo de bebidas alcoólicas em excesso é um problema social
imenso em nosso país, sendo que o álcool etílico é reconhecido como uma das
drogas mais prejudiciais para o organismo e com maior poder de adição,
levando rapidamente ao vício. Vidas, vocações e famílias são destruídas
pelo alcoolismo. Que caminhos devem ser tomados para sanar ou minimizar o
problema?

Há, portanto, uma grande hipocrisia presente no combate às drogas, uma
vez que muitas drogas ilegais são menos perigosas à saúde que o álcool, que
é uma droga permitida. Fica a pergunta: será que há mais por trás do
combate às drogas que a questão da saúde? Será que há motivos econômicos e
até políticos para que certas drogas que entorpecem sejam franqueadas
enquanto outras, menos prejudiciais, sejam proibidas? Será que há algum
fundo de verdade na tal libertação e conscientização prometida pelas drogas
que levam a estados alterados de consciência, algo que não interessa à
classe dominante? Por que estariam tantos cultos religiosos antigos ligados
ao consumo de alguma substância facilitadora de estados alterados de
consciência? Estas são perguntas difíceis de responder, mas são perguntas
que não podem mais calar. Elas têm sido sistematicamente censuradas, mas
este é um tema urgente de nosso tempo.

O grande problema diretamente ligado às drogas é o tráfico e o
enriquecimento de marginais perigosos que formam verdadeiras máfias que
controlam a sociedade e deixam a população trabalhadora em pânico. Muitas
vezes estas máfias estão mais bem aparelhadas em termos de armamentos que a
própria polícia. Será que a ilegalidade das drogas favorece o
desenvolvimento do banditismo e o aparecimento do crime organizado? Na
primeira metade do século passado o consumo de álcool foi proibido nos
Estados Unidos (a chamada "lei seca"), gerando o tráfico de bebidas
alcoólicas que encheu os gangsters de dinheiro, como o caso do afamado Al
Capone de Chicago. Por outro lado, será que a discriminalização das drogas
não levará os traficantes a descobrir simplesmente outra coisa para
traficar? Que dizer, por exemplo, deste novo problema que promete ser um
dos maiores do século XXI, o tráfico de órgãos? Já existe hoje em nosso
país uma máfia, envolvendo políticos, médicos e líderes religiosos,
especializada no tráfico de órgãos humanos: rins, pulmões, córneas, sangue,
medula óssea, tudo já contabilizado em dólares no mercado negro. Pessoas
pobres são estimuladas a vender uma de suas córneas ou um dos rins em troca
de uma quantia em dinheiro, mas a fatia maior do lucro fica com os
atravessadores. Trata-se de uma tragédia ética e social. Uma das maneiras
de evitar o tráfico de órgãos é a própria doação de órgãos, que pode ou não
ser declarada obrigatória pelo governo de um país. Com mais doações haverá
menores filas para a recepção de órgãos e já não haverá mercado para o
tráfico.

Esta última consideração nos leva até o grande assunto da ética
contemporânea que são as questões de ética biomédica, também chamada de
bioética, ainda que este nome não seja o mais adequado, pois não se trata
de uma subdivisão da biologia, e sim da ética. Em outras palavras, a
biologia propõe perguntas que ela mesma não tem como responder e tem que
pedir socorro à ética. Trata-se, portanto, não de bioética, mas sim de
ética biomédica. Ela trata desde questões conhecidas como a do direito da
mulher ao aborto ou a questão da eutanásia ou direito do doente terminal de
ter uma morte digna, até questões mais complexas e contemporâneas como a
clonagem ou os limites da investigação científica. Muitos destes assuntos
serão tratados em capítulos subseqüentes.

Ditas estas coisas, penso que deve restar pouca dúvida quanto à
importância do estudo da ética e da disciplina "ética e cidadania" que se
propõe a debater as principais questões éticas e sócio-políticas de nosso
tempo. Não podemos escapar da ética, pois, se rejeitamos o convite a
discutir as questões éticas, esta rejeição já é uma decisão que possui
conseqüências éticas e sócio-políticas. Na verdade, recusar-se a engajar-se
na busca por valores sociais universais, mais do que abrir mão de um
direito, é rejeitar um dever e, portanto, contitui uma atitude anti-ética.
Mais que um convite, portanto, este texto é uma convocação, ainda que seja
resguardada a liberdade de cada um de recusar-se a colaborar. Cada um tem
que responder por si mesmo.




5. Acerca de Livros, Leituras e Bibliografias




Uma boa foramção ética requer muita leitura. Seria tolice tentar fazer
aqui uma lista dos principais livros a serem lidos, pois ela não só seria
muito extensa mas, também, não possuiria nenhuma praticidade,
principalmente se os autores desfilassem ante os olhos desacostumados do
leitor em ordem alfabética. Que sentido poderia o leitor tirar deste tipo
de lista? Apenas o desânimo e a impressão que o autor listou livros sem
prestar muita atenção no que estava fazendo ou no público a que se dirigia.
Opto, portanto, por escrever este apêndice remetendo o leitor a uma
pesquisa que realmente o ajude.

O melhor caminho para começar a desenvolver uma consciência ética é
através da literatura. Recomendo ao meu leitor que procure conhecer os
grandes clássicos da literatura universal e procure perceber como as
questões éticas e sócio-política sempre ressurgem, ainda que de forma nova,
em todas as culturas e em todos os tempos. Leia as tragédias gregas de
Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Nelas vemos o ser humano envolvido em
dilemas éticos tremendos e em luta contra as forças implacáveis do destino.
Entre os romanos, destacamos os discursos de Cícero e as obras de Sêneca,
particularmente um livro chamado Cartas a Lucílio em que muitas questões
éticas são tratadas com maestria. Leia também as Confissões de Aurélio
Agostinho de Hipona, o maior teólogo e filósofo da antiguidade cristã, que
neste livro autobiográfico descreve sua jornada espiritual. Leia os
místicos medievais como, por exemplo, os tratados sobre o amor de Bernardo
de Clairvaux, de Bonaventura, de Francisco de Sales, o Castelo Interior de
Tereza de Ávila e o livro Da Liberdade do Cristão de Martinho Lutero.
Procure conhecer também os contos-de-fada europeus, de preferência no texto
original e não nas adaptações posteriores. Os principais autores destas
histórias fantásticas, repletas de ensinamentos morais, foram os irmãos
Grimm, Charles Perrault e Hans Christian Andersen. Vale ressaltar a obra
bem mais recente de J.R.R. Tolkien, famoso agora por causa da produção
cinematográfica de seu grande romance O Senhor dos Anéis. A literatura
moderna está cheia de grande obras que possuem reflexões éticas e sócio-
políticas como, por exemplo, os livros dos autores russos Leo Tolstoi e
Fiodor Dostoievski. Deste último vale lembrar os títulos Crime e Castigo e
Os Irmãos Karamasov. Dentre os franceses destacamos Émile Zola, autor de
Germinal entre outros, e Anatole France. Recomendamos as leituras das
tragédias de William Shakespeare e os romances de Charles Dickens e as
histórias do americano Mark Twain, dentre tantos outros. Do século XX, as
obras de André Gide e Jean-Paul Sartre vêm à mente, bem como Walker Percy e
Umberto Eco. Se fôssemos falar de todos, jamais terminaríamos esta
listagem.

É importante ainda conhecer as principais obras da ética filosófica: A
República de Platão e a Ética a Nicômaco de Aristóteles, a Suma Teológica
de Tomás de Aquino, o famoso texto de Machiavel chamado O Príncipe, os
Ensaios de Michel de Montaigne, o Elogio da Loucura de Erasmo de Rotterdam,
o Leviatã de Thomas Hobbes e os tratados políticos de John Locke, os textos
filosóficos de Voltaire, a Crítica da Razão Prática de Kant, a
Fenomenologia do Espírito de Hegel, os ensaios de Ralph Waldo Emerson e o
Walden de Henry David Thoreau, o livro Pragmatismo de William James, Os
livros Temor e Tremor e Ou: A Alternativa de Soren Kierkegaard, a
Genealogia da Moral, o Para Além do Bem e do Mal e o Crepúsculo dos Ídolos
de Friedrich Nietzsche, As Duas Fontes da Religião e da Moralidade de Henri
Bergson, Eu e Tu de Martin Buber e Ética e Infinito, uma entrevista com
Emanuel Levinas e, por fim, Against Ethics de John Caputo. Muitos outros
nomes poderiam ser lembrados: Miguel de Unamuno e Ortega y Gasset, Jacques
Ellul e Jean Baudrillard, Michel Foucault e Jacques Derrida, Theodor Adorno
e Jürgen Habermas, Antonio Gramsci e Louis Althusser, John Rawls e Charles
Taylor, Simone Weil e Hanna Arendt. A lista é grande, e todos são mais ou
menos relevantes no estudo das questões éticas e sócio-políticas.

O interessado terá que ler também muitos outros livros, em particular
livros que explicam o Brasil, que falam de nossa história e instituições
sócio-políticas, livros de autores do passado como José Bonifácio, Floriano
Peixoto e Euclides da Cunha, bem como de outros não tão antigos como
Gilberto Freire, Monteiro Lobato, Celso Furtado, Prado Jr., José Guilherme
Merquior, Darcy Ribeiro, Roberto Campos, dentre tantos outros autores que
pensaram o Brasil. Não resta dúvidas que se trata de um grande
empreendimento, árduo, mas também fascinante e recompensador.

Dentre os novos livrinhos introdutórios eu destacaria o de Gustavo
Korte, Introdução à Ética (Editora Juarez de Oliveira), o de Sebastião
Martins, Ética: A Força do Cidadão (Editora Lê), o de Herbert de Souza (o
Betinho) e Carla Rodrigues, Ética e Cidadania (Editora Moderna), o de
Álvaro L. M. Valls, O que é Ética (Brasiliense, Coleção Primeiros Passos) e
acima de todos a coletânea Ética, Solidariedade e Complexidade (Editora
Palas Athena) que contém um importante texto de Edgar Morin.

Concluo com uma última palavra de alerta sobre as responsabilidades do
cidadão eticamente consciente: a tarefa não pode esperar que terminemos de
estudar, pois o estudo nunca tem fim e ela é uma tarefa urgente e não
permite adiamentos. É preciso engajar-se na tarefa mesmo sem estarmos
inteiramente prontos, mesmo sem entendê-la plenamente, mesmo sabendo que
vamos cometer erros. A tarefa começa simultaneamente com o preparo para a
tarefa, e demorar-se a abraçar a tarefa para pensar um pouco mais sobre ela
é fugir dela, é traí-la e negá-la. Qual é a tarefa? A construção de uma
sociedade em que a busca por valores sociais universais é abraçada por
todos e em que a prática destes valores é uma realidade palpável.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.