A. C. Roque (2015), Missão Antropológica de Moçambique (1936-1956): A fotografia como instrumento de trabalho e propaganda

May 30, 2017 | Autor: Ana Roque | Categoria: Colonialismo, Antropología
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Missão Antropológica de Moçambique (1936-1956)

A fotografia como instrumento de trabalho e propaganda ANA CRISTINA ROQUE

  Criada pelo Decreto-lei nº 26 842 de 28 de Julho de 1936 sob a designação de Missão Etnográfica e Antropológica de Moçambique, só em 1945, por Decreto-lei n.º 34 478 de 3 de Abril, se passou a designar Missão Antropológica de Moçambique. Entre 1936 e 1956 desenvolveu 6 campanhas de trabalho – 1936, 1937/38, 1945, 1946, 1948 e 1955/56 – chefiadas por Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior mas sob a orientação de Mendes Correia. 2  Designadamente, Estudo do Espólio da Missão Antropológica de Moçambique, no quadro de uma linha de investigação do ex-Centro de Pré-história e Arqueologia do IICT e depois do Departamento de Ciências Humanas sobre as missões antropológicas; Saberes e Práticas Tradicionais em Sociedades Tropicais, projeto do IICT desenvolvido no âmbito do Programa de Desenvolvimento Global (DES) e, mais recentemente, no âmbito do Projeto FCT HC0075/2009 – Conhecimento e reconhecimento em espaços de influência portuguesa: registos, expedições científicas, saberes tradicionais e biodiversidade na África Subsariana e Insulíndia. 3   Ana Cristina Roque e Lívia Ferrão, “Documentação da Missão Antropológica de Moçambique. Relatório da 5ª Campanha (1948)”, Povos e Culturas, nº 16, Lisboa, CEPCEP, Universidade Católica de Lisboa (2012) pp. 221-328; Ana Cristina Roque, “Missão Antropológica de Moçambique: Antropologia, História e Património”, Catálogo da Exposição Viagens e Missões Científicas nos Trópicos (1883-2010) (Lisboa, IICT, 2010) pp. 84-89; Ana Cristina Roque e Lívia Ferrão, “O Olhar do Outro: a terra, a gente, os usos e costumes de Moçambique em meados do século XX (espólio fotográfico da Missão Antropológica de Moçambique)” Povos e Culturas, nº especial “Tradições Populares”, Lisboa, CEPCEP, Universidade Católica de Lisboa (2009) 1

Introdução Criada em 1936 e chefiada por J. R. dos Santos Júnior, a Missão Antropológica de Moçambique (MAM) desenvolveu os seus trabalhos em Moçambique, entre 1936 e 1956 1. Durante este período, a equipa da Missão percorreu praticamente todo o território da então colónia, procedendo-se a recolhas diversas, fundamentalmente no domínio da Antropobiologia, mas também da Etnografia, Etnologia e Arqueologia. Do conjunto dos materiais e dados recolhidos resultou um vasto espólio documental, material e fotográfico que, desde 1988, integra o património do Instituto de Investigação Científica Tropical e onde, desde 1996, tem vindo a ser organizado e estudado no quadro de vários projetos e linhas de investigação 2 que se têm debruçado sobre núcleos específicos deste espólio e, deste modo, têm permitido a sua divulgação 3. Em termos gerais, trata-se de um vasto e diversificado espólio que comporta materiais arqueológicos e etnográficos, bem como documentação escrita, cartográfica e fotográfica, produzida e/ou reportada ao mesmo período e que, em nosso entender, pode ser considerada como uma das coleções importantes que foram recolhidas em Moçambique, no século passado. À exceção de alguns dados e materiais que foram publicados pelos diferentes membros que integraram a equipa da Missão 4, a maior parte desta coleção permaneceu desconhecida tanto em Portugal, onde ao longo do tempo instituições várias se foram substituindo como seus fiéis depositários, como em Moçambique, onde, pela distância, as referências bibliográficas constituiam o essencial do seu conhecimento. pp. 255-263; Ana Cristina Roque e Lívia Ferrão, “A glimpse over the land and peoples of Mozambique: the collections assembled during the colonial period and their importance for the rebuilding of the History of Mozambique”, African Research & Documentation – Journal of the Standing Conference on Library Materials on Africa,

99, London (2005), pp. 27-34; Ana Cristina Roque “Moçambique: o Corpo e os Corpos”, Catálogo da Exposição Culturas do Índico, (Lisboa, CNCDP, 1998) pp. 277-290. 4   Veja-se uma listagem dos trabalhos publicados no âmbito da MAM em Homenagem a J. R. dos Santos Júnior (Lisboa, IICT, 1990).

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1.  Classificação / Missão

A MAM no quadro das Missões Científicas Portuguesas do século XX A história da MAM, ainda que aliciante, está longe de constituir o objetivo deste artigo. Porém, parece-nos importante um enquadramento mínimo para que se torne mais clara a razão da diversidade dos materiais que integram esta coleção, designadamente no que respeita à fotografia. Depois das missões de exploradores e missionários da segunda metade do século XIX, a primeira metade do século XX trouxe ao continente africano missões de características diferentes que, no âmbito da consolidação dos impérios coloniais, visavam, fundamentalmente, o conhecimento científico das terras e gentes africanas. A cartografia, a geologia e a hidrografia dos territórios, o reconhecimento dos seus recursos e potencialidades, o conhecimento da vida selvagem, das gentes, usos e costumes, tornou-se uma prioridade na África sob domínio colonial europeu. O princípio de ocupação efetiva resultante da Conferência de Berlim (1884-1885), pressupunha o conhecimento do território como forma de legitimação dessa ocupação e reconhecimento da soberania europeia. Portugal não foi uma exceção; e, neste contexto, a Missão Antropológica de Moçambique surgia como fazendo parte de um conjunto de missões científicas 5 que por vezes se cruzavam no terreno e trabalhavam em colaboração 6. Esta ideia de colaboração está, aliás, bem patente na própria criação da MAM, cujos trabalhos de campo deveriam desenvolver-se em estreita articulação com os das brigadas da Missão Geográfica de Moçambique (MGM), à qual ficou agregada até 1945 7. Equipas pequenas, de dois ou três técnicos e especialistas da “metrópole”, com o apoio humano e logístico local fornecido pela administração colonial, percorreram o território de Moçambique, durante períodos raramente inferiores a 6 meses e segundo itinerários previamente definidos, em função dos objetivos específicos de cada campanha e de cada Missão. Cruzando-se ou não no terreno, a circulação de informação e a recolha de dados e materiais do que poderia eventualmente interessar às outras equipas surgia naturalmente, sendo frequentes, na documentação da época, referências que testemunham este princípio de cooperação entre as várias equipas 8. A este aspeto aliavam-se igualmente a formação específica e os interesses pessoais dos diferentes membros que integravam estas equipas; e da sua maior ou menor capacidade e possibilidade de os articularem com os objetivos do trabalho de que iam incumbidos resultaram não só os primeiros trabalhos que se fizeram no domínio da arqueologia, antropologia e etnologia em Moçambique, como também muitas das coleções que enchem hoje os museus portugueses. Neste contexto, ainda que o principal objetivo dos trabalhos da MAM fosse, fundamentalmente, a recolha de dados de natureza antropobiológica 9, a equipa da Missão ultrapassou em muito o que podia ser considerado a natureza das suas funções, produzindo e recolhendo um conjunto de materiais e documentos que nos permitem hoje um outro olhar sobre a terra e as gentes 108

  Para uma síntese da história da criação destas missões e do seu espectro de actuação veja-se Da Comissão de Cartographia ao Instituto de Investigação Científica Tropical (1983) – 100 Anos de História (Lisboa, IICT, 1983). 6   O próprio Santos Júnior, nos seus relatórios, faz referência a estes encontros, designadamente no de 1948 onde se lê “Alguns quilómetros a Sul de Mécufi e quase no fim da tarde encontramos a brigada mista das Missões Botânica e Silvícola dos engenheiros agrónomos Grandvaux e Campos Andrade”, J. R. dos Santos Júnior (1948b) Relatório da 5.ª Campanha da Missão Antropológica de Moçambique (Maio a Dezembro de 1948), ISCSP 57 (679), p. 83 (Cópia dactilografada completa). 7  A Missão Geográfica de Moçambique foi criada pela Portaria n.º 7 379 de 13 de Julho de 1932 e, posteriormente, reorganizada por Decreto-lei n.º 24 171, de 13 de Julho de 1934. 8   Ana Cristina Roque, “Espólio da Missão Antropológica de Moçambique. Parte I – Apresentação do espólio e inventário dos materiais arqueológicos” in Leba, Lisboa, 8 (2002), pp. 44-45. 9   Em 1948, a designação de “Estudos Antropobiológicos” substituiu a designação anterior de “Estudos de Antropologia Física, Somatologia e Hematologia”. Vd. “Instruções para a Missão Antropológica e Etnológica de Moçambique referentes à Campanha de 1948” in Ana Cristina Roque e Lívia Ferrão, ”Documentação da Missão Antropológica de Moçambique. Relatório da 5ª Campanha (1948)”, p. 257. 5

Missão Antropológica de Moçambique (1936-1956)

de Moçambique, independentemente dos pressupostos que nortearam então as recolhas e trabalhos efetuados. Importa contudo referir que, no quadro da política colonial do Estado Novo, a atividade da MAM concretizava o papel da antropologia ao serviço da “política indígena” que se pretendia implementar, pressupondo uma recolha exaustiva de dados sobre as populações de modo a permitir o seu melhor conhecimento. Os estudos de antropologia, etnografia e pré-história, surgiam assim, e desde logo, como um poderoso instrumento ao serviço do poder colonial, bem expresso pelo próprio Santos Júnior no seu relatório de 1948: “A Antropologia é um dos melhores, senão o melhor instrumento ao serviço da política indígena (...) A antropologia física, estabelecendo as afinidades somáticas, procura descobrir parentescos ou definir, com precisão, a natureza étnica das diferentes tribos. A arqueologia ou melhor a Pré-história, descobrindo e estudando criteriosamente as velhas culturas, desvenda origens, e fornece à Antropologia os rumos que a orientam no complexo estabelecimento de muitos problemas etnológicos de origens. A Etnografia observando o viver diário dos negros, as suas necessidades materiais, a maneira como os indígenas as conseguem satisfazer, e as manifestações dos seus sentimentos de origem espiritual, dá-nos a chave indispensável para entrarmos com segurança no conhecimento da vida material e moral” 10.

E justamente neste contexto, a fotografia tornou-se um instrumento de trabalho importante e complementar dos trabalhos a desenvolver.

Os registos fotográficos da MAM

  J. R. dos Santos Júnior (1948a), Relatório da 5.ª Campanha da Missão Antropológica de Moçambique (Maio a Dezembro de 1948), in Ana Cristina Roque e Lívia Ferrão, ”Documentação da Missão Antropológica de Moçambique. Relatório da 5.ª Campanha (1948)”, pp. 225-226. 11   Aquando da preparação da campanha de 1948, a proposta apresentada por Santos Júnior previa a possibilidade de incluir um fotógrafo no grupo de colaboradores a agregar à MAM em Moçambique. Porém, o programa da campanha foi aprovado com grandes alterações, designadamente a redução de colaboradores, entre os quais, o fotógrafo. J. R. dos Santos Júnior (1948a), Relatório da 5.ª Campanha da Missão Antropológica de Moçambique (Maio a Dezembro de 1948), in Ana Cristina Roque e Lívia Ferrão, “Documentação da Missão Antropológica de Moçambique. Relatório da 5ª Campanha (1948)”, p. 246. 10

Entre o testemunho da “missão civilizadora” dos portugueses mediante a visualização da “obra feita” – a construção da igreja, da escola, do cemitério, do hospital ou da ponte – e dos efeitos da civilização sobre a barbárie – o corpo vestido, o feitiço exorcizado, a legitimação de estruturas ou a manifestação da ordem colonial –, a fotografia assumiu um papel importante na forma como foi transmitida a imagem do Outro permitindo alicerçar discursos e justificar ações. Ainda que muito raramente se expresse de forma explícita a importância do registo fotográfico, o facto é que, independentemente de a equipa nunca ter integrado nenhum fotógrafo 11, grande parte do trabalho da Missão foi registado em fotografias e estas constituem, no contexto deste espólio, um importante complemento dos trabalhos realizados. Aliás, são muitas vezes as fotografias que permitem colmatar lacunas no que respeita à identificação de pessoas, locais e objetos, muitas vezes em falta nos diversos materiais deste espólio, e que se vêm assim identificados pelas legendas no verso das fotografias. Deste modo, não sendo a fotografia um objetivo em si ela surge como um instrumento de trabalho indispensável tanto à recolha de dados, quanto à posterior leitura e interpretação dos mesmos, tornando-se por isso parte inte109

1.  Classificação / Missão

grante dos objetivos da Missão. Tal implica que toda a análise histórica dos trabalhos da MAM obriga a uma leitura destas fotografias na sua dupla qualidade de documento/monumento 12. Por sua vez, tanto o registo minucioso que foi sistematicamente efetuado em função dos objetivos da Missão em termos de estudos de Antropologia física, quanto o equipamento que foi utilizado – três máquinas fotográficas (uma Rolleiflex, uma Contax e uma Leica), e uma máquina de filmar (de que não temos informação adicional) – e a quantidade de registos (6 filmes 13 e mais de 5 mil fotografias / negativos e positivos) testemunham a importância que, efetivamente foi dada à imagem. Só para a 5.ª Campanha (1948), por exemplo, em que se percorreu toda faixa litoral e sublitoral entre o Zambeze e o Rovuma, foram contabilizadas 2373 cópias em papel. Na sua maioria, estas e as restantes imagens desta coleção nunca foram publicadas. Apenas uma pequena parte foi incluída nas publicações da equipa, resultando naturalmente de uma escolha deliberada no quadro dos objetivos destas mesmas publicações, não deixando entrever nem a quantidade de imagens que foram obtidas nem a diversidade dos conteúdos das mesmas. Assim, se por um lado estas imagens informam sobre a realidade observada e os trabalhos empreendidos, não é menos verdade que, também pela escolha das que foram publicadas, conformam essa mesma realidade em função dos objetivos pretendidos 14. Estas imagens não estão ainda todas inventariadas. Foi feita uma primeira triagem e organização que nos permite não só a sua apreciação global, como perceber o universo de objetivos e temas em causa e as possibilidades múltiplas de aproximação à leitura das mesmas. Assim, uma análise sumária permitiu-nos concluir que, pese embora o domínio da antropobiologia e a relação direta com as tabelas respeitantes aos caracteres descritivos, as temáticas abordadas são tão diversificadas quanto as regiões onde se desenvolveram os trabalhos (Gráfico 1).

  Jacques Le Goff, “Documento / Monumento” in Enciclopédia EINAUDI, vol. I Memória-História (Lisboa, IN-CM, 1984), pp. 95-104. 13   Nos arquivos do IICT há apenas 6 filmes. Contudo, tudo indica que devem ter sido feitos mais dado que, pontualmente, na documentação escrita da MAM se referem filmagens que geralmente eram efetuadas pelo ajudante da Missão, Norberto dos Santos Júnior. Veja-se, por exemplo, o caso do batuque Errapala, filmado em Nacaroa em 1948, de que o IICT não tem cópia e que, até agora, não foi ainda possível localizar. J. R. dos Santos Júnior (1948b) Relatório da 5ª Campanha da Missão Antropológica de Moçambique, p. 86. 14   Ana Maria Maud, “Através da imagem: Fotografia e História interfaces”, in Tempo, vol.1, n.º 2, Rio de Janeiro (1996), pp. 73-98. 12

Gráfico 1.  Coleção fotográfica da MAM: temáticas mais representativas (5ª Campanha, 1948)

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Figura 1.  Deformação dos pés – Pé Várus dum mestiço de Atande e Chicunda. J. R. dos Santos Júnior, Zumbo? MAM 2,1937 Coleção fotográfica do Espólio da Missão Antropológica de Moçambique, IICT SJft.113/37 Figura 2.  Mulher achipango com tatuagem na barriga. J. R. dos Santos Júnior, MAM 3, 1945 Coleção fotográfica do Espólio da Missão Antropológica de Moçambique, IICT SJft.82/45

  Clara Carvalho, “O olhar colonial: antropologia e fotografia no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa”, in Clara Carvalho e João de Pina Cabral, org., A Persistência da História (Lisboa, ICS, 2004), p.120. 15

Na maioria dos casos, o que foi descrito, registado em tabelas ou mesmo desenhado aquando da observação das populações aparece quase sempre fotografado e o trabalho apresenta-se tanto quanto possível exaustivo, contemplando tanto os domínios da antropometria e dos caracteres descritivos, quanto domínios de natureza sociocultural. Do ponto de vista da recolha de dados, o trabalho surge assim alicerçado em dois tipos de registo – o registo escrito e o registo fotográfico –, ambos contribuindo para a identificação e um melhor conhecimento do que é observado, sendo que o registo fotográfico se torna particularmente importante pelas múltiplas leituras e abordagens que permite fazer. Enquanto suporte incondicional de uma mensagem em que o Outro é reduzido à condição de objeto, medido, pesado, escrutinado, e de um discurso que o remete para o “grau zero” da civilização, a fotografia revela o quotidiano dos trabalhos efetuados. Assim, no domínio da antropobiologia, não dispensando a associação entre somatologia e especificidades socioculturais coloca, por exemplo, no mesmo patamar, patologias clínicas e aspetos culturais específicos dos vários povos observados, misturando e apresentando ao mesmo nível, doenças e malformações genéticas (figura 1), tatuagens (figura 2) e mutilações auriculares ou dentárias, evidenciando a necessidade de uma intervenção “civilizadora”, através da ciência – tratamento e/ou cura, junto do médico e do hospital –, e da educação, condenando e banindo as práticas culturais tradicionais. É um discurso consciente e assumido, revelador, como refere Clara Carvalho, de “um certo olhar colonial: o olhar científico, classificatório, enumerador e exaustivo, mas também o olhar propagandístico, o olhar político” 15. 111

1.  Classificação / Missão

Figura 3.  Sem título. J. R. dos Santos Júnior. Ilha do Ibo, MAM 5 1948 Coleção fotográfica do Espólio da Missão Antropológica de Moçambique, IICT SJft.423/48

Não há imagens ao acaso e são muito poucas as situações em que, a relação fotógrafo/fotografia é espontânea e não intencional (figura 3). Porém, estas mesmas imagens são, enquanto documento/monumento, um imenso repositório de informação sobre Moçambique que nos permite hoje uma leitura diferente e que, de algum modo, faz desta coleção algo mais do que um instrumento de trabalho da Missão, um testemunho da presença portuguesa em Moçambique ou instrumento de propaganda do sistema colonial. A diversidade desta coleção confere-lhe, aliás, uma importância especial no conjunto das coleções científicas de/sobre Moçambique existentes em Portugal. Tal não significa que, individualmente, as diferentes peças e materiais sejam excecionais ou mais significativas que outras que estamos habituados a ver em exposições e museus, mas tão-somente que a coleção em si constitui um todo, relativamente homogéneo e representativo dos vários aspetos que foram abordados nos trabalhos desta Missão. Esta homogeneidade resulta sobretudo da complementaridade de informação presente nos diversos tipos de materiais e documentos, associando informação escrita e fotográfica a todo um conjunto de peças que nem sempre se apresentava identificado. Uma vez considerada como um todo, tem sido possível reconstituir itinerários, conhecer a origem de peças (local e data de recolha e/ou compra), para que serviam, como e por quem eram utilizadas. Daqui resulta igualmente que ao considerarmos as principais áreas temáticas desta espólio – arqueologia, antropologia e etnografia – e os diversos tipos de materiais – arqueológicos e etnográficos, documentação e iconografia –, estamos apenas a definir possíveis linhas de trabalho em função dos diferentes temas e materiais, que nos permitem uma abordagem mais específica a cada um deles, e não a considerá-los isoladamente; ainda que, cada um por si, possa vir a constituir objeto específico de trabalho 16. Veja-se, por exemplo, o conjunto de materiais relativos aos trabalhos arqueológicos desenvolvidos nas ruínas do amuralhado Goméne, perto da aldeia de 112

  Veja-se, entre outros, os estudos sobre os materiais e a documentação do Curandeiro da Matola, designadamente, Ana Cristina Roque, “Meeting Artur Mafumo and his practices”, in Beatrice Nicolini (coord.), Studies in Magic, Witchcraft, War and Peace in Africa: 19th and 20th centuries, (Lampeter, E. Mellen Press, 2006), pp. 171-190, e “Conversas com Artur Mafumo. Ñanga da Matola”, in Anais de História de Além-mar, voI. I, Lisboa, FCSH-UNL (2000) pp. 33-53. 16

Missão Antropológica de Moçambique (1936-1956)

Figura 4.  Mulheres à espera do Governador da Província da Zambézia. J. R. dos Santos Júnior, Pebane, 13 de setembro. MAM 5, 1948. Coleção fotográfica do Espólio da Missão Antropológica de Moçambique, IICT SJft.965/48

  A única descrição que se conhece destes trabalhos integra o relatório de 1948, J. R. dos Santos Júnior (1948b) Relatório da 5ª Campanha da Missão Antropológica de Moçambique .., p. 80. Aí se refere que as ruínas teriam sido descobertas pelo administrador Abel dos Santos Baptista e que foram visitadas pela equipa da Missão, que nelas trabalhou entre 16 e 19 de Agosto de 1948. 18   No mesmo relatório da campanha de 1948 refere-se ser o Muzimo, um local sagrado onde se invocam e veneram os espíritos dos antepassados. “Os pretos que nos guiaram, obrigaram-nos a um rodeio e a trepar pela escarpa do talude, quando pelo lado da estrada o acesso era facílimo. Sempre o mesmo propósito de afastar os brancos daqueles locais que são para eles motivo de veneração especial. Soubemos depois que aquelas ruínas eram um importante Muzimo onde vão invocar os espíritos dos seus antepassados e nomeadamente dum avô do actual régulo Marrôro, o qual segundo informe do seu descendente teria morrido “há 20 vidas”.(!?)”, J. R. dos Santos Júnior (1948b) Relatório da 5.ª Campanha da Missão Antropológica de Moçambique, p. 80. 19   A “leitura” das imagens acompanha, de facto, o relatório onde se lê que, com o auxílio de “100 enxadas cafreais e algumas 30 ou 40 pás...uma centena de pretos e pretas...cortamos os arbustos e ervagem, limpamos o recinto daquela espécie de fortaleza, desafogamos a periferia das muralhas e um grande terreiro de fora delas....abrimos uma estrada numa extensão dos seus 400 metros....duas valas de exploração no interior do recinto muralhado, tendo feito a escavação cuidada das mesmas e a cirandagem de algumas dezenas de metros cúbicos de terra. Recolhemos bastantes conchas de moluscos, fragmentos de cerâmica manual dos indígenas, alguns ossos queimados, uma pederneira das antigas espingardas chamadas “de pedreneira” e algumas contas de vidro de várias formas, cores e tamanhos.”, J. R. dos Santos Júnior (1948b) Relatório da 5.ª Campanha da Missão Antropológica de Moçambique, pp. 80-8. 17

Chicapa (Mécufi, Cabo Delgado) 17. O espólio integra não só os diversos materiais (líticos, cerâmicos e osteológicos) recolhidos e as respetivas fotografias, como ainda uma dezena de imagens, associadas ao promontório de Goméne relativas ao Muzimo de Goméne e ao seu enquadramento 18. Deste modo, se do ponto de vista da arqueologia as imagens permitem visualizar as metodologias de trabalho que então se adotaram (identificação e marcação da área de trabalho, trabalhos de desmatação, abertura da vala de sondagem, triagem de materiais) e que enquadram os materiais recolhidos 19, do ponto de vista etnográfico estas mesmas imagens tornam possível identificar locais de cerimónias tradicionais e respetivos atores e objetos usados nessas cerimónias, bem como localizar e enquadrar do ponto de vista da paisagem os sítios das diferentes recolhas. A leitura possível deste conjunto de documentos (fotografias e materiais arqueológicos) sobre Goméne ultrapassa o contexto colonial em que os mesmos foram produzidos ou obtidos, remetendo-nos, por um lado, para a prática e as metodologias da arqueologia e etnografia na primeira metade do século XX e, por outro, para um referencial de informação que nos permite, hoje, estabelecer uma ligação com este mesmo local, com o que lhe está associado e, eventualmente, com as alterações que ali ocorreram desde então. Efetivamente, o contexto colonial foi determinante para a forma como foram obtidas estas imagens, que tiveram então um significado e uma leitura orientadas para objetivos bem definidos. Porém, a preocupação de proceder a um registo detalhado sempre que a equipa da Missão se encontrava perante algo de diferente – “exótico”, “selvagem”, “primitivo” – permitiu, em muitos casos, reunir um conjunto de informações que podem e merecem outra leitura que privilegie sobretudo a informação sobre as diferentes características regionais ou específicas de determinados grupos populacionais. Veja-se o caso das imagens das mulheres de Pebane (figura 4), cuja “indumentária singular” Santos Júnior diz não ter visto “em qualquer outra região 113

1.  Classificação / Missão

Figura 5.  Cemitério. J. R. dos Santos Júnior, Estrada da Maganja da Costa para Malei. MAM 5, 1948. Coleção fotográfica do Espólio da Missão Antropológica de Moçambique, IICT SJft.1078/48

da colónia [e que lhe] faz lembrar um pouco a maneira de vestir da mulher árabe” 20, ou ainda as dos cemitérios da costa centro-norte, entre Quelimane e a Ilha de Moçambique, em particular os do macuas e os dos marrovoni (figura 5), onde um registo exaustivo testemunha a organização de um espaço no qual a casa dos mortos – “cabaninhas de cobertura de capim em duas águas” 21 – reproduz parcialmente a casa dos vivos, e onde a sepultura se torna o ponto de encontro entre dois mundos: o dos vivos e o dos mortos. Qualquer destes registos foi apenas profusamente fotografado nestas regiões, obviamente porque muito dificilmente o poderia ser noutros locais, mas também e principalmente porque, independentemente da forma como então foram publicitados, constituem elementos culturais específicos dos grupos populacionais que então nelas viviam 22. E é justamente este último aspeto que nos levanta hoje uma série de questões relacionadas com este tipo de fotografia e com o contexto específico em que as mesmas foram produzidas. Em que medida é que a fotografia, usada enquanto instrumento de trabalho e propaganda ao serviço do poder colonial, pode hoje ser encarada numa outra perspetiva? Será que, sem que a mesma seja descontextualizada, a podemos considerar hoje como um documento fundamental, não só para uma melhor compreensão da realidade colonial, mas também para uma melhor perceção do que está para lá dessa mesma realidade? Até onde é que ela nos guia e nos fornece pistas para a análise de várias questões? Considerando que muitas destas imagens podem assumir particular relevância, seja porque testemunham situações ou locais cujo desaparecimento é resultado de um conjunto de fatores não necessariamente relacionados com a imposição da ordem colonial, seja porque atestam a utilização de materiais e formas de os trabalhar que se inscrevem num conjunto de saberes e práticas tradicionais que, cada vez mais, importa recuperar, até que ponto é que podem ser entendidas como uma peça fundamental para o conheci114

  J. R. dos Santos Júnior (1948b) Relatório da 5.ª Campanha da Missão Antropológica de Moçambique, p. 108. 21   J. R. dos Santos Júnior (1948b) Relatório da 5.ª Campanha da Missão Antropológica de Moçambique, p. 103. 20

Missão Antropológica de Moçambique (1936-1956)

mento, a salvaguarda e a preservação do património histórico-cultural de Moçambique? Efetivamente, ainda que servindo então propósitos específicos, a terra, as gentes e o seu quotidiano emergem destas imagens testemunhando a imensa riqueza e diversidade de Moçambique sugerindo, independentemente desses propósitos, um “para além” dessa leitura imediata que importa considerar. “Como ultrapassar a superfície da imagem fotográfica e, do mesmo modo que Alice nos espelhos, ver através da imagem?” 23 Como perceber esses outros aspetos que nas imagens nos revelam a diversidade étnica e cultural de Moçambique, as suas múltiplas geografias, paisagens e patrimónios?

Considerações finais

  J. R. dos Santos Júnior (1948b) Relatório da 5.ª Campanha da Missão Antropológica de Moçambique, p. 103-108. 23   Ana Maria Maud, “Através da Imagem”, p. 5. 24   Roland Barthes, O Grão da Voz, (Lisboa, Edições 70, 1982), p. 346. 25   J. Le Goff, “Documento/Monumento”, p. 94. 22

Não se pretendeu fazer aqui uma abordagem exaustiva às muitas e diversas formas de equacionar a questão do papel da fotografia em contexto colonial e da sua utilização atual enquanto documento histórico mas, apenas, uma reflexão em torno de algumas questões que esta temática suscita. E, mais particularmente, questões que foram surgindo no decurso de um trabalho que, não sendo sobre fotografia, teria sido impossível de levar a cabo sem a considerar. Segundo Roland Barthes, “a fotografia é uma testemunha, mas é uma testemunha do que já não existe. Mesmo que o sujeito continue vivo, o que foi fotografado foi um momento do sujeito e esse momento já não existe (...) cada acto de captura e leitura de uma fotografia é implicitamente (...) um contacto com o que já não existe... 24”. Assim, a fotografia é, desde logo pela sua própria natureza e independentemente do fotógrafo ou do objeto fotografado, um documento histórico que, com tal, implica questionar. Um documento/monumento cuja utilização resulta de escolhas deliberadas, quer de quem o produziu, quer de quem o questiona hoje como testemunho de um passado que se quer compreender 25. E são as questões de quem as olha, que lhes dão significado. Neste contexto, e considerando especificamente a coleção de fotografias que integra o espólio da Missão Antropológica de Moçambique, o que gostaríamos de deixar aqui para reflexão é não só papel da fotografia como instrumento de trabalho e propaganda do sistema colonial, mas sobretudo o do seu papel enquanto documento que merece e deve ser usado na perspetiva das inúmeras informações que encerra e que, inequivocamente, nos remete para uma multiplicidade de leituras que nos leva muito para além do contexto colonial.

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