A campanha policial contra os tóxicos em Porto Alegre no final dos anos de 1920.

May 30, 2017 | Autor: C. Martins Torcato | Categoria: HISTORY OF CRIME AND LAW, História do Rio Grande do Sul, History of Drug Laws
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A CAMPANHA POLICIAL CONTRA OS TÓXICOS EM PORTO ALEGRE NO FINAL DOS ANOS DE 1920. Carlos Eduardo Martins Torcato RESUMO Durante o século XIX, as drogas que hoje são ilícitas eram consideradas produtos terapêuticos e vendidas nas boticas e nas farmácias. Consumidas por segmentos das elites, tais fármacos passaram a ser entendidos como ‘vícios sociais elegantes’ por estarem associados a uma decadência aristocrática. A popularização desse consumo gerou alarde social e crescente intervenção dos poderes públicos na comercialização desses gêneros. O serviço sanitário implantado pelo Partido Republicano Rio-grandense (PRR) era baseado no conceito positivista de liberdade das profissões, fato que levou a classe médica para uma posição crítica em relação à regulamentação. A gradual abertura política ocorrida depois do Pacto de Pedras Altas (1923) propiciou uma aproximação do governo com a classe médica. Essa aliança foi marcada pelo engajamento do poder público na repressão à venda de tóxicos, pois essa política era uma reivindicação antiga dos médicos e fundamental para efetivar o monopólio terapêutico. Os tradicionais métodos inquisitoriais foram utilizados no controle das farmácias e alguns farmacêuticos acabaram respondendo à justiça. Os processos-crimes dessa campanha repressiva mostram algumas características do sistema de justiça criminal gaúcho – e seus temidos métodos inquisitoriais. A polícia sanitária atuou sobre as classes populares e proprietários de farmácia, denotando tratamento diferencial segundo prestígio social dos réus. Palavras-chave: Rio Grande do Sul; política sanitária; política sobre drogas

Gostaria de iniciar essa apresentação fazendo um agradecimento às coordenadoras desse Simpósio Temático e expressar minha satisfação de estar participando do terceiro evento desse tipo organizado pelo Grupo de Trabalho (GT) em História do crime, da Polícia, das Práticas de Justiça e Suas Fontes. Agora em parceria com o Grupo de Pesquisa Memória, justiça e poder vinculado à Universidade de Caxias do Sul (UCS). Vida longa a essa parceria! Feito esse parêntese inicial partimos para o tema que anima essa comunicação. Estou aqui mais uma vez para falar das particularidades da organização política do Rio Grande do Sul na Primeira República. Os republicanos gaúchos eram uma minoria em termos eleitorais, porém superavam a oposição em organização e disciplina de seus membros. O modelo de organização partidária, feito em clubes e divulgado em jornais, foi responsável por essa eficiência de sua militância. Antes do final do Império o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) já teria se tornado o segundo partido do estado – superando os conservadores. Porém ainda estava longe de afetar a hegemonia do Partido Liberal.

Os eventos que seguiram a proclamação da República foram decisivos para a ascensão dos republicanos. O segundo grupo político do Estado, que assumia o poder, teve que enfrentar ferrenha oposição dos liberais – fato que resultou na guerra civil que durou entre 1893 e 1895. Esse conflito, que a historiografia consagrou com o nome de Revolução Federalista, foi fundamental para a consolidação da república. O fato do Rio Grande do Sul ter sido o palco dos conflitos de consolidação do novo regime nacional teve enormes consequências na posterior organização política e institucional – consolidando aquilo que foi chamado, por diversas vezes, de particularidades dos gaúchos. O PRR, que teve o apoio do exército brasileiro, foi o vencedor da guerra civil. Mas a vitória não se deu somente por causa da intervenção do governo federal. Ao longo do conflito se consolidou a Brigada Militar (BM), uma das instituições que seria fundamental para garantir a hegemonia desse grupo político. Ao final dos confrontos, a BM correspondia a um terço do efetivo militar da recém-instaurada república. Curioso notar que, ao longo do tempo, ela passou a rejeitar essa simbologia republicana para se colocar como uma instituição atemporal que existe desde 1837 – quando foi fundada a Força Policial.1 Foi, portanto, com base na força militar que o novo grupo dirigente se sustentava (ARAUJO, 2013, p.21-40; KARNIKOWSKI, 2010, p.90-190) – era uma legítima ditadura civil-militar. O desprezo pelas instituições representativas pode ser percebido pelo papel secundário que a Assembleia Legislativa passou a ter a partir de então. Os antigos e acalorados debates que ocorriam na Assembleia Provincial deixaram de existir. As novas reuniões eram apenas figurativas, pois a oposição foi excluída da política convencional. Outro ponto bastante elucidativo dessas particularidades da política gaúcha pode ser percebido na organização policial que foi adotada a partir de então. O cargo de Delegado, que no Rio de Janeiro era desprestigiado dentro da carreira jurídica (BRETAS, 1997a, p.207-208), teve grande importância no Rio Grande do Sul. O Chefe de Polícia, assim como os subchefes do interior, era responsável tanto pela ordem pública, quanto pela articulação e apaziguamento político com as lideranças locais (MAUCH, 2004, p.165-172). 1

Último acesso: 04 de Julho de 2016.

As particularidades da política gaúcha não se resumiam ao exército e ao sistema de justiça criminal. Uma das medidas mais polêmicas adotada pelos republicanos se refere à política sanitária. Inspirado no ideário positivista, os governantes acreditavam que cabia ao poder público incentivar a educação de modo a aprimorar a racionalidade dos cidadãos. Nesse sentido, a mudança social deveria ocorrer em primeiro lugar no plano das ideias, depois nos costumes e só por último nas instituições. Caberia ao poder público garantir a liberdade de consciência, de profissão e de indústria – eliminando quaisquer privilégios nobiliários, teológicos ou acadêmicos. A saúde pública era pensada dentro desse arcabouço; dentro dos limites da liberdade individual. Essa perspectiva era diferente daquela que triunfou em âmbito nacional, pois embora a Constituição de 1891 garantisse a liberdade das profissões, o Código Penal de 1890 introduziu alguns artigos criminalizando as práticas terapêuticas realizadas fora do âmbito acadêmico oficial. No Rio de Janeiro, por exemplo, existia um tribunal especializado nesse tipo de crime (WEBER, 1999, p.41-44). O positivismo, portanto, inspirou o governo sul-rio-grandense a tomar uma série de atitudes bastante singulares em relação à fiscalização do exercício da medicina. Argumentavam os defensores da liberdade profissional que a medicina não era uma ciência consensual, como ficava evidenciado nas disputas entre alopatas e homeopatas; além disso, se a medicina oficial fosse superior às demais, as pessoas procurariam livremente os serviços dos médicos diplomados sem que fosse necessário o poder público forçar os doentes a fazê-lo; a questão da vacinação obrigatória, que gerou a famigerada Revolta da Vacina no Rio de Janeiro em 1904, era mais um argumento utilizado para desqualificar as pretensões monopolísticas da saúde pública. Dessa forma, a Inspetoria de Higiene do Rio Grande do Sul passou a exigir somente um registro para que os curadores das mais diversas tendências pudessem exercer suas artes de curar (WEBER, 1999, p.44-49). Essa postura adotada pelo governo do Rio Grande do Sul gerou, na época, a ira da classe médica oficial, pois contrariou os interesses defendidos por essa classe desde o início da institucionalização das faculdades de medicina no país no início do século XIX. Aos olhos desses profissionais tratava-se de um claro retrocesso, da defesa do charlatanismo contra a ciência e um atentado à saúde pública. O Rio Grande do Sul retrocederia em um ponto (criminalização das práticas não oficiais de cura) já

consensual em outras partes do país. É uma medida que foi contra uma tendência que seguiria firme e forte ao longo de todo o século XX, a saber, a centralização do ato terapêutico na figura do médico. Tendência essa que continua atuante – como foi possível perceber nas acaloradas disputas em torno do projeto do Ato Médico. É preciso, entretanto, nos precavermos dos perigos do anacronismo – o pecado capital do historiador. Quando ficamos enfermos a primeira medida é buscarmos o conselho de familiares ou pessoas próximas sobre uma forma de enfrentar o problema. Se os sintomas pioram o caminho quase automático é buscarmos o auxílio do médico, que procurará fazer um diagnóstico da doença para, enfim, propor uma terapêutica. Importante destacarmos que esse caminho hoje percebido como natural é bastante recente em termos históricos, pois se consolidou apenas em meados do século XX com o advento da quimioterapia – que não tem a ver com a qualidade química dos medicamentos, mas sim com a propriedade que ataca uma doença específica. O antibiótico é o tipo-ideal dos quimioterápicos. Quando pensamos as políticas sanitárias do final do século XIX e início do século XX, portanto, precisamos levar em conta o hiato que existe entre as descobertas de Pasteur e os avanços do entendimento sobre as doenças e as reais possibilidades terapêuticas disponíveis. A famigerada “revolução pasteuriana” teve como correlato àquilo que Jane Dutra Sayd (1998, p.177-182) descreveu como o ceticismo terapêutico. Era um pensamento típico daquela época; uma desconfiança sobre a atividade médica, pois ela era incapaz de debelar a causa da doença; enfim, muitas vezes a intervenção médica era inútil. A terapêutica oficial passou a ser percebida como uma prática inócua, supersticiosa e primitiva. Agora que já expus um pouco as particularidades políticas do Rio Grande do Sul e a crise que a terapêutica sofreu com o advento dos preceitos pasteurianos poderemos entrar na questão do uso das drogas. Esse tema foi objeto da minha Tese que está em vias de ser defendida (09/08/16). Muitas das substâncias que hoje são proibidas, como a cocaína, ópio e a heroína, ou de uso estritamente médico, como a morfina, no começo do século XX, eram importantes elementos terapêuticos. Embora não se conhecesse meios de debelar as causas das doenças, apenas preveni-las através de vacinas, as pessoas continuavam a sofrer com os seus efeitos. E era para contornar esse sofrimento, na forma de terapia sintomática, que esses medicamentos eram utilizados.

São vários os desdobramentos do uso dessas drogas como medicamentos. Para efeitos do argumento que apresento nessa comunicação, gostaria de destacar que o discurso médico oficial tratou, desde cedo, de desqualificar o uso dessas substâncias pela terapêutica oficial. Foi feita uma verdadeira política de esquecimento visando negar ou diminuir as utilidades médicas desses fármacos. No capítulo quatro da Tese eu procurei mostrar como esse discurso, tido como técnico, na verdade é político. Os médicos seguiram utilizando, durante toda a primeira metade do século XX, esses medicamentos. A diferença entre o leigo e o médico não residia no uso ou não de drogas, pois todos usavam; a diferença residia na quantidade, pois o médico acreditava que ótimos efeitos eram possíveis de se obter com pequenas doses; o leigo, acuado pela dor, perderia o critério de razoabilidade. Esses eram os termos de uma disputa sobre a autoridade de definir quanto, onde e como os antálgicos deveriam ser consumidos. Fundamental para o sucesso da comercialização dos serviços médicos que os leigos perdessem a autonomia sobre os estados de dor. Hoje se negam as qualidades terapêuticas de certas substâncias para transformar a autoridade médica sobre a dor algo atemporal. Essas ponderações ajudam a contextualizar as políticas adotadas pelos republicanos gaúchos em relação às políticas de controle sobre o comércio de drogas. Eles foram refratários aos controles em nome da liberdade individual. Mas para entender essa particularidade dos gaúchos é preciso ter em conta como funcionavam as políticas de drogas em âmbito nacional no mesmo período. Hoje está mais do que evidente o fracasso do controle policial sobre o comércio de drogas: ele favorece o mercado ilícito; justifica a existência de um aparato bélico de segurança pública; não diminui o consumo; amplia a vulnerabilidade de certas camadas sociais; entre outros problemas. E no Rio Grande do Sul a situação é ainda pior, pois somos da terra do Osmar Terra – desculpe o trocadilho; aqui é o único lugar que a prevenção ao uso de drogas tem o lema “nem pensar”; e onde se defende continuar fazendo o que nunca deu certo imaginando que possa dar. Se a gente é a terra do atraso, poucos são aqueles que pretendem um vínculo com a atual política nesse campo. O discurso diplomático (SILVA, 2013), assim como o médico, faz questão de apelar para o esquecimento. Nesse discurso, nas conferências internacionais sobre o tema, o Brasil teria sido mero espectador e assumido as

normativas elaboradas a partir de realidades distantes da sua. Assim, “somente em meados dos anos oitenta o governo se deu conta da necessidade de engajar-se no tema” (SILVA, 2013, p.47). Essa interpretação é quase como uma justificativa; uma isenção de culpa frente à falência das políticas atuais. O que se procura esconder é que desde cedo o Brasil se engajou no controle do comércio de “entorpecentes”; nosso país também tem culpa pela atual situação. Pensar nas políticas restritivas no campo do comércio de drogas, no Brasil republicano, esbarra na natureza federalista da Constituição de 1891. Nós já vimos, no começo dessa comunicação, como o Rio Grande do Sul teve uma legislação bastante singular no que tange a política sanitária. Por isso, falar de uma política nacional é bastante complicado. As iniciativas adotadas no Rio de Janeiro, nesse sentido, não podem ser consideradas nacionais – elas eram no máximo um modelo que deveria, ou poderia, ser observada pelos outros estados. Procurei mostrar no capítulo cinco da Tese as precoces iniciativas do poder público no controle desse comércio – desde 1904. Isso significa que as políticas restritivas adotadas na capital federal eram praticamente contemporâneas àquelas adotadas nos Estados Unidos – que é percebido pelo discurso diplomático como o grande defensor do uso médico legítimo. O estado de São Paulo, igualmente, foi precoce na adoção de medidas restritivas para o comércio de medicamentos. O que se percebe, em relação a esses estados, é que, além de criminalizarem as práticas terapêuticas não oficiais, eles limitavam o acesso aos antálgicos à população em geral sobre o argumento de proteger as pessoas dos seus vícios – mesmo que para isso fosse necessário condená-las a viver e conviver com a dor. Se a natureza federalista da república brasileira impede de fazermos considerações nacionais sobre a política de drogas, podemos utilizar os estados do Rio de Janeiro e de São Paulo como parâmetros de comparação. Se nesses estados as políticas de controle aos entorpecentes foram bastante incipientes, o mesmo não pode ser dito do Rio Grande do Sul. Os preceitos positivistas que enfatizavam a liberdade individual como limite a ação do Estado impedia os médicos de efetivar seu controle sobre os antálgicos. Por isso, a classe médica gaúcha buscou associar em seu discurso de condenação à política sanitária do estado a outras demandas, conforme é possível perceber nesse excerto da Dissertação da Lizete Kummer.

“A proteção à infância e à família, a prostituição, o alcoolismo e as toxicomanias, e a saúde pública em geral aparecem vinculados ao fim da liberdade Profissional, que acabou se tornando uma ‘obra de patriotismo’” (KUMMER, 2002, p.101).

A gente pode perceber que o consumo de drogas, de álcool e outras práticas sociais faziam parte do escopo discursivo que associava negligência do governo às mazelas sociais. Essa situação de oposição entre classe médica e governo acabará se alterando no decorrer da década de 1920. No nosso estado o silêncio da oposição levou ao levante armado e a nova guerra civil, opondo chimangos (governistas) e maragatos. Dessa vez, ao contrário do que ocorreu no confronto do final do século XIX, a oposição não saiu totalmente derrotada. O Pacto de Pedras Altas, assinado em fins de 1923, teve como consequência o fim do ostracismo dos liberais – eles poderiam a partir de então participar da política formal. Estava aberta a porta da conciliação do poder público com a classe médica. Em âmbito nacional, por sua vez, é possível perceber o fortalecimento do movimento sanitarista e a crescente defesa de maior responsabilização do governo federal no campo da saúde pública. A repressão à venda de substâncias com qualidades “entorpecentes”, que ocorria no Rio de Janeiro e em São Paulo desde o início do século XX, começa a tomar corpo também no Rio Grande do Sul a partir de meados da década de 1920. Na revista Arquivos Rio-Grandense de Medicina, em 1928, o médico Argymiro Galvão comemorava o novo momento vivo pelo Estado. Segundo matéria intitulada “Toxicomanias”, as drogas gerariam um “espetáculo dantesco” causado pelas degenerações físicas; elas seriam um impeditivo para a condução de uma “raça a caminho da vitória”, pois levaria a “infecundidade das uniões concorrendo para a baixa do expoente da população; o adultério, a prostituição, a degradação do sentido genésico, o roubo, o suicídio, enfim tudo quanto é mau se reúne” (GALVÃO, 1928, p.12).

O Rio Grande do Sul “preparava-se para a derrocada da sua tradicional nobreza” quando o governo começou a dar os primeiros sinais de adesão aos princípios da

“higiene moderna”. Embora muito teria que ser feito nessa área, levando em consideração “o tempo em que permaneceu abandonada”, era considerado salutar o novo engajamento do governo contra o comércio ilícito de entorpecentes. Nem mesmo os argumentos que enfatizam a liberdade individual poderiam esconder o fato que o comércio de entorpecentes se acha “entregue ao sabor dos eunucos morais, proprietários de certas farmácias, a venda franca e desembaraçada de cocaína, morfina, etc” Esse discurso apresentado acima é emblemático, portanto, de uma antiga demanda da classe médica que enfim estava sendo atendida. O alvo estava bem delimitado – os “eunucos morais, proprietários de certas farmácias” que vendiam os terríveis “entorpecentes” a uma população despreparada. Percebe-se que existia, como pano de fundo, uma disputa entre as classes terapêuticas locais a respeito da autoridade sobre as formas de acesso a determinados produtos. Existia também uma cultura farmacológica baseada em medicamentos de uso consagrados e que passava a ser criticada dentro de uma nosologia voltada para a doença e não para o doente. A consolidação da posição da classe médica significava a restrição de acesso aos antálgicos – que continuariam a ser procurados por pessoas sem receita e vendidos de maneira informal (na pessoalidade). As fontes trazidas nos mostram, portanto, uma disputa interna entre as classes terapêuticas que se traduziu em uma demanda fiscalizadora para o poder público: como fazer valer as normativas? Para esse trabalho existe todo o aparato de justiça criminal e suas fontes. Durante a pesquisa de doutorado busquei documentos desse tipo no Arquivo Público do Rio Grande do Sul (APERGS). Foram encontrados: a vinte e seis (26) processos-crimes e trinta e nove (39) pessoas denunciadas pelo Ministério Público estadual. Não é possível saber se esses documentos correspondem à totalidade dos casos; não sabemos os motivos porque esses, e não outros, foram os escolhidos para serem preservados. Independente dessas limitações, temos um recorte preservado e que pode servir de referência até que outras fontes e estudos tragam novos elementos para análise. Para finalizar essa exposição gostaria de trazer algumas observações para discussão a partir do banco de dados formado com esses processos-crimes. A atuação da polícia foi predominantemente sobre as classes populares: 1º. Dos 39 processados, 34 (cerca de 87%) eram membros das classes populares; meretrizes, jornaleiros, barbeiros,

choferes, vendedores de loteria, etc; o foco eram as pessoas conhecidas como “rápidos”, que faziam o trânsito do comércio para as meretrizes; 2º. Foram processados também cinco integrantes (5) das classes terapêuticas, um médico (1) e quatro farmacêuticos (4); o processo contra o médico destoa dos demais porque ocorre em 1938 quando o contexto era outro – o cerco à venda dos antálgicos clássicos, a introdução das boletas modernas e a repressão à dissidência no interior da classe médica; sobre os farmacêuticos gostaria de fazer uma observação mais detalhada. O professor Marcos Bretas, desde os anos 90, já apontava que “eram frequentes os casos de venda ou consumo de cocaína, mas, nas delegacias, eles raramente envolviam membros da elite. Ao contrário, a repressão às drogas se concentrava na prostituição, meio no qual a polícia encontrava o principal grupo consumidor” (BRETAS, 1997, p.84)

O que quero chamar a atenção nessa comunicação é que a repressão aos tóxicos no Rio Grande do Sul envolveu membros das classes mais altas. Os farmacêuticos eram pessoas com estudos, não raros proprietários, que tinham famílias constituídas nos moldes tradicionais. Durante a sua defesa contaram com advogados, impunham habeas corpus e todo o tipo de gasto que esse tipo de ocasião exige. Definitivamente não é possível qualifica-los como populares. Tanto eles, quando os demais, eram quase sempre absolvidos quando chegavam ao Tribunal do Júri – fato que vem corroborar com a hipótese da impopularidade desse tipo de controle. Finalizo por aqui. A pesquisa sobre essa temática ainda está recém começando. É preciso ainda que sejam olhados os documentos do serviço sanitário e os jornais; também é possível que existam prontuários. Tomara que essa comunicação anime outras pessoas a continuar a busca por respostas sobre tão instigante tema de pesquisa. Fico à disposição para a troca de ideias e os esclarecimentos que sejam necessários. Obrigado. Fontes primárias: GALVÃO, Argymiro. Toxicomanias. Arquivos Rio-Grandenses de Medicina. Ano VII, Nº 6, p.11-16, 1928.

Referências bibliográficas:

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BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial. Rio de Janeiro: Rocco, 1997a.

______. Observações sobre a falência dos modelos policiais. Revista de Sociologia da USP. V.1, n.9, p.79-94, 1997b.

KARNIKOWSKI, Romeu Machado. De exército estadual à polícia-militar: o papel dos oficiais na policialização da Brigada Militar. Tese. (PPG - Sociologia / UFRGS), 2010.

KUMMER, Lizete Oliveira. A medicina social e a liberdade profissional: os médicos gaúchos na primeira república. Dissertação. (PPG - História / UFRGS), 2002.

MAUCH, Claudia. Ordem Pública e Moralidade: imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na década de 1890. Santa Cruz do Sul: Editora da UNISC/ ANPUH-RS, 2004.

SAYD, Jane Dutra. Mediar, Medicar, Remediar: Aspectos da terapêutica na medicina ocidental. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1998.

SILVA, Luiza Lopes da. A Questão das Drogas nas Relações Internacionais: Uma perspectiva brasileira. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013.

WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na república rio-grandense (1889-1928). Santa Maria / Bauru: UFSM / EDUSC, 1999.

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