A Cannabis no Brasil: Origens e disseminação da proibição

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências Humanas Curso de Licenciatura Plena em História

Trabalho de Conclusão de Curso

A Cannabis no Brasil: Origens e disseminação da proibição

Paulo Ricardo Vargas da Rocha Junior

Pelotas, 2015

PAULO RICARDO VARGAS DA ROCHA JUNIOR

A Cannabis no Brasil: Origens e disseminação da proibição

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Licenciatura Plena em História.

Orientador: Prof. Dr. Adhemar Lourenço da Silva Júnior

Pelotas, 2015

A todos que compartilharam e contribuíram para realização deste trabalho. Às orientações, aos amigos e familiares. Dedico este momento a minha mãe, a memória de meu pai e a minha amada que foi minha companheira em todos momentos.

“Morreu um irmão como safado sem vergonha Tiro na cabeça por que foi buscar maconha Hoje parece que isso não tem mais valor Menos um maconheiro, ninguém se importou Será que isso é pura ignorância? Não. É um sistema manipulando a informação.” Planet Hemp - Dig Dig Dig (1995)

RESUMO

VARGAS JUNIOR, Paulo. A Cannabis no Brasil: Origens e disseminação da proibição. 2015. 44f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura Plena em História) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2015.

O trabalho consiste na análise dos fatos que levaram a Cannabis de uma forte aliada à sociedade ao patamar de causadora de violência e criminalidade. Intimamente relacionada com diferentes povos e culturas, a planta, foi fundamental em determinados períodos do desenvolvimento humano em diversas áreas como alimentícia, espiritual, para confecções através de suas fibras, assim como, para uso recreativo. Porém, nessa trajetória a Cannabis se deparou com restrições em certos pontos da história esbarrando em interesses pessoais daqueles que detinham o poder das decisões em massa. Sua infinidade de usos tornou-se uma perigosa ameaça para a indústria, principalmente a têxtil e petrolífera, ganhando o apoio de grandes redes de comunicação e fortes aliados estatais que demonstraram interesse em banir a Cannabis do mercado já que a mesma estava ligada a etnias incomodas a esses governantes. Os anseios da manutenção da hegemonia pela elite com o intuito de se manter no poder foram fomentados por políticas e interesses mercadológicos, baseados em argumentações racistas, que culminaram por excluir o negro da sociedade brasileira. Nesse ponto que é focado o trabalho, na manobra realizada para que o descendente africano, já um brasileiro nato, fosse marginalizado para que com isso pudessem ainda manterem-se sob controle pela elite branca descontente com a perca da sua propriedade: o escravo. Para isso, tentaram desenraizar o negro profundamente cerceando seu cotidiano e os aspectos culturais como a capoeira, a prática religiosa e uma planta que fora trazida consigo da mãe África: a Cannabis. Palavras-chave: Cannabis; Brasil; racismo.

ABSTRACT

VARGAS JUNIOR, Paulo. The Cannabis in Brazil - Origins and spread of ban. 2015. 44f. Term Paper (Full Degree course of History) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2015.

The work consists of the analysis of the facts that led to cannabis a strong ally to society to the level of causing violence and crime. Closely related to different peoples and cultures, the plant was instrumental in certain periods of human development in areas such as food, spiritual, for clothing through its fibers, as well as for recreational use. However, this trajectory cannabis encountered restrictions at certain points in history bumping into personal interests of those in power of mass decisions. Its multitude of uses has become a dangerous threat to the industry, particularly the textile and oil, winning the support of large networks of communication and strong state allies that have shown interest in banishing the market Cannabis since it was linked to awkward ethnicities these rulers. The wishes of maintaining the hegemony of the elite in order to remain in power were fomented by political and market interests, based on racist arguments, which led to exclude the black of Brazilian society. At this point it's focused work, the maneuver performed to the African descendant, as a born Brazilian, was sidelined for with it could still keep under control by the white elite unhappy with the loss of their property: the slave. For this, they tried to deep uproot the black restricting their daily lives and cultural aspects such as capoeira, religious practice and a plant that had been brought with them from Africa mother: Cannabis. Keywords: Cannabis; Brazil; racism.

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 Relação entre tipos de drogas, danos a usuários e terceiros ................ 23 Gráfico 2 Relação entre tipos de drogas, danos a usuários e terceiros – detalhado ............................................................................................................. ... 24

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SUMÁRIO

1

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 10

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AS ORIGENS DA CANNABIS .......................................................................... 13

3

MUNDO: ORIGEM E DISSEMINAÇÃO DA PROIBIÇÃO ............................... 18

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BRASIL: ORIGEM E DISSEMINAÇÃO DA PROIBIÇÃO ................................ 26

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CONCLUSÕES ................................................................................................. 40

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 42

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1 INTRODUÇÃO

Quando no dia a dia nos deparamos com a palavra “Drogas” o pensamento consequente, em geral, remete à violência, criminalidade, tráfico, crime organizado, etc. Se elencarmos os assuntos mais debatidos durante o século XXI o tema aparece em local de destaque principalmente devidos às contradições e polêmicas que permeiam discussões acerca da questão. E não é por menos tendo em vista que nesse período tornou-se intensificado o combate e a criminalização de substâncias psicotrópicas. Droga1 que servia para designar produtos utilizados com intuitos medicinais ou alimentícios adquiriu no decorrer da história um conceito diferente, apresentandose na contemporaneidade como sinônimo de coisa ruim, imprestável, algo danoso. Nesse sentido droga pode ser subdividido em duas categorias: lícitas e ilícitas. As chamadas drogas lícitas são aquelas que possuem regulamentação para consumo e comercialização, podendo também não exigir uma forma de controle, variando de acordo com a legislação de cada país. Cá no Brasil podemos exemplificar citando o álcool, o café, a aspirina, o cigarro, etc. Já as drogas ilícitas são aquelas de consumo e comércio criminalizado, ou seja, a fabricação, posse ou uso é passível de punição. Em terras tupiniquins estão nessa categoria a cocaína, a substância

conhecida

como

LSD

(sigla

Lysergsäurediethylamid, conhecida em português 1

da

palavra

em

alemão

por ácido lisérgico), alguns

Droga é derivação do termo holandês “droog” que, de acordo com o historiador Henrique Carneiro (2005), era utilizado para produtos secos e substâncias naturais utilizados na alimentação e na medicina. E antes da definição bem clara dos tempos atuais, na época colonial era um “conjunto de riquezas exótica, produtos de luxo destinados ao consumo, ao uso médico e também como ‘adubo’ da alimentação, o que conhecemos como especiarias.” (CARNEIRO, 2005. p. 13)

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medicamentos e claro o alvo do estudo: a Cannabis. Porém, os critérios que decidem quais substâncias devem integrar o grupo de drogas lícitas ou ilícitas é escuso e de pouca lógica, pois, as razões da criminalização das substâncias mostram-se incoerentes quando observamos os principais critérios para a classificação da nocividade delas. Porém, nem sempre seu status foi de inimiga, ao contrário, possuiu características de um forte aliado, de suma importância em alguns períodos do desenvolvimento humano e, no quadro projetado para o futuro da sociedade, tem a possibilidade de voltar a ser utilizada em todo seu potencial nas suas diversas formas. Para isso, é preciso que haja o resgate de sua história com o ser humano, estudos científicos sem raízes preconceituosas ou manipulados por interesses mercadológicos e políticos, que ajudem a uma correta alocação e regulamentação do seu uso. Se hoje associamos a planta com criminalidade e violência é devido a um intenso trabalho de demonização que perdura ao longo de muitos anos. Essa campanha em prol da depreciação toma um forte impulso após as décadas inicias do século XX, tendo como base interesses políticos e econômicos, utilizando principalmente quesitos fundamentados em preconceitos raciais para justificação das medidas adotadas para o ecocídio2 da Cannabis. Diante das contradições que cerceiam a proibição da Cannabis, surgiu o intuito de elaborar esse estudo com o objetivo de identificar quais razões levaram sua inclusão na lista de substâncias proibidas provocando o ecocídio da planta. Focaremos principalmente no caso brasileiro, e como veremos a seguir, nas entrelinhas dos argumentos de proteção à saúde pública, existem interesses ocultos para a marginalização da Cannabis. O objetivo do trabalho é observarmos de qual modo a proibição foi implementada no Brasil e quais motivos levaram-na a esse cenário. Encontraremos um quadro que parece motivado mais pela segregação racial, favorecimento econômico e a manutenção do quadro social, para que a hegemonia da Elite não fosse abalada, do que propriamente uma política para segurança e bem-estar social. Tendo em vista a intensificação das discussões sobre legalizar ou não a

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Expressão que pode ser utilizada para fazer referência à destruição em larga escala do meio ambiente.

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Cannabis se faz necessário uma melhor compreensão da cultura canábica 3, e para que possamos entender a ideia proposta por este estudo, vamos começar pelo começo, ou seja, as origens da planta.

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Cultura canábica é um termo utilizado para abranger os diversos temas cujo o qual tenham na planta inspiração ou influência como, por exemplo, música, literatura, religião, costumes e hábitos.

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2 AS ORIGENS DA CANNABIS

Michel Foucault cita que “as drogas são parte de nossa cultura. [...]Da mesma forma que não podemos dizer que somos contra a música, não podemos dizer que somos contra as drogas”. (FOUCAULT, 2004, p. 264). E para compreendermos a cultura canábica e os fatores ligados à proibição é preciso conhecer um pouco mais sobre sua origem e trajetória, intimamente ligada ao desenvolvimento da sociedade e do ser humano, tendo em vista que, do modo como vemos a Cannabis na conjuntura social dos dias atuais essa ideia parece inconcebível. Uma das ramificações inerentes à política repressiva de combate ao uso de drogas é a supressão de informações a respeito delas, o que gera um obstáculo a mais para o embasamento das opiniões para um debate sério e coerente sobre o tema. Os motivos para isso são claros: a desinformação para que a manipulação dos interessados na ignorância da massa populacional seja possível. Como dito anteriormente, a Cannabis se mostrou presente em determinados pontos da trajetória Humana sobre a terra, no entanto, sua participação é ainda maior. A Cannabis não tem ocupada a justa posição de sua importância, pois, a planta nem sempre foi uma geradora de violência e criminalidade. Durante muitos séculos ela foi, e apesar de toda repressão, continua sendo um elemento cultural presente em diversas sociedades em todo o mundo, ocupando espaços da vida dos seres integrantes dessas comunidades seja como alimento, uso recreativo, matériaprima para manufatura ou religioso, sendo apontada inclusive como um catalisador para o pensamento mítico humano (LABATE; GOULART, 2005). Em certa apresentação, o comediante Márcio Américo, fala em um de seus textos diz que: “Tem gente que fala de maconha e não sabe se dá em cacho ou se

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penca, nunca viu um baseado!”4. E não está de um todo errado, pois, apesar de todos aprendermos desde cedo para ficarmos longe das drogas, em pouco realmente conhecemos do que se tratam as substâncias e superficialmente sabemos quais motivos para evitar o uso. Sendo assim, para sanar possíveis dúvidas, vamos conhecer a Cannabis. Então o que é a Cannabis? Biologicamente falando é uma espécie herbácea da família Cannabacea. Botanicamente o gênero Cannabis divide-se em três tipos: Cannabis indica, Cannabis ruderalis e a mais conhecida Cannabis sativa. A Cannabis é um gênero monotípico, o que em botânica, significa que este gênero possui apenas uma espécie (C. sativa). No sentido morfológico a flor é o aparelho reprodutor da planta. E a planta em questão possui flores com os sexos separados (unissexuadas) , ou seja, a flor ou é macho ou é fêmea. Desta forma, a flor macho produz o pólen que fecunda a flor fêmea, quando ocorre a fecundação na flor feminina ela forma as sementes. De forma que as plantas de Cannabis podem ter exemplares monoicos ou dioicos (SOUZA; LORENZI, 2008). As plantas dioicas são as que possuem uma forma sexual em cada organismo. Assim uma planta pode ter apenas flores femininas e necessitar de outra planta (outro organismo) com flores masculinas para completar a fecundação. Pelo contrário, se o organismo for monoico ele terá as flores masculinas e femininas em um só exemplar, na mesma planta. As espécies de Cannabis podem apresentar ambas as formas. É necessário frisar que se não ocorre a fecundação, a flor fêmea excreta uma grande quantidade de resina composta por dezenas de substâncias diferentes, entre elas o THC (delta-9-tetrahidrocanabinol). Apesar do THC estar presente em toda a planta é na flor da fêmea que se encontra a maior concentração da substância. Já o cânhamo é da mesma espécie da maconha (Cannabis sativa) porém é uma variedade que possui menor concentração desta substância (THC) (ROBSON, 1999). Popularmente é conhecida por diversos nomes variando de acordo com a região e acumulando-se ao longo do tempo. Alguns exemplos são: Maconha, haxixe, baseado, cânhamo, fumo d’Angola, camarão, prensado, pito de pango, dirijo, diamba, etc.

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Comedia stand Up – Progrma do Jô – Humor na Caneca – Márcio Américo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OPkvK1HPihE (acessado em: 15/11/2015)

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Mas de onde vem a planta? As origens geográficas não possuem um consenso, porém, acredita-se que o marco zero de sua existência seja a região da Ásia Central e Oriente Médio5, (ROBINSON, 1999) vindo a ser difundida pelo globo terrestre junto a migração humana que desde tempos remotos apresenta forte ligação com a Cannabis e, posteriormente, alcançando todos continentes com o advento das navegações ultramarinas. Um dos vestígios mais antigos da Cannabis já encontrados, datados em cerca de 12 mil anos, ainda no período neolítico, trata-se de vasos feitos com barro e corda de cânhamo descobertos em um sítio na província de Yuan-shan (atual Taiwan). A farmacopeia6 mais antiga existente, a Pen’Tsao Ching, que teve sua compilação estimada entre os séculos I e II A.C. já indicava a Cannabis para diversos males, sendo conhecida dos chineses pelo menos há 2000 anos onde a planta aparece presente na farmacopeia que recomenda seu uso para prisão de ventre, malária, reumatismo e dores menstruais (ROBINSON, 1999). A planta aparece também nas ruínas de Pompeia através de sementes carbonizadas, em pedaços de tecidos e pólen encontrados no túmulo do faraó Akhenaton e na múmia de Ramsés II, respectivamente (ROBINSON, 1999). Porém, essa relação do ser humano com a Cannabis com certeza é bem mais antiga, pois, por se tratar de um organismo biológico, ou seja, orgânico, tem sua decomposição rápida tornando difícil de encontrar indícios remotos de sua existência, principalmente em períodos anteriores ao advento de técnicas de perpetuação da memória como a escrita. A prática de alterar o estado de consciência através do uso de substâncias é algo que remonta a milhares de anos, e não só pelos seres humanos. O uso intencional dessas substâncias pode ser observado em outros seres vivos como mariposas, elefantes, primatas e javalis7. Aos seres humanos o uso parece remontar a cerca de 50.000 anos (DOS SANTOS, 2006) e se mostra presente nos mais diversos territórios e culturas. 5

Tajiquistão e Afeganistão, respectivamente.

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Conjunto de informações técnicas das substâncias, princípios ativos e coadjuvantes.

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A mariposa da espécie Manduca quinquemaculataque alimentm-se das flores da planta Datura meteloides que possuí atropina, uma propriedade psicoativa. Javalis e primatas que escavam o solo atrás da raízes da Tabernanthe iboga (eboka) também com propriedades psicoativas. Elefantes, e diversos outros animais, que consomem os frutos apodrecidos da Sclerocarya birrea (marula) ficando embriagados.

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Mesmo com a difícil tarefa de encontrar vestígios mais remotos é possível notarmos a forte relação entre Cannabis e o Ser Humano que se estende a milhares de anos e aparece presente em muitos momentos da evolução humana, como observaremos a seguir. Há muito tempo descobrimos que algumas substâncias e plantas tinham o poder de alterar o estado de consciência. Diversas civilizações atribuem esse estado como formas de contato espiritual, deuses ou forças mágicas da natureza (LABATE, 2005). E a Cannabis é uma das chamadas plantas de poder8, e sua presença é aparente em diversos rituais religiosos e espirituais, por exemplo, o hinduísmo, budismo, islamismo, dentre outras, bem como as diversas ramificações das religiões de matriz africana (ROBINSON, 1999). E medicinalmente vimos que seu uso remonta a milhares de anos. Porém, somente a partir da década de 1980 teve início a investigação científica que levou a descoberta de que o cérebro humano possui, no sistema nervoso central, receptores específicos para a ligação com certas propriedades da planta, chamados canabinóides, assim como o organismo humano produz substância similar autonomamente, os endocanabinóides9, e conseguiram isolar as substâncias endógenas que ativam receptores específicos do cérebro para essa ligação. (GABEIRA, 2000). Com isso foram possíveis estudos para um estreitamento dos potenciais da Cannabis e sua aplicação na medicina, chegando a observação que ela auxilia em diversas patologias, seja no tratamento direto à enfermidade ou na melhoria da qualidade de vida para pacientes que sofrem de doenças degenerativas. Dentre essas doenças podemos citar a AIDS, o câncer, a leucemia, o reumatismo, a epilepsia, etc. (GABEIRA, 2000). As formas da qual se pode aproveitar a planta para seu uso em beneficio da sociedade se estende ao perder de vista. Podem se extraídos, processados, produzidos milhares de produtos tendo como base a Cannabis. Em tempos de consciência ecológica e utilização de recursos renováveis, a planta merece posição 8

Plantas e substâncias derivadas que em algumas culturas são consideradas mestres em forma vegetal, capazes de ensinar ao homem o caminho de contato com os deuses, sabedoria e conhecimentos que moram além (ou dentro) da realidade palpável ou que podem trazer a cura de diversos males físicos, mentais e espirituais. 9

Canabinóides são um grupo de substâncias naturais presentes na Cannabis. Os endocanabinóides são substancias semelhantes produzidas pelo organismo de mamíferos através de lipídios.

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de destaque. Dela podemos ter tijolos, alimentos, cosméticos, tecidos, combustíveis, plásticos, medicamentos, bebidas, etc. (ROBINSON, 1999). Essas potencialidades da Cannabis fizeram despertar o interesse de um sujeito que revolucionou o sistema industrial de produção, apesar das mazelas que esse sistema trouxe a sociedade, e pode ser considerado um dos grandes visionários do século XXI, chamado Henry Ford. Ford desenvolvia um protótipo de automóvel construído e movido com recursos retirados da Cannabis (ROBINSON, 1999), no entanto, suas ideias esbarraram em interesses de mercado e políticos, como aprofundaremos a seguir, e acabaram por não vingar. Nesse momento já é possível sabermos que não somente para fins recreativos a planta é útil, são inúmeras suas formas de uso e aplicação. Agora entraremos no lado sombrio da história: o momento em que a Cannabis deixou seu lugar de aliada da sociedade para uma suposta inimiga voraz.

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3 MUNDO: ORIGEM E DISSEMINAÇÃO DA PROIBIÇÃO

Embora essa ligação da Cannabis com o ser humano seja milenar e provedora de diversas utilidades, ao longo da história a planta já sofreu certas perseguições e proibições, porém, de forma bem menos intensa que nos dias atuais. Algumas dessas restrições parecem executadas para atingir de alguma forma um grupo de pessoas ou etnia específicos com o intuito de enfraquecê-los e/ou subjugar. Como fez Napoleão Bonaparte em 1812 que tinha dentre seus objetivos ao invadir a Rússia, a destruição das plantações de Cannabis com o intuito de enfraquecer a Inglaterra que dependia do fornecimento do cânhamo russo para sustentar sua frota naval (ROBINSON, 1999). O mesmo Napoleão em 08 de Outubro de 1800 já havia promulgado no Egito as seguintes proibições: Art.I: Fica proibido em todo Egito fazer uso da bebida fabricada por certos muçulmanos com a Cannabis (haxixe), bem como fumar as sementes da Cannabis, os bebedores e fumantes habituais desta planta perdem a razão e são acometidos de violentos delírios que lhes proporciona cometer abusos de todos tipos; Art.II: A preparação da bebida de haxixe fica proibida em todo Egito. As portas de todos os bares ou albergues onde é servida serão fechadas com um muro e seus proprietários colocados na cadeia por uma duração de três meses; Art.III: Todos os pacotes de haxixe que chegarão a alfândega serão confiscados e queimados publicamente. (GONTIÈS; ARAÚJO; 2003)

Aqui no Brasil, a primeira proibição oficial aconteceu em 1830 na forma de uma postura da Câmara Municipal do Rio de Janeiro que penalizava o vendedor com multa de 20.000 Réis “e os escravos, e mais pessoas que dele usarem, em 3 dias de cadeia.” (ROBINSON, 1999. p.116). Notemos a palavra “escravo” na postura, apontando um grupo específico para a punição. Podemos observar que as proibições citadas nos exemplos referem-se a um grupo específico, no caso de Napoleão vinha junto com o interesse de limitar os recursos ingleses para enfraquecer o ponto mais forte de seu inimigo, e no caso egípcio, a subjugação de um povo a ser conquistado, desenraizando sua cultura para facilitar a aceitação de um comando estrangeiro. A postura estabelecida no Rio de Janeiro também tem seu cunho subjugador e de controle étnico, que apesar de atribuir punição para vendedores e demais

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usuários, traz em específico a palavra escravo. Apesar de existirem em vários momentos da história essas restrições ao uso da planta nunca ela foi tão intensa e tão voraz quanto a partir do século XX, e esse cenário não surgiu de um clamor popular ou uma preocupação real do Estado em proteger a saúde de sua nação. O processo de demonização da Cannabis foi extremamente divulgado por aqueles que possuíam o controle dos meios de comunicação financiados por outros que tinham como objetivo proteger seus interesses econômicos, somados a outros possuidores de influência política que utilizavam de argumentos racistas para segregar determinados grupos étnicos da sociedade. Para entendermos melhor os aspectos que influenciaram a atual política de guerra as drogas, contextualizemos os fatos e objetivos. Nos EUA em 1920 devido a pressão de grupos religiosos dava início à repressão do consumo, produção e comercialização do álcool, chamada de Lei Seca que durou até 1933. E com isso a Cannabis que antes era associada aos mexicanos começou entrar em diversos outros grupos da sociedade. Nesse período surge a figura de Henry Anslinger10 encarregado de reprimir o tráfico de bebidas alcoólicas e um dos responsáveis por incentivar a descriminação dos mexicanos, que naquele momento eram a força bruta de trabalho e imigravam aos milhares para os EUA. Em 1929 com a quebra da bolsa essa antipatia pelos mexicanos aumentou, eram acusados de roubar os empregos dos trabalhadores americanos e que a Cannabis dava a eles força sobre humana e uma vantagem nas disputas das escassas vagas de trabalho. Com isso Anslinger usou de seu aparato repressor para disseminar ideias preconceituosas sobre a planta e encontrou um poderoso aliado. Dono de uma grande rede de jornais Willian Randolph Hearst11, então empresário do ramo da imprensa e político, utilizou de sua influência para impregnar os mitos contra a Cannabis e o preconceito aos mexicanos na sociedade americana. Hearst possuía motivos pessoais para fomentar a antipatia frente aos mexicanos, 10

Anslinger (1892-1975) foi comissário do Departamento Federal de Narcóticos dos EUA (FBN).

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Criador da noção de impressa marrom de notícias sensacionalistas e origem duvidosa, chegando a controlar uma rede de cerca de 30 jornais e revistas, cujos quais, foram utilizados para fazer lobby em defesa de interesses de seus financiadores, esses por sua vez eram empresas da área farmacêutica e de celulose. Foi representa Democrata na Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, eleito duas vezes. Hearst inclusive foi o inspirador do Cidadadão Kane de Orson Welles

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pois, em 1910 a tropas de Pancho Villa desapropriaram uma colossal propriedade sua. Anslinger também possuía interesses no banimento da Cannabis tanto da esfera social como industrial. Ele era casado com a sobrinha de Andrew Mellon12, então proprietário da Gulf Oil, uma gigante empresa petrolífera e um dos principais investidores da Du Pont, outra gigante no setor têxtil (HERER, 1985). Nessas décadas iniciais do século XX eram desenvolvidos diversos produtos derivados do petróleo como plásticos, aditivos para combustíveis, fibras sintéticas (náilon), processos químicos para fabricação de papel, etc. E esses produtos disputavam mercado com a Cannabis que servia para todas essas áreas e uma infinidade de outras mais. Então de forma cooperativa Anslinger, Andrew Mellon e Hearst uniram forças para demonizar a planta e retirá-la do mercado e do âmbito social. Com o fim da Lei Seca todo aparato repressor criado pra o tráfico de álcool agora era direcionado para as drogas, em especial a Cannabis. A frente do FBN (Federal Bureau of Narcotics) uma agência do governo criada para combate aos produtos narcóticos, estava Anslinger, que de posse de tal poder passou a influenciar o governo norte-americano para adotar medidas duras de repressão ao uso da Cannabis bem como manipular os líderes da Liga das Nações com suas ideias de tratar o uso de drogas com mais opressão. A então Liga das nações criava em 1921 a Comissão Consultiva do Ópio e de Outras Drogas Nocivas, no intuito de seguir mediando os conflitos oriundos das batalhas travadas entre China e Inglaterra13, provocados pela interesse na papoula14, além de regulamentar e fiscalizar o comércio do ópio. O Brasil, alinhado com as recomendações dos EUA adere aos acordos de cunho proibicionista, porém, a Cannabis não estava inclusa na lista de drogas nocivas, que focalizava mais nas questões ligadas ao ópio e a coca15.

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Andrew Mellon (1855-1937) foi embaixador dos EUA no Reino Unido e Secretário do Tesouro dos Estados Unidos. 13

Também chamada de Guerra Anglo-Chinesa (1839-842 e 1956-1960).

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Papaver rhoeas (nome científico) planta de caráter ornamentista e alimentício, também utilizada para a produção do ópio. 15

Erytroxylum coca (nome científico) planta que, adicionada a outros elementos químicos, é utilizada para a extração da cocaína.

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Na reunião da Liga em 1924, composta por mais de 100 países, o representante do Egito o médico Abdul Sadam el Guindy, então presidente da subcomissão criada para discutir os perigos do haxixe, que teve a inclusão posta em pauta após grande insistência do postulado egípcio alertando os integrantes sobre os perigos do consumo da droga. A subcomissão foi formada por especialistas de Grã-Bretanha, Índia, Egito, Grécia e Brasil. O representante brasileiro Pedro Pernambuco Filho, mais conhecido como Dr. Pernambuco, inflamou a reunião ao relatar os casos associados entre a Cannabis e os negros que vinham sendo estudados por diversos médicos sanitaristas brasileiros que atribuíam o uso à degeneração do indivíduo, porém, com caráter nitidamente racista mascarado por argumentos científicos. Como recomendado pela subcomissão, a Cannabis teve sua inclusão aceita na lista de drogas proscritas, e a proibição que antes era uma questão local, ganhou status mundial e a repressão passou a ser extensa e intensa. Para o Brasil foi conveniente um país com a influência dos EUA adotarem medidas repressivas contra a Cannabis e nenhum sacrifício em implantar as diretrizes internacionais de combate ao tráfico de drogas, pois, teria assim aval para intensificar as políticas já adotadas para a repressão e controle da população negra do país. Como diz o cientista político, pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos*, Thiago Rodrigues: “Como não é possível proibir alguém de ser mexicano, proíbe-se algo que seja típico dessa etnia” (RODRIGUES apud BURGIERMAN; NUNES, 2002, p.35). Para os EUA a proibição serviu para controlar a massa migratória mexicana tornando-os sempre ameaçados de detenção, e no Brasil, para manter as classes mais marginalizadas da sociedade, onde predomina o contingente de negros, sobre controle. Mesmo com as pesquisas realizadas em tempos contemporâneos utilizando de critérios baseados nos níveis de dependência e danos à saúde do usuário, bem como os males que o uso dessas substâncias atingem a terceiros, ou seja, o círculo social do indivíduo consumidor, a planta ainda causa repulsão dos governantes. Vemos isso ao comparar drogas (lícitas e ilícitas) classificadas de acordo com seu poder de dano ao usuário e a terceiros. O elaborador da pesquisa David Nutt, psiquiatra e neurofarmacologista, ocupava no governo britânico o cargo de assessor no Conselho Consultivo sobre o Abuso de Drogas, porém, em 2007 ao publicar um

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artigo sobre os malefícios das drogas no periódico científico The Lancet contrariou as expectativas do governo inglês ao apontar que as drogas lícitas são mais prejudiciais que muitas que estão nas sombras da criminalidade. Com isso Nutt foi demitido do seu posto o que motivou posteriormente a saída de outros membros incomodados com a represália do Estado, fundando posteriormente o Comitê Científico Independente sobre Drogas. Em 2010, Nutt publicou no mesmo periódico um estudo mais elaborado analisando amplamente o dano social e a saúde provocados pelas drogas. Vejamos o gráfico 1 e 2 abaixo:

Gráfico 1: Relação entre tipos de drogas, danos a usuários e terceiros. Fonte: NUTT; KING; PHILIPS (2010).

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Gráfico 2: Relação entre tipos de drogas, danos a usuários e terceiros detalhado. Fonte: NUTT; KING; PHILIPS (2010).

O primeiro gráfico está organizado de acordo com cada item pesquisados, já o segundo, engloba de maneira geral os tópicos apresentando apenas a divisão em danos ao usuário e danos a terceiros. O que surpreendeu a muitos provocando controvérsias com a pesquisa de Nutt é a posição que drogas tidas como maléficas ocupam em relação a outras de livre aceitação no meio social. A Cannabis, por exemplo, aparece em oitavo lugar no ranking de substâncias nocivas, estando atrás do tabaco e muito distante do primeiro colocado, o álcool, ambas de uso lícito em muitos países. O álcool inclusive deixa para trás concorrentes químicos tido como drogas pesadas como a metanfetamina, crack, cocaína e heroína.

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Nesse inventário de substâncias vedadas nenhuma possui a inclusão tão controversa quanto à maconha (Cannabis). Se hoje associamos a planta com criminalidade e violência é devido a um intenso trabalho de demonização que perdura ao longo de muitos anos. Essa campanha em prol da depreciação toma um forte impulso após as décadas inicias do século XX, tendo como base interesses políticos e econômicos, utilizando principalmente quesitos fundamentados em preconceitos raciais para justificação das medidas adotadas para o ecocídio 16 da Cannabis.

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Expressão que pode ser utilizada para fazer referência à destruição em larga escala do meio ambiente.

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3 BRASIL: ORIGEM E DISSEMINAÇÃO DA PROIBIÇÃO

Existem certas contradições sobre a forma que a Cannabis chegou ao Brasil. Por muito tempo a hipótese mais destacada é a de que tenha chegado a terras tupiniquins através dos negros oriundos da África a partir de 1549, principalmente da região angolana, o que inclusive deu origem a nomenclatura de Fumo D’Angola durante o período colonial (CARLINI, 2006). Segundo Carlini um documento oficial do governo brasileiro, atribuído ao Ministério de Relações Exteriores emitido em 1959, diz que a Cannabis teve aqui suas sementes introduzidas pelos escravos africanos que as traziam “em bonecas de pano, amarradas nas tangas”. Mas devido à falta de dados que comprovem essa possibilidade, ela é contestada em por alguns pesquisadores, como Luiz Mott. De acordo com Mott, tal alternativa parece incoerente devido aos escravos oriundos da África que cá chegavam vinham desavisados do seu destino além de estarem presos e serem transportados nus não possuíam nenhum pertence, pelo menos nas primeiras décadas do século XVI (MOTT, 1986). Outra hipótese levantada, porém, de menor aceitação, é a de que a planta já existisse no seio das “populações indígenas na Amazônia, e que estes já utilizavam na forma medicinal, no preparo de chás e pós pelos pajés, como também nas cerimônias religiosas com o intuito de manter contatos com as divindades.” (GONTIÈS; ARAÚJO, 2003). Isso só seria possível se a planta tivesse sido trazida pelos humanos que chegaram ao continente pelas rotas migratórias como nos diz a teoria transoceânica ou do estreito de Bering 17, pois, como vimos, a planta não é 17

A teoria transoceânica diz que o homem chegou às Américas através de barcos partindo da região da Polinésia (Oceania). Segundo a teoria do estreito de Bering, o homem veio a América graças ao

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uma espécie nativa da América. Mas não podemos deixar de citar que a Cannabis era um produto importante para a Coroa Portuguesa para a manutenção de sua frota marítima, essencial para a fabricação das velas e cordames de suas embarcações para que assim fosse mantido o pleno funcionamento de suas navegações ultramarinas. O cultivo em terras brasileiras era parte do projeto econômico que além fomentar a agricultura na colônia era uma necessidade da metrópole. Os portugueses também são incluídos como responsáveis pela chegada da planta no país, no entanto, somente em 1783 é feito oficialmente por Portugal o plantio da Cannabis no Brasil quando o Marquês de Lavradio funda a Real Feitoria do Linho Cânhamo na região onde atualmente se localiza o município de Pelotas no Rio Grande do Sul. A feitoria contava com mais de 1.300 escravos demonstrando a importância do empreendimento (MENZ, 2005). Apesar da vitalidade, seu fechamento foi precoce, talvez, devido à dificuldade de cultivo nas terras do sul do país já que o clima frio não favorece o crescimento da planta, tendo nas regiões norte e nordeste uma atmosfera mais benéfica. Mesmo não sendo conclusiva a forma da qual a Cannabis surgiu no Brasil o conhecimento das possíveis origens é interessante para que compreendamos o objetivo desse trabalho que são as relações do proibicionismo do uso e plantio da erva com o racismo, fato esse que parece se salientar já aqui nessa abordagem, pois, como diz George Orwell, a história é escrita pelos vencedores. Ou seja, é contada de acordo com aqueles que detém o poder. Nessa perspectiva, não é difícil de entender a inconsistência dos dados, principalmente aqueles que atribuam algum outro culpado pela chegada da Cannabis no Brasil que não seja o negro africano. Se analisarmos a proibição da Cannabis no Brasil depararemos com estudos pífios e argumentações que por mais coerentes que pareçam, escondem atrás das palavras de preocupação com a saúde pública e o bem-estar da população, as principais intenções daqueles redatores dos estudos e do governo: a intenção de banir a planta do meio social. Interesse esse muito mais motivado pelo racismo e o zelo à hegemonia da sociedade branca do que pelos males relacionados ao uso da planta. O real objetivo dessa elite, que não sabia o que fazer com escravos recém libertos, era encontrar uma maneira de separar identidades culturais e promover a

congelamento da estreita faixa de água presente entre os continentes americano e asiático.

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segregação entre brancos e negros. Para que a argumentação de que a proibição da Cannabis no Brasil tem sua base no racismo vamos a uma breve contextualização do país no período final do século XIX onde a sociedade escravocrata estava em pleno declínio e o modelo governamental estava em fase de transição para um sistema republicano que necessitaria de adaptações na formação social de modo a manter a fluidez necessária do modo capitalista de mercado. Em 13 de Maio de 1888 foi promulgada a Lei Áurea que abolia a escravatura no Brasil dando liberdade a milhares de negros antes submetidos a trabalhos pesados e/ou abusivos nos campos e nas cidades. Africanos e descendentes que ajudaram (e muito) a construir o país, que pegaram em armas para defendê-lo e que, agora libertos, podiam integrar a sociedade da qual antes eram marginalizados. E continuaram a ser, porém, de outras maneiras. Nos dias atuais existem várias discussões a respeito dos efeitos da escravidão na sociedade brasileira, no entanto, me ative nos argumentos de José de Souza Martins que diz: “todo o debate parlamentar sobre a abolição da escravatura foi, ao mesmo tempo, um debate sobre a propriedade fundiária e sobre a colonização” (MARTINS, 2010. p. 65) fato esse justificado pela importância que o setor agrário brasileiro tem sobre a política no país, o que persiste até os dias atuais onde a maioria dos parlamentares tem alguma ligação com o agronegócio 18. O sistema capitalista que estava em vias de implantação necessitava para sua lógica a exclusão da pessoa. Excluir para poder incluí-lo novamente segundo sua lógica. Modelo esse que a escravidão não comportava, pois, não permitia a exclusão, o escravo era mercadoria, propriedade do seu senhor. Sua exclusão, no sentido aplicado aqui, acarretaria em grande prejuízo para o proprietário que investira seu capital no escravo. Essa exclusão segundo Martins é o “sintoma mais grave de uma transformação social que vem rapidamente fazendo de todos os seres humanos seres descartáveis, reduzidos à condição de coisa, forma extrema de vivência da alienação e da coisificação da pessoa”,(MARTINS, 2010. p. 20) que com o advento da abolição e o subsídio de imigrantes europeus para o país coube ao negro o papel da marginalização, como é dito por Florestan Fernandes quando cita

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Por exemplo, 263 dos 513 parlamentares brasileiros que assumiram o mandato em 2015 possuem alguma ligação com o agronegócio.

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que “as tendências de reintegração da ordem social e econômica expeliram, de modo mais ou menos intenso, o negro e o mulato do sistema capitalista de relações de produção no campo” (FERNANDES, 2013. p. 54). Com isso o sistema capitalista no Brasil pôde, enfim, separar o trabalho e a pessoa do trabalhador, tornando o próprio trabalho como fator da criação de riqueza. Riqueza principalmente para os donos dos meios de produção, mas, em certas partes, também para o trabalhador que poderia com sua remuneração adquirir posses. Riqueza essa que, em mãos negras, dos ex-escravos oprimidos por séculos de trabalhos forçados, poderia tornar-se uma ameaça à hegemonia social e política da elite branca. Apesar do que a ideia de liberdade os permitira sonhar, a realidade fora da senzala era de total falta de perspectiva. Esses ex-escravos e seus descendentes, em sua massiva maioria não possuíam bens, dotes, moradias e tampouco empregos eram dispostos para eles. O país abria as portas para a imigração europeia que substituiria a mão de obra no campo, isso sem elaborar qualquer projeto para a realocação dos negros na sociedade, até porque não era de interesse do governo inserir essa população no âmbito social já que o sistema capitalista impõe o desenraizamento do excluído. O negro possuía muitas raízes no Brasil, afinal havia séculos desde sua chegada ao país e inclusive no período final do sistema escravocrata a esmagadora maioria dos negros era composta de brasileiros natos, não de africanos trazidos para cá. Mas, uma das raízes que mantinha forte ligação cultural com seu povo e a terra-mãe era a Cannabis. A planta estava presente nos diversos aspectos da vida cotidiana dos negros desde sua vida na África, sendo utilizada através de suas fibras em vestes, em rituais religiosos e na simples e tradicional interação social. A relação com a planta em terras brasileiras simboliza também uma forma de manter ligação com sua cultura e a terra de onde fora usurpado. Sendo assim uma das formas encontradas para o desenraizamento dos negros foi a criminalização da Cannabis, o que também abriria novos nichos para o mercado futuro. Para que a marginalização pudesse ser colocada em prática e recebesse apoio da sociedade brasileira começaram a surgir trabalhos relacionando a promiscuidade, violência e degeneração moral relacionando o hábito de consumir a planta e os negros.

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Tragar o Fumo d'Angola é costume de negro, aquele marginalizado, vagabundo, preguiçoso, ladrão; tal hábito não deveria ser seguido pelos brancos civilizados, educados,

trabalhadores,

vanguardistas da

almejada

sociedade

brasileira. O prefácio da 2ª Edição de Maconha Coletânea de Trabalhos Brasileiros, nos dá uma ideia do propósito de tal publicação. Pelas palavras de Irabussú Rocha, então diretor do Serviço Nacional de Educação Sanitária: Nosso objetivo autorizando a publicação de “MACONHA” pelo Serviço Nacional de Educação Sanitária é chamar a atenção dos estudiosos e dos governos para o problema. Não é um problema nacional, é um problema mundial. Não é um problema novo, êle se perde no horizonte do tempo. Mas aí está ele [sic] desafiando a nós todos que cuidamos da eugenia da raça. (...) Considerá-lo à margem da lei, como é, com uma intensa propaganda educativa, é malhar em ferro frio, seu viciados geralmente a última e mais baixa escala social, são mesmo analfabetos e sem cultura.

O que é complementado em trecho escrito por R. Cordeiro de Farias, então presidente da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes: À proporção que vão aumentando o conhecimento sobre os malefícios produzidos pela maconha, ou diamba, novas pesquisas em torno do assunto vão sendo realizadas, visando esclarecer pontos obscuros a respeito de tão palpitante problema. Felizmente foi focalizado, ainda em tempo, o vício da maconha, de modo a ser evitada entre nós a sua disseminação, não tendo o seu uso conseguido ultrapassar as classes sociais mais desprotegidas e ignorantes dos seus malefícios.” (ROCHA, 1958. p.5)

Embora essa coletânea tenha sido publicada em 1958 traz uma compilação de estudos realizados no final do século XIX e início do século XX, cujo intuito não parece ser compilar argumentos imparciais a respeito da Cannabis, bem pelo contrário, mostra argumentos capazes de justificar os interesses vertentes das classes mais abastadas da sociedade que, não por coincidência, eram os detentores dos poderes políticos no país. A classe dominante, branca, educada e civilizada, detentora dos poderes do país, temia disseminação da miscigenação de sua origem europeia com os negros africanos que, agora libertos, podiam frequentar os mesmos ambientes, pelo menos teoricamente. Esse convívio social entre brancos e negros colocaria em risco a eugenia da raça, mas, não pensemos em eugenia somente o cruzamento entre os indivíduos, trata-se também da miscigenação cultural, ou seja, que através da

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convivência os grupos brancos absorvessem elementos característicos dos negros, abandonando os costumes e traços europeus. Atividades como a capoeira, que com a Proclamação da República passou inclusive a fazer parte do código penal, e as religiões de matriz africana que, só a partir de meados da década de 1940, durante o governo Vargas, obteve a liberação das práticas e rituais. Essas criminalizações demonstram, de certa forma, o interesse em cercear a cultura negra. . Essa negação por parte do Estado em reconhecer os elementos da cultura negra como parte da formação da nação brasileira tem o objetivo de evitar a afirmação da identidade nacional com elementos oriundos dos africanos. A repressão sobre esses elementos dava-se pelo temor da socialização que essas atividades proporcionavam entre os negros, mas, também, por apresentar-se em outras classes da população, principalmente nas mais baixas, e que começava a emergir nos hábitos da elite dominante. E a Cannabis se incluía nessa perspectiva. Os negros reuniam-se nas “rodas de fumo” também chamada de “clube de diambistas”, uma alusão criada em referência ao “Clube dos Haxinxins” na França onde se reuniam intelectuais franceses como, por exemplo, Charles Baudelaire e Theophile Gautier que nesses encontros fumavam o haxixe. No Brasil esses encontros eram mais informais e não possuía indivíduos notórios, mas, sim negros e pessoas das classes mais inferiores da sociedade. Porém, com objetivos semelhantes. Os encontros consistiam na reunião de vários indivíduos, geralmente na casa do mais velho, ou daquele que por alguma circunstância exercesse influencia sobre eles, formando uma espécie de clube geralmente reunido aos sábados. Os membros colocavam-se em torno de uma mesa ou sentavam-se ao dispor do ambiente para o início das baforadas. Além das conversas entre os participantes sobre a lida do campo, o cotidiano ou sobre a terra de onde foram usurpados, eram comum cantigas que misturavam português com línguas africanas, como por exemplo: O diamba, sarabamba! Quando eu fumo a diamba, Fico com a cabeça tonta, E com as minhas pernas zamba. Fica zamba, mano? (pergunta um) Dizô! Dizô! (respondem todos em coro) Diamba matô Jacinto,

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Por ser um bão fumadô; Sentença de mão cortada, P’ra quem Jacinto matô. - Matô, mano, matô? Dizô, dizô! E dizô turututú Bicho feio é caititú Fui na mata de Recursos E saí no Quiçandú. Muié brigô cum marido Móde um pôco de bijú. - Brigô, mano, brigô? Dizô, dizô! Dizô, cabra ou cabrito Na casa da tia Chica. Tem carne não tem farinha, Quando não é tia Chica Então é a tia Rosa. Quanto mais véia seboza, Quanto mais nova mais cherosa. – Cherosa, mano, cherosa? Dizô, dizô. (ROBINSON, 1999. p.116)

Esse tipo de atividade da cultura dos negros propiciava o ambiente ideal para que eles afirmassem sua identidade e uma consequente consciência coletiva que era vista como uma ameaça aos detentores do poder. Para a defesa de sua hegemonia, a elite dominante deu partida a uma série de medidas para a depreciação de valor dos aspectos culturais de origem africana e as atividades exercidas pelos negros. Mas, para que isso fosse possível, os governantes não podiam simplesmente imputar regras sem uma justificava plausível para que elas fossem aplicadas. A escravatura não era mais uma opção e medidas que parecessem abusivas podiam eclodir numa revolta da imensa população negra do país. Deu-se então uma mobilização política para que alguns elementos da cultura africana fossem coibidos e repreendidos. No entanto, para isso, era necessário basear-se em argumentos científicos e especializados, o que deu origem a uma série de estudos em relação aos negros e suas práticas habituais.

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As pesquisas, salvo exceções, não tiveram um caráter sério e comprometido com a real situação apresentando características específicas de embasamento para a adoção das medidas pretendidas, ou seja, feita com o intuito único e exclusivo de mostrar que o costume de consumir a Cannabis era o causador dos flagelos e da violência do meio social dos negros e que essa prática se chegasse ao círculo da sociedade branca o mesmo aconteceria com ela. Embora algumas pesquisas não atribuam um caráter tão malévolo à Cannabis, demonstrando que não está necessariamente ligada à criminalidade e a distúrbios psicológicos. Em pouco aparecem estudos que demonstrem que essa dinâmica era oriunda do meio do qual o sujeito está inserido e a realidade apresentada a estes indivíduos, não sendo necessariamente o uso de psicotrópicos o causador da violência. Tais estudos não foram levados em consideração pelos governantes, na hora da aplicação de medidas sanitárias, uma vez que essa argumentação não interessava aos anseios de erradicação da planta como forma de supressão da identidade negra e na defesa de interesses econômicos. Nomes renomados na época deram sua contribuição para que esse quadro fosse formado. Dentre eles estava o prestigiado Dr. Rodrigues Dória, apontado como um dos líderes desse movimento que visava à degeneração da cultura cannábica e africana. Dr. Dória era um dos que difundiam a ideia expressada pelo professor E. Regis que, no prefácio do livro Lês Opiomanes do Dr. Roger Dupouy, utilizou a sentença: “É o vencido que se vinga de seu vencedor.” (DUPOUY; RÉGIS, 1912. p.4). Nesse contexto que era tratada o uso e a disseminação da Cannabis na situação, sendo atribuída aos negros como uma forma de vingar-se da sociedade que tanto mal causou ao seu povo. Em 1915 Dr. Dória expressa da seguinte forma seu pensamento: Dentre esses males que acompanharam a raça subjugada, e como um castigo pela usurpação do que mais precioso têm o homem – a sua liberdade – nos ficou o vício pernicioso e degenerativo de fumar as sumidades floridas da planta aqui denominada fumo d’Angola, maconha e diamba, e ainda, por corrupção, liamba, ou riamba. (DÓRIA, 1915, p. 17)

Mais adiante em seu discurso Dr. Dória introduz índios, mestiços e as classes mais desfavorecidas nessa lista de degenerados:

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Os índios amansados aprenderam a usar da maconha, vicio a que se entregam com paixão, como fazem a outros vícios, como o do álcool, tornando-se hábito inveterado. Fumam também os mestiços, e é nas camadas mais baixas que predomina o seu uso, pouco ou quase nada conhecido na parte mais educada e civilizada da sociedade Brasileira. (DÓRIA, 1958. p.8)

Mas qual seria o objetivo de tal posicionamento? A retirada da Cannabis da farmacopeia brasileira ocorreu somente em 1959 em sua segunda edição porque os especialistas da época julgaram-na sem nenhum valor terapêutico, o que difere da primeira edição de 1929 onde era indicado o uso do extrato fluído, o pó ou a tintura (MURAD, 1996). Estando então à disposição da sociedade branca como medicamento. A ideia era alarmar essa sociedade para os perigos do uso da planta que tornaria aqueles nascidos em famílias abastadas em imbecis, preguiçosos e criminosos assim como índios, negros, mestiços e demais indivíduos das classes mais baixas da sociedade. Dentro do contexto do processo de criação de uma identidade nacional e do sistema capitalista, além dos conceitos de moralidade que procuravam implantar no país com dogmas de comportamento provenientes do catolicismo, a Cannabis era vista como vilã dos bons modos e costumes, um empecilho para o progresso do país. Dr. Dória em seu discurso ao Segundo Congresso Científico Pan-Americano de 1915 relatou o seguinte: Sôbre os Órgãos sexuais parece exercer uma ação excitadora, que pode levar a grande lubricidade. A maior parte dos fumadores ouvidos disseram que a erva corrige ‘os estragos da idade’. Um soldado contou ao Dr. A. Fontes que quando fumava a maconha sentia efeitos afrodisíacos, tinha sonhos eróticos, e poluções noturnas. Êsse efeito se estende às mulheres. O Dr. Alexandre Freire, médico que exerceu a clínica em uma vila do interior de Sergipe, referiu ter visto uma mulher embriagada pela maconha de tal forma excitada que, no meio da rua, não mostrando o menor respeito ao pudor e fazendo exibições, solicitava os transeuntes ao comércio intersexual. As prostitutas, que às vêzes se dão ao vício, excitadas pela droga, quando fumam em sociedade, entregam-se ao deboche com furor, e praticam entre elas o tribadismo ou amor lésbico. (DÓRIA, 1958. p.13)

Tais argumentos deixaram abismadas as famílias abastadas e influentes da sociedade branca que em hipótese alguma queriam seus filhos e descendentes transformados em marginais e suas filhas promiscuas e libertinas manchando seus nomes, fazendo então a necessidade de agir em prol da moral e dos bons costumes. F. de Assis Iglesias em seu texto Sobre o Vício da Diamba faz questão de aumentar o alarde nesse sentido ao declarar que, os viciados não possuem forças para largar o vício da “diamba” e que esse hábito agora era comum nos bordéis

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onde as prostitutas se rodeavam “de um sem número de vícios que ajudam a dar cabo da sua desregrada vida. Como se o éter, a cocaína, a morfina, o ópio não bastassem para flagelá-las.” (IGLESIAS, 1958. p. 8) Não obstante, mais a frente em sua declaração afirma que “a diamba está passando das tascas e choupanas da gente rude para as câmaras das prostitutas! Logo, muito logo, os moços elegantes se embriagarão com a diamba: e como, desgraçadamente, êles têm irmãs, o vício terrível passará a fazer parte da moda, como já o é, a mania do éter, da morfina, da cocaína, etc.” (IGLESIAS, 1958. p.9), tendo como objetivo, atingir os prestigiados senhores e seus filhos frequentadores dos prostíbulos, alertando de que nesses locais estariam expostos a “maldita” planta e que não deveriam fazer uso dela para que não ocorressem a eles as mazelas sofridas pelas classes baixas. Mas também servia de alerta de que se suas filhas ou esposas fossem adeptas do uso da Cannabis poderiam virar meretrizes como as que lá estavam. Não são difíceis de encontrar relatos alertando também para o problema do alcoolismo entre negros, índios, mestiços e desfavorecidos. Como vimos Dr. Dória citou o álcool em trecho usado anteriormente, e Heitor Péres no seu texto intitulado Diambismo diz: No interior do Amazonas observamos nos fumadores de dirijo, quase em todos, estados de enfraquecimento intelectual. Apesar disso, encaramos êste fato como resultante da ação de fatôres vários conjugados: constituição psicopática, estado carencial, más condições higiênicas, endemias locais e adições tóxicas, como o álcool. (PÉRES, 1958. p.4)

Argumentação essa reafirmada mais tarde em 1943 pelo presidente da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, Dr. R. Cordeiro de Farias que enfatiza o relato do Dr. João Mendonça sobre o combate ao álcool e ao uso da Cannabis, acentuando a semelhança dos dois problemas e indicando as medidas de prevenção e repressão aconselhadas contra a disseminação destes. Se a Cannabis e o álcool foram apontados como causadores de flagelos na sociedade, seria interessante perguntar por que somente a primeira sofreu tantas medidas de repressão. Os motivos talvez estejam imersos em fatores econômicos, culturais, religiosos e racistas. Apesar de ter chegado ao Brasil também através dos portugueses, com os negros que a planta possui uma ligação mais profunda, e era com os afro-brasileiros que interessava uma associação para promover a discriminação e a segregação

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racial de costumes africanos, que já se apresentava em boa parte da população. Nesse ponto vale ressaltar que a colonização portuguesa, país majoritariamente católico, trouxe para cá juntamente, com os espanhóis, o culto a Cristo e suas regras de conduta que coibia as sensações de prazer, a louvação a outros deuses e procurava extinguir qualquer elemento cultural pagão, dentre eles os cultos afros e a também Cannabis era elemento em vários rituais pagãos. (ROBINSON, 1999). Essa aversão à religiosidade dos negros e ao uso da Cannabis tem sua origem na época das cruzadas, onde o catolicismo se espalhou pelo mundo. Como sabemos um dos alvos desse movimento de guerra eram os mouros, praticantes do Islã, que por muito tempo ocuparam o território português e espanhol. Como já vimos a planta é originária da região do oriente médio, e sua chegada à África é atribuída aos árabes. Esse fato não passou despercebido pelo Eng. Agrônomo Leonardo Pereira que destacou no seu trabalho a relação entre árabes e a Cannabis citando que “foram os árabes os primeiros consumidores de tão perigoso entorpecente, assim como foram os introdutores no continente africano sendo, portanto, os únicos responsáveis pela divulgação mundial.” (PEREIRA, 1958. p.2) Isso demonstra o preconceito contra os árabes herdado pelo ocidente graças à disseminação do catolicismo e voltado agora aos negros fazendo uma associação de um elemento comum em ambas as culturas como forma de anexar os valores negativos entre elas. Dessa forma, o Brasil que absorvia a religião católica trazida cá pelos colonizadores europeus, tinha argumentos para que a sociedade branca que almejava em ser como seus descendentes do velho continente, e fervorosos em servir a Cristo, abraçassem a repressão da Cannabis e uma consequente aversão aos negros. Apesar de o álcool ter sido apontado também como causador de flagelos não teria o mesmo apoio da população, tendo em vista que, essa sociedade branca e cristã não iria contra a bebida, uma vez que, o próprio Jesus Cristo em sua última refeição bebeu e fazia da água o vinho. Hipoteticamente falando, se ele tivesse fumado um baseado a história poderia não ter tomado os mesmos rumos. Outro ponto para que o alerta aos problemas do álcool fosse ignorado é o fato de a cana-de-açúcar, uma das matérias primas para fabricação, figurava como um dos principais produtos agrícolas do país e sua proibição desencadearia numa

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grande queda de produção fazendo o que as finanças do país decaíssem, o que seria trágico para uma economia já fragilizada. A proibição do álcool também prejudicaria a importação de produtos de países aliados e de interesse da elite dominante brasileira como vinhos, champanhes, etc. A campanha de erradicação da Cannabis possui também o interesse da valorização das fibras nacionais. Sabe-se que pela extensão e resistência de suas fibras a planta é de grande utilidade industrial, e no discurso do já citado Eng. Agrônomo Leonardo Ferreira é expresso o anseio pela utilização das fibras produzidas no país: Não merecem a incriminação de atrasados ou de querermos fazer esnobismo, por ser êste infernal entorpecente grandemente industrial pela riqueza de sua fibra. Mas, de esnobismo criminoso, são êsses demagogos de tôdas as épocas, destruidores de tudo que tem fins alevantados, porque esquecendo ou ignorando, a riqueza de fibras nacionais, algumas de maior valor industrial que a do cânhamo, a preferem por ser de além-mares, as que possuímos. (PEREIRA, 1958. p. 19)

Porém, essas fibras nacionais ao qual se refere Ferreira não é alguma espécie vegetal nativa do Brasil, mas sim que aqui era produzida. Dessa forma, uma vez o cânhamo sendo cultivado no país poderia ser considerado uma fibra nacional. E porque não fazê-lo? A resposta eminente parece ser de que a Cannabis, objeto integrante da cultura negra, caso recebesse medidas de incentivo para a produção da fibra do cânhamo seria afirmar e legitimar algo parte da identidade afro-brasileira como propulsora do progresso no país. Mesmo que sua produção fosse responsabilidade do Estado como no período colonial onde a coroa portuguesa implantou, em diversas partes do território a Real Feitoria do Linho Cânhamo, responsável por plantar a Cannabis para a produção principalmente da fibra de cânhamo essencial para a frota marítima portuguesa. Porém, esse modelo de produção não obteve muito êxito em sua missão, pois, o clima em algumas regiões não favorecia o desenvolvimento da planta, o que dificultava a disseminação de um cultivo de grande escala em todo território. Sendo assim, fez com que a Cannabis se tornasse um produto de baixa comercialização devido à falta de um padrão para produção nas áreas já exploradas do território, exceto no nordeste do país onde o clima era mais propício para o plantio. Isso além de caracterizar um produto ineficiente para os grandes latifundiários brancos, se mostrava menos rentável que, por exemplo, o algodão um aliado de maior valor. O

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algodão propiciava um fluxo melhor para o modelo capitalista que vinha se sobrepondo no sistema comercial e político brasileiro. No período final do século XIX e início do XX, quando a repressão da Cannabis começou a ter um caráter mais intenso, a sociedade já possuía em seu âmbito uma imensa população negra e livre que detinha ancestralmente o conhecimento para semear, tratar, colher e “refinar” a planta, que não requer de tantos cuidados e se extrai uma quantidade maior de derivados que o algodão. Nesse contexto vemos um quadro em que essa população negra e livre possuía os meios e os métodos necessários para alavancar sua ascensão social através da produção da Cannabis, sem depender do aval e/ou auxílio da fatia branca e historicamente acostumada em ter o negro como seu empregado e não como um provável patrão. Isso deve ter alarmado aqueles que detinham o poder das tomadas de decisões do país que em grande parte eram e continuavam sendo responsáveis pela produção agrícola e sabiam que no Brasil, onde tradicionalmente tem na lavoura sua base econômica, a influência que a agricultura podia exercer, e tendo a Cannabis fora da marginalidade, dava brechas para que em algum momento os negros ascendessem até o governo dividindo o controle da nação, quebrando a hegemonia branca e consequentemente prejudicando seus interesses e rumos pretendidos ao país. O algodão também contava com o apoio da indústria química devido ao fato de esta ser um dos cultivos que mais exige o uso de pesticidas e agrotóxicos, o que daria assim escoamento para a produção que havia sido impulsionada durante muito tempo pela indústria bélica e almejava na agricultura outra via de mercado para seus produtos. O cânhamo tem poucos insetos inimigos e pequena competição de ervas daninhas o que não favorecia a venda de pesticidas, principalmente se comparado ao algodão19. Porém se pararmos para analisar o Brasil no início do século XX observamos que o país não possuía uma indústria nacional consolidada, muito menos nos setores energéticos, químicos e farmacêuticos. Então qual interesse do governo em suprimir o cultivo da Cannabis tendo em vista que cá não havia esse setor industrial para incentivar? 19

O algodão é responsável pelo consumo de 20% de todo pesticida produzido no mundo, segundo Celso Calheiros cita em seu artigo É Tempo de Algodão. Tempo de Agrotóxicos. Disponível em http://www.oeco.org.br/ (acessado em: 18/11/15 19:06h).

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O princípio das restrições à planta tinha como objetivo marginalizar hábitos e costumes dos negros, mestiços, indígenas e camadas mais desfavorecidas da população a fim de afastar a elite dominante das práticas atribuídas as camadas inferiores da sociedade. Já nos anos de 1940 a política incidente sobre a proibição da Cannabis passava a ter uma posição com ênfase na criminalidade do uso e do usuário e não mais só uma questão sanitária. Nesse período, o Brasil começava a ter relações mais estreitas com os Estados Unidos da América, uma nação com indústria forte e em ampla expansão que necessitava de mercados emergentes e países subdesenvolvidos para dar vazão aos produtos e aquecer a economia para subsidiar as incursões durante a II Guerra Mundial e expandir sua influência mundial através do controle de capital estrangeiro. Em 1942 quando o Brasil junta-se às forças Aliadas nas disputas bélicas a concordância entre as políticas do país com as norte-americanas se fazia necessária, e dentre elas havia uma de comum interesse em ambas as nações: a erradicação da cultura canábica. Tendo também em comum o preconceito racial nos argumentos proibicionistas, no Brasil o alvo era o negro, o indígena e o mestiço, no EUA incidia sobre mexicanos e negros, que tanto em uma quanto em outra nação representavam as classes mais miseráveis da sociedade. Assim a aproximação do Brasil com os EUA, intensificada a partir de 1942 serviu tanto para uma nação quanto para outra. Para os Norte Americanos teriam mais um território de influência em uma região tida como estratégica para a defesa de seu território e um amplo mercado, um dos mais importantes da América Latina, carente de produtos industrializados que impulsionaria sua economia ainda balançada pelo episódio de 1929 com a quebra da bolsa de Nova Iorque. O Brasil absorveria os aparatos de repressão dos EUA para aplicar o modelo em território nacional, além, de receber produtos e tecnologias que não eram desenvolvidos aqui através de acordos de cooperação.

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4 CONCLUSÕES

Assim, foi possível perceber sobre quais alicerces foram construídos os estereótipos ao entorno da Cannabis, planta que há milhares de anos está ligada com a cultura e o desenvolvimento do ser humano, inclusive, na sua constituição física visto que nosso organismo assimila muito bem os componentes químicos da planta chegando ao ponto de ter desenvolvido endogenamente formas de replicação dos efeitos psicotrópicos e receptores exclusivos para a ligação química desses componentes. Beneficies disponibilizadas pela natureza para o bem-estar e evolução da sociedade nas mais diversas áreas que abrangem o cotidiano da humanidade, tão uteis e importantes em tempos passados e que, apesar de toda repressão, procura um lugar nos dias atuais para seguir nessa caminhada conjunta com o desenvolvimento, podendo se utilizar de todo aparado tecnológico que os tempos modernos nos disponibilizam para suprir a eminente escassez de recursos que o futuro nos reserva. Repressão essa que se caracteriza como ineficiente causando um mal maior pela proibição do que pelo próprio consumo. O usuário da Cannabis acaba por sofrer uma dupla penalização: A criminal, onde é taxado pela lei sofrendo com duras penas e a inevitável participação na rede do crime organizado. A outra penalização é a moral onde tem cerceada sua cultura, sofrendo discriminação e preconceito aos olhos da sociedade, perdendo inclusive o direito de fazer do seu corpo aquilo que o conceito de liberdade nos permite imaginar. Usuário esse que, desde os relatos mais antigos, sofre com o racismo e o etnicismo. A Cannabis foi utilizada como bode expiatório para a segregação e a

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marginalidade de grupos específicos da sociedade. Foi assim com os imigrantes mexicanos nos EUA no intuito de barrar a crescente demanda desse povo em solo norte-americano, o que causava espanto e medo nos setores mais conservadores dessa nação. Fato esse que, somado aos interesses políticos financiados por grandes indústrias aliadas ao império dos meios de comunicação, fomentaram a repressão motivados por

interesses mercadológicos e segregacionistas baseando-se em

argumentos contraditórios e com cunho explicitamente racista. O que no Brasil não diferiu. O negro liberto era um incomodo social para a elite brasileira, uma mazela que necessitava ser varrida, de preferência de volta para a África ou para a senzala, mas, não foi possível. Com isso a Cannabis surgiu como modo de marginalizar os descendentes africanos do seio social da nação deixandoos distante da participação no desenvolvimento do país e os aproximando da miséria. Com isso garantiriam a hegemonia branca no poder assegurando que os interesses desse setor fossem atendidos. A nação estava a beira da república, e possuía um grande mercado inexplorado, ineficiente e carente, que se alinharia com as políticas externas que almejavam, nesse cenário, a expansão de suas fronteiras de influência. Como resultado dessas manobras nos deparamos com o cenário atual, homogêneo em boa parte do mundo, com as etnias subjugadas a margem da sociedade e a serviço dos anseios capitalistas, sofrendo com a violência e o preconceito incidente da atual política de guerra as drogas. No Brasil essa ideologia incidiu sobre o negro que teve seus descendentes usurpados de seu local de origem por meio da força, que com muita resistência, conseguiram viver em uma terra desconhecida longe de tudo e todos que conheciam. Tiveram suas almas e seus corpos dilacerados, e mesmo assim, foram essenciais para o desenvolvimento da nação e, quando libertos, foram perseguidos e encurralados na criminalidade.

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REFERÊNCIAS

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