A Carta e a ausência em Eça de Queirós

September 21, 2017 | Autor: Ana Peixinho | Categoria: Literature
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A carta e a ausência em Eça de Queirós ANA TERESA PEIXINHO (FLUC/CEIS20)

Eça de Queirós é um dos escritores da Literatura Portuguesa mais estudados e sobre quem mais se tem escrito, o que diz bem do valor literário e cultural da sua obra. É também um dos autores mais citados, sobretudo por políticos que gostam de ostentar a, por vezes ilusória, cultura literária e bagagem cultural, o que traduz a atualidade do escritor, homem do seu tempo mas cujas ideias o ultrapassam. Assim, falar sobre um homem e uma obra que já tanta tinta tem feito correr é tarefa ingrata mas, apesar de tudo, sempre desafiante. Por onde começar? O que dizer e selecionar entre a riquíssima miríade de temas que a obra queirosiana suscita? Como fugir à banalidade ou à repetição do já dito, quando abordamos uma obra e um escritor canónicos? Estas dúvidas assaltam-me sempre que sou desafiada a falar publicamente sobre Eça. Quando a Dra. Helena Carvalhão me dirigiu o simpático convite de vir aqui à vossa associação falar sobre Eça de Queirós, inevitavelmente pensei em Amaro Vieira, Amélia e S. Joaneira... pensei nos campos de Leiria e na sua negra Sé. Mas rapidamente concluí que este era um tema saturado, para mais sobre o qual já escrevi diversas vezes, uma delas para o jornal Notícias de Colmeias, cujo diretor me deu a honra de estar aqui entre nós. Assim, decidi partilhar convosco uma reflexão sobre dois aspetos, a meu ver, marcantes da escrita de queirosiana: por um lado, uma característica formal da sua obra a que tenho dedicado os últimos anos da minha investigação: o pendor epistolar da sua escrita; por outro, um estigma da vida do autor com sérias repercussões na sua mundividência: a marca da

 

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ausência. A carta e a ausência em Eça de Queirós é, portanto, o título da minha conferência. De facto, se olharmos para a produção queirosiana, rapidamente percebemos que o escritor cultivou diversos géneros narrativos – desde o folhetim à crónica, do conto ao romance. Contudo, há um género muito acarinhado, quer por ser fruto da cultura societal e comunicacional da época, quer por ter múltiplas valências no que à escrita queirosiana diz respeito: trata-se do género carta. No outono de 2000, Isabel Pires de Lima (Lima, 2000: 25-36) publicou, na Revista da Biblioteca Nacional – Leituras – dedicada ao centenário da morte de Eça de Queirós, um ensaio em que se centra precisamente neste aspecto praticamente inexplorado da ficção de Eça: a funcionalidade das cartas, bilhetes e recados que abundam nas suas tramas romanescas. Partindo da análise de quatro grandes romances, criteriosamente escolhidos, de forma a abranger o início e o final da vida literária do autor, a estudiosa sugere um conjunto de funções e de enquadramentos narrativos para as inúmeras cartas que se entrelaçam nas diegeses das referidas obras. Este texto, embora muito pontual e restrito, veio confirmar a intuição que então tínhamos sobre o valor e importância do sistemático recurso ao género epistolar por Eça de Queirós, na composição e construção dos seus universos ficcionais. Um recurso que, embora mais largamente representado nos grandes romances da maturidade, já encontramos desde os primeiros textos publicados na Gazeta de Portugal, comummente conhecidos como Prosas Bárbaras, em que Eça revela uma tendência para colonizar as suas narrativas com fragmentos textuais de cartas, bilhetes, notas pessoais, trocadas pelas personagens, em situações narrativas muito diversificadas e com

 

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diferentes funcionalidades. Quase todas as ficções do escritor – salvo raras exceções – contêm inúmeros fragmentos desta natureza. Ainda no quadro da narrativa ficcional, não é por acaso que o primeiro romance publicado pelo autor, em coautoria com Ramalho Ortigão, – O Mistério da Estrada de Sintra – se constrói como um romance epistolar, em que as cartas, além de contribuírem para a construção do mosaico diegético, assumem uma importante função no jogo de ilusão criado com o leitor. Aqui, o papel da carta transcende o âmbito narratológico propriamente dito, pois obriga a uma reflexão sobre o espaço público do jornal, onde inicialmente a obra foi publicada, bem como a uma análise do papel do ficcional no âmbito de um espaço discursivo que geralmente se desenvolve como a narrativa do real por excelência. Além deste aspecto, que tem que ver com a função da carta no funcionamento da narratividade nas ficções queirosianas, há um outro importante papel deste modo discursivo na obra do autor: trata-se da utilização das epístolas de Carlos Fradique Mendes como veículo de afirmação de uma alteridade. A dimensão heteronímica de Fradique Mendes passa pela consubstanciação de um discurso que, no seu caso, é realizada pela via epistolar, através da publicação de um conjunto heterogéneo de cartas, dirigidas a destinatários ficcionais e reais, nas quais Fradique mostra querer ser ouvido, emitindo as suas opiniões e os seus pontos de vista. Uma reflexão sobre as potencialidades do modo epistolar exploradas no discurso queirosiano, partindo da constatação de que a carta é um tipo textual transversal a toda a produção de Eça, transcende largamente o âmbito da escrita ficcional. Se a perspectiva de Isabel Pires de Lima, há pouco citada, evidenciou fundamentalmente o funcionamento do epistolar no interior das narrativas de ficção, não podemos ignorar a importante

 

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presença desse modo discursivo em textos não ficcionais, como crónicas, folhetins jornalísticos ou epistolografia pública. De facto, na primeira série de folhetins que redige para a Gazeta de Portugal1, no final da década de sessenta, encontra-se uma carta pública, intitulada «Uma Carta – A Carlos Mayer», o primeiro texto doutrinário do escritor, em que Eça descreve as influências culturais que a sua geração recebera em Coimbra; trata-se de um texto que se revela importante a vários níveis, não só por ser o primeiro texto crítico do ainda muito jovem Eça, mas também e sobretudo porque permite projetar algumas das características intelectuais mais relevantes da então futura Geração de 70, bem como dos primeiros textos literários do autor. Sabemos que a opção epistolar se revelará, na futura produção do romancista, muito profícua, pois é em grande parte pela sua correspondência que percebemos os posicionamentos e as ideias estéticas e políticas de Eça de Queirós. Guilherme de Castilho, editor e prefaciador da Correspondência do escritor (Queirós, 1983), justifica mesmo o interesse do epistolário queirosiano, baseando-se não só no grande número de cartas do seu espólio, mas também, e sobretudo, no facto de elas poderem constituir um documento “sobre o homem e o escritor, sobre a sua obra, sobre o seu tempo, sobre os seus contemporâneos…” (Castilho apud Queirós, 1983: 13). Além do importante peso da sua epistolografia2, há que ter em conta que as polémicas em que o escritor se envolveu, ao longo da sua vida, foram                                                                                                                 1

Estes folhetins foram coligidos e publicados por Luís de Magalhães em 1904, com o título de Prosas Bárbaras. Mais recentemente, parte desses textos foram publicados como Textos de Imprensa I, na Edição Crítica da Obra de Eça de Queirós (Reis, Carlos e Peixinho, Ana Teresa (eds.), Textos de Imprensa I (da Gazeta de Portugal), Lisboa, INCM, 2004). 2  Apesar   de   não   ser   nosso   objecto   de   estudo,   não   poderíamos   obliterar   o   vasto   elenco   epistolográfico  do  escritor  que,  como  refere  Carlos  Reis,  pouco  tem  de  improviso:  “Neste  aspecto,   deve   dizer-­‐se   que,   além   de   ter   expressado   uma   preocupação   muito   clara   relativamente   ao   cuidado   que   as   suas   cartas   lhe   mereciam,   Eça   parece   ter   tido,   desde   muito   cedo,   a   consciência   de   que  elas  poderiam  ser  encaradas  como  documentos  de  alcance  muito  mais  amplo  do  que  a  função   primeira  que  cumpriam  (…)”.  (Reis,  2000:  104).  

 

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alimentadas por uma troca epistolar intensa, como o ilustra o conjunto de cartas públicas, veiculadas pela imprensa, editadas em 2009 pela INCM. A representatividade da carta, neste contexto, sugere-nos, para já, que o modo epistolar terá sido perspetivado por Eça de Queirós como o modo apropriado ao debate de ideias, à afirmação de ideologias e à elaboração de uma reflexão metaliterária. Tanto   em   contexto   ficcional,   como   em   contextos   comunicativos   factuais,  a  carta  é  um  medium  que  Eça  não  dispensa,  desde  o  início  da   sua   carreira   literária.   No   entanto,   o   recurso   à   carta   em   Eça   transcende   amplamente   o   seu   uso   diário   e   quotidiano   de   texto   enviado   com   fins   utilitários   e   meramente   funcionais.   Desde   os   primeiros   textos,   publicados   na   Gazeta   de   Portugal,   no   final   da   década   de   sessenta,   até   à   publicação   d’A  Correspondência  de  Fradique   Mendes,   há   toda   uma   gama   de   textos   e   obras   que   utilizam   a   forma   epistolar   como   estratégia   discursiva,   potenciando   algumas   das   características   comuns   a   este   modo   derivado   para   conseguir   atingir   certos   objetivos.   Partindo   do   princípio   de   que   a   escolha   de   uma   forma   específica   como   a   carta   nunca   é   inócua,   mais   a   mais   com   a   frequência   e   constância   com   que   Eça   o   faz,   este   facto   leva-­‐nos   a   refletir   sobre   algumas   questões   decorrentes   da   centralidade   desta   forma   textual   e   sobretudo   do   seu   carácter   transversal   na   obra   do   escritor.   Na   verdade,   a   carta   é   um   meio   de   expressão,   entre   muitos   outros,   e   perceber   as   razões   da   sua   escolha   parece-­‐nos   imprescindível,   para   captarmos   as   suas   funcionalidades   e   potencialidades  no  interior  da  obra  queirosiana.   A dúvida que se nos coloca é a seguinte: porquê a carta? Que motivos terão estado neste constante recurso a este género pelo escritor? Entre

 

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muitas outras razões compagináveis com atributos típicos do discurso epistolar, parece-nos claramente que a ausência é um estigma da vida de Eça que pode permitir explicar o valor conferido a este meio de comunicação. Desde a infância, o escritor teve consciência do afastamento: em menino viveu longe dos pais; passou a juventude num colégio interno; estuda Direito em Coimbra. A primeira experiência profissional séria – a de jornalista – leva-o a Évora, onde dirige e escreve o Distrito de Évora. Em 1870, é colocado em Leiria como Administrador do Concelho. Mais tarde, a partir de 1871, a vida consular condu-lo para fora do país: primeiro Havana, depois Newcastle, Bristol e, finalmente, Paris, onde acabaria por falecer em 1900. Eça teve, na verdade, uma vida de exílio que consente a leitura que aqui vos propomos: afastado, por motivos profissionais, do país, observava-o à distância. É daqui desta cidade de Leiria que saem os primeiros desabafos sentidos de alguém que sente o exílio e a separação. Como é conhecido, a 21 de julho de 1870, a uns meses de completar os 25 anos de idade, Eça de Queirós é nomeado administrador do Concelho de Leiria, cargo que viria a ocupar até inícios de junho do ano seguinte. Segundo João Gaspar Simões, a passagem administrativa por Leiria, cidade pequena que contava na altura com pouco mais de 3000 habitantes, funcionou como estratégia de ingresso na tão desejada carreira diplomática, que o levaria a conhecer mundo, afastando-o da advocacia para que demonstrara já tão pouca vocação. De facto, em setembro desse mesmo ano, Eça regressaria a Lisboa, a fim de prestar provas, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, para Cônsul de 1ª classe. Aliás, a atribuição deste posto ao jovem escritor ficou a dever-se sobretudo às boas relações de seu pai, juiz do Tribunal do Comércio, com alguns políticos de nomeada e também à  

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influência local de um parente afastado, um fidalgo de nome Vadre que habitava na região de Ourém (Simões, 1980: 266 e ss.). Ao percorrer alguma da correspondência que Eça terá enviado de Leiria aos seus companheiros de Lisboa, nomeadamente a Antero, Batalha Reis e Ramalho Ortigão, antigos condiscípulos dos tempos de Universidade, percebemos que a passagem por Leiria para o jovem escritor foi encarada como uma espécie de “exílio administrativo”, uma estada contrariada, aborrecida, mas necessária. Um mês depois de ter chegado à cidade, instalado no nº 13 da Rua da Tipografia, num quarto alugado a uma senhora que, segundo as descrições de Gaspar Simões, a muito se assemelha à S. Joaneira de O Crime do Padre Amaro, escreve o seguinte a Jaime Batalha Reis e Antero: “Meus caros amigos – tudo isto são tolices: mas eu estou desde que começou o meu exílio tão triste, tão profundamente enfastiado, tão sucumbido, tão cheio de desdém, tão perdido de vida, que só o esprit bête me prende a atenção e me move a viver. Imaginem-me aqui nesta terra melancólica, só, sem um livro, sem um dito, sem uma conversa, sem um paradoxo, sem uma teoria, sem um satanismo – estiolado, magro, cercado de regedores, e devorado de candidatos! (…) A minha vida aqui é devorar jornais e telegramas, seguir num mapa a marcha dos prussianos; o melhor do tempo ocupo-o a ver em volta de mim morrer a minha vida. Há 30 dias que não falo, imaginem vocês. Respondo a esta gente com monossílabos ferozes.” (Queirós, 1983: 53-54).

 

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Numa outra missiva, dirigida a Eduardo Coelho, então Diretor do recémcriado Diário de Notícias, o jovem administrador desabafa com humor: “Escrevo-lhe do meu exílio administrativo. Aborreçome como Ovídio desterrado e como Francisco I prisioneiro” (Queirós, 1983: 57). Aparentemente pouco simpáticos, estes desabafos de Eça sobre a cidade de Leiria têm forçosamente de ser enquadrados no tempo e relativizados em função da juventude do escritor e de um certo elitismo cultural que, aliás, caracterizou toda a sua geração. Os comentários pouco lisonjeiros para com a cidade de Leiria, a sua vida e as suas gentes, têm que ver, naturalmente, com um certo cosmopolitismo que já então afetava o jovem Eça e que será projetado na construção de algumas das suas personagens romanescas. Apartado do fervilhante convívio intelectual da capital, das suas avenidas, livrarias, dos seus cafés e distante dos camaradas de tertúlia, a cidade de Leiria apresentava-se-lhe como um espaço enfadonho, provinciano, ruralizado e culturalmente estagnado. Lembremos que, desde que Eça saíra da Universidade de Coimbra – à exceção de uma breve passagem por Évora em 1867 –, a sua vida centrara-se essencialmente em Lisboa, onde integrava o famoso grupo do Cenáculo, uma espécie de tertúlia boémia, embrião da famosa geração de 70. Por outro lado, não esqueçamos que a macrocefalia e o centralismo são aspetos característicos do Portugal de então, aliás alvo de crítica e caricatura, em numerosos romances queirosianos. Vale a pena ler, a este respeito, um comentário de uma personagem d’O Crime do Padre Amaro acerca desta cidade de província. Numa das visitas de Amaro a casa do Conde de Ribamar, precisamente no dia em que é anunciado ao pároco a sua colocação na Sé de Leiria, uma amiga da senhora condessa, pergunta: “Leiria?… Bem sei, é onde há umas ruínas” (Queirós, 2000: 185). Ora, estas palavras, para além de revelarem a caricata ignorância da  

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personagem que as pronuncia, também deixam transparecer uma certa sobranceria da sociedade portuguesa lisboeta, relativamente às cidades de província. Nada mais natural, portanto, que o jovem e ainda romântico Eça se sentisse desterrado e entediado, no seio de uma pequena cidade de interior, mais a mais, desempenhando funções para as quais não estava minimamente motivado: excessivamente burocráticas e enfadonhas, nada desafiantes e bem diferentes das funções que assumira uns anos antes quando do seu desterro alentejano, onde pôde dar asas à imaginação e criatividade. Por outro lado, sabe-se que, e recorrendo uma vez mais ao testemunho do seu biógrafo João Gaspar Simões, a sua estada em Leiria até meados de junho de 1871, foi tudo menos monótona: passeios pelas margens do Lis, caçadas na Barosa, idas ao teatro, serões e festas em casa dos Barões de Salgueiro… provavelmente muito pouco tempo dedicado à atividade profissional, o que aliás parece comprovar-se pela escassez de documentação administrativa assinada pelo próprio. De qualquer forma, estes meses de “exílio administrativo” revelam-se, no quadro da produção ficcional queirosiana, um tempo fértil em experiências literárias e, sobretudo, um tempo de descoberta das potencialidades ideológicas do discurso literário. A comprová-lo, encontramos um conjunto de textos que Eça ensaia e escreve durante a sua permanência nesta cidade: “Eça não chegava à janela senão para conversar com o sacristão da Sé, o velho Anastácio … Quando estava em casa, lia ou escrevia, fechado no seu quarto, sujeito àquelas mesmas exigências de concentração e de atitude que exibia, anos antes, no quarto da Travessa do Guarda-Mor.” (Simões, 1980: 267-268).

 

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Eça terá, assim, aproveitado as suas novas funções, a pacatez de um meio provinciano e o afastamento do bulício da capital para trabalhar arduamente a sua escrita literária, delegando aos seus assessores a resolução dos problemas da administração. Data deste período uma das suas experiências literárias mais interessantes: a publicação no Diário de Notícias de um conjunto de cartas, em coautoria com Ramalho Ortigão, que dariam origem, meses depois, ao romance epistolar O Mistério da Estrada de Sintra. Terá sido também por esta altura que o jovem escritor terá esboçado História de um Lindo Corpo, obra que nunca terá publicado e da qual não existem vestígios manuscritos no Espólio Queirosiano. Será também em Leiria, ou pelo menos ainda durante o período em que ocupava o cargo de Administrador do Concelho, que o jovem escritor terá projetado a publicação das famosas Farpas, mais uma vez em cooperação com Ramalho Ortigão, que traduzem, como se sabe, a prática cultural dos princípios de intervenção político-social da Geração de 70. Finalmente, mesmo que nada tivesse escrito ou produzido, enquanto passou por esta capital de Distrito, o relevo deste período na ficção queirosiana permaneceria incólume, pois Leiria é a cidade eleita pelo romancista para constituir o cenário físico e sociocultural daquele que virá a ser um dos seus grandes romances, O Crime do Padre Amaro. Gostava de salientar, sobretudo, o mal da ausência, agudamente sentido por Eça, sobretudo nos anos da maturidade em que se viu confrontado com o dilema de escrever sobre realidades que não podia observar e cujos contornos lhe chegavam pela mediação dos jornais ou de notícias de amigos. Esta questão é tanto mais sensível quanto sabemos que o escritor foi, de facto, um adepto da nova literatura que começava a emergir no país vinda de França: a literatura realista e naturalista.  

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Em carta de 1878 dirigida a Rodrigues de Freitas, Eça explica de uma forma entusiástica e exaltada, a propósito da construção d’O Primo Basílio, os objetivos do Realismo na Literatura: O que queremos nós com o Realismo? Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele é mau, por persistir em se educar segundo o passado; queremos fazer a fotografia, ia quase a dizer caricatura do velho mundo

burguês,

sentimental,

devoto,

católico,

explorador, aristocrático (Queirós, 1983: 142). A literatura realista seria, paralelamente, uma representação do real exterior, mediado pelo olhar do escritor, que deveria observar, descrever, criticar, em nome da moralização social, da transformação da sociedade e da renovação estética. A este respeito, leia-se um interessante elogio que Eça endereça, em carta de 1877, a Ramalho Ortigão, a propósito de dois folhetos de Farpas: Li-o com alegria e com inveja: com a alegria que dá o ver o déploiement luminoso de um espírito firme – e com inveja – com inveja porque as «Farpas» serão sempre o verdadeiro romance realista: de que valem todas as minhas invenções ao pé desse pároco que escreve óperas cómicas? (…) Isso são coisas imortais – e exatas! Você é Shakespeare e «Diário de Notícias». Homem feliz! (Queirós, 1983: 122). Em 1879, quando escreveu o artigo “Idealismo e Realismo”, Eça de Queirós já estava há sete anos a viver a sua vida de diplomata, então em

 

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Bristol, na Inglaterra, após ter passado por Havana. Distante do seu país, faz nesse artigo uma veemente defesa do princípio naturalista da observação, em oposição à imaginação que seria própria do romantismo. O naturalismo [diz Eça] é a forma científica que toma a arte, como a república é a forma política que toma a democracia, como o positivismo é a forma experimental que toma a filosofia. Tudo isto se prende e se reduz a esta fórmula geral: que fora da observação dos factos e da experiência dos fenómenos, o espírito não pode obter nenhuma soma de verdade. Experimentar, vivenciar e observar: eis três ações estreitamente vinculadas à atitude de um escritor naturalista que tem no real circundante a matéria prima das suas obras. Ora, Eça escrevia sobre o país, sobre os seus males e defeitos, os seus tipos e caracteres, mas vivia distante dele, apenas regressando episodicamente para férias. E tal ausência teve repercussões na sua obra, uma das quais o abandono do projeto das Cenas Portuguesas e a dispersão jornalística das suas cartas finisseculares, sintomas relevantes desse dilema que o escritor oitocentista vivenciou: um escritor à distância, afastado dos tipos e dos contextos, cuja observação estava comprometida, impedindo-o de respeitar o princípio da observação naturalista. Distante do país, dificilmente poderia ir pintando os quadros da sua sociedade, que ia conhecendo por cartas e conversas com amigos e pela imprensa que lia. Apesar disso, foi precisamente a distância que permitiu a Eça ser um magnífico correspondente de imprensa, legando para a posteridade um conjunto assinalável de crónicas, cartas e bilhetes que remetia das capitais

 

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em que vivia para os diversos jornais do seu tempo. Sobretudo um jornal brasileiro, particularmente importante na obra de Eça – a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, no qual publicou   cerca de cinquenta e cinco textos, presentemente publicados em edição crítica, sob o título de Textos de Imprensa IV (da Gazeta de Notícias). Neste volume, encontram-se compilados e criteriosamente editados todos os textos jornalísticos que Eça publicou naquele jornal e que, até há bem pouco tempo, circulavam em volumes dispersos: Notas Contemporâneas, Cartas de Inglaterra, Ecos de Paris, Cartas Familiares e Bilhetes de Paris. Embora a sua colaboração na Gazeta de Notícias não se tivesse resumido a um contributo epistolar, o certo é que a maioria dos textos possui essa dimensão epistolar, tão característica da escrita jornalística queirosiana. Dos cerca de cinquenta e cinco textos da Gazeta de Notícias, apenas quinze não são escritos sob a forma de carta, nem publicados em secções cujo nome remeta para essa opção modal. E, entre eles, detectamos dois – «Padre Salgueiro» (publicado a 13 de Junho de 1892, no «Suplemento Literário») e «Quinta de Frades» (publicado a 27 de Julho de 1892 fora de qualquer secção especial) – que, posteriormente, foram adaptados à Correspondência de Fradique Mendes e modulados em função da forma epistolar. Quer isto dizer, portanto, que, no âmbito desta colaboração queirosiana, o espaço ocupado pelo registo epistolar é indiscutível e conduz-nos obrigatoriamente a indagar das razões desta opção modal, tentando compreender o seu alcance, as suas motivações e o modo como ela terá influenciado a construção dos textos, bem como o tipo de comunicação estabelecido com os leitores da Gazeta. Como também já tivemos ocasião de sublinhar, a distância geográfica que separava Eça dos jornais para onde escrevia não nos parece ser o motivo principal que terá presidido à escolha formal da carta. Se é certo que a carta é a forma discursiva que melhor se adapta à escrita da ausência,  

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materializando laços e pontes entre remetentes e destinatários, também é certo que, por vezes, Eça abandona a escrita epistolar e confere aos seus artigos outras formas textuais, desde o ensaio, à crónica. Também em pleno século XIX, as cartas escritas por Eça e enviadas à Gazeta de Notícias eram um meio de actualizar os leitores brasileiros em relação a tudo quanto se passava na Europa do tempo, oferecendo-lhes parcelas do real seleccionadas pelo escritor e habilmente reconstruídas e comentadas. Inclusive, esta função informativa relacionada com a correspondência jornalística era um dos objectivos perseguidos pelos directores dos periódicos, no momento de contratação dos seus correspondentes. Desta forma, a Gazeta de Notícias oferecia aos leitores uma selecção de novidades europeias, adquirindo dimensão internacional, e Eça cumpria o seu papel de correspondente, dando continuidade, aliás, a uma tradição epistolar ancestral, que remonta ao tempo em que a carta era o médium privilegiado de disseminação e partilha da informação. Podemos, então, afirmar que a função de correspondente constituía para Eça um meio de ele próprio conhecer melhor a realidade política e social envolvente, facultando-lhe espaço discursivo para a reinterpretar e reler, libertando-lhe, ao mesmo tempo, o espírito para a verdadeira criação que era a ficção artística. Esta duplicidade do escritor-jornalista era aliás uma característica comum ao homem de letras da centúria de oitocentos que vivia num permanente dilema entre a escrita utilitária e referencial, publicada nos jornais, e a escrita artística reservada ao livro. Aliás, em carta a Ramalho Ortigão, datada de 10 de Julho de 1879, Eça de Queirós secundariza a questão financeira, em prol de um ato de escrita salutar e “higiénico”, para usarmos a palavra do autor: Deve entender porém que eu não quero evacuar grátis; e é esta outra feição da questão que é importante  

considerar:

como,

porém,

é 14  

sobretudo por um fim de higiene que eu desejo corresponder – o facto da remuneração não é essencial: contento-me com uma quantia que ressalve suficientemente a dignidade das letras (Queirós, 1983: 180). Segundo dados avançados por Filomena Mónica que, no entanto, não apura fontes, Eça recebia da Gazeta de Notícias quatro libras por coluna: “Mas seria na Gazeta de Notícias, onde colaborou durante anos, que mais dinheiro ganhou: este periódico pagava-lhe £ 4 por coluna (18$000 réis).” (Mónica, 2001: 246); esta era, na opinião de Heitor Lyra, uma soma significativa para as finanças do autor: “E isso tanto mais o atormentava quanto essa colaboração se lhe tornara, por assim dizer, indispensável, já que representava para os seus magros bolsos um meio certo de obter dinheiro. Ainda porque o jornal lhe pagava bem.” (Lyra, s/d.: 154). Só assim se justifica que prolongue a colaboração com a Gazeta, mesmo quando esta passa a ser encarada como mera obrigação que pouco prazer lhe trazia, como se depreende das palavras dirigidas em carta a Alberto de Oliveira, desculpando-se de ainda não ter dedicado tempo suficiente à publicação da revista Serão: Todo este contratempo, naturalmente, não me tem feito senão pensar mais incessantemente no Serão, pois que ele, em contraste com a Gazeta, representa o prazer (Queirós, 1983: 361). No entanto, a prosa em falta para o periódico brasileiro tinha de ser manufaturada, para que pudesse receber justamente o seu salário: É uma brutal questão de pecúnia. Se o bilhete da lotaria do Natal que o Bebert, por sua mão, comprou em Madrid, tivesse sido premiado, já eu teria remetido para o Serão Ramires e  

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Ulisses. Assim, tenho de estar a tratar a questão da Venezuela, o que não é divertido, nem estético (Queirós, 1983: 361). O certo é que a publicação de textos de Eça de Queirós na Gazeta de Notícias foi sistemática e regular, tendo durado dezassete anos, com algumas interrupções, justificáveis com outros projetos em que o autor se envolvia, como sucedeu com a Revista de Portugal, ou com ausências mais prolongadas de férias na pátria. Estes textos provêm de diversos géneros e versam sobre grande diversidade de assuntos. É através deles que Eça cumpre as suas funções de correspondente internacional: oferecer aos leitores brasileiros da Gazeta uma leitura crítica sobre a situação política, social e cultural europeia, tendo como referência as duas capitais mais importantes da altura: Londres e Paris. Encontrando-se numa situação privilegiada de correspondente no terreno, Eça ia extraindo da experiência e da leitura da imprensa assuntos que potencialmente pudessem interessar aos leitores da Gazeta, oferecendolhes quadros, muitos deles de profunda análise política, outros mais leves e superficiais, mas sempre filtrados pela fina ironia queirosiana, sobre o desenrolar da conjuntura europeia. Como nota Clóvis Ramalhete, “caricaturista de Lisboa, mudado para Londres e depois para Paris, alargava a vista sobre o espetáculo de uma Europa em ebulição política e social.” (Ramalhete, 1981: 154). Se a ausência da pátria comprometeu o projeto das Cenas Portuguesas, permitiu, por outro lado, ao escritor ter uma visão singular e real do contexto europeu, compelindo-o a rever as imagens míticas que guardava desse outro mundo civilizado europeu. A utilização do modo epistolar, nos textos jornalísticos de Eça de Queirós, não só decorre de uma opção consciente e refletida, mas transporta sobretudo, para o interior dos textos, importantes alterações  

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discursivas e temáticas, configurando um tipo de comunicação muito peculiar, que privilegia tanto a proximidade com o leitor, como a instauração da subjetividade do escritor. A leitura desta correspondência consagra uma imagem de um Eça epistológrafo de excelência, que conseguiu capitalizar as principais especificidades do discurso epistolar, colocando-as ao serviço dos seus objetivos: manter com regularidade um contacto próximo com os leitores brasileiros, transmitindo-lhes imagens muito pessoais da Europa do tempo; mais do que informar, as suas cartas ofereciam

aos

destinatários

notícias

comentadas

e

previamente

selecionadas, configurando uma representação da Inglaterra e da França muito parcial e parcelar; finalmente, ao transportar para um espaço discursivo público, como o jornal, um tipo de texto que traduz geralmente uma atividade individual e privada, Eça ensaia uma relação de proximidade com os leitores, individualizando-os e implicando-os no discurso. Sendo Eça de Queirós um grande escritor e romancista, um dos maiores da nossa história literária, o enfoque que aqui adotámos permitiu vê-lo sob um outro prisma, explorando textos menos conhecidos e mais marginais relativamente às obras de renome. Eça foi também um ativo colaborador nos jornais do seu tempo, uma “espécie de jornalista”, como o próprio se autodenomina, e fê-lo, como vimos, sobretudo por necessidade. No entanto, a qualidade dos seus textos, a fluência da sua escrita, o virtuosismo do seu estilo fazem com que as suas cartas jornalísticas tenham escapado à efemeridade que geralmente atinge textos de imprensa, ainda hoje suscitando novas leituras. Deste modo, e para terminar, pois o tempo já vai longo e temo estar a maçar os que me ouvem, parece-nos que esta relação entre a ausência e a

 

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escrita é um filão temático ainda por explorar na obra queirosiana e de que aqui apenas esboçámos os contornos. Leiria, 7 de maio de 2014

 

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