A CARTOGRAFIA COMO POSSIBILIDADE PARA UMA APROXIMAÇÃO ENTRE PRODUÇÃO ARTÍSTICA, CRÍTICA E ACADEMIA Cartography as a possibility for an approach between artistic production, critical and academy
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DOI: 10.21604/2177-8841/moringa.v7n1p65-79 | E-ISSN 2177-8841
A CARTOGRAFIA COMO POSSIBILIDADE PARA UMA APROXIMAÇÃO ENTRE PRODUÇÃO ARTÍSTICA, CRÍTICA E ACADEMIA Cartography as a possibility for an approach between artistic production, critical and academy Manoel Levy Candeias Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP1
Resumo: Este artigo trata da possibilidade de uma aproximação efetiva entre produção artística, crítica e academia. A partir da cartografia e outros conceitos de Deleuze e Guattari, levantamos algumas sugestões para uma mudança de perspectiva nos trabalhos críticos e científicos das Artes Cênicas, que dialogariam de uma nova maneira com a visão artística e passariam a usufruir de maior liberdade criativa. Palavras-chave: Cartografia; Artes Cênicas; Metodologia de Pesquisa. Abstract: This article deals with the possibility of an effective approach between artistic production, critical and academy. From the cartography and other concepts of Deleuze and Guattari, we raise some suggestions for a change of perspective in critical and scientific papers in Performing Arts, which would engage in a new way with the artistic vision and would gain a greater creative freedom. Keywords: Cartography; Performing Arts; Research Methodology.
1
Membro do projeto de pesquisa O Popular e a cena: da convenção à reinvenção, coordenado pela Profª Drª Neyde Veneziano. Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 7 n. 1, jan/jun 2016, p. 65 a 79
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Manoel Levy Candeias
Nos últimos anos tem havido uma
aproximação
entre o
meio
alguém
que
não
entende
de
produção artística e vive preso a
acadêmico e a produção teatral
conceitos
brasileiros, com um número maior de
impossibilitam de apreciar a obra de
artistas realizando pesquisas em
arte sem preconcepções redutoras. E
instituições
uma
há críticos, por sua vez, que acusam
de
uma falta de fundamentos teóricos
teóricos nos processos de produção
no trabalho de grupos e encenadores
artística. Tal movimento mostra-se
profissionais. Esse quadro genérico
especialmente evidente na trajetória
pode
dos
paulistanos,
parcela de verdade, todavia, está
sobretudo após a criação da lei
longe de definir as especificidades
municipal de fomento para o teatro,
das funções do crítico e do artista.
em
os
Além disso, esses papéis, todos
cênica
importantes dentro do universo do
acadêmicas
participação
mais
grupos
2002.
projetos
e
frequente
teatrais
Frequentemente, de
aprovados
pesquisa para
alcançar,
às
que
vezes,
o
uma
o
teatro brasileiro, não nos parecem
financiamento estatal possuem uma
ser tão opostos assim. Nem mesmo
vertente
no modo de lidar com a elaboração
teórica,
encontros
e
receber
engessados,
com
outros
palestras, meios
de
de seu material de trabalho, a crítica,
discussão, normalmente orientados
a academia e a classe artística são
ou conduzidos por investigadores
tão
convidados. Entretanto, trata-se de
costuma crer – ou fazer com – que
um processo ainda tímido, diante da
sejam.
divergentes
quanto
que
se
tradicional tendência a se enxergar
A despeito do ponto de vista
ciência e criação como caminhos
predominante, todos esses agentes
paralelos. Por esse ponto de vista,
estão dentro do mesmo campo de
largamente difundido, existe ainda
atuação
outra separação, que insere o crítico
permanentemente,
numa posição praticamente alheia à
evidentemente, estarem sujeitos às
arte. Não se pode dizer que haja
mesmas transformações culturais,
unanimidade, mas é muito comum o
sociais e históricas. Quando se diz,
artista
por exemplo, que o Brasil não tem
enxergar
o
crítico
como
e
se
influenciam além
de,
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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia
uma cultura teatral consolidada, que
poderíamos pensar em termos de
o
uma
formação de público, de ensino de
pequena parcela da população, fala-
arte nas escolas, de aprimoramento
se de um problema que diz respeito
profissional das atividades artísticas,
a todos. Pelo lado dos artistas, há a
da compreensão das artes como um
dificuldade de viabilizar a produção.
meio específico e importante de
Falta de patrocínio ou um insuficiente
construção de conhecimento, entre
incentivo por parte do poder público
outras
são os obstáculos mais conhecidos.
relevância,
Há, em conjunção a isso, a baixa
discutiremos por não estarem dentro
apreciação das artes cênicas no
do escopo e ao alcance deste artigo.
público
frequentador
é
país, refletida no número grande de
questões
de
mas
grande
que
não
No entanto, o fato de serem
pessoas que nunca foram ao teatro e
conjuntamente
na maneira como boa parte delas
fenômenos
estranha os códigos e convenções
culturais que apontamos não elimina
da linguagem cênica – justamente
uma possível oposição entre artistas,
por uma falta de hábito ou formação.
pesquisadores e críticos. Apenas
Esse desprestígio não afeta menos
reforça a ideia de que elas se
ao crítico que escreve uma resenha
inserem dentro da mesma área, do
pouco lida ou ao pesquisador que
mesmo campo de trabalho – trata-se,
tenta
de
talvez, de uma daquelas obviedades
estudos em um edital que o coloca
que não são muito lembradas na
em disputa de importância com
prática
outras áreas, muitas delas mais
aprofundar, então, o tema, podemos
valorizadas pelas esferas públicas e
acrescentar a afirmação de que as
conseguir
uma
bolsa
2
privadas . A partir desses problemas,
afetados
históricos,
do
pelos
sociais
cotidiano.
e
Para
atividades desses profissionais, que atuam dentro do mesmo campo,
2
É frequente o lançamento de programas de apoio à pesquisa, financiados em parceria público-privada em que as áreas de artes não são contempladas. Nesse caso, isso provavelmente ocorre por prevalecerem os interesses das empresas privadas. Para pegar outro exemplo, o programa de intercâmbio Ciência sem Fronteiras, do
possuem
também
semelhantes.
características Pela
visão
governo federal, também não prevê inscrição de estudantes das áreas de artes.
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Manoel Levy Candeias
predominante, considerar-se-ia que o
na dissertação ou tese dependem de
artista cria, o pesquisador coleta
algum grau de criatividade. O mesmo
dados e os analisa, enquanto o
se pode dizer do crítico, que assiste
crítico
as
ao espetáculo, seleciona o que lhe
generalizações antes mencionadas,
parece relevante e escreve uma
essa classificação talvez não esteja
resenha, oferecendo um ponto de
completamente
vista
julga.
Assim
como
errada,
porém,
sobre
a
Há,
também,
didático, que não dá conta das
Seria
nuances
das
que, no caso dos pesquisadores e
atividades que procura descrever.
críticos, o texto final tem suas
Essa
ser
particularidades delineadas por uma
evidenciada por uma análise sobre a
questão ideológica e formal, não pela
possibilidade de se considerar que
criatividade. Nesse caso, deveríamos
todos eles – artistas, pesquisadores
lembrar que a criação do artista
e críticos – criam, coletam, analisam
também
e julgam.
específica
potencialidades
imprecisão
Não
nos
pode
parece
polêmico
possível
natureza
nisso
devemos pensá-la como um recurso
e
certa
obra.
criativa.
contra-argumentar
busca
a
da
linguagem
cena
e
é,
inevitavelmente, influenciada pelos
afirmar que o artista pesquisa e que,
ideais
durante os processos de ensaio,
Portanto, criação e ideologia não
discussões e leituras, julga o material
parecem ser dissociáveis. Dito isso,
com o qual entra em contato, para
podemos considerar que, apesar de
selecionar o que lhe interessa. Tudo
possuírem
isso gira em torno do processo de
atividades
criação, que é sua prioridade. O
campo ou área de interesse e
pesquisador, por sua vez, estuda o
trabalham com pesquisa, análise e
material de trabalho, conforme sua
criação. Dessa forma, não são tão
metodologia, depois o analisa e
diferentes quanto parecem à primeira
registra as conclusões ou questões
vista. Ainda assim, a aproximação
que lhe parecem mais relevantes.
seria apenas teórica, pela aceitação
Essa seleção de elementos e a
de
maneira como eles são elaborados
semelhança nos procedimentos e,
que
de
seus
realizadores.
prioridades,
as
pertencem ao
há
algum
três
mesmo
grau
de
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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia
em nível menor, de ponto de vista. A
porque, além de escrever em um
separação permaneceria inalterada.
espaço
No entanto, é possível ir ainda um
publicações
pouco mais fundo, para buscar uma
editoriais, seu tempo de pesquisa
interpenetração
direta com a obra costuma ser muito
entre
as
três
funções.
reduzido, que
dentro impõem
de limites
curto.
Existem alguns grupos teatrais
Não é nova a ideia de que o
que lidam bem com essas conexões,
crítico, quando aprecia uma obra
ao assumirem com bastante força o
teatral, está em contato com um
caráter de pesquisa de seu trabalho,
evento único, que tem nuances
mesmo que seu processo se conclua
diferentes
com uma obra predominantemente
dentro de uma temporada. Diante
artística, diferentemente dos outros
disso,
dois. Há também um bom número de
apreciação, que envolve diversas
pesquisadores
variantes
que
trabalham
a
a
após
cada
a
apresentação
experiência
subjetivas,
como
da
seu
conjunção academia-prática artística.
estado de espírito, o lugar onde se
Porém,
da
sentou, a performance dos atores
a
naquele dia e outros fatores pouco
tradição científica exige destes uma
mensuráveis, ele se vê na tarefa de
redação
padrões
descrever e avaliar objetivamente a
específicos, que dão pouca margem
obra. Nesse momento, quase tudo
a uma criatividade mais livre, que
que envolve a especificidade do
altere a linguagem ou o meio de se
acontecimento teatral acaba tendo
comunicar. Há casos em que a
de ser relegado ao segundo plano,
defesa de dissertação ou tese inclui
para que não se produza uma
a apresentação de um resultado
análise subjetiva demais. Assim, uma
prático,
vir
resenha termina por priorizar uma
acompanhada de um registro escrito,
comparação entre os conceitos do
com
No
crítico e a concepção estética da
trabalho do crítico, essa margem
obra. Mas como fugir disso? Afinal, o
criativa
crítico tem uma formação estética e
no
apresentação
momento de
dentro
mas
ela
linguagem
fica
ainda
resultados,
de
tem
de
científica.
mais
restrita,
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Manoel Levy Candeias
procura discorrer sobre aquilo que é
consciência
fixo no acontecimento teatral – o que
(temperatura, humor, trânsito, atraso
vem
a
e diversos outros fatores podem
concepção geral e a relação dos
alterar o acontecimento). Porém,
outros elementos com esta. Para
podemos começar a pensar num
além
comentários
caminho cujo princípio é a aceitação
sobre o desempenho dos atores, que
de que o registro científico da
costuma ser descrito com adjetivos
resenha ou da tese é apenas uma
como vigoroso, esplêndido, brilhante,
seleção
fraco,
daquilo
a
ser,
disso,
entre
grosso
restam
outros,
modo,
ou
com
de
sua
limitada que
interferência
e
delimitadora
pretende
descrever.
afirmações como “abaixo da média”,
Partindo-se desse ponto de vista,
“que se destaca do restante”, “que
poder-se-ia entender que um texto
rouba a cena”, etc. Pouco resta do
analítico com um discurso totalitário,
acontecimento cênico. Mas, de que
de afirmações que se pretendam
maneira o crítico poderia transportar
definitivas e universais, acaba por
para a resenha a complexidade da
perder credibilidade. Sendo assim,
experiência que viveu no teatro?
aventemos como solução o uso de
Como falar de algo em processo a
uma
partir de uma única apresentação? A
assuma
mesma questão se pode fazer ao
análise e que se coloque como
pesquisador-artista: como apresentar
resultado de uma criação do crítico.
a uma banca o registro ou os
Tal proposta poderia trazer alguma
resultados
transformação, mas ainda sutil. Seria
de
uma
investigação
linha
de
como
discurso limitado
sua
possível
recortar sem reduzir a força da
sentido? Seria possível pensar em
experiência cênica?
modos de ampliar a capacidade de
inevitáveis,
perdas porque
são
transposição
do
mais
em
se
cênica em sua plenitude? Como
Algumas
avançar
que
nesse
acontecimento
existem
cênico único para esses registros
incontáveis fatores que influenciam
críticos e científicos? Faria sentido tal
na relação entre a vivência da cena e
pretensão?
sua análise, além daqueles que
Por uma via menos específica,
agem sem que tenhamos muita
é essa a busca da cartografia, um
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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia
obras
de Gilles Deleuze e Félix Guattari,
criticam
com intenção de conduzir pesquisas
entenderem que este se pauta numa
de
limitadora
campo
numa
relação
mais
filosóficas
parceria3,
método formulado a partir das teorias
o
em
racionalismo,
visão
por
composta
próxima entre sujeito-objeto, tendo
dualidades,
por base critérios diferentes dos
separação sujeito-objeto e, acima de
padrões
tudo, a polarização entre corpo e
científicos
tradicionais.
dentre
recorre a regras prontas e objetivos
capacidades e funções humanas ao
previamente
comando da razão. Para demonstrar
segue
um
percurso
predefinido.
sua
teoria,
todas
a
mente,
nem
relegaria
quais
Nessa proposta, o pesquisador não
estabelecidos,
que
as
por
ilustram
a
as
visão
Parte-se do princípio de que o
racionalista com uma árvore, que
pesquisador deve criar um “plano de
representaria
experiência”
não
arraigado, em que tudo tem uma raiz
distanciar-se dele, e, a partir dessa
e passa sempre por um tronco
relação, em que um se mistura ao
central para poder frutificar na outra
outro, construir o método. As metas
extremidade, com início e fim claros.
com
o
objeto,
se fazem durante o percurso: “Trata-
o
Como
ponto
de
vista
contraponto,
se, então, de um método processual,
apresentam seus pontos de vista,
criado em sintonia com o domínio
ilustrados pela ideia de um rizoma,
igualmente
ele
caule com ramificações onde brotam,
abarca” (BARROS; KASTRUP, 2009,
por exemplo, os tubérculos. No
p.77), afirmam Regina Benevides de
rizoma,
Barros e Virgínia Kastrup, em Pistas
movimento
do
uma
ramificações não possuem ordem
artigos
predefinida ou previsível: “Princípios
processual
método
coletânea
da
que
cartografia,
brasileira
de
voltados ao tema. Deleuze compuseram
e
que sem
caracterizaria
o
hierarquia,
as
de conexão e de heterogeneidade: Guattari,
algumas
que
qualquer ponto de um rizoma pode
conhecidas
ser conectado a qualquer outro e 3
O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia; Mil Platôs; O que é a filosofia? e Kafka – por uma literatura menor. Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 7 n. 1, jan/jun 2016, p. 65 a 79
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Manoel Levy Candeias
deve sê-lo. É muito diferente da
eles discorrem sobre a característica
árvore ou da raiz que fixam um
que mais diz respeito à discussão
ponto,
que
uma
ordem”
(DELEUZE;
aqui
trazemos:
GUATTARI, 1995, p. 15). Essa é,
rizomático
nos
compreender
termos
deles,
uma
das
de
o
modo
enxergar
e
coisas,
os
as
“características aproximativas” que
fenômenos, o mundo enfim. Para
trazem para que o leitor possa
tanto,
compreender o que eles denominam
contraponto,
rizoma.
A
multiplicidade,
uma
fazem
decalque
e
primeiro
pensar
arborescente;
inevitável
uma
da
consequência
estrutura
não
um
apresentando
característica que se poderia, talvez, como
novamente a
cartografia .
caracterizaria
observação
o 4
o
a
visão
segundo,
rizomática.
O
a
Segundo
hierárquica que apresentam, é outro
eles, o decalque é um processo de
importante aspecto dentro de sua
pensamento
teoria:
reproduzir algo que se dá feito “[…] a partir
que
de
uma
consiste
estrutura
em
que
Princípio de multiplicidade: é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. (Ibidem, p. 16)
sobrecodifica ou de um eixo que
Sendo
hierárquico,
separação entre sujeito e objeto,
ramificado e conectável por qualquer
tudo é ramificação e não tem posição
caminho, o rizoma não possui um fio
fixa:
não
suporta. hierarquiza decalques
A
árvore os
são
articula
decalques, como
folhas
e os da
árvore” (Ibidem, p. 21). O rizoma, por seu turno, seria mapa, não decalque. Seria e, ao mesmo tempo, realizaria mapa, porque no rizoma não há
condutor uno, centralizador, que se sobreponha
à
alternância
O mapa não reproduz inconsciente fechado sobre mesmo, ele o constrói. contribui para a conexão
de
sentidos, vozes, pontos de vista. Concluindo
suas
“aproximações”, 4
um ele Ele dos
Grifo nosso.
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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações. (Ibidem, p. 22)
No entanto, eles afirmam que não pretendem, com tais colocações,
seguinte quadro: “A filosofia, a arte, a ciência não são os objetos mentais de um cérebro objetivado, mas os três aspectos sob os quais o cérebro se
torna
ao pensamento rizomático, sendo este superior àquele. Mencionam ainda
a
possibilidade
interpenetrações
entre
de
os
dois
Pensamento-
cérebro, os três planos, as jangadas com as quais ele mergulha no caos e o enfrenta” (Idem, 2007, p. 269). A vida, os fenômenos, tudo
formar uma nova dualidade, que oponha o pensamento arborescente
sujeito,
seria
um
movimento
caótico,
rizomático. A ciência, segundo eles, tenderia
a
tomar
definidos
por
pequenos
desacelerados do
objetos estratos
movimento
do
rizoma, que, em verdade, continua a
pontos de vista:
se Existem estruturas de árvore ou de raízes nos rizomas, mas inversamente, um galho de árvore ou uma divisão de raiz podem recomeçar a brotar em rizoma. A demarcação não depende aqui de análises teóricas que impliquem universais, mas de uma pragmática que compõe as multiplicidades ou conjuntos de intensidades (Ibidem, p. 24).
modificar
possamos
antes
mesmo
assimilá-lo.
Por
que esse
caminho, pequenas estabilizações provisórias são transformadas pelo pensamento científico em modelos para a compreensão do todo. O que seria impreciso e insuficiente, já que tais
desacelerações
seriam
uma
parcela mínima, fugaz e diferente do A diferenciação entre as visões arborescente então,
e
como
rizomática base
restante dos movimentos do caos:
serve,
para
a
comparação que Deleuze e Guattari fazem entre as estruturas e modos de expressão da ciência, da filosofia e da arte. A esse respeito, trazem o
O cientista traz do caos variáveis, tornadas independentes por desaceleração, isto é, por eliminação de outras variabilidades quaisquer, suscetíveis de interferir, de modo que as variáveis retidas entram em relações determináveis numa
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Manoel Levy Candeias função: não mais são liames de propriedades nas coisas, mas coordenadas finitas sobre um plano secante de referência, que vai das probabilidades locais a uma cosmologia global. (Ibidem, p. 260)
A filosofia seguiria outra trilha. A
criação
de
característica
conceitos,
particular,
sua
leva
a
Por fim, a arte, quando em plena
força,
pode
transpor
a
realidade movente do rizoma para uma
moldura.
É
apenas
um
fragmento, mas pode ser caótico, carregar um pedaço do rizoma em vez
de
procurar
traduzi-lo
com
representações:
formulações que, mesmo sendo mais porosas
que
as
das
ciências,
também não dão conta de trazer uma compreensão sobre o caos. Então, para
justificar
e
validar
seus
conceitos, os filósofos criam um contexto, um “plano de imanência”, que recorta o caos e procura dar credibilidade à sua criação: Pode-se considerar como decisiva, ao contrário, a definição da filosofia: conhecimento por puros conceitos. Mas não há lugar para opor o conhecimento por conceitos, e por construção de conceitos na experiência possível ou na intuição. Pois, segundo o veredito nietzschiano, você não conhecerá nada por conceitos se você não os tiver de início criado, isto é, construído numa intuição que lhes é própria: um campo, um plano, um solo, que não se confunde com eles, mas que abriga seus germes e os personagens que os cultivam. O construtivismo exige que toda criação seja uma construção sobre um plano que lhe dá uma existência autônoma. (Ibidem, p. 15,16)
O artista cria blocos de perceptos e afectos, mas a única lei da criação é que o composto deve ficar de pé sozinho. O mais difícil é que o artista o faça manter-se de pé sozinho. Para isso, é preciso por vezes muita inverossimilhança geométrica, imperfeição física, anomalia orgânica, do ponto de vista de um modelo suposto, do ponto de vista das percepções e afecções vividas; mas estes erros sublimes acedem à necessidade da arte, se são os meios interiores de manter de pé (ou sentado, ou deitado). (Ibidem, p. 214)
Dessa maneira, quando bem sucedido, o artista teria condições de emoldurar o caos, sem modificá-lo. E isso estaria para além de uma autoria,
porque
o
permaneceria
na
independentemente
de
movimento obra quem
a
concretizou: “A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si” (Ibidem, p. 213). A partir disso, a ideia da cartografia como metodologia de
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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia
pesquisa para artistas, críticos e
como
acadêmicos ganha outra dimensão.
Portanto, ele poderá aceitar essa
Se o movimento não cessa, aquele
condição e fazer uma cartografia
que pretende compreendê-lo deve
apenas da apresentação que ele
procurar
suas
presenciará.
reter
que, mesmo sem abrir mão dos
pequenas desacelerações isoladas,
recursos habituais de comparação
que possam corresponder a teorias
entre suas referências e a concepção
formuladas
Tal
cênica, ele passe a exercitar um
procedimento sugere uma abertura
olhar mais aberto e considere a
para traçar apenas os caminhos que
existência de inúmeras influências
a pesquisa prática aponta: “Se o
para além dos aspectos conceituais
mapa se opõe ao decalque é por
da encenação. Afinal, ele agora
estar inteiramente voltado para uma
compreende que deve fazer mapa
experimentação ancorada no real”
em vez de decalque, e um mapa “[…]
(Idem, 1995, p. 22).
tem
acompanhar
transformações,
Então,
não
tentar
previamente.
pensemos
na
um
pequeno
Indo
além,
múltiplas
contrariamente
ao
fragmento.
digamos
entradas decalque
que
cartografia aplicada ao trabalho de
volta sempre ‘ao mesmo’. Um mapa
artistas, pesquisadores e críticos.
é uma questão de performance,
Para um grupo teatral ou para um
enquanto que o decalque remete
pesquisador que trabalha em um
sempre
estudo cênico prático é mais fácil
‘competência’” (Ibidem, p. 22). É um
vislumbrar a possibilidade de traçar
exercício semelhante ao do ator que
esse caminho mais livre. No caso do
procura estar plenamente presente
crítico, retornamos ao fato de ele
em cena, com toda a disponibilidade
assistir apenas a uma apresentação
para o jogo, para evitar repetir
dentro de uma temporada, que será,
maquinalmente seu trabalho. Nesse
inevitavelmente, repleta de nuances
sentido, talvez o crítico dependa
a cada nova sessão. Sendo assim, a
também da força da experiência
relação direta do crítico com a
promovida por quem está sobre o
encenação
palco, que deve ser mais mapa que
deverá
ser
pensada
a
uma
presumida
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Manoel Levy Candeias
decalque. Consideremos, então, um
textual, que se assumiria como um
acontecimento hipotético, de uma
comentário sobre um processo que
encenação
possui
teatral
extremamente
nuances
indescritíveis
e
vigorosa, com uma concepção bem
imponderáveis. No caso da resenha,
fundamentada e poética, com atores
o texto teria afirmações de que a
e críticos plenamente presentes e
apresentação da noite presenciada
abertos para construir um plano de
pelo crítico teve tais características
experiência com seu entorno. Após a
(não mais a montagem, apenas
experiência,
aquela
como
o
crítico
apresentação
específica).
transmitirá textualmente o que viveu?
Dentro do ponto de vista que aqui
Esse nos parece ser o ponto
temos em conta, não deixaria de ser
mais delicado do método de Deleuze
interessante, por ser menos ilusório e
e Guattari, porque é quando o crítico
até mais preciso, ao assumir sua
(algo
insuficiência,
semelhante
pesquisador dissertação/
que
passa
o
apresenta
uma
posicionar
sobre
seus
universalidade
tese
em
vez
com a
Guattari
para
outra
científica.
Produziria
na
alteração,
porque
uma
espécie
expressão
aquilo
que
de apurou
se
pretensão
de
Deleuze
e
que
exercícios práticos) precisa transpor
de
identificam
na
postura
já
alguma
modificaria
experiência de campo, estabelecida
posicionamento
entre ele e seu objeto. Pela teoria
expressões do autor, assim como o
que estamos abordando, não há
olhar do leitor, que não esperaria por
essa
verdades universais e
separação,
já
que
o
pesquisador compõe com o objeto e
sobre
nele
experiência
interfere.
O
investigador
a
e
o
montagem. e
seu
algumas
definitivas Porém,
a
registro
acadêmico não realiza uma pesquisa
continuariam muito distantes um do
nem o crítico assiste ao espetáculo;
outro, e o texto ainda teria estrutura
o primeiro é a pesquisa e o segundo
científica, porque, mesmo admitindo-
é o espetáculo. Pesquisar é intervir,
as como provisórias, recorreria às
é ser a pesquisa. Talvez a primeira
estratificações.
solução em que se pense seja
pensar, então, numa resenha ou
novamente a alteração do discurso
pesquisa que não se separasse do
Seria
possível
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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia está desde início recoberto por clichês, que o pintor deve enfrentar o caos e apressar as destruições, para produzir uma sensação que desafia qualquer opinião, qualquer clichê (por quanto tempo?). A arte não é o caos, mas uma composição do caos, que dá a visão ou sensação, de modo que constitui um caosmos, como diz Joyce, um caos composto — não previsto nem preconcebido. (Idem, 2007, p. 262 - 263)
campo da experiência, que trouxesse a
quem
lê
um
desacelerado,
registro
com
menos
afectos
e
perceptos? Nesse caso, estamos falando
das
características
que
Deleuze e Guattari usam para tentar definir as especificidades da arte. Seria possível pensar numa crítica ou numa tese fundamentada nos parâmetros que os autores definem como
particularmente
Nesse caso, além de buscar um espaço para tal reformulação em seus meios de expressão, os críticos e acadêmicos precisariam deixar de trabalhar
com
Essas
artísticos?
desacelerações
e
conceitos para trilhar um caminho quase inverso, que os obrigaria, assim como ocorre com os artistas, a lutar contra a repetição formal:
questões
trabalhadas
têm
por
sido alguns
pesquisadores e grupos temáticos de diversas
áreas5.
Que
tipo
de
transformações esses movimentos podem trazer, só o tempo dirá. Até se
podem
posições,
questionar
inclusive
certas
defender que
Deleuze e Guattari (1995, p. 33) não pretendiam ser lidos com muita seriedade, conforme se depreende
[…] o artista se debate menos contra o caos (que ele invoca em todos os seus votos, de uma certa maneira), que contra os "clichês" da opinião. O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma página branca, mas a página ou a tela estão já de tal maneira cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso de início apagar, limpar, laminar, mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga a visão. […] É mesmo porque o quadro
do seguinte trecho de Mil platôs: Escrevemos este livro como um rizoma. Compusemo-lo com platôs. Demos a ele uma forma circular, mas isto foi feito para rir. Cada manhã, levantávamos e cada um de nós se perguntava 5
Os psicólogos que organizaram a publicação de Pistas do método da cartografia, e um grupo denominado Conexões, que envolve médicos, psicólogos, educadores e artistas-pesquisadores da USP, da UNICAMP e do Lume, são alguns exemplos.
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Manoel Levy Candeias que platôs ele ia pegar, escrevendo cinco linhas aqui, dez linhas alhures. (Ibidem, p. 33)
De qualquer forma, o que os autores defendem é a insuficiência da ciência e da filosofia, por meio de um texto propositadamente poroso e, talvez, contraditório, no qual há pistas como essas, que parecem indicar
que
esquecer
de
não
devemos
que
eles
nos
também
criaram conceitos. Sua teoria sobre a insuficiência
da
ciência
e
dos
conceitos filosóficos é permeada de conceitos filosóficos
e
pequenos
como especulamos aqui, ser refletido num novo modo de escrita para a academia
e
para
a
crítica
profissional, aproximando-os ainda mais da produção artística. Se seria favorável, não sabemos, mas o convite deles é justamente para que caminhemos
sem
preconcebidas
nem
ideias respostas
prévias, apenas com uma atenção flutuante, aberta a perceber novos movimentos.
É
percorrer,
ou
cartografar, para ver no que dá. Recebido em 15 de Junho de 2015 Aceito em 18 de Setembro de 2015
desvios. Talvez para desconfiarmos dos outros filósofos e também deles, que fizeram sua teoria dentro desse espírito assumidamente “leviano”. Se isso pode tirar a credibilidade de seu texto é, ao mesmo tempo, o que reafirma
sua
oferecer
uma
pensamento padrões,
teoria
e
procura
liberdade
de
relação
aos
em
incluindo-se
os
deles.
Nesse sentido, eles deixam pistas que estimulam a experimentação no trabalho poderiam
de
pesquisadores,
encontrar
que
fundamentos
novos para rever ou complementar os rigores da ciência tradicional. No campo das artes, isso talvez possa, Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 7 n. 1, jan/jun 2016, p. 65 a 79
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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia
Referências BARROS; KASTRUP. Movimentos-funções do dispositivo na prática da cartografia. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (org.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009, p. 76-91. DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, v. 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. 94p. ______________________________. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2007. 279p. PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (org.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. 207p.
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