A CARTOGRAFIA COMO POSSIBILIDADE PARA UMA APROXIMAÇÃO ENTRE PRODUÇÃO ARTÍSTICA, CRÍTICA E ACADEMIA Cartography as a possibility for an approach between artistic production, critical and academy

May 31, 2017 | Autor: Manoel Candeias | Categoria: Cartografia, Artes Cênicas, Metodologias de Pesquisa
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DOI: 10.21604/2177-8841/moringa.v7n1p65-79 | E-ISSN 2177-8841

A CARTOGRAFIA COMO POSSIBILIDADE PARA UMA APROXIMAÇÃO ENTRE PRODUÇÃO ARTÍSTICA, CRÍTICA E ACADEMIA Cartography as a possibility for an approach between artistic production, critical and academy Manoel Levy Candeias Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP1

Resumo: Este artigo trata da possibilidade de uma aproximação efetiva entre produção artística, crítica e academia. A partir da cartografia e outros conceitos de Deleuze e Guattari, levantamos algumas sugestões para uma mudança de perspectiva nos trabalhos críticos e científicos das Artes Cênicas, que dialogariam de uma nova maneira com a visão artística e passariam a usufruir de maior liberdade criativa. Palavras-chave: Cartografia; Artes Cênicas; Metodologia de Pesquisa. Abstract: This article deals with the possibility of an effective approach between artistic production, critical and academy. From the cartography and other concepts of Deleuze and Guattari, we raise some suggestions for a change of perspective in critical and scientific papers in Performing Arts, which would engage in a new way with the artistic vision and would gain a greater creative freedom. Keywords: Cartography; Performing Arts; Research Methodology.

1

Membro do projeto de pesquisa O Popular e a cena: da convenção à reinvenção, coordenado pela Profª Drª Neyde Veneziano. Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 7 n. 1, jan/jun 2016, p. 65 a 79

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Manoel Levy Candeias

Nos últimos anos tem havido uma

aproximação

entre o

meio

alguém

que

não

entende

de

produção artística e vive preso a

acadêmico e a produção teatral

conceitos

brasileiros, com um número maior de

impossibilitam de apreciar a obra de

artistas realizando pesquisas em

arte sem preconcepções redutoras. E

instituições

uma

há críticos, por sua vez, que acusam

de

uma falta de fundamentos teóricos

teóricos nos processos de produção

no trabalho de grupos e encenadores

artística. Tal movimento mostra-se

profissionais. Esse quadro genérico

especialmente evidente na trajetória

pode

dos

paulistanos,

parcela de verdade, todavia, está

sobretudo após a criação da lei

longe de definir as especificidades

municipal de fomento para o teatro,

das funções do crítico e do artista.

em

os

Além disso, esses papéis, todos

cênica

importantes dentro do universo do

acadêmicas

participação

mais

grupos

2002.

projetos

e

frequente

teatrais

Frequentemente, de

aprovados

pesquisa para

alcançar,

às

que

vezes,

o

uma

o

teatro brasileiro, não nos parecem

financiamento estatal possuem uma

ser tão opostos assim. Nem mesmo

vertente

no modo de lidar com a elaboração

teórica,

encontros

e

receber

engessados,

com

outros

palestras, meios

de

de seu material de trabalho, a crítica,

discussão, normalmente orientados

a academia e a classe artística são

ou conduzidos por investigadores

tão

convidados. Entretanto, trata-se de

costuma crer – ou fazer com – que

um processo ainda tímido, diante da

sejam.

divergentes

quanto

que

se

tradicional tendência a se enxergar

A despeito do ponto de vista

ciência e criação como caminhos

predominante, todos esses agentes

paralelos. Por esse ponto de vista,

estão dentro do mesmo campo de

largamente difundido, existe ainda

atuação

outra separação, que insere o crítico

permanentemente,

numa posição praticamente alheia à

evidentemente, estarem sujeitos às

arte. Não se pode dizer que haja

mesmas transformações culturais,

unanimidade, mas é muito comum o

sociais e históricas. Quando se diz,

artista

por exemplo, que o Brasil não tem

enxergar

o

crítico

como

e

se

influenciam além

de,

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 7 n. 1, jan/jun 2016, p. 65 a 79

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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia

uma cultura teatral consolidada, que

poderíamos pensar em termos de

o

uma

formação de público, de ensino de

pequena parcela da população, fala-

arte nas escolas, de aprimoramento

se de um problema que diz respeito

profissional das atividades artísticas,

a todos. Pelo lado dos artistas, há a

da compreensão das artes como um

dificuldade de viabilizar a produção.

meio específico e importante de

Falta de patrocínio ou um insuficiente

construção de conhecimento, entre

incentivo por parte do poder público

outras

são os obstáculos mais conhecidos.

relevância,

Há, em conjunção a isso, a baixa

discutiremos por não estarem dentro

apreciação das artes cênicas no

do escopo e ao alcance deste artigo.

público

frequentador

é

país, refletida no número grande de

questões

de

mas

grande

que

não

No entanto, o fato de serem

pessoas que nunca foram ao teatro e

conjuntamente

na maneira como boa parte delas

fenômenos

estranha os códigos e convenções

culturais que apontamos não elimina

da linguagem cênica – justamente

uma possível oposição entre artistas,

por uma falta de hábito ou formação.

pesquisadores e críticos. Apenas

Esse desprestígio não afeta menos

reforça a ideia de que elas se

ao crítico que escreve uma resenha

inserem dentro da mesma área, do

pouco lida ou ao pesquisador que

mesmo campo de trabalho – trata-se,

tenta

de

talvez, de uma daquelas obviedades

estudos em um edital que o coloca

que não são muito lembradas na

em disputa de importância com

prática

outras áreas, muitas delas mais

aprofundar, então, o tema, podemos

valorizadas pelas esferas públicas e

acrescentar a afirmação de que as

conseguir

uma

bolsa

2

privadas . A partir desses problemas,

afetados

históricos,

do

pelos

sociais

cotidiano.

e

Para

atividades desses profissionais, que atuam dentro do mesmo campo,

2

É frequente o lançamento de programas de apoio à pesquisa, financiados em parceria público-privada em que as áreas de artes não são contempladas. Nesse caso, isso provavelmente ocorre por prevalecerem os interesses das empresas privadas. Para pegar outro exemplo, o programa de intercâmbio Ciência sem Fronteiras, do

possuem

também

semelhantes.

características Pela

visão

governo federal, também não prevê inscrição de estudantes das áreas de artes.

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 7 n. 1, jan/jun 2016, p. 65 a 79

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Manoel Levy Candeias

predominante, considerar-se-ia que o

na dissertação ou tese dependem de

artista cria, o pesquisador coleta

algum grau de criatividade. O mesmo

dados e os analisa, enquanto o

se pode dizer do crítico, que assiste

crítico

as

ao espetáculo, seleciona o que lhe

generalizações antes mencionadas,

parece relevante e escreve uma

essa classificação talvez não esteja

resenha, oferecendo um ponto de

completamente

vista

julga.

Assim

como

errada,

porém,

sobre

a

Há,

também,

didático, que não dá conta das

Seria

nuances

das

que, no caso dos pesquisadores e

atividades que procura descrever.

críticos, o texto final tem suas

Essa

ser

particularidades delineadas por uma

evidenciada por uma análise sobre a

questão ideológica e formal, não pela

possibilidade de se considerar que

criatividade. Nesse caso, deveríamos

todos eles – artistas, pesquisadores

lembrar que a criação do artista

e críticos – criam, coletam, analisam

também

e julgam.

específica

potencialidades

imprecisão

Não

nos

pode

parece

polêmico

possível

natureza

nisso

devemos pensá-la como um recurso

e

certa

obra.

criativa.

contra-argumentar

busca

a

da

linguagem

cena

e

é,

inevitavelmente, influenciada pelos

afirmar que o artista pesquisa e que,

ideais

durante os processos de ensaio,

Portanto, criação e ideologia não

discussões e leituras, julga o material

parecem ser dissociáveis. Dito isso,

com o qual entra em contato, para

podemos considerar que, apesar de

selecionar o que lhe interessa. Tudo

possuírem

isso gira em torno do processo de

atividades

criação, que é sua prioridade. O

campo ou área de interesse e

pesquisador, por sua vez, estuda o

trabalham com pesquisa, análise e

material de trabalho, conforme sua

criação. Dessa forma, não são tão

metodologia, depois o analisa e

diferentes quanto parecem à primeira

registra as conclusões ou questões

vista. Ainda assim, a aproximação

que lhe parecem mais relevantes.

seria apenas teórica, pela aceitação

Essa seleção de elementos e a

de

maneira como eles são elaborados

semelhança nos procedimentos e,

que

de

seus

realizadores.

prioridades,

as

pertencem ao



algum

três

mesmo

grau

de

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 7 n. 1, jan/jun 2016, p. 65 a 79

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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia

em nível menor, de ponto de vista. A

porque, além de escrever em um

separação permaneceria inalterada.

espaço

No entanto, é possível ir ainda um

publicações

pouco mais fundo, para buscar uma

editoriais, seu tempo de pesquisa

interpenetração

direta com a obra costuma ser muito

entre

as

três

funções.

reduzido, que

dentro impõem

de limites

curto.

Existem alguns grupos teatrais

Não é nova a ideia de que o

que lidam bem com essas conexões,

crítico, quando aprecia uma obra

ao assumirem com bastante força o

teatral, está em contato com um

caráter de pesquisa de seu trabalho,

evento único, que tem nuances

mesmo que seu processo se conclua

diferentes

com uma obra predominantemente

dentro de uma temporada. Diante

artística, diferentemente dos outros

disso,

dois. Há também um bom número de

apreciação, que envolve diversas

pesquisadores

variantes

que

trabalham

a

a

após

cada

a

apresentação

experiência

subjetivas,

como

da

seu

conjunção academia-prática artística.

estado de espírito, o lugar onde se

Porém,

da

sentou, a performance dos atores

a

naquele dia e outros fatores pouco

tradição científica exige destes uma

mensuráveis, ele se vê na tarefa de

redação

padrões

descrever e avaliar objetivamente a

específicos, que dão pouca margem

obra. Nesse momento, quase tudo

a uma criatividade mais livre, que

que envolve a especificidade do

altere a linguagem ou o meio de se

acontecimento teatral acaba tendo

comunicar. Há casos em que a

de ser relegado ao segundo plano,

defesa de dissertação ou tese inclui

para que não se produza uma

a apresentação de um resultado

análise subjetiva demais. Assim, uma

prático,

vir

resenha termina por priorizar uma

acompanhada de um registro escrito,

comparação entre os conceitos do

com

No

crítico e a concepção estética da

trabalho do crítico, essa margem

obra. Mas como fugir disso? Afinal, o

criativa

crítico tem uma formação estética e

no

apresentação

momento de

dentro

mas

ela

linguagem

fica

ainda

resultados,

de

tem

de

científica.

mais

restrita,

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Manoel Levy Candeias

procura discorrer sobre aquilo que é

consciência

fixo no acontecimento teatral – o que

(temperatura, humor, trânsito, atraso

vem

a

e diversos outros fatores podem

concepção geral e a relação dos

alterar o acontecimento). Porém,

outros elementos com esta. Para

podemos começar a pensar num

além

comentários

caminho cujo princípio é a aceitação

sobre o desempenho dos atores, que

de que o registro científico da

costuma ser descrito com adjetivos

resenha ou da tese é apenas uma

como vigoroso, esplêndido, brilhante,

seleção

fraco,

daquilo

a

ser,

disso,

entre

grosso

restam

outros,

modo,

ou

com

de

sua

limitada que

interferência

e

delimitadora

pretende

descrever.

afirmações como “abaixo da média”,

Partindo-se desse ponto de vista,

“que se destaca do restante”, “que

poder-se-ia entender que um texto

rouba a cena”, etc. Pouco resta do

analítico com um discurso totalitário,

acontecimento cênico. Mas, de que

de afirmações que se pretendam

maneira o crítico poderia transportar

definitivas e universais, acaba por

para a resenha a complexidade da

perder credibilidade. Sendo assim,

experiência que viveu no teatro?

aventemos como solução o uso de

Como falar de algo em processo a

uma

partir de uma única apresentação? A

assuma

mesma questão se pode fazer ao

análise e que se coloque como

pesquisador-artista: como apresentar

resultado de uma criação do crítico.

a uma banca o registro ou os

Tal proposta poderia trazer alguma

resultados

transformação, mas ainda sutil. Seria

de

uma

investigação

linha

de

como

discurso limitado

sua

possível

recortar sem reduzir a força da

sentido? Seria possível pensar em

experiência cênica?

modos de ampliar a capacidade de

inevitáveis,

perdas porque

são

transposição

do

mais

em

se

cênica em sua plenitude? Como

Algumas

avançar

que

nesse

acontecimento

existem

cênico único para esses registros

incontáveis fatores que influenciam

críticos e científicos? Faria sentido tal

na relação entre a vivência da cena e

pretensão?

sua análise, além daqueles que

Por uma via menos específica,

agem sem que tenhamos muita

é essa a busca da cartografia, um

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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia

obras

de Gilles Deleuze e Félix Guattari,

criticam

com intenção de conduzir pesquisas

entenderem que este se pauta numa

de

limitadora

campo

numa

relação

mais

filosóficas

parceria3,

método formulado a partir das teorias

o

em

racionalismo,

visão

por

composta

próxima entre sujeito-objeto, tendo

dualidades,

por base critérios diferentes dos

separação sujeito-objeto e, acima de

padrões

tudo, a polarização entre corpo e

científicos

tradicionais.

dentre

recorre a regras prontas e objetivos

capacidades e funções humanas ao

previamente

comando da razão. Para demonstrar

segue

um

percurso

predefinido.

sua

teoria,

todas

a

mente,

nem

relegaria

quais

Nessa proposta, o pesquisador não

estabelecidos,

que

as

por

ilustram

a

as

visão

Parte-se do princípio de que o

racionalista com uma árvore, que

pesquisador deve criar um “plano de

representaria

experiência”

não

arraigado, em que tudo tem uma raiz

distanciar-se dele, e, a partir dessa

e passa sempre por um tronco

relação, em que um se mistura ao

central para poder frutificar na outra

outro, construir o método. As metas

extremidade, com início e fim claros.

com

o

objeto,

se fazem durante o percurso: “Trata-

o

Como

ponto

de

vista

contraponto,

se, então, de um método processual,

apresentam seus pontos de vista,

criado em sintonia com o domínio

ilustrados pela ideia de um rizoma,

igualmente

ele

caule com ramificações onde brotam,

abarca” (BARROS; KASTRUP, 2009,

por exemplo, os tubérculos. No

p.77), afirmam Regina Benevides de

rizoma,

Barros e Virgínia Kastrup, em Pistas

movimento

do

uma

ramificações não possuem ordem

artigos

predefinida ou previsível: “Princípios

processual

método

coletânea

da

que

cartografia,

brasileira

de

voltados ao tema. Deleuze compuseram

e

que sem

caracterizaria

o

hierarquia,

as

de conexão e de heterogeneidade: Guattari,

algumas

que

qualquer ponto de um rizoma pode

conhecidas

ser conectado a qualquer outro e 3

O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia; Mil Platôs; O que é a filosofia? e Kafka – por uma literatura menor. Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 7 n. 1, jan/jun 2016, p. 65 a 79

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Manoel Levy Candeias

deve sê-lo. É muito diferente da

eles discorrem sobre a característica

árvore ou da raiz que fixam um

que mais diz respeito à discussão

ponto,

que

uma

ordem”

(DELEUZE;

aqui

trazemos:

GUATTARI, 1995, p. 15). Essa é,

rizomático

nos

compreender

termos

deles,

uma

das

de

o

modo

enxergar

e

coisas,

os

as

“características aproximativas” que

fenômenos, o mundo enfim. Para

trazem para que o leitor possa

tanto,

compreender o que eles denominam

contraponto,

rizoma.

A

multiplicidade,

uma

fazem

decalque

e

primeiro

pensar

arborescente;

inevitável

uma

da

consequência

estrutura

não

um

apresentando

característica que se poderia, talvez, como

novamente a

cartografia .

caracterizaria

observação

o 4

o

a

visão

segundo,

rizomática.

O

a

Segundo

hierárquica que apresentam, é outro

eles, o decalque é um processo de

importante aspecto dentro de sua

pensamento

teoria:

reproduzir algo que se dá feito “[…] a partir

que

de

uma

consiste

estrutura

em

que

Princípio de multiplicidade: é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. (Ibidem, p. 16)

sobrecodifica ou de um eixo que

Sendo

hierárquico,

separação entre sujeito e objeto,

ramificado e conectável por qualquer

tudo é ramificação e não tem posição

caminho, o rizoma não possui um fio

fixa:

não

suporta. hierarquiza decalques

A

árvore os

são

articula

decalques, como

folhas

e os da

árvore” (Ibidem, p. 21). O rizoma, por seu turno, seria mapa, não decalque. Seria e, ao mesmo tempo, realizaria mapa, porque no rizoma não há

condutor uno, centralizador, que se sobreponha

à

alternância

O mapa não reproduz inconsciente fechado sobre mesmo, ele o constrói. contribui para a conexão

de

sentidos, vozes, pontos de vista. Concluindo

suas

“aproximações”, 4

um ele Ele dos

Grifo nosso.

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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações. (Ibidem, p. 22)

No entanto, eles afirmam que não pretendem, com tais colocações,

seguinte quadro: “A filosofia, a arte, a ciência não são os objetos mentais de um cérebro objetivado, mas os três aspectos sob os quais o cérebro se

torna

ao pensamento rizomático, sendo este superior àquele. Mencionam ainda

a

possibilidade

interpenetrações

entre

de

os

dois

Pensamento-

cérebro, os três planos, as jangadas com as quais ele mergulha no caos e o enfrenta” (Idem, 2007, p. 269). A vida, os fenômenos, tudo

formar uma nova dualidade, que oponha o pensamento arborescente

sujeito,

seria

um

movimento

caótico,

rizomático. A ciência, segundo eles, tenderia

a

tomar

definidos

por

pequenos

desacelerados do

objetos estratos

movimento

do

rizoma, que, em verdade, continua a

pontos de vista:

se Existem estruturas de árvore ou de raízes nos rizomas, mas inversamente, um galho de árvore ou uma divisão de raiz podem recomeçar a brotar em rizoma. A demarcação não depende aqui de análises teóricas que impliquem universais, mas de uma pragmática que compõe as multiplicidades ou conjuntos de intensidades (Ibidem, p. 24).

modificar

possamos

antes

mesmo

assimilá-lo.

Por

que esse

caminho, pequenas estabilizações provisórias são transformadas pelo pensamento científico em modelos para a compreensão do todo. O que seria impreciso e insuficiente, já que tais

desacelerações

seriam

uma

parcela mínima, fugaz e diferente do A diferenciação entre as visões arborescente então,

e

como

rizomática base

restante dos movimentos do caos:

serve,

para

a

comparação que Deleuze e Guattari fazem entre as estruturas e modos de expressão da ciência, da filosofia e da arte. A esse respeito, trazem o

O cientista traz do caos variáveis, tornadas independentes por desaceleração, isto é, por eliminação de outras variabilidades quaisquer, suscetíveis de interferir, de modo que as variáveis retidas entram em relações determináveis numa

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Manoel Levy Candeias função: não mais são liames de propriedades nas coisas, mas coordenadas finitas sobre um plano secante de referência, que vai das probabilidades locais a uma cosmologia global. (Ibidem, p. 260)

A filosofia seguiria outra trilha. A

criação

de

característica

conceitos,

particular,

sua

leva

a

Por fim, a arte, quando em plena

força,

pode

transpor

a

realidade movente do rizoma para uma

moldura.

É

apenas

um

fragmento, mas pode ser caótico, carregar um pedaço do rizoma em vez

de

procurar

traduzi-lo

com

representações:

formulações que, mesmo sendo mais porosas

que

as

das

ciências,

também não dão conta de trazer uma compreensão sobre o caos. Então, para

justificar

e

validar

seus

conceitos, os filósofos criam um contexto, um “plano de imanência”, que recorta o caos e procura dar credibilidade à sua criação: Pode-se considerar como decisiva, ao contrário, a definição da filosofia: conhecimento por puros conceitos. Mas não há lugar para opor o conhecimento por conceitos, e por construção de conceitos na experiência possível ou na intuição. Pois, segundo o veredito nietzschiano, você não conhecerá nada por conceitos se você não os tiver de início criado, isto é, construído numa intuição que lhes é própria: um campo, um plano, um solo, que não se confunde com eles, mas que abriga seus germes e os personagens que os cultivam. O construtivismo exige que toda criação seja uma construção sobre um plano que lhe dá uma existência autônoma. (Ibidem, p. 15,16)

O artista cria blocos de perceptos e afectos, mas a única lei da criação é que o composto deve ficar de pé sozinho. O mais difícil é que o artista o faça manter-se de pé sozinho. Para isso, é preciso por vezes muita inverossimilhança geométrica, imperfeição física, anomalia orgânica, do ponto de vista de um modelo suposto, do ponto de vista das percepções e afecções vividas; mas estes erros sublimes acedem à necessidade da arte, se são os meios interiores de manter de pé (ou sentado, ou deitado). (Ibidem, p. 214)

Dessa maneira, quando bem sucedido, o artista teria condições de emoldurar o caos, sem modificá-lo. E isso estaria para além de uma autoria,

porque

o

permaneceria

na

independentemente

de

movimento obra quem

a

concretizou: “A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si” (Ibidem, p. 213). A partir disso, a ideia da cartografia como metodologia de

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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia

pesquisa para artistas, críticos e

como

acadêmicos ganha outra dimensão.

Portanto, ele poderá aceitar essa

Se o movimento não cessa, aquele

condição e fazer uma cartografia

que pretende compreendê-lo deve

apenas da apresentação que ele

procurar

suas

presenciará.

reter

que, mesmo sem abrir mão dos

pequenas desacelerações isoladas,

recursos habituais de comparação

que possam corresponder a teorias

entre suas referências e a concepção

formuladas

Tal

cênica, ele passe a exercitar um

procedimento sugere uma abertura

olhar mais aberto e considere a

para traçar apenas os caminhos que

existência de inúmeras influências

a pesquisa prática aponta: “Se o

para além dos aspectos conceituais

mapa se opõe ao decalque é por

da encenação. Afinal, ele agora

estar inteiramente voltado para uma

compreende que deve fazer mapa

experimentação ancorada no real”

em vez de decalque, e um mapa “[…]

(Idem, 1995, p. 22).

tem

acompanhar

transformações,

Então,

não

tentar

previamente.

pensemos

na

um

pequeno

Indo

além,

múltiplas

contrariamente

ao

fragmento.

digamos

entradas decalque

que

cartografia aplicada ao trabalho de

volta sempre ‘ao mesmo’. Um mapa

artistas, pesquisadores e críticos.

é uma questão de performance,

Para um grupo teatral ou para um

enquanto que o decalque remete

pesquisador que trabalha em um

sempre

estudo cênico prático é mais fácil

‘competência’” (Ibidem, p. 22). É um

vislumbrar a possibilidade de traçar

exercício semelhante ao do ator que

esse caminho mais livre. No caso do

procura estar plenamente presente

crítico, retornamos ao fato de ele

em cena, com toda a disponibilidade

assistir apenas a uma apresentação

para o jogo, para evitar repetir

dentro de uma temporada, que será,

maquinalmente seu trabalho. Nesse

inevitavelmente, repleta de nuances

sentido, talvez o crítico dependa

a cada nova sessão. Sendo assim, a

também da força da experiência

relação direta do crítico com a

promovida por quem está sobre o

encenação

palco, que deve ser mais mapa que

deverá

ser

pensada

a

uma

presumida

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 7 n. 1, jan/jun 2016, p. 65 a 79

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Manoel Levy Candeias

decalque. Consideremos, então, um

textual, que se assumiria como um

acontecimento hipotético, de uma

comentário sobre um processo que

encenação

possui

teatral

extremamente

nuances

indescritíveis

e

vigorosa, com uma concepção bem

imponderáveis. No caso da resenha,

fundamentada e poética, com atores

o texto teria afirmações de que a

e críticos plenamente presentes e

apresentação da noite presenciada

abertos para construir um plano de

pelo crítico teve tais características

experiência com seu entorno. Após a

(não mais a montagem, apenas

experiência,

aquela

como

o

crítico

apresentação

específica).

transmitirá textualmente o que viveu?

Dentro do ponto de vista que aqui

Esse nos parece ser o ponto

temos em conta, não deixaria de ser

mais delicado do método de Deleuze

interessante, por ser menos ilusório e

e Guattari, porque é quando o crítico

até mais preciso, ao assumir sua

(algo

insuficiência,

semelhante

pesquisador dissertação/

que

passa

o

apresenta

uma

posicionar

sobre

seus

universalidade

tese

em

vez

com a

Guattari

para

outra

científica.

Produziria

na

alteração,

porque

uma

espécie

expressão

aquilo

que

de apurou

se

pretensão

de

Deleuze

e

que

exercícios práticos) precisa transpor

de

identificam

na

postura



alguma

modificaria

experiência de campo, estabelecida

posicionamento

entre ele e seu objeto. Pela teoria

expressões do autor, assim como o

que estamos abordando, não há

olhar do leitor, que não esperaria por

essa

verdades universais e

separação,



que

o

pesquisador compõe com o objeto e

sobre

nele

experiência

interfere.

O

investigador

a

e

o

montagem. e

seu

algumas

definitivas Porém,

a

registro

acadêmico não realiza uma pesquisa

continuariam muito distantes um do

nem o crítico assiste ao espetáculo;

outro, e o texto ainda teria estrutura

o primeiro é a pesquisa e o segundo

científica, porque, mesmo admitindo-

é o espetáculo. Pesquisar é intervir,

as como provisórias, recorreria às

é ser a pesquisa. Talvez a primeira

estratificações.

solução em que se pense seja

pensar, então, numa resenha ou

novamente a alteração do discurso

pesquisa que não se separasse do

Seria

possível

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 7 n. 1, jan/jun 2016, p. 65 a 79

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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia está desde início recoberto por clichês, que o pintor deve enfrentar o caos e apressar as destruições, para produzir uma sensação que desafia qualquer opinião, qualquer clichê (por quanto tempo?). A arte não é o caos, mas uma composição do caos, que dá a visão ou sensação, de modo que constitui um caosmos, como diz Joyce, um caos composto — não previsto nem preconcebido. (Idem, 2007, p. 262 - 263)

campo da experiência, que trouxesse a

quem



um

desacelerado,

registro

com

menos

afectos

e

perceptos? Nesse caso, estamos falando

das

características

que

Deleuze e Guattari usam para tentar definir as especificidades da arte. Seria possível pensar numa crítica ou numa tese fundamentada nos parâmetros que os autores definem como

particularmente

Nesse caso, além de buscar um espaço para tal reformulação em seus meios de expressão, os críticos e acadêmicos precisariam deixar de trabalhar

com

Essas

artísticos?

desacelerações

e

conceitos para trilhar um caminho quase inverso, que os obrigaria, assim como ocorre com os artistas, a lutar contra a repetição formal:

questões

trabalhadas

têm

por

sido alguns

pesquisadores e grupos temáticos de diversas

áreas5.

Que

tipo

de

transformações esses movimentos podem trazer, só o tempo dirá. Até se

podem

posições,

questionar

inclusive

certas

defender que

Deleuze e Guattari (1995, p. 33) não pretendiam ser lidos com muita seriedade, conforme se depreende

[…] o artista se debate menos contra o caos (que ele invoca em todos os seus votos, de uma certa maneira), que contra os "clichês" da opinião. O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma página branca, mas a página ou a tela estão já de tal maneira cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso de início apagar, limpar, laminar, mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga a visão. […] É mesmo porque o quadro

do seguinte trecho de Mil platôs: Escrevemos este livro como um rizoma. Compusemo-lo com platôs. Demos a ele uma forma circular, mas isto foi feito para rir. Cada manhã, levantávamos e cada um de nós se perguntava 5

Os psicólogos que organizaram a publicação de Pistas do método da cartografia, e um grupo denominado Conexões, que envolve médicos, psicólogos, educadores e artistas-pesquisadores da USP, da UNICAMP e do Lume, são alguns exemplos.

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Manoel Levy Candeias que platôs ele ia pegar, escrevendo cinco linhas aqui, dez linhas alhures. (Ibidem, p. 33)

De qualquer forma, o que os autores defendem é a insuficiência da ciência e da filosofia, por meio de um texto propositadamente poroso e, talvez, contraditório, no qual há pistas como essas, que parecem indicar

que

esquecer

de

não

devemos

que

eles

nos

também

criaram conceitos. Sua teoria sobre a insuficiência

da

ciência

e

dos

conceitos filosóficos é permeada de conceitos filosóficos

e

pequenos

como especulamos aqui, ser refletido num novo modo de escrita para a academia

e

para

a

crítica

profissional, aproximando-os ainda mais da produção artística. Se seria favorável, não sabemos, mas o convite deles é justamente para que caminhemos

sem

preconcebidas

nem

ideias respostas

prévias, apenas com uma atenção flutuante, aberta a perceber novos movimentos.

É

percorrer,

ou

cartografar, para ver no que dá. Recebido em 15 de Junho de 2015 Aceito em 18 de Setembro de 2015

desvios. Talvez para desconfiarmos dos outros filósofos e também deles, que fizeram sua teoria dentro desse espírito assumidamente “leviano”. Se isso pode tirar a credibilidade de seu texto é, ao mesmo tempo, o que reafirma

sua

oferecer

uma

pensamento padrões,

teoria

e

procura

liberdade

de

relação

aos

em

incluindo-se

os

deles.

Nesse sentido, eles deixam pistas que estimulam a experimentação no trabalho poderiam

de

pesquisadores,

encontrar

que

fundamentos

novos para rever ou complementar os rigores da ciência tradicional. No campo das artes, isso talvez possa, Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 7 n. 1, jan/jun 2016, p. 65 a 79

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A cartografia como possibilidade para uma aproximação entre produção artística, crítica e academia

Referências BARROS; KASTRUP. Movimentos-funções do dispositivo na prática da cartografia. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (org.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009, p. 76-91. DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, v. 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. 94p. ______________________________. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2007. 279p. PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (org.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. 207p.

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