A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global

June 15, 2017 | Autor: A. Flores Urushima | Categoria: Urbanismo, Desenho Urbano, Planejamento Urbano E Regional, Japão, História Do Japão
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Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

Andrea Yuri Flores Urushima Raquel Abi-Sâmara Murilo Jardelino da Costa organização

Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão

Terracota

São Paulo - 2015

Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

copyright © 2015 Andrea Yuri Flores Urushima, Raquel Abi-Sâmara e Murilo Jardelino da Costa, organização. Todos os direitos autorais dos textos publicados neste livro estão reservados aos autores e foram cedidos para uso da Editora Terracota Ltda., exclusivamente para a publicação desta obra. E o conteúdo desses textos é de inteira responsabilidade de seus autores. Capa e Diagramação Líquido Tecnologia Ilustração de capa Andrés Sandoval Revisão Metodológica Editor responsável Claudio Brites Impressão PSI7 Conselho Editorial Alexandre Pianelli Godoy (UNIFESP-Br) Ana Lúcia Tinoco Cabral (UNICSUL-Br) Anna Christina Bentes (UNICAMP-Br) Armando Jorge Lopes – Univ. Eduardo Mondlane – Moçambique Benjamim Corte-Real – Univ. Nacional de Timor-Leste – Timor-Leste Carlos Costa Assunção (UTAD–Pt) Cláudia Maria de Vasconcellos (USP-Br) Guaraciaba Micheletti (UNICSUL/USP-Br) Johana de Albuquerque (USP-Br) Juliana Jardim Barboza (USP-Br) Lucianno Ferreira Gatti (UNIFESP-Br) Luiz Carlos Travaglia (UFU-Br) Maria da Graça Lisboa Castro Pinto (Univ. do Porto-Pt) Maria João Marçalo (Univ. de Évora-Pt) Maria Lucia da Cunha V. de O. Andrade (USP-Br) Maria Valiria Aderson de M. Vargas (USP e UNICSUL-Br) Marli Quadros Leite (USP-Br) Moisés de Lemos Martins (Univ. do Minho – Portugal) Sueli Cristina Marquesi (PUC/SP e UNICSUL-Br) Vanda Maria da Silva Elias (PUC/SP-Br)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP Roberta Amaral Sertório Gravina, CRB-8/9167 M694

Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão / Andrea Yuri Flores Urushima, Raquel Abi-Sâmara, Murilo Jardelino da Costa (Orgs.). – São Paulo: Terracota Editora, 2015. 232 p. ; 16x23 cm. ISBN: 978-85-8380-028-6. 1. Cultura japonesa 2. Urbanismo I. Urushima, Andrea Yuri Flores II. AbiSâmara, Raquel III. Costa, Murilo Jardelino da CDD 900 CDU 93

Todos os direitos desta edição reservados à TERRACOTA EDITORA Avenida Lins de Vasconcelos, 1886 - CEP 01538-001 - São Paulo - SP - Tel. (11) 2645-0549 www.terracotaeditora.com.br

Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

Sumário

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Prefácio: Centenário e cultura de paz Jo Takahashi

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Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão

15

O haicai no Brasil Paulo Franchetti

29

Kenzō Tange e Oscar Niemeyer: estilos arquitetônicos em sintonia Terunobu Fujimori

43

A literatura moderna dos imigrantes japoneses nos folhetins de jornais entre 1920 e 1930 Shuhei Hosokawa

69

Do japonismo ao medievalismo: a formação da estética oriental e a crise da cultura urbana moderna Shigemi Inaga

85

A presença estrangeira em São Paulo: o bairro da Liberdade e os campos rurais de Itaquera Maria Cristina da Silva Leme

99

Contradições da modernização em Belém, metrópole da Amazônia Willi Bolle

131

O centro no caminho da metrópole Regina Maria Prosperi Meyer

Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

147

A escrita da cidade: transformações modernizadoras e projeções urbanas na literatura brasileira pré-modernista Maurício Silva

159

Fazer literatura urbana no contexto latino-americano Fernando Bonassi

165

O “Eu” no interior do espaço urbano: Jun’ichirō Tanizaki e a teoria espacial de O segredo Manabu Fujiwara

179

Kyoto e Kamakura – a narrativa de duas cidades na história do Japão Shoichi Inoue

187

O gênero literário sansakuki ou anotações de passeio: a cidade de Tóquio e a obra Hiyori geta: Anotações de passeios pelos bairros de Tóquio, de Kafū Nagai Masahiro Shindo

201

Cultura urbana de massa no Japão da primeira metade do século XX: a evolução das cidades e as transformações nas artes Sadami Suzuki

215

A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global Andrea Yuri Flores Urushima

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Agradecimentos

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Sobre os autores

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Programa do projeto

Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global Andrea Yuri Flores Urushima

Em 1968, celebrou-se no Japão os cem anos desde a abertura do país ao intercâmbio com nações estrangeiras durante o período da Revolução Meiji. Em termos de arquitetura e urbanismo, a mídia especializada e o governo central publicaram uma série de artigos e relatórios relacionados às enormes transformações urbanas daquele centenário. Efetivamente, a abertura do período Meiji marca um momento de absorção de técnicas e de conhecimento provenientes de países pioneiros no processo de industrialização que efetivaram uma mudança definitiva no modo de vida da sociedade japonesa e, consequentemente, representa um momento importante na história da modernização do país. Em termos de urbanismo, a intervenção baseada em modelos externos foi adaptada às necessidades das cidades já existentes no Japão, considerado o mais urbanizado da Ásia no período pré-moderno. Entre outros, o planejamento urbano moderno em grande escala, utilizado em alguns países da Europa no começo do século XX, foi experimentado pelos planejadores japoneses no processo de ocupação das colônias japonesas na China e Coréia, mas foi escassamente concretizado dentro do território japonês. Em termos de arquitetura, as experimentações modernistas tiveram lugar no país e nas colônias, fortemente motivadas pela necessidade de criação uma identidade nacional moderna. Foi a partir do desenvolvimento de uma expressão modernista japonesa em arquitetura, especialmente durante o período do imediato pós-guerra, que os arquitetos japoneses começaram a receber maior visibilidade internacional. O período da década de 1960 no Japão foi marcado pelo crescimento econômico que repercutiu em aumento rápido da população urbana e consequente expansão dos centros urbanos existentes. Em arquitetura e planejamento urbano, é o período em que a expressão moderna da arquitetura 215

Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

japonesa foi expandida para uma escala urbana, ganhou reconhecimento internacional e passou a ser utilizada em escala global. Os cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação global do desenho urbano japonês Urbanização moderna em Tóquio e São Paulo, um prefácio comparativo Este texto foi estimulado por um comentário da professora Regina Meyer durante o processo de organização do simpósio para o qual este foi preparado. Em uma discussão sobre a relevância do simpósio e os temas a serem tratados, Meyer sugeriu que uma possível comparação entre o desenvolvimento urbano dos dois países poderia ser exemplificada pela análise do desenvolvimento histórico de suas metrópoles, Tóquio e São Paulo — segundo dados de 2000, a região metropolitana de São Paulo alcançava uma população de 17.878.7031, enquanto a metrópole de Tóquio tinha 11.976.1072 de habitantes. Segundo a professora, o surto rápido de urbanização durante o processo de industrialização da segunda metade do século XIX é uma marca importante do desenvolvimento urbano de ambas as metrópoles. Outro ponto de convergência é o interesse pelo urbanismo europeu no desenvolvimento moderno das duas cidades. Efetivamente, no caso paulistano, um marco do desenvolvimento metropolitano foi a implantação inicial do sistema ferroviário em 1867 com a inauguração da São Paulo Railway, ligando o porto de Santos à cidade de Jundiaí (MEYER, 2004). A convergência da infraestrutura de distribuição – ou o transporte ferroviário – de cargas, e mais tarde de passageiros –, suportou o progresso industrial e determinou o crescimento da cidade de São Paulo. O desenvolvimento urbano paulistano, estimulado durante o século XIX pela indústria cafeeira, evoluiu durante o século XX a partir da intensa industrialização que ocorreu devido à dificuldade de acesso à importação de produtos estrangeiros durante a Primeira Guerra Mundial. A urbanização paulistana foi caracterizada por uma ocupação física dispersa e de baixa densidade, e um aumento populacional resultado de migrações internas, mas sobretudo, da imigração europeia e asiática que re1 Dados do censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ibge), disponíveis em: . Acesso em: 24 fev. 2015. 2 Sobre a população de todas as cidades e vilarejos, população e densidade populacional de bairros com alta densidade por regiões (1898-2005) ver Nihon tōkei kyōkai (2006).

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Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

gistrou cerca de 2,3 milhões de imigrantes chegando ao Estado de São Paulo entre 1889 e 1930. Durante esse período a cidade de São Paulo sofreu uma modernização geral expressiva e teve seu aspecto físico-espacial fortemente transformado a partir de referências do urbanismo europeu moderno. No caso japonês, em meados do século XIX iniciou-se um processo de modernização da cidade de Tóquio, marcado pela instalação pioneira de infraestrutura ferroviária, de forma similar ao caso paulistano. No entanto, a capital japonesa daquele período já ocupava o centro de convergência de um sistema de estradas ligando a cidade às províncias de todo o território sob controle do governo feudal. Some-se o fato de Tóquio já apresentar, durante meados do século XVIII, uma população de mais de um milhão de pessoas, o que reafirma a alta urbanização da cidade durante o período pré-moderno. Vale ressaltar que, apesar dos esforços de modernização da cidade, o surto inicial de industrialização mais importante, efetivamente ocorreu na região Oeste do país, na cidade de Osaka. Somente durante a década de 1930, o porto de Tóquio foi aprofundado, resultando na construção do aterro de Kawasaki e a criação de um canal de conexão direta para o porto de Yokohama. A partir da modernização do complexo portuário de Keihin, dentro e ao redor da baia de Tóquio, equipamentos industriais de grande porte necessários à instalação de indústrias pesadas na região foram trazidos (MOSK, 2001). Entre 1930 e 1935, a população urbana da região metropolitana de Tóquio quase triplicou alcançando cerca de seis milhões de habitantes (NIHON TŌKEI KYŌKAI, 2006) ao mesmo tempo em que Osaka perdeu parte de sua hegemonia em termos de produção industrial. Quanto ao interesse pelo urbanismo europeu, no caso japonês, as ideias e modelos ocidentais serviram para adaptar os estabelecidos centros urbanos à nova organização moderna, mas dispensou intervenções radicais sobre a organização social e física das cidades existentes desde antes da Segunda Guerra Mundial. O desenvolvimento histórico das duas metrópoles merece uma comparação mais aprofundada que valeria como um ensaio representativo do processo de transformação urbana dos dois países. Efetivamente, em termos nacionais o processo de industrialização que se iniciou nos dois países durante meados do século XIX teve impacto importante em termos de crescimento e modernização das cidades existentes. No entanto, o mais importante surto de urbanização nos dois países, quando as migrações rurais se acirraram e as cidades passaram a expandir rapidamente, ocorreu somente 217

Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

em meados do século XX – durante a década de 1950, no caso brasileiro, e na década de 1960, no caso japonês. Esses dados indicam que o processo de assimilação de ideias modernas, baseado nos modelos de países pioneiros no processo de industrialização, resultou em definitiva expansão das cidades brasileiras e japonesas durante o período que se seguiu ao final da Segunda Guerra Mundial. Este capítulo fará uma breve análise do processo de maturação da disciplina de planejamento urbano no Japão, desde o período moderno até o momento de rápida urbanização do país durante meados da década de 19603. O processo de assimilação de ideias modernas no Japão permitiu que, durante a década de 1960, as instituições e especialistas relacionados à disciplina de planejamento urbano fossem preparados para atuar na resolução dos problemas trazidos pela massiva migração rural daquele momento. Esse processo de maturação da disciplina também resultou em disseminação do desenho urbano produzido no Japão globalmente, em um período que coincide com a celebração dos cem anos da Revolução Meiji, em 1968. Efetivamente, foi durante as décadas de 1960 e 1970 que o Japão produziu um desenho urbano atualizado e que foi bem recebido internacionalmente, especialmente por jovens nações que desejavam se modernizar (FLORES URUSHIMA, 2008). Para subsidiar essa discussão, faremos uma breve retrospectiva histórica do desenvolvimento do urbanismo dentro do Japão desde a abertura do país durante o período moderno até 1968. Urbanidade japonesa durante o período moderno A abertura ao intercâmbio com países estrangeiros representa o momento histórico fatídico quando a importação massiva de técnicas advindas de países pioneiros industriais foi introduzida no Japão. Em 1897, Aluísio de Azevedo (1857-1913), um dos mais importantes representantes da literatura brasileira, participou como vice-cônsul da primeira missão diplomática entre o Brasil e o Japão. Em sua obra póstuma, publicada pela primeira vez em 1984 sob o título O Japão, Azevedo fez uma descrição dramática do processo de abertura do Japão conhecido como a Era Meiji (1868-1912), um período que rompeu definitivamente com os mais de duzentos anos de encerramento do país ao intercâmbio estrangeiro durante o período feudal. Azevedo assim descreveu o processo de abertura: 3

Sobre a rápida urbanização do período ver Flores Urushima (2012).

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Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

Com o vapor ao serviço da avidez, podiam os modernos fenícios abordar às costas japonesas e, sem risco de avaria, insinuar-se por entre esses sirtes e recifes com que contava Ieiás para guardar a sua frágil e humana obra contra as danosas ambições do resto do mundo cobiçoso, fechando-a naquela natural custódia que lhe parecia invulnerável por ser feitura das mãos de Deus (AZEVEDO, 2011, p.79-80).

A referência aos modernos fenícios faz alusão às caravanas dos países imperialistas que objetivaram a colonização da Ásia. Segundo Azevedo, o Japão daquele período se mostrava como uma frágil e humana obra para a qual o outrora xógum, Ieyasu Tokugawa (1543-1616), contou somente com a proteção oferecida pelas dificuldades naturais da geografia japonesa. Azevedo se refere à impossibilidade de proteção do território devido a inexistência de armas de fogo e grandes caravelas armadas. De acordo com a descrição de Azevedo, o Japão pré-moderno resguardava suas características específicas e não demonstrava sinais da cobiça imperialista que o mundo industrial havia fomentado. Não se acusava no corpo da nação o menor sinal dessa implacável moléstia oriunda dos Estados Unidos da América do Norte — a febre do milhão, a cujo alucinador contágio nenhum país ocidental escapou até hoje; o dinheiro ainda servia só para ser gasto e não para ser multiplicado pela tabuada dos filhos de Israel; o capital ainda não era capital, era coisa secundária, não se tinha transformado em força viva e roda dentada que engrena, arrasta, mastiga e babuja a moral, o talento, o amor e o caráter da melhor porção do mundo moderno (AZEVEDO, 2011, p.78).

O discurso de Azevedo reflete o pensamento de sua época e reproduz a lógica do discurso historiográfico nacional japonês, que suporta a ideologia do sistema imperial, associando nação e tradição. Ao mesmo tempo, seu texto se afasta de uma leitura eurocêntrica da história. Azevedo reflete sobre o problema central da questão nacional dos casos brasileiro e japonês: a necessidade de evitar a imitação e afirmar a especificidade de um “povo”. A diferença entre o caso brasileiro e japonês se centra sobre a amalgamação da raça no primeiro enquanto no caso japonês a unidade racial e a manutenção de uma tradição ancestral são características mais relevantes. Azevedo nega o universalismo ocidental e se compromete com uma visão orientalista que valoriza o “exótico”, “diverso” e “longínquo”. O discurso de Azevedo tende a romantizar o “exótico” de maneira similar ao que fazem os intelectuais ocidentais, no entanto, aproxima o Japão do Brasil em termos da dificuldade em definir uma identidade nacional (ORTIZ, 1997, p. 84, 87). Esse texto expressa uma visão crítica sobre a influência da modernização técnica 219

Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

e industrial, considerada como uma influência ocidental, sobre territórios distantes como o Japão, que dentro da reflexão exotista de Azevedo, está incluído entre os países da melhor porção do mundo moderno. As cidades japonesas, especialmente as capitais históricas, são descritas na obra de Azevedo como importantes e poderosas, ainda que construídas em madeira e bambu. Especialmente na descrição de Edo, a atual cidade de Tóquio, Azevedo exalta a capacidade técnica e executiva dos construtores daquela cidade, por exemplo, em relação aos canais que até hoje definem muito da forma urbana da cidade. Muitas dessas características urbanas foram estabelecidas trezentos anos antes de Azevedo aportar a cidade de Tóquio, durante o século XVI. Efetivamente, antes da abertura Meiji, o Japão era a sociedade pré-moderna mais urbanizada fora da Europa (ROZMAN, 1973). Edo chegou a alcançar uma população de cerca de 1.300.000 habitantes em 1725 (NISHIYAMA, 1975), enquanto outras cidades, como Londres, alcançavam cerca de 864.000; Paris, 547.000 e Berlin cerca de 177.000 habitantes em 1801 (COALDRAKE, 1981, p. 246). Com cerca de mil anos de antecedência, Chang’an – a capital chinesa da Dinastia Tang (618-690) – também alcançava cerca de um milhão de habitantes. No entanto, para alguns autores, a capital Edo passava por um dinamismo social e revolucionário que a diferenciava de seus precedentes orientais. Edo continha características de cidades feudais orientais e ocidentais e, era ao mesmo tempo, a cidade do xogunato, ou seja, a cidade administrativa, e a cidade do comércio (SKINNER, 1977). O sistema de residência alternada (sankin kōtai), forma de residência secundária obrigatória dos senhores feudais e suas famílias na capital era o mecanismo legislativo que consolidou essa característica urbana. Quando da abertura do país no período Meiji, e com a revogação da lei de residência obrigatória na capital, em 1862, a população da capital diminuiu para cerca de quinhentos mil habitantes no momento em que Londres alcançava os três milhões de habitantes. Essa descrição confirma que o Japão era significativamente urbanizado quando a arquitetura e o urbanismo europeu foram introduzidos no país durante meados do século XIX. Durante o momento pré-moderno os responsáveis pela construção de edificações eram carpinteiros organizados em corporações de ofício. Some-se ao fato de que as decisões sobre a forma urbana eram orientadas pelos interesses de figuras relacionadas à administração feudal e às questões hierárquicas das classes sociais feudais 220

Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

(ICHIKAWA, 1994; WENDELKEN, 1996). A maioria das cidades japonesas historicamente se desenvolveram a partir da instalação de castelos feudais, normalmente localizados em áreas elevadas e cercadas a terrenos aluviais. Os senhores feudais definiam a posição de seus castelos e orientavam o subsequente desenvolvimento do núcleo urbano, além de manterem grande influência no processo de decisão sobre a localização dos equipamentos religiosos tais como templos e santuários xintoístas. Além dos núcleos urbanos originados a partir da instalação de castelos feudais, dois outros tipos principais de desenvolvimento urbano histórico ocorreram: as cidades entrepostos e cidades portuárias. A importação das técnicas ocidentais de controle e produção do espaço urbano significou uma enorme ruptura com as formas tradicionais de produção espacial no Japão. Planos de matriz estrangeira, intervenção morosa dentro do território japonês O processo de introdução de técnicas modernas de produção do espaço urbano se iniciou com a intervenção de especialistas europeus e norte-americanos em Tóquio; com a ação de burocratas que acumulavam informação sobre a modernização urbana em países estrangeiros; e com a fundação de departamentos de Engenharia e Arquitetura dentro das universidades japonesas, levando algum tempo antes que os primeiros urbanistas formados e treinados no país começassem a intervir nas cidades. Até então, cultura, em termos gerais, era um direito exclusivo das classes mais altas e da classe social dos samurais ou “militares”, que fazia a transição entre a alta cultura da nobreza e o povo. Durante o período feudal, com o processo de centralização do poder e pacificação interna, os samurais perderam, em boa parte, a função guerreira de sua classe social e foram instrumentais no processo de transferência de cultura das classes mais altas para o resto da população. O estabelecimento de universidades e a criação de novos departamentos e disciplinas fez parte do processo moderno de transferência de cultura às massas. Por exemplo, o primeiro departamento de arquitetura do país, Kōbu daigakkō zōka gakka (Curso de criação do Colégio Imperial de Engenharia), foi criado em 1886 a partir de sucessivas transformações da antiga escola Kaisei Gakkō, cujas origens remontam a institucionalização do ensino de línguas e disciplinas estrangeiras e cuja transformação contínua resultou na criação da atual Universidade de Tóquio (YAMAMOTO, 1980). 221

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O primeiro curso de planejamento urbano no Japão foi criado em 1923, dentro da Faculdade de Engenharia Civil da Universidade de Kyoto (NISHIYAMA, U.; YOSHINO, 1972). O curso incluía três disciplinas: planejamento urbano, construção de vias públicas e método de construção de obras públicas.4 Durante todo o período moderno planos de modernização e adaptação de cidades existentes foram propostos e parcialmente concretizados (FUJIMORI, 1982; ISHIDA, 2004). Desde 1871, quando os primeiros especialistas estrangeiros propuseram planos de modernização em Tóquio (nos bairros de Ginza e Hibiya), passando pelo período de melhorias urbanas do começo do século XX5, a promulgação do primeiro grupo de leis de planejamento e edificações urbanas de 1919, a reconstrução da cidade de Tóquio depois do grande terremoto de 1923, até 1945 – que marca o fim da guerra e o início do período de reconstrução do país –, as propostas desenvolvidas no Japão sempre estiveram bem atualizadas em relação às inovações em planejamento urbano utilizadas nos principais centros urbanos estrangeiros. Entre os possíveis modelos que referenciaram o estabelecimento da disciplina no país vale citar os planos de renovação da cidade de Paris promovidos pelo Barão Haussman (1853-1870), o movimento de renovação das cidades americanas conhecido como o City beautiful (1890-1910), as ideias de Ebenezer Howard em sua formulação do Garden City (1898), as discussões do City Planning Conference (1909) e da primeira Lei de controle urbano inglês, o Town Planning Act (1909), os planos para Londres (1929) e Chicago (1919) e o zoneamento da cidade de Nova Iorque (1916) (NISHIYAMA; YOSHINO, 1972; ICHIKAWA, 1994; WATANABE, 1993).

4 Vale notar que, diferente do Brasil, no Japão a maioria dos arquitetos recebem sua formação em departamentos de Arquitetura dentro de faculdades de Engenharia Civil. Recentemente, em 2011, as duas primeiras faculdades de Arquitetura do país foram inauguradas nas universidades de Kōgakuin e de Kinki. Para tornar-se um arquiteto profissional independente, todos devem passar por um exame nacional de qualificação profissional. 5

Os programas de melhorias em Tóquio (Tōkyō shiku kaisei keikaku), foram desenvolvidos desde planos gerais até planos executivos entre 1884-1902. No caso de Osaka, devido à industrialização precoce, um plano de alargamento das vias públicas foi proposto em 1871 – intitulado de Dōro wo kyōai narashimuru bekarasaruken (Casos de interdição de estreitamento de vias públicas) – além de subsequentes levantamentos e planos de melhorias urbanas propostos em 1886, 1887, 1897 e 1899. No entanto, a ação concreta visando o alargamento de vias públicas ocorreu somente em 1903, com a construção do primeiro trecho do bonde municipal a partir de Hanazonobashi. De maneira similar, no caso de Kyoto, desde 1872 até o começo do século XX, planos de melhorias urbanas foram propostos, mas a mais importante intervenção ocorreu em 1908, com inauguração das obras para construção do Kyotoshi sandaijigyō (Três grandes projetos de Kyoto), incluindo projetos de alargamento de ruas, construção do trem elétrico, e construção do sistema de abastecimento de água.

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Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

No entanto, as intervenções baseadas em novos modelos dentro das principais cidades japonesas foram recebidas com oposição, de modo que foram apenas parcialmente concretizadas, mesmo durante a reconstrução massiva da cidade de Tóquio depois do terremoto de 1923. O processo de institucionalização e implementação do planejamento urbano moderno no Japão foi difícil, devido à desconfiança por parte do governo central e parte da elite sobre a relevância e praticabilidade de ideias modernas e estrangeiras de planejamento urbano às cidades japonesas. O processo de importação de técnicas do urbanismo europeu e norte-americano iniciado no período Meiji, deu-se de maneira adaptativa. Vale ressaltar que em 1967, segundo análise do historiador Kenjirō Fujioka (1968, p. 13), as novas cidades criadas a partir do período moderno representavam um número reduzido, com cerca de dois terços das principais cidades japonesas desenvolvidas a partir de núcleos históricos consolidados. Modernismo arquitetural, planejamento colonial e o nascimento do desenho urbano japonês Efetivamente durante todo o período de estabelecimento da disciplina de planejamento, grandes planos urbanos modernos não foram concretizados dentro do território japonês. No caso da arquitetura, por ter uma influência em escala mais reduzida que o urbanismo e por ser produzida de maneira privada, ou seja, independente de decisões governamentais, os modelos de referência estrangeira passaram a ser experimentados dentro do país. Em arquitetura, a partir da década de 1920 o modernismo internacional ganhou especial relevância junto às elites intelectuais japonesas, em um contexto de discussão da identidade nacional da jovem potência imperial. Durante o período entre guerras, parte das experimentações em larga escala para novas cidades foram propostas por planejadores japoneses para a reorganização de cidades no território das colônias asiáticas. Vale ressaltar que a abertura do período Meiji foi motivada pelo receio de subjugação colonial do Japão aos países industrializados ocidentais. O maior interesse do governo Meiji até o fim da Segunda Guerra Mundial era colocar o país em igualdade de termos com as nações imperialistas do mesmo período e, assim, escapar a uma possível subordinação forçada aos interesses de nações industrializadas e poderosas. Assim, igualar-se a essas nações em termos de modernização em todos os âmbitos, inclusive a reestruturação das cidades, tornou-se a principal meta daquele governo. 223

Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

O Japão modernizou-se ao estilo ocidental para não ser colonizado. Uma vez que parte dos processos ocidentais de modernização foram alcançados, o país passou a utilizar os mesmos mecanismos de subjugação usados pelas potências ocidentais para colonizar regiões da Ásia, que incluem a subjugação militar forçada. Entre os diversos mecanismos modernos, o Japão utilizou o cultural de invenção de tradições e contra-tradições para suportar a intervenção sobre culturas indígenas asiáticas (HOBSBAWM; RANGER, 1983). No caso da maioria das potências imperiais europeias, a premissa moral que embasou a ocupação de territórios com culturas diferentes era o argumento de que a modernização dessas culturas era necessária e benéfica. No caso japonês, houve um processo de orientalização do Oriente próximo, que visava buscar nas raízes orientais japonesas os elementos que diferenciavam o Japão de seus vizinhos asiáticos, especialmente a China e a Coréia (TANAKA, 1993). O Japão, a China e a Coréia têm histórias de desenvolvimento cultural intimamente relacionadas, especialmente a influência chinesa, que é inegável. No entanto, diferenciar e separar a história do Japão dos outros países asiáticos significava consolidar o argumento de modernização que fundamentou a ocupação de territórios na China e Coréia. Na relação “colonial” entre Oriente e Ocidente o Japão teve uma participação peculiar. De acordo com o historiador da Arte, Hiroshi Yoshioka (1995), o percurso de colonização da imaginação e da cultura no Japão foi um processo secreto de colonização. Nesse confronto, sob o receio de submissão colonial, o Japão criou uma identidade nacional por meio de uma visão ocidental incorporada ao interior de sua própria cultura. Um exemplo concreto dessa problemática pode ser reconhecido na promoção em 1915 da exposição competitiva de produtos coreanos, organizada pelo governo colonial japonês, naquele momento, oficialmente conhecido como governo geral da Coréia. A exposição foi realizada onde se localiza o mais importante símbolo de subjugação da dinastia anterior – a dinastia Chosŏn – no recinto do palácio Kyŏngbok, em Seoul. Em frente ao palácio, bloqueando sua vista, o governo japonês construiu um edifício com as mais recentes técnicas arquitetônicas modernas ocidentais trazidas e estudadas nas universidades japonesas. A exposição objetivava “despertar o povo coreano de seus 100 anos de adormecimento e permitir que perceba a excelência do novo governo” (HONG, 2005, p. 508). Em Arquitetura, o processo de importação de técnicas europeias foi amplamente discutido durante as décadas de 1920 e 1930 sob a ótica da questão 224

Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

da identidade japonesa, intimamente relacionada ao forte nacionalismo vigente durante todo o período entre as guerras mundiais e durante o momento da Segunda Guerra. Essa discussão resultou em uma busca de uma identidade arquitetural moderna japonesa que produziu, especialmente durante o período do pós-guerra, experimentos arquitetônicos de repercussão positiva nos círculos internacionais relacionados à Arquitetura, como por exemplo, junto ao Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), encabeçado pelo renomado arquiteto francês Le Corbusier, entre outros. No período da década de 1950, a reconstrução massiva de um total de 215 cidades bombardeadas, mais de 63.000 hectares de área urbana ou mais de dois milhões de residências destruídas durante a guerra (ISHIDA, 2003) permitiu o estabelecimento concreto de uma arquitetura moderna japonesa ou de um modernismo arquitetural japonês. No caso do urbanismo, diferente do que aconteceu em Arquitetura, a reconstrução das cidades bombardeadas seguiu os padrões e referências do urbanismo do pré-guerra e deixou pouco espaço à concretização de planos modernos monumentais e grandiosos, restando, no entanto, a experiência acumulada durante o processo de proposição de grandes planos para novas cidades nos territórios colonizados. Durante a década de 1960, com o crescimento econômico seguido pelo surto rápido de urbanização, houve uma renovação dos mecanismos de produção urbana, entre os quais constam a construção de cidades novas e enormes bairros inteiros com planificação em larga escala; o aparecimento da figura do especulador imobiliário como agente fundamental de transformação urbana; e o desenvolvimento urbano estratégico a partir da promoção de megaeventos, como as Olimpíadas de Tóquio (em 1964) e a Exposição Internacional de Osaka (em 1970). Essas mudanças durante a década de 1960 abriram espaço para os arquitetos interferirem em uma escala urbana, com o surgimento da disciplina de desenho urbano (ābandezain), que difere do planejamento urbano (toshikeikaku), pois aplica as técnicas de concepção tridimensional do espaço, normalmente utilizadas em Arquitetura, na intervenção em escala urbana. Também vale ressaltar que a disciplina de desenho urbano enfatiza a importância de uma visão ou pré-imaginação dos espaços físicos – especialmente os espaços públicos – na reorganização das cidades, característica que distingue essa disciplina de outras especialidades vinculadas ao processo de planejamento urbano. No processo de formação da disciplina de desenho-urbano no Japão foram fundamentais: a adaptação das técnicas do urbanismo europeu visando 225

Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

a modernização de cidades japonesas e o desenvolvimento da disciplina de Arquitetura orientado por referências do modernismo internacional e da experiência colonial. Em grande medida, a disseminação durante a década de 1960 do desenho urbano japonês em escala global foi resultado do reconhecimento internacional da qualidade do modernismo arquitetural japonês, somado à experiência de planejamento e expansão colonial. Nesse contexto a experiência de invenção de tradições modernas usada no processo de distinção cultural entre Japão e Ásia foi instrumental no sistema inicial de exportação de ideias em planejamento urbano do período de 1960. A capacidade técnica de alguns arquitetos japoneses em produzir desenhos urbanos modernos e grandiosos que, ao mesmo tempo, continham uma identidade regional, responderam às ansiedades de nações jovens interessadas em expressar a modernidade de suas recém-criadas identidades nacionais. Kenzō Tange foi o primeiro arquiteto japonês a produzir um plano em escala urbana objetivando a realização concreta fora do Japão: o plano de reconstrução do centro da cidade de Skopje, destruída por um terremoto em 1963. O projeto do grupo japonês liderado por Tange venceu uma competição internacional como o melhor projeto entre oito propostas de equipes de diversos países, como Holanda, EUA e Itália, entre outros. A partir dessa participação pioneira japonesa em um projeto urbano internacional, os arquitetos desse país passaram a intervir na proposição de planos urbanos em diversas regiões do mundo, incluindo a Arábia Saudita, África, Europa e América, dentro de um contexto histórico de expansão democrática e globalização (FLORES URUSHIMA, 2008). A disseminação internacional de um desenho urbano atualizado, produzido no Japão, coincidiu com a celebração dos cem anos de abertura do país a modernização sob influência ocidental em 1968. Durante aqueles 100 anos, as técnicas ocidentais de produção arquitetural e urbana, foram amplamente discutidas e adaptadas às condições locais das cidades japonesas, num processo de hibridização que produziu formas urbanas de qualidade e originalidade que passaram a ser ‘exportadas’ num processo permanente de renovação cultural. Vale citar o comentário em 1966 dos historiadores de arquitetura e urbanismo, Teijirō Muramatsu (1924-1997) e Hiroki Onobayashi (1935-1979), sobre o significado dos 100 anos da revolução Meiji para a arquitetura japonesa (MURAMATSU; ONOBAYASHI, 1966, p. 215-216):

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Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

Os cem anos desde a Revolução Meiji, obviamente foram 100 anos de assimilação da civilização ocidental. O sonho de isolamento nacional foi rompido para ser empurrado de maneira incerta ao mundo da civilização ocidental, e é uma história de cooperação voluntária e compromisso, de harmonia e revolta do Japão, recém-chegado àquele mundo. Finalmente, chegamos ao momento de refletir e avaliar com seriedade sobre estes últimos 100 anos de história. Porque exigir essa reflexão no momento dos 100 anos, quando também poderia haver sido feita nos 80 anos ou 50 anos desde a Revolução Meiji. Em realidade o valor numérico dos 100 anos não tem nenhum significado. [...] Parece ser um fato que a civilização ocidental está alcançando um sério momento de reflexão [...] Isto é muito grave para o Japão que durante os últimos 100 anos completamente promoveu uma modernização seguindo os modelos ocidentais. É chegado o momento de inflexão inelutável para o futuro rumo a decisões. Recentemente várias monografias que apontam para a impossibilidade de separar o Ocidente do Japão têm surgido, tais como a de Toyoyuki Sabata [1966], “A ideologia da dieta carnívora”. Há uma tendência a tomada de uma certa autoconsciência constatando que o modelo não é mais do que um modelo que não pode substituir o objeto mesmo. Esta tendência pode ser considerada como uma prova efetiva de que chegamos ao momento de decidir o rumo para a nossa própria modernização. Passaram-se 100 anos desde o início da modernização quando a arquitetura do Japão se encontrou e se modelou à arquitetura ocidental. Se essa modernização foi um processo de ocidentalização ou simplesmente modernização é uma discussão que deve ser aprofundada em outra oportunidade. Os frutos de milhares de anos de uma cultura ocidental arquitetônica foram esplendidamente bem assimilados (pelo Japão) em um curto período de tempo de apenas 100 anos. E apesar de ainda existirem várias disciplinas onde o domínio da imitação prevalece, o reconhecimento internacional do valor de várias obras (japonesas) é aparente desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e especialmente, durante os últimos anos. No entanto, um reconhecimento internacional que significa o desaparecimento da cópia (modelo) ainda não foi alcançado. Assim, o progresso da arquitetura e construção japonesas será ainda confrontado por um momento de inflexão importante por vir.

De acordo com este texto, a civilização ocidental passava naquele momento por uma séria reavaliação sobre sua hegemonia cultural e uma crescente conscientização da existência de um mundo multicultural. Para o Japão, que tão persistentemente buscou no modelo ocidental as formas de sua modernização, essa reavaliação representou um momento de ruptura e reflexão. Além disso, trouxe a conscientização de que o modelo ocidental sempre restou ape227

Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

nas como modelo e a modernidade que o país havia alcançado continha uma forma híbrida e particular às condições próprias locais. Naquele texto, a celebração dos cem anos da Revolução Meiji em arquitetura e urbanismo no Japão coincidiu com o surgimento de uma consciência de que soluções originais e particulares precisavam ser produzidas para receber a atenção internacional. Soma-se a isso o fato de que os modelos e imitações, dentro da história urbana do país, fizeram parte de um processo de modernização orientado por decisões inevitáveis, equivocadas ou não, que deveriam ser ultrapassadas. Referências AZEVEDO, A. O Japão. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2011 COALDRAKE, W. H. Edo architecture and Tokugawa law. Monumenta Nipponica, v. 36, n. 3, p. 235-284, 1981. FLORES URUSHIMA, A. Y. Réévaluation des modes de vie rural et citadin face à la dégradation de l’environnement. Un débat national au Japon, de 1967 a 1972. Revue des Sciences Sociales, v. 47, p. 130-139, 2012. ______. Urban Modernization from Far East to Eastern Europe: Tange Kenzō and the reconstruction scheme for the centre of skopje. In: International conference of the european association for urban history: comparative history of european cities, 9, ago. 2008. Lyon: European Association for Urban History, 2008. FUJIMORI, T. Meiji no toshikeikaku [Planejamento urbano durante o período Meiji]. Tóquio: Iwanami Shoten, 1982. FUJIOKA, K. Nihon no toshi: sono tokushitsu to chiikiteki mondaiten: meiji igo no henbō to gendai toshi ni kansuru monogurafu [Cidades japonesas: com foco em suas especificidades regionais – monografia sobre as transformações desde o período Meiji e as cidades contemporâneas]. Tóquio: Taimeido, 1968. HOBSBAWM, E. J.; RANGER, T. (Ed.). The invention of tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. HONG, K. Modeling the West, returning to Asia: shifting politics of representation in japanese colonial expositions in Korea. Comparative Studies in Society and History, v. 47, p. 507-531, 2005. ICHIKAWA, H. The evolutionary process of urban form in Edo/Tokyo to 1900. The Town Planning Review, v. 65, n. 2, p. 179-196, 1994. ISHIDA, Y. Nihon kingendai toshi keikaku no tenkai: 1868-2003 [Evolução do planejamento urbano moderno e contemporâneo japonês: 1868-2003]. Tóquio: Jichitai Kenkyusha, 2004.

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Citação: Flores Urushima, A. “A celebração dos cem anos da Revolução Meiji (1968) e o início da disseminação do desenho urbano produzido no Japão em escala global”, in Modernização urbana e cultura contemporânea: diálogos Brasil-Japão, ed. A. FLORES URUSHIMA, R. ABI-SAMARA, M. J. DACOSTA (São Paulo: Terracota Editora, 2015), pp. 215-230

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