A CHINA E OS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA NA LONGA DURAÇÃO PARA UM FUTURO HARMONIOSO

June 3, 2017 | Autor: I. Carneiro de Sousa | Categoria: China, Macau, Macau studies, Portuguese speaking Countries
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A China e os Países de Língua Portuguesa:
uma perspectiva histórica na longa duração
para um futuro harmonioso



A nossa participação neste seminário importante procura identificar
sumariamente as grandes linhas que organizaram o passado das relações
históricas entre a China e os países de Língua Portuguesa, partindo depois
directamente das lições da história para o debate de propostas sobre o
futuro. Em rigor, o passado é revisitado enquanto parte integrante do
presente, já como memória já como legado, tratando de navegar em águas
profundas, movimentando-se na longa duração da história. A concepção de que
a compreensão do passado não se adquire através da reconstrução de eventos,
datas, colecções de nomes sonantes, mas antes apenas se apreende através da
rigorosa identificação das estruturas longas, demoradas, lentas, marcando o
tempo das civilizações e dos seus contactos à escala global deve-se à obra
referencial do maior historiador europeu do século XX, Fernand Braudel
(1902-1985), especialmente aos seus três extraordinários volumes dedicados
ao estudo de Capitalismo e Civilização.[1] Nesta obra mais do que clássica,
Fernand Braudel ensinou-nos duas lições fundamentais que nem sempre avisam
os estudo e debates que, como os deste seminário, tratam de repensar
comunicações entre países dispersos por diferentes continentes e
civilizações, marcados por sociedades, economias e culturas diversas, mas
unidos por uma mesma história colonial e por uma língua oficial comum:
(1) Uma primeira lição braudeliana fundamental explicava que o todo,
o mundo, o global é sempre mais importante e extenso do que as partes que o
integram. Não é possível, por exemplo, identificar historicamente a
economia de Macau apenas reconstruindo internamente, particularmente, a
economia de Macau. É necessário também identificar a sua posição no mundo,
a sua relação com o global. A história económica, social ou política de
Macau depende tanto das suas realizações internas quanto da sua posição
específica num sistema mundial intercambiando comércios, economias,
mercados, produções, culturas. Hoje, tornou-se popular, quase simpático e
politicamente «correcto», criticar a economia de Macau pela sua excessiva
dependência do jogo e dos lucros enormes gerados pelos casinos, novos e
velhos. No entanto, em rigor, esta especialização é, até ao momento, a
única forma competitiva através da qual Macau ligou com vantagens a sua
economia interna à integração mundial de mercados, capitais e pessoas
gerada pela aceleração do longo processo de globalização. Em rigor, não se
consegue ainda vislumbrar outra área económica interna de Macau – dos
serviços ao comércio, das indústrias às tecnologias – em que esta região
administrativa especial da República Popular da China possa liderar um
domínio concreto da competição económica global. Assim, Macau depende tanto
de si próprio como da sua posição num todo globalizado. A mesma relação
deve aplicar-se tanto à economia hoje da China quanto às economias dos
países de Língua Portuguesa. O seu desenvolvimento depende não apenas das
suas capacidades, recursos e movimentos internos quanto da sua posição na
hierarquia de centros, semi-periferias e periferias distribuída
selectivamente pela globalização. Sabemos mais ainda graças ao trabalho de
Fernan Braudel e dos seus muitos continuadores, de Imannuel Walerstein[2] a
Andre Gunder Frank,[3] que a globalização é um processo, um longo processo
histórico de que hoje se discute, imagine-se, se tem 500 ou 5000 anos!
(2) A segunda lição oferecida pela obra genial de Fernand Braudel é
ainda mais revolucionária. O grande historiador francês explicou
insistentemente nas suas muitas publicações que o tempo histórico se divide
em três diferentes apartados: o tempo curto dos factos – uma batalha aqui
um novo rei acolá – pode quanto muito alterar a forma de um regime
político ou o jogo das dominações sociais, mas nunca modifica profundamente
a circulação de uma economia local e regional na hierarquia de posições
globais, muito menos agita radicalmente culturas e práticas culturais, mais
ainda, nunca transforma as civilizações; um segundo nível do tempo
histórico, de média duração, inscreve-se na ordem das transformações das
estruturas económicas e sociais vindas do somatório das conjunturas, das
grandes crises económicas, das revoluções e dos movimentos sociais: um
tempo capaz de alterar regimes políticos, formas de divisão do trabalho e
modalidades de organização social, mas que dificilmente consegue modificar
profundamente civilizações. Por isso, para Fernand Braudel, era o tempo
longo da história, das permanências e longas durações, das demoradas
ligações entre homem e paisagem, sociedades e culturas, o tempo das
civilizações que mais importava perceber e distinguir. Neste tempo
plurissecular, tantas vezes milenar, jogavam-se as verdadeiras diferenças
em que sempre se inscrevem as diversidades civilizacionais que organizam um
mundo progressivamente mais global.

Tempo outro de tentar fazer um esforço para aplicar panoricamente
estas lições à história e ao futuro das relações entre a China e os países
de Língua Portuguesa. A história desta relação é longa, demorada, visitando-
se plurissecularmente em torno deste pequeno, quase insignificante ponto
geográfico que continua a ser Macau. O que foi e é Macau, a sua economia,
sociedade, multiculturalidade, especificidades ou mesmo património cultural
único numa perspectiva de longa duração?


Macau como plataforma global


Hoje, felizmente, a nossa perspectiva da história global mudou sem
retorno. A demorada dominação de uma perspectiva eurocêntrica da história
dissolveu-se em quase todos os domínios de investigação, da economia às
outras ciências sociais, da arqueologia à história. Não é possível
continuar a ensinar história do mundo como há cinquenta anos atrás: o
primeiro verdadeiro homem nasceu nos territórios bíblicos do Médio-Oriente;
a aprimeira verdadeira civilização clássica ergueu-se na Grécia; o primeiro
grande império transnacional foi o romano; o feudalismo teria sido uma
criação genuinamente europeia; mais ainda, o capitalismo industrial haveria
de ser a grande invenção da Europa, espalhando-se contemporaneamente de
Londres a Nova Iorque para dominar o orbe.[4] Este verdadeiro expresso do
extremo-ocidente transformando a história do mundo num túnel eurocêntrico
era ensinado por escolas e manuais como um conjunto de evidências, de
factos incontornáveis. Hoje, já não é assim. Sabe-se agora com a
multiplicação de estudos, de dados, de renovadas evidências, que um sistema
mundial baseado na acumulação de capital existiu muito antes da chamada
«Era dos Descobrimentos», orbitando em torno das economias-mundo da China e
da Índia que, até princípios do século XIX, eram bastante mais produtivas,
da indústria ao comércio, da agricultura às energias, dos mercados aos
transportes, do que toda a capacidade económica somada da Europa.[5] A
descontinuidade de um mundo largamente centrado nos movimentos económicos e
comerciais intra-asiáticos não se deu com a chegada, em 1492, de Colombo às
Antilhas ou de Vasco da Gama, em 1498, a Calicute, na Índia. Ambos
buscavam, aliás, itinerários marítimos capazes de encontrar os mercados
asiáticos, procurando apanhar as carruagens de uma locomotiva animada com
intensas movimentações produtivas e mercantis. A descontinuidade no sistema
mundial acontece ao longo do século XIX quando imperialismo, colonialismo e
industrialização europeias se combinam estreita e ofensivamente para
modificar as relações políticas e económicas globais.
Não é preciso rememorar com delonga que os portugueses de Quinhentos
conseguiram precisamente invadir as comunicações entre as economias
asiáticas, tratando de controlar pela superioridade naval os pontos
estratégicos que, de Malaca a Ormuz, vigiavam os tráficos marítimos intra-
asiáticos anteriormente pontuados por uma larga circulação mercantil
muçulmana. Organizando uma rede interligada de enclaves em espaços
portuários que eram fortalezas, feitorias e algumas cidades, como Goa ou
Macau, os portugueses ofereceram aos tráficos comerciais asiáticos mais
rapidez, segurança e a eficácia de embarcações especializadas apoiadas por
uma artilharia naval praticamente imbatível no século XVI nos mares do
Índico. As ligações marítimas oferecidas por este sistema concorriam com
vantagens com as vetustas rotas demoradas da Seda, ligando por terra a
China à Turquia, da mesma forma que se impuseram a outros concorrentes
marítimos tanto islâmicos como locais através de um regular sistema de
vigilância e violência marítimas que, combinando controlo alfandegário e
pirataria, procurava sazonalmente dissolver a concorrência comercial nos
pontos nodais de distribuição mercantil das produções de metais preciosos,
têxteis, sedas e especiarias muitas.[6]
Portugal tinha no século XVI uma população oscilando entre 1,5-2
milhões de habitantes. Escassez de recursos naturais e industriais somavam-
se a uma continuada falta de capitais em prata com que se faziam os
negócios com as economias asiáticas. Quando em meados do século, os
enclaves portugueses na Ásia cruzavam cerca de meia centena de portos, não
tinha sido possível mobilizar mais de 25000-30000 portugueses europeus para
assegurar actividades políticas, militares e comerciais organizadas. Macau
foi uma solução fundamental para estas disfunções. Negociada como em muitos
outros espaços asiáticos com os poderes territoriais locais, a demorada
presença portuguesa na península de Macau durou porque foi útil à economia
e sociedade imperiais chinesas.[7] Prata, produtos de luxo raros como o
âmbar ou o sândalo de Timor, cruzavam-se à intermediação mercantil com as
feiras anuais de Cantão, permitindo aos mercadores lusos e euroasiáticos
que se foram instalando no enclave desde 1557 assegurar até 1639 as
importações de prata japonesa vitais para alimentar o sistema monetário e
de pesos organizado no período Ming em torno da barra de prata. Quando os
portugueses foram expulsos do Japão, o sistema económico da China continuou
a absorver grande parte da produção de prata mundial, sobretudo vinda do
império espanhol na América através das conexões regulares entre Acapulco e
Manila com ligações ao enclave do delta do Rio da Pérola.
Macau sobreviveu com autonomia, alguns portugueses, centenas de euro-
asiáticos e milhares de escravos entre uma maioria populacional chinesa
porque foi sempre uma plataforma especializada de intermediação entre
diferentes economias do mundo com utilidade para a comunicação
estreitamente controlada e limitada entre o império do meio e esse mundo
exterior em que buscava produtos sumptuários ou até as matemáticas,
astronomias, geografias e mapas universais que permitiram a instalação a
partir de Macau de dezenas de jesuítas na selectiva corte do Filho do Céu.
É esse papel plurissecular de intermediação entre civilizações e economias,
entre continentes e oceanos de tratos que a República Popular da China
pretende preservar utilmente em Macau apostando na reconstrução dinâmica
das comunicações históricas, comerciais, políticas e culturais com os
Países de Língua Portuguesa saídos soberanamente do velho império colonial
português. Por isso, a política estratégica de desenvolvimento de uma
«plataforma de apoio à cooperação económica e comercial entre a China e a
Lusofonia» instalou-se para ficar no discurso do Governo da RAEM
oficialmente desde 2003-2004, juntamente com essas outras duas plataformas
estratégicas de «serviços comerciais para a zona oeste da província de
Guandong» e de «apoio ao intercâmbio com os empresários chineses dispersos
pelo mundo» que, neste último caso, se descobrem também entre importantes
diásporas chinesas que, ao longo do século XIX, com o movimento dos coolies
via Macau, se espalharam igualmente pelos vários horizontes geográficos dos
Países de Língua Portuguesa. A redinamização das relações comerciais entre
a China e os espaços lusófonos criou mesmo, desde 2003, como se sabe, um
Forum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de
Língua Portuguesa, dotado de um secretariado permanente e de um gabinete de
apoio sediados em Macau que muito têm vindo a concorrer para firmar o
rápido crescimento de investimentos económicos e de trocas comerciais
vantajosas para as diferentes partes mobilizadas para este renovado
intercâmbio.


O contexto de longa duração: o colonialismo português

A história das relações entre Macau e os países de Língua Portuguesa
encontra-se por fazer. Mesmo a história das comunicações entre Portugal e
Macau necessita de revisão importante embaraçada como se encontra pela
memória criada pela ciência colonial portuguesa do século XX com as suas
submissões consabidas ao regime do Estado Novo. Em rigor, a memória do
colonialismo português construiu-se longe da própria noção axial de
colonialismo e foi – ainda continua – insistindo numa perspectivação quase
doce, a-política e a-social, da história da dominação colonial portuguesa
em diferentes territórios geográficos. O paradigma desta visão tranquila da
história do colonialismo português encontra-se, quase paradoxalmente, na
obra de um brasileiro, uma sorte de príncipe maior das ciências sociais do
Brasil: Gilberto Freyre (1900-1987). Entre o Mundo que o Português
Criou,[8] publicado em 1940, as memórias das suas viagens pelo chamado
Ultramar Português arranjadas pelo governo salazarista, em 1953[9], e o
famoso Luso e o Trópico,[10] livro publicado em 1961 e espalhado em várias
línguas pelo mundo que começava a contestar a legitimidade do colonialismo
do governo de Lisboa, Freyre foi construindo essa ideia de um império tão
singular como único, baseado nesse luso-tropicalismo para o qual mais
importante do que a democracia política era a lição superior de uma
«democracia das raças» gerada pela muito especial capacidade de adaptação
dos portugueses às sociedades tropicais com as quais se teriam
sistematicamente miscigenado. Apesar de completamente desmentidas pelos
trabalhos históricos de Charles Boxer[11] e de outros cientistas sociais
que demonstraram o carácter intrinsecamente colonialista, segregador e
profundamente hierarquizado dos espaços coloniais portugueses,[12] esta
perspectiva luso-tropicalista ainda perdura e, infelizmente, influencia
algumas posições pouco pensadas sobre a política portuguesa em torno do
tema da «lusofonia» tantas vezes confundindo-se com essa conceptualização
luso-tropicalista em que se procura preservar uma raiz lusofóbica da
comunicação política entre países hoje soberanos.
As sociedades coloniais organizadas pelo império português não eram
nem livres nem muito menos igualitárias. Populações e culturas locais não
foram respeitadas, muito menos os seus direitos políticos, culturais e
religiosos. Desde 1504, a presença portuguesa em enclaves asiáticos foi-se
organizando através de uma forma político-institucional designada por
«Estado Português da Índia», dirigida por um Vice-Rei ou Governador saído
sempre da média-alta nobreza metropolitana, espalhando capitães, juízes e
gestores portugueses pelos pontos mais estratégicos do império marítimo
português. Mesmo num enclave constantemente vigiado pelo poder chinês como
Macau, predominavam os mesmos monopólios políticos, uma caridade
exclusivista para cristãos, uma ordem social explorando o esclavagismo e a
mesma produção de elites subalternas. Aqui em Macau designadas desde, pelo
menos, 1828 por Macaístas que eram sobretudo descendentes de casamentos de
portugueses e euroasiáticos com mulheres chinesas, tantas vezes compradas
com meses de vida, reproduzindo um grupo social privilegiado que servia
para exercer em nome de Portugal os poderes estritamente locais. Nenhum
macaense chegava a governador ou capitão do enclave e, muito menos, poderia
sequer sonhar vir um dia a cumprir lugar de relevo político na chamada
metrópole. Enquanto elite subalterna, os Macaenses, como se viriam a
designar desde meados do século XIX, existiam para o mundo oficialmente
classificado desde 1822 como colónia, podendo circular elitariamente entre
poderes municipais, a administração colonial e a direcção de algumas
empresas do Estado, dos correios às burocracias, das finanças ao ensino nas
primeiras escolas dirigidas à população euroasiática minoritária. Fora dos
espaços sociais estruturados por esta elite subalterna, o cruzamento
social, cultural e até linguísitico entre aqueles que representavam
Portugal e a maioria da população chinesa era extremamente raro. A
governação portuguesa em Macau até 1999 praticamente não falava cantonense
ou mandarim, da mesma forma que compreendia mal as culturas maioritárias
locais mesmo quando financiou um expendioso programa de construção de
monumentos pensados ao que julgava ser um «gosto chinês», mas que a
população local não compreende ou critica pela sua estranha dimensão
«orientalista». Na verdade, as ruas e praças de Macau continuam a celebrar
lugares da memória portugueses, de Vasco da Gama aos longínquos reis
lusitanos, mas a população local, taxistas incluídos, não identificam essa
toponímia lusitana, continuando a frequentá-la exclusivamente com as suas
cantonenses designações.
A China, o Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, S. Tomé e
Príncipe, Guiné-Bissau e Timor Leste têm a vantagem de partilhar um mesmo
entendimento histórico do colonialismo português e das lutas de libertação
que o dissolveram. Portugal, pelo menos um certo Portugal político e
acadêmico ainda pouco democratizado e mundividente, convive mal com a
história do seu próprio colonialismo, geralmente não ensinada e investigada
em detrimento de uma exacerbada frequência dos temas, mitos e heróis
nacionais saídos da chamada «Época dos Descobrimentos» para baptizar ruas,
pontes, edificíos públicos e a maioria dos lugares da memória com que se
persiste em destacar a identidade nacional, a diferença nacional de
Portugal no Mundo. Se comparamos esta situação com a memória também
nacional influenciada pela história de outros impérios coloniais europeus
descobrimos construções identitárias quase opostas. O império espanhol, por
exemplo, era estruturalmente semelhante ao português. A mesma ordem
política e administrativa com vice-reis, governadores, capitães e juízes
também nomeados por três anos, maioritariamente oriundos da Espanha
metropolitana. A mesma religião, o catolicismo, e o mesmo sistema de
monopólio religioso concretizado através dos poderes do Padroado e de uma
rede impressionante de paróquias, mosteiros, conventos e confrarias
controlando a circulação da caridade e da assistência social. A mesma
produção de elites subalternas que, sobretudo crioulas, haveriam de
construir as independências da América do Sul na primeira metade do século
XIX. Cronologicamente a seguir, os restos do império espanhol – Cuba,
Puerto Rico e as Filipinas – acabariam por ser perdidos definitivamente
pela coroa de Espanha em 1898 durante as guerras hispano-americanas. Uma
extraordinária geração de intelectuais, escritores, ensaístas e filósofos,
reunindo nomes referenciais como Miguel Unamuno, Pio Baroja, Valle-Inclán,
Antonio Machado ou Ortega Y Gasset, foi construindo uma memória nacional de
Espanha, sobretudo hispânica e europeia, contemporânea e renovadora, apesar
de revisitar uma «hispanidad» assentando no passado renascentista e
iluminista de uma Espanha de grandes escritores e polemistas: ficou
conhecida como a geração de 98. Em contraste, o império colonial português
durou mais três quartos de século até à revolução democrática do 25 de
Abril de 1974, absolutamente indissociável das guerras e das lutas de
libertação nas antigas colónias africanas portuguesas. A memória do império
português tinha sido já construída pelo poder e pela ciência coloniais,
destacando esses mitos, reis e infantes, descobridores e viajantes que se
encontram quase em manifesto em obras como a Mensagem de Fernando Pessoa.
Infelizmente, uma outra história e memória do colonialismo português não
foi reconstruída depois da Revolução de 1974: nomes de ruas e praças,
pontes e grandes obras públicas, estátuas e lugares da memória permanecem
fundamentalmente os mesmos entre saudades e estranhas ideias sobre um
universalismo português que não existe longe das avenidas da memória.
É verdade que o Portugal democrático soma outras vantagens como um
papel fundamental de intermediação com a União Europeia, mas esta memória
persistente lendo o passado colonial enquanto lugar quase exclusivo da
memória nacional, tem vindo a limitar a circulação moderna do país mesmo
entre as nações que partilham o português como língua oficial. Todos os
estudos disponíveis sobre a CPLP (Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa) testemunham a dificuldade em transformar a associação em
verdadeira comunidade: Portugal e o Brasil são fundamentalmente
concorrentes nestes espaços, a circulação livre de pessoas, capitais e
equipamentos não existe, os programas educacionais e culturais não saiem do
papel, incluindo uma célebre Academia de Língua Portuguesa que sofre
anualmente para recolher as contribuições nacionais para o seu limitado
orçamento.[13] Aqui também, o papel de Macau como plataforma entre a China
e os países de língua portuguesa parece imprescindível: conseguiria outro
espaço de antiga circulação protuguesa organizar os primeiros jogos da
lusofonia com o êxito conseguido por Macau? Mais ainda, conseguiria
qualquer um dos membros da CPLP interligar os diferentes espaços lusófonos
para estruturar programas com vantagens mútuas mobilizando a posição agora
fundamental da República Popular da China no processo de globalização?

As alterações contemporâneas: independências e globalização

O mundo que o português criou, para glosarmos Gilberto Freyre, não
foi, não é, nem será rigorosamente um mundo exclusivamente «português»,
conquanto se espere poder expressar-se oficialmente em português. Trata-se
hoje de espaços independentes, novos estados-nações, combiando
independências e legado histórico, culturas locais e processos complexos de
construção de novas identidades nacionais. Em todos os casos, o português
ofereceu-se como língua de identidade oficial e unidade nacionais, mesmo
quando, da Guiné-Bissau a Timor Leste, era língua minoritária de
administrações coloniais e escassos investimentos educativos na promoção
das populações locais. Este novo mosaico de estados-nações partilhando a
mesma língua faz também parte de um processo hoje marcado pela aceleração
da globalização cada vez mais integrando capitais, recursos e comunicações.
Apesar do seu crescimento exponencial, a globalização não dissolveu as
formas políticas dominantes do estado-nação que continua a ser a modalidade
quase exclusiva de intermediar territórios independentes com a
mundialização, pese embora os diferentes esforços de associação e
integração regionais. É, por isso, entre estados-nações, neste caso de
língua portuguesa, que se deve perspectivar um futuro capaz de aproveitar
as vantagens da globalização.
O crescimento da China, da Índia ou do Brasil espelha quanto a
globalização pode recriar os motores e as oportunidades de crescimento.
Hoje é claro que a globalização não será uma sorte de aldeia global anglo-
saxónica e que as grandes economias da Ásia conseguiram novamente mobilizar
o seu passado histórico, a sua demografia, sociedades e economias para
circular com vantagens num mundo global. A República Popular da China
precisa de matérias-primas e energias que só pode encontrar em mercados
nacionais que concorrem em processo global. Entre estes destacam-se os
mercados, recursos naturais e matérias-primas dos diferentes países de
língua portuguesa, incluindo a presença activa de Portugal na União
Europeia que, hoje a vinte e sete, constitui o mais amplo mercado
transnacional integrado mundial.

O que falta ao futuro das relações entre a China e os Países de Língua
Portuguesa: educação, ciência e cultura

A relação entre a China e os Países de Língua Portuguesa tem sido nos
últimos anos quase exclusivamente comercial. Não chega para sustentar
relações duráveis. As alterações de conjuntura económica são recorrentes,
os mercados cada vez mais voláteis, a competição global dura e os
perdedores sitematicamente marginalizados. Às relações entre a China e os
Países de Língua Portuguesa não basta explorar conjunturas e mercados
comerciais de curta duração. Torna-se necessário pensar em estratégias e
domínios capazes de construir relações duráveis, intensas, historicamente
com futuro. Também aqui Macau pode ser um peão fundamental num tabuleiro
com muitas peças, estratégias diversas e resultados diferentes. Macau tem
um legado histórico que, da gastronomia ao património, dos sabores aos
fazeres, inclui uma incontornável influência representada como lusófona.
Não tanto nesses nomes de rua ou estátuas que poucos conhecem, mas nessa
especialização de longa duração em que se foi ligando aos tratos do
comércio do tabaco em pó do Brasil, à importação de café de Timor, à
circulação de ideias, plantas e gentes africanas que eram os escravos e as
milícias que protegiam casas e haveres da grande burguesia comercial
macaense. Estas gentes ainda existem, vivem e trabalham numa região
administrativa especial que tem o português como uma das línguas oficiais,
para além de uma forte influência normativa do direito de Portugal. Uma
vantagem a somar sempre a um papel de intermediação económica e comercial
que foi responsável pela diferença de Macau. Assim, a República Popular da
China encontra no extraordinário desenvolvimento de Macau já não apenas uma
validação política do princípio «um país, dois sistemas», mas encontra mais
oportunidades, facilidades e cumplicidades na reconstrução dinâmica dos
velhos laços com Portugal e os países soberanos de língua oficial
portuguesa. Esta comunicação precisa agora de se actualizar a um mundo
global, ao tipo de competição global que marca o século XXI: ideias,
tecnologias avançadas, formação contínua, design e muita investigação
científica. Hoje é mais do que evidente que já não chega vender barato e
rápido. Compra-se também a marca, o design, a inovação, a criatividade, o
conforto tecnológico, incluindo a progressiva popularização de tecnologias
«verdes», amigas e solidárias com a preservação ambiental. Esta competição
global em que se ganha sobretudo pela capacidade de vender novas ideias e
designs obriga a mobilizar uma nova educação, uma nova investigação tão
interdisciplinar quanto ancorada em redes internacionais, ao mesmo tempo
que implica preservar diversidades culturais e ambientais sem as quais é
mais difícil oferecer, como no caso de Macau, destinos turísiticos que são
cada vez mais culturais e ecológicos.
As linhas programáticas consensualmente aprovadas em Setembro do ano
passado pela conferência inter-ministerial entre a China e os Países de
Língua Portuguesa destacaram a necessidade de alargar e especializar a
cooperação para o período de 2007 a 2009, reforçando ainda mais o papel
fundamental de Macau como plataforma do Forum para a Cooperação Económica e
Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa. Assim, as linhas
de acção passaram a contemplar originalmente a cooperação na Área de
Recursos Humanos, a cooperação para o Desenvolvimento e definiram ainda
outras áreas de intercâmbio em que, para além do turismo, dos transportes e
da saúde, se destacam a ciência e tecnologia (ponto 9.6) e a cultura (ponto
9.8). É para estes domínios quase inexplorados de cooperação que se deve
começar a debater seriamente a necessidade de se começarem a construir as
redes de conhecimento, investigação e cultura capazes de sustentar
actividades formativas, educativas, científicas e culturais oferecendo
densidade e durabilidade à relação entre a China e os Países de Língua
Portuguesa. Comércios, mercados, vantagens económicas continuarão a ser
fundamentais, mas a sua qualificação e diferenciação na competição global
dependem da capacidade de firmar redes de conhecimento e inovação em
circulação entre a China e os países de Língua Portuguesa gerando mais
projectos multilaterais e maior capacidade de inovação à escala global. Em
termos concretos, a nossa proposta para reunir novos debates, reflexões e
contribuições pode fixar-se nesta sumária agenda de intenções:
1. Debater a criação de redes de conhecimento e investigação entre
Universidades, instituições de investigação e centros de criatividade
da China e dos Países de Língua Portuguesa em ambiente de rede e de
intercâmbio de formadores e formandos;
2. Potenciar o papel de Macau na formação para a inovação nos Países de
Língua Portuguesa, nomeadamente ao nível da formação em redes de e-
learning da administração pública, da justiça e do combate à
corrupção;
3. Sediar em Macau um centro internacional de investigação da história,
do património e do turismo da lusofonia com funcionamento em rede,
oferecendo programas de estágios e bolsas, financiamento e organização
internacionais de projectos de investigação.


O que já é bastante. Obrigado pela Vossa atenção.




Summary:

China and the Portuguese Speaking Countries:
a long term past perspective with a harmonious future


This paper aims to identify the long term structures that organized the
historical relationships between China and the Portuguese speaking
countries in the different fields of economy, politics, and social systems
in the context of Portuguese colonialism. Taking into account these
systemic legacies, this research attempts to discuss the post-colonial
China-Lusophone countries new relations patterns, highlighting several
potential less developed fields of cooperation and multilateral
investments: education, science, and culture.



Ivo Carneiro de Sousa (IIUM Professor)

Marting Chung (IIUM Professor's Assistant)
-----------------------
[1] BRAUDEL, Fernand – Civilisation matérielle et Capitalisme (XVe-XVIIe
siècle). Paris: A. Colin, 3 vols., 1967-1979.

[2] WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern world-system. Capitalist agriculture
and the origins of the European world-economy in the sixteenth centuyr.
New York: Academic Press, 1974.
[3] FRANK, Andre Gunder. World Accumulation 1492-1789. On Capitalist
Underdevelopment. Bombay – New York: Oxford University Press, 1975; FRANK,
Andre Gunder & B. K. Gills (eds.). The World System: Five Hundred Years or
Five Thousand? London – New York: Routledge 1993; FRANK, Andre Gunder.
ReOrient: Global Economy in the Asian Age. Berkeley: University of
California Press, 1998.

[4] BLAUT, J.M. The Colonizer's Model of the World. Geographical
diffusionism and Eurocentric history. New York-London: The Guilford Press,
1993; BLAUT, J.M. The Colonizer's Model of the World. Eight Eurocentric
Historians. New York-London: The Guilford Press, 2000.
[5] POMERANZ, Kenneth – The Great Divergence. China, Europe, and the Making
of the Modern World Economy. Princeton-Oxford: Princeton University Press,
2000.

[6] SOUSA, Ivo Carneiro de – A Ásia e a Europa na formação da Economia-
Mundo e da globalização: trajectórias e debates historiográficos. Macau,
Revista de Cultura, 10 (2004).
[7] ZHILIANG, Wu – Segredos da sobrevivência. História Política de Macau.
Macau: Associação de Educação de Adultos de Macau, 1999.

[8] FREYRE, Gilberto. O MUNDO que o português criou: aspectos das relações
sociais e de cultura do Brasil com Portugal e as colônias portuguesas. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1940. (Documentos Brasileiros, 28). 
[9] FREYRE, Gilberto. AVENTURA e rotina: sugestões de uma viagem a procura
das constantes portuguesas de caráter e ação. Rio de Janeiro: José Olympio,
1953. (Documentos Brasileiros, 77); FREYRE, Gilberto. UM BRASILEIRO em
terras portuguesas: introdução a uma possível luso-tropicologia acompanhada
de conferências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusitanas e
ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1953. (Documentos Brasileiros, 76). 
[10] FREYRE, Gilberto. O LUSO e o trópico: sugestões em torno dos métodos
portugueses de integração de povos autóctones e de culturas diferentes da
européia num complexo novo de civilização, o luso tropical. Lisboa:
Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante
D.Henrique, 1961; LE PORTUGAIS et les tropiques: considérations sur les
méthodes portugaises d´intègration de peuples autochtones et de cultures
diffèrentes de la culture européenne dans un nouveau complexe de
civilisation, la civilization luso-tropicale. Lisbone: Commision Exécutive
des Commemorations du V Centenaire de la Mort du Prince Henri, 1961 ; THE
PORTUGUESE ans the tropics: sugestions inspired by portugueses methods of
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[11] BOXER, Charles R. – Race Relations in the Portuguese Colonial Empire
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[12] SOUSA, Ivo Carneiro de. O Luso-Tropicalismo e a Historiografia
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[13] SOUSA, Ivo Carneiro de. O Espaço CPLP: Universidades e Investigação
Científica, in "O Espaço CPLP" (co-ord. Adriano Moreira). Lisboa: IDN,
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