A China nos BRICS e a Configuração de uma Ordem Emergente Multipolar

July 8, 2017 | Autor: J. Silva | Categoria: BRICS nations (Brazil, Russia, India, China and South Africa)
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A China nos BRICS e a configuração de uma ordem emergente multipolar1 Jorge Tavares da Silva Presidente do Observatório de Comércio e Relações Internacionais (OCRI) e docente do Instituto Superior de Ciências da Informação e Administração (ISCIA)

Este artigo centra-se no papel dos mercados emergentes no desenvolvimento da economia global e de como a China, enquadrada no projeto político do grupo dos BRICS, tem projetada uma nova configuração de poderes na ordem internacional.

Uma das características basilares da história económica da humanidade é a trajetória irregular dos seus resultados, o que nos remete para ciclos naturais de alternância de crescimento e de decadência. O papel dos mercados e dos respetivos atores no plano internacional aumenta ou diminui consoante fatores conjunturais, concorrenciais ou de estratégia económica. A partir da década de 1980, aos países classificados como do “Terceiro Mundo”, ao revelarem níveis de crescimento exponenciais e novas oportunidades de negócio, o gestor de investimentos Antoine van Agtmael, preferiu atribuir-lhes a designação de “mercados emergentes”. Enquanto a velha denominação soava a estagnação, a nova sugeria-lhe progresso, um novo despertar e dinamismo económico (Agtamel, 2007: 4-6). O conceito propagou-se e diversificaram-se as classificações, designações e os critérios de seleção para este tipo de economias ou mercados. Em 2001, num artigo Jim O’Neill para a Goldman Sachs

ao estabelecer uma relação entre as economias que dominavam a economia mundial (G7) e algumas economias ditas “emergentes”, verificou que os BRIC, tal como as denominou na altura, a partir das letras iniciais do Brasil, Rússia, Índia e China, cresciam mais rapidamente do que as primeiras. Ao analisar o PIB conjunto, O’Neill notou que aqueles mercados representavam 8% do total mundial, e que esta seria uma tendência para os anos seguintes (O’Neill, 2001; O’Neill, 2013). Em 2003, a Goldman Sachs, através do trabalho de investigação conduzido por Dominic Wilson e Roopa Purushothaman, reforçava a ideia anterior e, mais ousados ainda, apontavam que aqueles quatro países dominariam a economia mundial em 2050. Nesta altura, no seu conjunto, estes atores representarão um universo de 3,14 mil milhões de habitantes (40% da população) e, simultaneamente, o domínio económico do globo. O embate prevê-se de tal forma significativo que o National Intelligence Council, pre-

vê que todo o sistema internacional construído após a Segunda Guerra Mundial terá sido totalmente alterado já em 2025. Desde a criação do acrónimo que os BRIC se tornaram uma marca representativa das economias emergentes, “um termo quase ubíquo que tem servido para uma geração de investidores, financeiros e políticos percecionarem estes mercados” (Tett, 2010). O acrónimo ganhou impacto e projeção nas esferas académicas e políticas e, em muito sentidos, criou um efeito de quase “BRICmania”. Em 2006, o grupo assume-se institucionalmente e politicamente, quando até então não passava de uma proposta conceptual. À margem da 61ª Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), em Nova Iorque, os líderes dos BRIC decidiram reforçar ou efetivamente criar o grupo, que apenas existia no plano teórico. Assim, tal como refere Paulo Roberto de Almeida (2010: 132), “o exercício intelectual de um economista de

_________________ Este artigo é baseado no conteúdo do livro BRICS e a Nova Ordem Internacional, coordenado pelo autor e publicado pela Mare Liberum/Caleidoscópio (2015).

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Os cincos líderes dos países que compõem o grupo dos BRICS na Cimeira de Fortaleza, em 15 julho de 2014. Da esquerda para a direita: Vladimir Putin (Rússia), Narendra Modi (Índia), Dilma Rousseff (Brasil), Xi Jinping (China) e Jacob Zuma (África do Sul). Fonte: Roberto Stuckert Filho, Presidência da República do Brasil, 2014.

um banco privado converteu-se em um quadro diplomático para a criação de um bloco de quatro países emergentes, aparentemente dotados de vocação, sobretudo económica, para propor alternativas ao mundo”. O projeto político dos BRICS – já com o “S” da África do Sul, que entrou para o grupo em 2011 – e na sequência do seu extraordinário desempenho económico, tem vindo a pressionar a ordem de poderes na economia internacional e a oferecer uma alternativa à lógica hegemónica americana. Podemos caracterizar o grupo dos BRICS como sendo de interesse ou pressão, de natureza informal, por lhe faltar ainda uma carta constitutiva e uma estrutura organizacional, formado por estados membros, que estão a usar a riqueza, estatuto político, e

a utilizar a capacidade cooperativa e diplomática para alinhar estratégias de interesse comum. Desde logo, importa ter em conta que no conjunto dos seus territórios vive metade da população mundial, cujos mercados alcançam valores de crescimento acima dos 6% por ano desde a década de 1980 e o comércio representa cerca de 30% do total global. As economias emergentes ao crescerem mais rapidamente do que o resto do mundo, e ao ofereceram novas condições ao investimento estrangeiro, têm um efeito considerável na competitividade das empresas, no comércio internacional e no modo de vida das pessoas das economias tradicionalmente mais fortes. Este fenómeno afeta mesmo a conceção determinista e eurocêntrica que durante séculos moldou a visão

ocidental de olhar para o mundo. Há uma clara confrontação entre os países ditos do “norte” com os do “sul”, que são conceitos meramente políticos e não geográficos, isto é, entre o mundo desenvolvido e o mundo em desenvolvimento. Trata-se de um descuido analítico, uma vez que até ao século XIX o Ocidente não foi a regra na supremacia da criação da riqueza mundial. Assim, importa notar que o caminho hoje transitado pelas “novas” economias emergentes não é distinto daquele que as “velhas” economias percorreram no passado. A tomada de consciência do impacto das economias emergentes no ocidente dá-se com o aumento do desemprego, a deslocalização das empresas, a redução da produtividade, a emigração, o declínio

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demográfico, face ao vitalismo dos países do “sul”. A desertificação empresarial resulta da necessidade de as organizações precisarem de estar mais próximas dos clusters industriais, dos centros de consumo e de redução dos custos de produção, particularmente utilizando mão-de-obra mais barata. Enquanto o nível de vida se torna mais caro no “norte”, face ao fenómeno das deslocalizações, os custos na aquisição para os consumidores locais dos países emergentes reduzem-se drasticamente no “sul”. Por exemplo, o preço dos automóveis baixou na China cerca de 30% desde que entrou no país a Ford Company, a General Motors e a Honda. Para este cenário tem contribuído o aparecimento de novas classes médias, burguesas e consumidoras, com crescente poder aquisitivo. O fascínio pela aquisição de viatura própria depressa se instalou na China, com os mesmos níveis de entusiamo que o Ford T entrou no mercado americano. Não admira que andar de bicicleta passasse a ser mal visto, enquanto circular de automóvel se tornou a expressão do próprio desenvolvimento. Na China, a mais pujante de todas as economias emergentes, desde o final de 2003 que a venda de via turas ligeiras neste país está com um crescimento de 70%, o consumo de aço atinge 25% do total mundial; o minério de ferro, ¼ de todo o mundo e 40% de toda a produção mundial de cimento. Atualmente é o segundo maior consumidor de petróleo do mundo, tendo ultrapassado o Japão em 2003, atingindo 9,3% do consumo mundial, com cerca de sete milhões de barris por dia. Ao mesmo tempo, o mercado chinês, tal como o indiano, oferece às empresas ocidentais capital humano cada vez mais qualificado, em alguns domí-

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nios dominante, um fenómeno conhecido por offshoring de postos de trabalho. Em 2020, a China e a Índia produzirão 40% do total dos talentos graduados do mundo e, em cinco anos, 40% de todos os estudantes serão originários destes dois países (Heslop, 2014). Com o fenómeno de transferência de tecnologia, maior qualificação dos recursos humanos, disponibilidade financeira, investigação e inovação, não tardou a aparecer nos países emergentes a autonomização dos seus processos produtivos, liderando alguns sectores mundiais, e o aparecimento de marcas próprias. Neste momento a Índia é o segundo exportador mundial de serviços informáticos e software do mundo (22% do total), graças ao desenvolvimento de empresas como a Tata Consultancy Services, Wipro ou a Infosys, incluindo um centro tecnológico de elevado excelência em Bangalore (Carroué, 2012: 44). As marcas indianas Tata Motores, a Mahindra, AvtoVAZ russa ou a Geely chinesa são exemplos de sucesso no sector automóvel. Este fabricante chinês, para além de possuir marca própria, em 2010 adquiriu a sueca Volvo, reforçando o seu poder no mercado global. Para além das marcas já referenciadas, no quadro geral dos BRICS, podemos ainda destacar a poderosa empresa brasileira Gerdau no setor da metalurgia, a chinesa Lenovo, segunda fabricante mundial de computadores, a Petrochina, potência na refinaria de combustíveis ou a russa Gazprom, na produção de gás. Em toda esta dimensão económica, mais do que nunca, confirma-se que as fronteiras da economia mundial estão esbatidas, e o protagonismo de atores no espaço internacional deixou de ser a expressão de uma só parte.

O envolvimento chinês no projeto político dos BRICS Embora alguns analistas considerem a relação China-BRICS como pouco relevante, o grupo tem vindo a servir como plataforma de afirmação política para Pequim, em que todos os seus membros acabam por beneficiar das dinâmicas emanadas pelo poder coletivo. A China precisa do apoio das outras potências emergentes, na construção de uma nova ordem internacional, novas instituições e na sua importante relação com o “norte”. Só assim conseguirá tornar-se uma verdadeira potência política de afirmação global. Os BRICS acabam por ser um grupo que estabelece diálogos em várias frentes diplomáticas, incluindo o G20, a ONU, ou a OCX Organização Para a Cooperação de Xangai. Será através deste grupo que a China terá maiores hipóteses de tentar reformar as instituições financeiras internacionais e o processo de decisão das mesmas. A crise financeira internacional tem sido uma oportunidade para Pequim exigir mais direitos, quotas e votos para si, como para os outros países em desenvolvimento (Panda, 2013: 67-68). É neste contexto que a relação de Pequim com os BRICS aparece indicada como um dos “quatro pilares da diplomacia multilateral chinesa” no relatório do XVIIIº Congresso do Partido, em novembro de 2012, um dos documentos oficiais mais importantes do país (os outros três pilares são a ONU, o G20, e a Cooperação de Xangai Organização) (Pang, 2014). Além disso, os líderes políticos chineses, incluindo o Presidente Xi Jinping, têm vindo a elogiar publicamente a importância do grupo nas dinâmicas de cooperação intergovernamental. Em 2013, no final do quinto encontro, em Durban, o Presidente chinês no seu discurso oficial ex-

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Quadro representativo do crescimento exponencial dos países dos BRICS, em especial a China, comparativamente ao crescimento mundial.

pressou a “confiança no futuro desenvolvimento dos BRICS” e apresentou algumas sugestões aos líderes de negócios. Enalteceu o facto de em 2011 o comércio intra-BRICS ter excedido 320.000 milhões dólares, 6 vezes mais do que 10 anos antes (CCTV, 2013). A justificar também o interesse de Pequim neste organismo é a existência de inúmeros institutos de pesquisa para estudar os BRICS, os quais são patrocinados e financiados pelo Governo chinês, produzindo muitos relatórios e trabalhos de investigação sobre o assunto (Pang, 2014). De forma generalizada reconhecem-se vantagens nos seguintes domínios: ganhos económicos e comerciais; a internacionalização do yuan (RMB); o aumento o poder de voto nas instituições financeiras internacionais; a permanência do estatuto país em desenvolvimento; interesses geopolíticos e geoestratégicos e o aproveitamento da rede de interações diplomáticas. Desde logo, destaca-se a possibilidade da

participação do Império do Meio nos grupos possa trazer um aumento das trocas comerciais. A verdade é que a RPC é responsável por 67 por cento do comércio deste grupo com o resto do mundo, para além de corresponder a 85 por cento de todo o comércio intra-BRICS. Não é surpreendente porque a economia deste país seja responsável por cerca de 55 por cento do total do PIB dos BRICS, pois atualmente é a maior potência comercial do mundo, quando em 1993 ocupava o 11º lugar (Gipouloux, 2005: 187). O peso da economia chinesa nos restantes membros é enorme, sendo o principal parceiro comercial da Rússia, do Brasil, da África do Sul e o segundo maior da Índia (China Daily, 2013). Por outro lado, como voz ativa do mundo em desenvolvimento e ator mais dinâmico do grupo dos BRICS, a China tem aspiração de utilizar a sua moeda nas transações no mundo em desenvolvimento. Para isso precisa de convencer os outros parceiros das economias emergentes

sobre o valor e vitalidade do yuan (RMB) enquanto procura diversificar os fluxos desta moeda no plano internacional. É neste quadro que se inclui também a criação de um Banco de Desenvolvimento dos BRICS e um fundo de reservas para situações de auxílio financeiros entre os membros do grupo, um plano que beneficia a internacionalização da moeda chinesa. Dado que os BRICS são compostos por países dispersos por vários continentes, este desiderato permite promover o yuan no espaço internacional (RMB), que será uma força adicional a pressionar o sistema financeiro do globo. Em terceiro lugar, apesar de ser a segunda maior economia do mundo, um ator político de relevo e um doador internacional, a China pretende manter-se classificada como uma nação em “desenvolvimento”. Há uma clara intenção de Pequim em manter a sua “identidade” política, o que lhe facilita o diálogo com as potências ocidentais. Os seus interesses nacionais, ao estarem sintonizados com o mundo em de-

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senvolvimento, serão maximizados pelo apoio solidário dos outros países emergentes. Finalmente, destacam-se também os “interesses relacionais”, isto é, a tentativa de aumento do “poder social” através da rede de ligações aos outros países emergentes (Xun, 2014). Esta capacidade está relacionada com o conceito de “poder relacional” de Joseph Nye, que em última análise, é o poder privilegiado de aceder a recursos materiais e imateriais através da rede de con-

tactos. Em suma, temos de considerar os BRICS como uma importante plataforma estratégica para os interesses políticos e comerciais da China. É sabido que o Império do Meio tem pouca apetência para a criação de alianças estratégicas com outros atores, ao contrário, por exemplo, dos Estados Unidos. Neste sentido, numa lógica de que “a união faz a força”, Pequim pode reforçar o seu peso no espaço internacional. Ao contrário da OCX, cujo foco estratégico é totalmente regional, o grupo BRICS tem uma abrangência global, com

capacidade de envolvimento de atores de todos os quadrantes geográficos. Por outro lado, em contraste com o G20, este grupo não inclui potências ocidentais e a agenda não é definida pelos interesses de governação económica global. O grupo permite uma focagem nos interesses específicos do mundo em desenvolvimento, beneficiando das redes que se estabelecem entre os seus membros. O caminho está traçado e já poucos podem negar que a grande aspiração de Pequim, mesmo que não pareça, é de se tornar a grande potência global.

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