A CHINA VISTA ATRAVÉS DOS OLHOS DE UM OCIDENTAL (2014

May 22, 2017 | Autor: P. Ferreira | Categoria: China, China studies
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Pedro Tiago Ferreira

A CHINA VISTA ATRAVÉS DOS OLHOS DE UM OCIDENTAL (2014) O presente trabalho é uma recensão crítica ao documentário de autoria de Michelangelo Antonioni, intitulado Chung-Kuo/Cina. O documentário em apreço debruça-se sobre a realidade chinesa da década de 70 do século XX. Utilizando como técnica a captação de filme de duas metrópoles chinesas – Pequim e Xangai – e de algumas zonas rurais e industriais, o narrador tenta produzir um retrato o mais fidedigno possível da realidade chinesa, ao mesmo tempo que complementa a informação que é visualmente transmitida ao espectador através de algumas anotações históricas, com o intuito de contextualizar e conferir um melhor entendimento da realidade contemporânea. Começando na Praça da Paz Celestial, o narrador esclarece que não é sua intenção compreender a China, apenas coleccionar rostos, gestos e costumes. Com efeito, parece-nos que um trabalho de âmbito documental terá precisamente este último aspecto por função; caberá aos críticos laborar no sentido de efectuar esse aludido esforço de compreensão. Para tal, julgamos ser necessário efectuar a seguinte advertência prévia: nenhum esforço interpretativo pode ser efectuado contra um ideal de perfeição independente de idiossincrasias formadas através de costumes e crenças, incutidas pela sociedade onde um individuo nasce e é criado, e da qual faz parte. Assim sendo, qualquer tentativa de compreensão da realidade chinesa terá que ser feita contra uma outra realidade, necessariamente a do autor destas linhas, que é a europeia. Isto dito, tal não significa que uma das realidades seja, objectivamente, superior (e correlativamente inferior) à outra, pelo simples motivo de que tal não é possível de aferir, objectivamente. Restam por isso apreciações subjectivas, sendo que o trabalho crítico a ser elaborado terá, necessariamente, que se guiar por propósitos comparatistas. Este trabalho assenta em quatro traves-mestras, às quais correspondem as seguintes perspectivas: 

Político-social.



Jurídica.



Económica.

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Cultural.

Estas quatro perspectivas, bem presentes ao longo de todo o documentário, são, entre si, incindíveis, pelo que, ao longo da presente recensão, analisá-las-emos sempre em conjunto, apoiando-nos em exemplos fornecidos pelo próprio documentário, que as explora de forma extremamente elucidativa e eficaz. O documentário fornece, conforme acima mencionado, uma perspectiva geral da sociedade chinesa dos anos 70 do século XX, consubstanciada nas quatro perspectivas que nos propomos doravante analisar. Contudo, uma quinta perspectiva, a histórica, desempenha igualmente um papel importante na compreensão das razões que conduziram ao contemporâneo estado de coisas, embora esta última perspectiva seja apenas e só fornecida pelas palavras do narrador (obviamente, não o poderia ser de outra forma) acerca de alguns locais históricos que são visitados, tais como antigos locais de veneração e a casa onde se fez a primeira reunião do Partido Comunista. Acaba, desta forma, por ser uma perspectiva subsidiária das outras quatro, estas sim bem presentes ao longo de todo o documentário, e que pode ser resumida pelas palavras que já lhe dedicámos (é referida em locais de veneração e a propósito da casa da primeira reunião do Partido Comunista; preferimos integrar as palavras que são ditas a propósito do pensamento de Mao Zedong na perspectiva cultural sem prejuízo de, evidentemente, tal também ser uma questão histórica). Partindo da perspectiva político-social, o documentário mostra, de uma forma muito clara, que o controlo do povo é feito a partir da ideologia, e não tanto através da força e do medo, conforme se passava nas ditaduras europeias (basta pensar em Mussolini, Hitler ou Franco para se observar que não era a ideologia, que estava sem dúvida presente na cabeça dos governantes, que controlava o povo, mas sim técnicas de governação às quais corresponde a designação "terrorismo de Estado"). O povo chinês é, pelo contrário, subserviente, não por ter terror dos seus governantes, mas sim pela simples razão de que valores colectivistas e utilitaristas lhes são incutidos desde a mais tenra idade, conforme o documentário expõe nas cenas em que as crianças cantam canções de cariz ideológico, o que acaba por entroncar na perspectiva cultural: ao contrário do que se passa no Ocidente, em que a sociedade surge como meio de realização pessoal do indivíduo, na China (e um pouco por toda a Ásia) a cultura dominante é a de que o indivíduo é que está ao serviço da sociedade, e não esta ao

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serviço do indivíduo. O indivíduo existe para realizar a sociedade, para mantê-la e permitir-lhe que prospere. Tal concepção cultural reflecte-se no Direito chinês, visto que o controlo de um povo através da ideologia implica a criação de mecanismos jurídicos que legitimem e permitam essa forma de controlo. Os valores colectivistas, que são necessariamente culturais, são incutidos com o auxílio de regras de Direito, e.g. as que limitam o valor das rendas a pagar em função do salário obtido, ou as que regulam esse próprio salário que, sendo baixo, é suficiente para as despesas da vida, para além de que é tendencialmente igualitário. Conforme é referido no documentário, os chineses são pobres, mas não são miseráveis. Um sistema que ofende os mais elementares aspectos do princípio da autonomia privada (que consiste, basicamente, no facto de que, dentro dos limites da lei, os particulares são livres de celebrarem os negócios que quiserem nos termos que bem entenderem), tão caro aos sistemas jurídicos, culturas, economias e sociedades do Ocidente, acaba por criar uma sociedade igualitária, dado que ninguém tem mais do que outrem, sem luxúria nem miséria, quase como que uma utopia salomónica onde os bens são equitativamente repartidos por todos, não havendo espaço para a ganância ou a inveja. Tal só se consegue com um equilíbrio bem gizado entre as necessidades humanas básicas e as necessidades da sociedade, com uma cultura que incute um colectivismo exacerbado nas mentes de todos a partir da mais tenra idade, tudo isto regulado pelo Direito e pela economia de forma a obter um controlo políticosocial do povo através da ideologia, com a vantagem clara de minimizar o risco de rebelião uma vez que, apesar de viver com dificuldades, o povo não se sente oprimido, conforme o demonstra os seguintes exemplos, retirados do documentário: 

Os trabalhadores das fábricas, em Pequim, vivem nas próprias fábricas, eliminando custos de deslocação, para além de que as escolas, para os filhos, estão localizadas em terrenos contíguos.



Em Xangai, são as próprias fábricas que oferecem transporte para os seus trabalhadores.



Nestas duas zonas industriais, o horário de trabalho é de oito horas diárias, igual, por exemplo, ao que acontece em Portugal.



Os trabalhadores têm folgas para descomprimir, onde podem falar de arte e de literatura, ou até mesmo de assuntos políticos (desde que não ponham o regime em causa).

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O sentido colectivista que governa toda a sociedade chinesa, e que se manifesta político-socialmente, juridicamente, economicamente e culturalmente, está igualmente presente nas zonas rurais. O documentário mostra como estas funcionam, embora em ponto pequeno, na mesma linha das suas contrapartes citadinas. Nas zonas rurais, o Comité Revolucionário funciona simultaneamente como legislador e tribunal, criando regras e resolvendo disputas, paralelamente ao que sucedia nos primórdios da civilização, onde a comunidade era muito pequena e fechada em si mesma, permitindo a existência eficaz de um sistema de auto-regulação. O sentido do colectivismo continua aqui emprenhado, pois todos trabalham tendo como objectivo o bem comum e é, inclusive, necessário, conforme é referenciado no documentário, que quem queira sair da aldeia solicite autorização. O documentário revela um dos poucos casos de dissenso entre o colectivismo absoluto incutido na população e o acatamento, por parte desta, desse mesmo colectivismo. Referimo-nos ao mercado clandestino, cuja economia paralela permite a quem nele participe angariar alguns fundos extra. O narrador refere que, apesar do regime não gostar, nada faz de muito efectivo para acabar com esta situação, o que bem se compreende: estes actos não põem em causa nem a autoridade, nem a continuidade do regime. O dinheiro extra que ali é ganho não contribui para uma alteração substancial da qualidade de vida do povo e, por isso, os indivíduos não se podem dar ao luxo de deixar de pensar em trabalhar para começar a divisar formas de derrubar o regime – apesar de posto em termos algo simplistas esta é, cremos, a linha de raciocínio dos governantes chineses. Este acaba por ser o grande segredo do sucesso do regime: coíbe o povo de pensar em rebelar-se criando condições duras de vida, que obrigam a muito trabalho, mas que, apesar de tudo, não passam aquele ponto em que a razão humana é forçada a dizer “basta!” e a procurar uma solução para a tirania. É através deste delicado equilíbrio que o status quo se vai mantendo, pois a população não vê razões para sublevar-se, uma vez que não se sentem completamente oprimidos, apesar das suas duras condições de vida. É-lhes incutida a noção de que a vida é dura, mas não há outra forma de sobreviver pois, desde que se trabalhe, haverá comida na mesa e roupa para se vestir. Em suma, o documentário ilustra bem a razão pela qual é difícil compreender a China: alguns dos direitos fundamentais dos cidadãos são-lhes coarctados, mas a verdade é que a sociedade, considerada no seu todo, funciona, e funciona bem, sem 4

problemas de maior. Aqui impõe-se uma questão: como é que tal é possível tendo em conta os vários exemplos de opressão a que estão sujeitos? É precisamente neste ponto que entra a relativização da formulação de opiniões; os chineses são “oprimidos” tendo em conta o significado que esta expressão adquiriu no Ocidente, à luz de instrumentos jurídicos como a Convenção Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e as diversas Constituições de Estados de Direito ocidentais, onde são direitos fundamentais, entre outros e a título exemplificativo, o direito ao trabalho, à constituição da família, à liberdade religiosa e de opinião, etc. O direito ao trabalho compreende não só a não discriminação em razão da idade, raça, sexo, crenças, etc., mas também a liberdade de estipular condições salariais e a duração do horário de trabalho (sem prejuízo das limitações quanto ao salário mínimo e ao tempo máximo do horário de trabalho, criados de forma a não se “oprimir” o trabalhador); a liberdade religiosa e de opinião, ao contrário do que sucede na China, não é uma liberdade onde apenas se possa dizer tudo o que se quer desde que tal não ponha em causa o regime instituído. Quanto à constituição da família, apesar do documentário não abordar este aspecto, dado que foi feito em 1972, a questão da política do filho único, que foi introduzida em 1979, entra imediatamente em foco quando estas questões são abordadas, política essa que seria impensável à luz do estádio actual do pensamento ocidental. Quando se diz que os chineses são “oprimidos”, tal é dito tendo como termo de comparação a realidade ocidental – o que é absolutamente correcto, visto que, conforme mencionamos supra, não existem termos de comparação independentes de alguma concepção político-ideológica, qualquer que esta seja. No entanto, não será difícil demonstrar que, tendo por base a cultura chinesa, e não a ocidental, os chineses sentirse-ão muito pouco oprimidos. Todos entendem que a liberdade religiosa e de opinião tem como limites extrínsecos a segurança do regime. Pôr em causa o regime, ou juntar-se a seitas religiosas que tenham como objectivo derrubá-lo, põe em causa o colectivismo. A grande maioria da população não se sentirá, por via dos valores que desde muito cedo lhes são incutidos, oprimida por não poder criticar o sistema, e acaba por viver bem com essa “opressão”. Quanto às questões laborais, os cidadãos dificilmente se poderão sentir oprimidos quando a lei prescreve que a renda não pode ser superior a 5% do salário, 5

conforme é mencionado no documentário, e quando os empregadores, regra geral, fornecem a habitação ou o transporte para o trabalho, para além de que é garantido que as crianças vão para uma escola perto de casa ou do local de trabalho. Por tudo isto, faz todo o sentido aquela frase inicial do narrador, em que diz não pretender compreender a China, apesar das opressões, da perspectiva ocidental, a que a população está sujeita, dado que eles, apesar de oprimidos, não vivem em miséria, têm sempre comida na mesa e roupa para vestir. Um último argumento poderia aqui ser invocado de forma a justificar a superioridade moral do estilo de vida ocidental em relação ao oriental: o primeiro, por ser centrado no indivíduo, busca um ideal de felicidade, ao passo que o segundo, por ser centrado na sociedade, busca aquilo a que chamaríamos um ideal de prosperidade; a felicidade do indivíduo não é algo que entre nas opções políticas ali efectuadas. Esta proposição é atractiva e, tendencialmente, é isso que sucede, ou seja: o ideal de vida ocidental é, de facto, um ideal de felicidade, ao passo que o ideal de vida oriental é, acima de tudo, utilitarista. Contudo, o sistema jurídico-político ocidental é baseado na autonomia privada do indivíduo, subordinado à ideia de que a este têm que ser dadas condições para procurar a sua própria felicidade. Tal concepção leva, inevitavelmente, ao surgimento de assimetrias na sociedade, uma vez que, tanto no ocidente como no oriente, os recursos disponíveis são limitados, e quantos mais recursos forem afectados a um indivíduo menos sobram para os restantes. A autonomia privada leva a que os negócios possam ser livremente concluídos, dentro dos limites da lei e, como o mau negócio não é proibido, bastas vezes sucederá que o bom negócio de uns é a outra face do mau negócio de outros. Uma vez que cada um, no Ocidente, é livre de estudar e enveredar pela carreira profissional que lhe aprouver, o potencial de felicidade e riqueza é imenso, mas o risco de falhar é proporcional a esse mesmo potencial. A conclusão a retirar é óbvia: o risco de pobreza, até mesmo de miséria, e de infelicidade é, no Ocidente, tão grande quanto a possibilidade de felicidade e riqueza. Ao cortar cerce a autonomia privada do indivíduo, estados comunistas como a China asseguram, desde logo, que o risco de miséria seja mínimo, na medida em que aos cidadãos não lhes é concedida autonomia privada para celebrarem os negócios que quiserem, para além de que os salários são equilibrados entre as várias profissões, o que leva a que os recursos sejam igualitariamente distribuídos por todos. Por tudo isto, vale a pena reflectir acerca da forma como as coisas são feitas no Oriente, dado que, se o objectivo primordial do ser humano for a sobrevivência, e não 6

tanto a felicidade, porventura os orientais terão uma acção política extremamente adequada a esse efeito. De facto, se a sociedade for constituída por membros abnegados, que procuram somente sobreviver ao invés de buscarem riqueza pessoal, em busca de uma pretensa felicidade – que levará a que a sua felicidade encurte a felicidade de outrem – mais dificilmente a sociedade entrará em colapso, e ainda mais dificilmente teremos situações de miséria pura, conforme o documentário se encarrega de demonstrar.

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