A CIDADANIA COMO MERCADORIA

June 28, 2017 | Autor: Vitor Soares | Categoria: Media Studies, Radio, Sociology of Literature
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A CIDADANIA COMO MERCADORIA O ESPAÇO PÚBLICO NA RÁDIO DO SÉCULO XXI

Vítor Soares

Título: A CIDADANIA COMO MERCADORIA – O Espaço Público na Rádio do Século XXI Edição e paginação: Vítor Soares Capa e impressão: Bubok Publishing S.L. [email protected]

La noción de ciudadanía económica es sumamente compleja pero, a mí juício, se despliega fundamentalmente en tres lados: es ciudadano económico quien participa de los bienes económicos de una comunidad política, quien decide junto con sus conciudadanos “qué se produce”, como y para qué, y, por último, quien decide junto com sus ciudadanos “qué se consume”, “para qué” y “quién consume”

Adela Cortina

Radio’s public, forged at the intersection of an emergent consumer culture and residual notions of the liberal public sphere, combined elements of both of these modes of publicity.

Jason Loviglio

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO………………………………………….…………...……1 1.

ESQUIÇO DO PROJECTO…................................………….……..3

1.1.

A RÁDIO COMO ESPAÇO PÚBLICO…………………………….……….…………...4

1.1.1. Interacção e Interactividade…………………………………………...…………………….……6 1.1.2. Interacção e consumo…………………………………………………..…………………………8 1.1.3. O Fórum como paradigma da interacção na rádio………………………….……….…………9

1.2.

2.

OBJECTIVO DA INVESTIGAÇÃO……………………………………….…….…..….10

MOLDURA TEÓRICA……………………………..……………….13 2.1.

CIDADANIA E LEGITIMIDADE POLÍTICA……………………….………….………13

2.1.1. Do público à esfera pública …………….……………………………………………………...13 2.1.2. Opinião pública e sociedade civil…………………………………………….………………...15 2.1.3. Modelos de Espaço Público ………………………………………………..……………….....17 2.1.4. Habermas e a democracia deliberativa……………………………………….…………........21 2.1.5. Limitações da deliberação……………………………………………………..………………..25

2.2.

TRANSFORMAÇÕES DO ESPAÇO PÚBLICO…………………………………….. 28

2.2.1. Mudanças tecnológicas na migração para o digital………………………………….……......28

2.2.1.1. A tecnologia e a hegemonia simbólica………………………………..…………………......…...…...30

2.2.2. A mediatização…………………………………………………………...……………….……….32 2.2.2.1. Emissores activos, receptores passivos?......................................................................................40 2.2.2.2. Assimetrias entre emissores e receptores…………………….……………………………........……42 2.2.2.3. A visibilidade pública através dos media……………………………………………………........……44 2.2.2.4. Espaço Público e espaço mediático…………………………………………………………........…...45 2.2.2.5. Media e opinião pública.……………………………………………………………………...…...….....47 2.2.2.6. O papel central dos media………………………………………………………………...….…...…….49 2.2.2.7. Públicos e audiências………………………………………………………………………….......…….50 2.2.2.8. Mediação e mediatização………………………………………………………………….....…......…..51

2.2.3. A fragmentação social e cultural……………………………………………………………..….54

2.2.3.1. Espaço Público ou Espaços Públicos?.........................................................................................54 2.2.3.2. Novas articulações público/privado……………………………………………………….....….....…..56 2.2.3.3. Fragmentação do Espaço Público e segmentação de formatos……………………….........……..58

2.2.4. A generalização do consumo……………………………………………………………….…..61

2.3.

2.2.4.1. O valor simbólico das mercadorias……………………………………………………....……...….….62 2.2.4.2. Os media entre o político e o económico…………………………………………………….........…..63 2.2.4.3. A economia política dos media………………………….……………………………………...…....…65 2.2.4.4. O Mercado e os conteúdos na rádio…………………….…………………………………........…….67 2.2.4.5. O Mercado como Espaço Público……………………………………………….……….…...…...…..70

CIDADANIA E CONSUMO………………………….…………………….…..............71

2.3.1. A cidadania como um conceito dinâmico…………………………………………….….…….72

2.3.1.1. Da cidadania civil à cidadania global……………………………………………………....….....…….74 2.3.1.2. Cidadania económica…………………………………………………………………………......….….75

2.3.2. A estruturação da identidade………………………………………………………….…….…..76 2.3.2.1. Identidade e consumo……………………………………………………………………….……..........77 2.3.2.2. Consumo e estilo de vida……………………………………………………………………....…...…...79 2.3.2.3. Uma teoria sócio-cultural do consumo……………………………………………………......….…....80 2.3.2.4. Identidade e reconhecimento…………………………………………………………………......….…81

2.3.3. Consumo e política………………………………………………………………..……………..84

2.3.3.1. Cidadãos e consumidores……………………………………………………………………........……85 2.3.3.2. O consumo como estratégia política.…………………………………………………….…......….….86 2.3.3.3. O consumismo político………………………………………………………………………….......…...88 2.3.3.4. Ética e consumo…………………………………………………………………………………..….......89

2.3.4. A razão e a emoção na cidadania e no consumo…………………………………….………90

2.3.4.1. O adeus à razão pura………………………………………………………………………….….…......91 2.3.4.2. Consumo racional, cidadania irracional……………………………………………………......…...…91 2.3.4.3. Os limites da comunicação racional no Espaço Público…………………………………......…...…93

3.

DESENHO METODOLÓGICO……………………..….…………….97

3.1. 3.2. 3.3. 3.4.

4.

OS SUJEITOS………………………………………………………………….………...97 OS INSTRUMENTOS………………………………………………………….………...99 OS PROCEDIMENTOS……………………………………………………….…….....101 A ORGANIZAÇÃO DOS DADOS…………………………………………...………..102

PALETA DE RESULTADOS…………………….…….………......105

4.1. 4.2.

RESULTADOS ORDENADOS POR HIPÓTESES…………………………………..106 RESULTADOS ORDENADOS POR INDICADORES…………………..............….108

4.2.1. Indicadores da dimensão cívica……………………………………………………..........……108 4.2.2. Indicadores da dimensão pessoal………………………………………………..............……110 4.2.3. Indicadores da dimensão económica………………………………….………..……..……….113

CONCLUSÃO…………………………………….………….………...117 REFERÊNCIAS…..………………………………………...................121 ANEXO 1 – RESPOSTAS GLOB. (NºS. AG.) AO INQUÉRITO A 103 PARTICIPANTES DO FÓRUM TSF..131 ANEXO 2 – RESPOSTAS GLOBAIS (EM %) AO INQUÉRITO A 103 PARTICIPANTES DO FÓRUM TSF..132 ANEXO 3 – 52 RESPOSTAS (NºS AG.) AO INQUÉRITO A 103 PARTICIPANTES DO FÓRUM TSF…….133 ANEXO 4 – 51 RESPOSTAS (NºS AG.) AO INQUÉRITO A 103 PARTICIPANTES DO FÓRUM TSF…….134 ANEXO 5 – 52 RESPOSTAS (EM %) AO INQUÉRITO A 103 PARTICIPANTES DO FÓRUM TSF……….135 ANEXO 6 – 51 RESPOSTAS (EM %) AO INQUÉRITO A 103 PARTICIPANTES DO FÓRUM TSF……….136 ANEXO 7 – ELEMENTOS DE CARACTERIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA DA TSF…………….....................137

Índice de figuras Figura 4.1 – Correlação entre indicadores da dimensão cívica na cidadania e da dimensão cívica no consumo…107 Figura 4.2 – Correlação entre indicadores da dimensão cívica na cidadania e da dimensão cívica na interacção.107 Figura 4.3 – Correlação entre indicadores da dimensão cívica no consumo e da dimensão cívica na interacção..108 Figura 4.4 – Correlação entre duas perguntas relativas ao indicador da dimensão pessoal da cidadania………...109 Figura 4.5 – Correlação entre indicadores da dimensão pessoal na cidadania e da dimensão pessoal no consumo…………………………………………………………………………………………………………110 Figura 4.6 – Correlação entre indicadores da dimensão pessoal no consumo e da dimensão pessoal na interacção……………………………………………………………………………………………………….110 Figura 4.7 – Correlação entre indicadores da dimensão económica na cidadania e da dimensão económica na interacção…………………………………………………………………………………………………...111 Figura 4.8 – Correlação entre indicadores da dimensão económica na cidadania e da dimensão económica no consumo e na interacção………………………………………………………………………………….112 Figura 4.9 – Correlação entre indicadores da dimensão económica na cidadania e da dimensão económica na interacção…………………………………………………………………………………………………...112

Índice de quadros Quadro 3.1 – Questionário aos participantes do Fórum TSF…………………………………………………………97/98 Quadro 3.2 – Esquema do procedimento para a análise dos dados…………………………………………………...100 Quadro 3.3 – Modelo de análise da investigação…………………………………………………………………………102 Quadro 4.1 – Resultados do questionário aos participantes do Fórum TSF………………………………………..…103 Quadro 4.2 – Resultados globais dos indicadores da dimensão cívica………………………………………………...106 Quadro 4.3 – Resultados globais dos indicadores da dimensão pessoal………………………………………………108 Quadro 4.4 – Resultados globais dos indicadores da dimensão económica………………………………………......111

Agradecimentos A primeira palavra de agradecimento vai para o Prof. João Carlos Correia que, desde a primeira hora, não deixou de estimular este projecto, apontando virtualidades onde havia dúvidas, garantindo a sustentação das grandes coordenadas teóricas, e prestando uma ajuda inestimável no desbravar dos caminhos da investigação. Devo confessar que a dialéctica suscitada por aquilo que considerei, por vezes, um excessivo optimismo do Prof. João Carlos Correia, nas capacidades emancipatórias dos modelos participativos no Espaço Público, constituiu um tónus suplementar para as minhas pesquisas pessoais e acabou por ajudar a consolidar as traves mestras da investigação. Ao Prof. Jesús Timoteo Álvarez ficarei eternamente devedor da lição de sapiência proferida durante o seminário curricular a que tive o privilégio de assistir, em Lisboa, em Fevereiro de 2005. A convicção e o entusiasmo com que se apresentou aos doutorandos forneceram o alento necessário para levar por diante este Programa Doutoral e as pistas teóricas, então abertas, ajudaram a estruturar o objectivo e o modelo desta investigação. Também não posso deixar de mencionar o contributo inestimável do Carlos Andrade, velho amigo e companheiro de lides radiofónicas e jornalísticas e exdirector da TSF. Sendo, na altura, o director-geral de publicações da empresa proprietária daquela emissora foi ele quem desbloqueou os contactos com a direcção da rádio permitindo, desse modo, que viesse a ser aplicado o inquérito aos participantes do Fórum. Ao Manuel Acácio, coordenador do programa, retribuo a cordialidade sempre demonstrada e à Fernanda Oliveira, a assistente de produção, agradeço o empenho que teve na sensibilização dos ouvintes para a participação no inquérito. À Marktest devo a solicitude e a prontidão com que me facultaram os elementos de caracterização da audiência da TSF, o que me permitiu estabelecer um termo comparativo com as variáveis sócio-demográficas da minha pequena amostra. Last but not least, quero também deixar uma palavra de agradecimento a todos aqueles que, não cabendo aqui nomear, constituíram um factor decisivo para a concretização deste projecto. Aos contributos e incentivos de uns devo profundo reconhecimento. A indiferença ou dificuldades criadas por outros serviram de estímulo suplementar para o processo de auto-galvanização sem o qual uma investigação deste tipo ficaria, irremediavelmente, comprometida.

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INTRODUÇÃO

A relação entre a prática cidadã e o consumo dos media é, ainda hoje, olhada com pudor. E a articulação entre o Mercado e o Espaço Público é uma quase blasfémia para quem sustenta a absoluta indissolubilidade entre consumidores e cidadãos. E pur si muove! Na actual sociedade de informação, uma nova prática cidadã interage directamente com a cultura do consumo através de um modelo de convivência que gera um novo paradigma de cidadania e que transforma o receptor em produtor. A interactividade técnica proporciona o ponto de encontro entre estas duas entidades, dando resposta ao anseio de participação das audiências e dos públicos em convergência com os interesses da indústria dos media, cujo objectivo é comercializar toda a espécie de mensagens simbólicas e não simbólicas. Está, assim, estabelecida a ponte entre a cidadania e o consumo. Entre o Mercado e o Espaço Público. Concretamente, na rádio, os fóruns representam um novo paradigma de interacção que está a ganhar cada vez mais espaço no processo produtivo, uma vez que tal formato consegue ser realizado com baixos custos. A elaboração do presente trabalho teve em vista conseguir uma aproximação ao conhecimento do que está subjacente aos processos interactivos na rádio, numa altura em que estes vão adquirindo cada vez maior expressão. Partindo do pressuposto, apoiado pela generalidade das contribuições teóricas, de que a rádio, tal como os outros media, integra o Espaço Público contemporâneo procura-se, no primeiro capítulo, caracterizar a modalidade de participação discursiva mais recorrente em Portugal, ou seja, identificar o tipo de interacção social proporcionada pelos fóruns radiofónicos. Feito o apuramento do estado da questão conclui-se que as interrogações são mais do que as certezas, designadamente quanto à vinculação do consumo mediático aos desígnios da cidadania. A pergunta inicial ficou, então, assim formulada: Interacção para a cidadania ou para o consumo?

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No segundo capítulo, olha-se em detalhe para o quadro teórico que pode fazer luz sobre estas questões. Partindo do modelo de Espaço Público generalizado por Habermas, tentam detectar-se, através de olhares mais seguidistas ou mais críticos, as virtualidades e as insuficiências das teorias do pensador alemão. Com base numa variedade de autores, procura-se caracterizar as transformações por que tem passado o Espaço Público, decorrentes da evolução tecnológica e das mudanças comunicacionais e sócio-culturais ocorridas nos últimos anos. Na secção final deste segundo capítulo, olha-se mais em pormenor para as articulações emergentes entre cidadania e consumo. No terceiro capítulo, define-se a metodologia seguida na investigação e são inventariados os sujeitos, os instrumentos e os procedimentos adoptados para a investigação. São ainda explicitados os modelos de análise e as técnicas utilizadas no estudo. No quarto capítulo apresentam-se os resultados obtidos, ordenados por hipóteses e por indicadores, e faz-se uma primeira análise das inferências e das associações detectadas. Finalmente, a conclusão tenta sintetizar as principais correlações apuradas entre os conceitos em estudo, e procura esclarecer por que razão, na actual sociedade de informação, uma nova prática cidadã interage directamente com a cultura do consumo.

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1. ESQUIÇO DO PROJECTO

A interacção social, propiciada pela interactividade técnica, é um dos conceitos chave que deverá marcar a rádio no século XXI, consequência natural das rápidas transformações tecnológicas a que, já hoje, vamos assistindo (Cfr. Leonhard, 2006). Assim, para a rádio, ou o que dela resultar na migração para o digital – telefones móveis multimédia?, radiovisão?, rádio on-demand?, rádio pessoal? – parece indiscutível que os papéis do emissor e do receptor tenderão a confluir, num percurso que ocorre paralelamente à concentração e à convergência dos media (Cfr. Hendy, 2000: 48). As transformações tecnológicas em curso dão também resposta ao anseio de participação das audiências, numa altura em que se acentua o domínio do Estado e da Economia sobre a Comunicação Pública (Cfr. Esteves, 2005) e, por outro lado, se assiste à fragmentação do Espaço Público (Cfr. Correia, 2004). Ora, estes cenários poderão ter repercussões na qualidade da participação cívica, levando a que a interacção se dilua numa lógica de consumo, de produtos e serviços, mas também de mensagens políticas. Torna-se, portanto, essencial repensar o papel dos cidadãos/consumidores (Cfr. García Canclini, 2001) à luz de um Espaço Público cada vez mais distante do primitivo conceito habermasiano (Cfr. Habermas, 1994; Thompson, 1998), no qual os media desempenham um papel de centralidade, cada vez maior, na vida das sociedades democráticas (Cfr. Timoteo Álvarez, 2006). O meu interesse em estudar a interacção na rádio como Espaço Público surgiu, naturalmente, como corolário de uma carreira de três décadas de trabalho jornalístico, essencialmente dedicado a este medium. Aberta a possibilidade da investigação, através da concretização de um Programa Doutoral, e porque as pesquisas neste campo se têm dedicado sobretudo ao estudo da interacção strictu sensu, caracterizando modelos de programas e efectuando análises discursivas (ver Taborda, 2000), procurei, a partir de um estudo de caso, caracterizar as motivações dos participantes num fórum interactivo, pois, nos últimos anos, os estudos sobre as motivações das audiências na participação discursiva, em geral, e na deliberação 3

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pública, em particular, não têm sido conclusivos. Segundo uma revisão da literatura feita por Michael X. Delli Carpini, Fay Lomax Cook e Lawrence R. Jacobs: A number of questions seem ripe for more definitive answers. For example, what motivates people to engage in discursive participation and public deliberation? (…) How do such factors as socioeconomic status, gender, race, and education affect the decision to deliberate, the discursive experience itself, and the individual and collective impact of that experience? (…) How is deliberation (as both cause and effect) connected to other attitudinal and especially behavioral aspects of «good» citizenship? (Delli Carpini, Cook & Jacobs, 2004: 336-337). Deste conjunto de questões, interessa-me sobretudo uma aproximação de resposta à interrogação sobre a forma como as participações se ligam a outros comportamentos, especialmente, os relacionados com os aspectos de «boa» cidadania. Deste modo, torna-se essencial reunir no presente estudo os termos de um triângulo formado pelos conceitos de interacção, cidadania e consumo e nele inscrever as dimensões pessoal, cívica e económica de cada um daqueles conceitos.

1.1. A RÁDIO COMO ESPAÇO PÚBLICO

Ao longo da minha vida profissional pude testemunhar, empiricamente, situações de ouvintes com interesse genuíno numa participação nos assuntos públicos, a par de meras manifestações de preocupação individual ou de promoção social no acesso à antena. Também através de estudos científicos se comprova que, por vezes, a esfera pública não é entendida como um espaço de debate nem de confrontação de ideias, mas antes como um local de procura de visibilidade e de reconhecimento.Vai neste sentido a análise da participação dos ouvintes de rádio, na Cidade do México, feita em Ciudadanos Mediáticos pela antropóloga Rosalía Winocur (2002). Esta autora reflecte sobre o papel que a interacção na rádio está a ter na alteração das formas de conceber e praticar a cidadania, o que torna

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problemática a apreciação linear das modalidades de participação que aparecem, por vezes, como contraditórias. Dentro do contexto mediático das sociedades contemporâneas há um jogo de opostos que é recorrente: o público e o privado entrecruzam-se, muitas vezes com fronteiras difíceis de definir. Assim, a complexidade do Espaço Público criado pela rádio obriga-nos a repensar se o ideal habermasiano de uma esfera pública puramente racional e dialógica continua válido ou se, pelo contrário, a participação para a cidadania é uma simulação, uma mera encenação de participação no consumo, problemática bem levantada por Rosalía Winocur quando afirma que “los medios han descobierto que abrir los micrófonos y ponerse la camiseta de defensor del pueblo es un negocio redondo para obtener credibilidad.” (Winocur, 2002: 114). Todavia, segundo esta autora, “los espacios que ofrecen no dejan de ser alternativas válidas como foro de expresión, instancia de presión, difusión de sus necesidades y recurso de mediación frente a las autoridades.” (idem, ibidem). Ainda assim, a eficácia esperada é de natureza, sobretudo, simbólica: “las personas no esperan que la rádio solucione realmente los problemas; por su parte al medio tampoco le interesa averiguar qué desenlace tuvieran (…) Lo que importa para ambos es el factor publicidad.” (idem, ibidem: 201). Segundo Andrew Crisell (1994: 209), ouvir rádio é um exemplo vivido da chamada teoria dos usos e gratificações, consubstanciada naquilo que as pessoas fazem com os media – os usos que fazem deles e as satisfações ou gratificações que deles obtêm. David Hendy refere que muitos estudos identificaram quatro tipos de gratificações: “the need for a diversion from life’s routines, for companionship and social integration, for some sense of self-awareness, and some knowledge about events in the world” (Hendy, 2000: 133). Ainda segundo este autor, a essência da esfera pública é constituída pelo espaço aberto pelos media “in which opposing views can contend in the ‘marketplace’ of ideas and allow the public to reach informed opinions” (idem, ibidem, 209). Por esta razão, segundo David Hendy, os telefonemas para as talk-radios constituem uma parte da esfera pública contemporânea (idem, ibidem). Todavia, David Hendy conclui que as pretensões da rádio para ser um instrumento da democracia são um tanto inflacionadas uma vez que a esfera pública de debate é notavelmente imperfeita: “a discursive space where active participation is never easy, the language of argument is often more demagogic

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than democratic, and where the exigencies of production often lead to trivialization and simplification.” (idem, ibidem: 213). Uma das perversões da democracia é a demagogia e, no caso dos programas interactivos na rádio, o que, por vezes, sobra em interactividade falta em mecanismos de mediação. A instantaneidade e o carácter efémero da agora electrónica acabam por impossibilitar a afirmação de uma massa crítica consistente que enquadre e contextualize os enviesamentos mais ou menos conscientes, as trivialidades, boutades ou simplesmente disparates que hoje em dia chegam ao espaço público mediático, também fruto da generalização de comentadores e afins. A ideia que vinga é que nada é mais fácil do que ter opinião e toda a gente tem consistência moral, intelectual e cívica para comentar tudo e mais alguma coisa. Uma situação deste tipo foi descrita pelo escritor Pedro Mexia (2006), no seu blog Estado Civil, num post onde admitia que “há nos media um curioso mecanismo de reprodução e repetição: quem aparece umas vezes é logo convidado para dar a sua «opinião» sobre tudo e mais umas botas.” Conta Pedro Mexia que nos últimos tempos

o

convidaram

a comentar temas

como

o

Teatro

Nacional,

a

homossexualidade, a integração europeia, a colecção Berardo e o Código Da Vinci. O escritor declinou explicando que eram temas sobre os quais tinha opiniões banalíssimas de leitor de jornais. A sensação com que Pedro Mexia diz ter ficado é a de que as pessoas não se importam muito que as opiniões sejam banais e que não sejam validadas pelo conhecimento dos temas. O importante é que os comentadores sejam (supostamente) «conhecidos».

1.1.1. Interacção e Interactividade

Os termos interacção e interactividade aparecem utilizados na literatura ora como sinónimos, ora como complementares. Neste trabalho foi adoptado o conceito de “interacção” assumido enquanto interacção social, através da qual interagem os agentes sociais, e “interactividade” como sendo a interactividade técnica de um sistema comunicacional que possibilita essa mesma interacção. Como vimos anteriormente, as possibilidades abertas pela interactividade na rádio podem conduzir a uma avalanche de conteúdos e originar crises de mediação. Segundo João Carlos Correia, “este risco só pode ser ultrapassado através de uma 6

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compreensão de que a interactividade não substitui a interacção” (Correia, 2002). De resto, nos media electrónicos, a utilização da interactividade técnica pode redundar em limitações para a audiência. Pierre Bourdieu (2001) chamou-lhe “uma censura invisível” consubstanciada em “uma perda de autonomia ligada, entre outras coisas, ao facto de o tema ser imposto, de as condições de comunicação serem impostas e sobretudo de a limitação de tempo impor ao discurso coacções tais que se torna pouco provável que seja ainda possível dizer-se algum coisa.” (Bourdieu, 2001: 6). Por outro lado, embora as audiências possam ser activas ao emitirem as suas opiniões, não podem opinar cabalmente sobre factos cujo contexto muitas vezes lhes escapa. Por esse motivo chega a falar-se em ilusão participativa: “As sucessivas narrativas que se debruçam sobre a decadência do fenómeno político através da anomia social têm insistido na ideia de que os media desempenham uma ilusão participativa que acaba por afastar os cidadãos da verdadeira politica” (Correia, 2004: 207-208). Há ainda outra perspectiva a ter em conta, isto é, ao falarem, ao integrarem o Espaço Público, as audiências podem ficar «neutralizadas» se o processo interactivo funcionar como uma catarse para eventuais perturbações sociais: desemprego, exclusão, violência. David Hendy explica como os programas de antena aberta podem servir de antídoto para a realidade: “callers may illustrate through their declared experiences that life is tough, but the radio station’s own adverts will offer them the possibility of buying a better future” (Hendy, 2000: 149-150). Também Higgins e Moss, citados nas suas análises da talk-radio australiana por David Hendy, “have suggested that the medium tends to construct and impose a ‘pseudo-reality’ in a never-ending spectacle for its audiences. Callers to radio phone-ins have their views filtered through the dominant ideology of the programmes (…) foster a consumerist culture, ultimately disempowering the listener” (Hendy, 2000: 149). Desta forma, quer a interactividade, quer a interacção poderiam fazer parte de uma construção hegemónica para dar a ilusão de democracia e valorizar a ideia das audiências activas. Ou, recorrendo às palavras de João Carlos Correia, “busca-se, através da comunicação, uma sociedade que seja transparente perante si própria, um espaço público ideal onde todos tenham, em potência, a capacidade de tomar a palavra. Omitem-se, por vezes, as relações de poder inscritas no acto de interagir” (Correia, 2004: 144). Perante estas limitações, a convicção que fica é a de que “a interacção social não faz a democracia, mas sem a interacção, a democracia nunca 7

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seria possível (e a democracia deliberativa muito menos)” (Esteves, 2003: 194). Resta saber até que ponto a crise que atinge os mecanismos de mediação não converte o processo interactivo em mera intermediação, razão pela qual parece importante associar o estudo da interacção, em conjunto, com a cidadania e o consumo.

1.1.2. Interacção e Consumo Philip Elliot, citado por Michele Hilmes (2004), escreveu seminalmente em 1982: “The thesis I wish to advance is that what we are seeing and what we face is a continuation of the shift away from involving people in society as political citizens of nation states towards involving them as consumption units in a corporate world”. Segundo David Hendy, esta tese de Elliot vinha sendo desenvolvida, desde 1974, nas pesquisas sobre a teoria dos usos e gratificações, a partir da qual foram detectadas necessidades das audiências: “we should remember that radio might well be gratifying needs which it has in some sense helped to create” (Hendy, 2000: 146). Por isso se pode dizer que, tal como qualquer outro produto de consumo, a rádio também ajuda a criar necessidades que, posteriormente, trata de satisfazer. Seguindo o pensamento de David Hendy, na rádio, os dois processos, produção e consumo, não estão assim tão desligados: “As listeners, then, we are the coproducers of radio.We all create our own images in listening to radio” (Hendy, 2000: 145). Mas é preciso sublinhar que, neste caso, David Hendy está a referir-se aos diferentes significados que um mesmo «texto» radiofónico tem para diferentes ouvintes. Porém, para a indústria, a produção radiofónica ultrapassa, seguramente, o significado simbólico que tem para as audiências. Trata-se de “an industry-wide scale” (idem, ibidem: 148) que necessita de ser rendibilizada. Os fóruns interactivos constituem uma boa solução para esse desígnio na medida em que a rádio em directo é geralmente mais barata do que qualquer outra forma de produzir rádio: “Liveness, and its corollary, newness, therefore appeals both to radio’s need to distinguish itself from other media and to its goal of reducing costs” (idem, ibidem: 88). Na hora da opção dos fóruns como formato, este é um aspecto que a indústria não pode deixar de ter em conta.

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Ao discorrer, no seu livro Consumers and Citizens, como o consumo serve para pensar, Néstor García Canclíni tenta tirar consequências de tal situação: “I then go on to explore how received views of consumption and citizenship can change if they are examined in tandem, employing the analytical tools of economics and political sociology” (García Canclini, 2001: 20). Este autor justifica a opção pela análise conjunta da cidadania e do consumo com o crescimento vertiginoso das tecnologias audiovisuais de comunicação: “these very electronic media that catapulted the masses into the public sphere are responsible for channeling citizen activity toward consumption” (idem, ibidem: 23). Na perspectiva de García Canclini, o ideal de consumidor não seria apenas aquele que usa e usufrui dos bens que consome, mas aquele que os utiliza nas suas múltiplas possibilidades simbólicas para reflectir e com a sua actuação construir uma nova cidadania.

1.1.3. O Fórum como paradigma da interacção na rádio Em Portugal, no início do século XXI, a participação dos cidadãos ao nível da rádio está essencialmente orientada para os fóruns interactivos, os chamados programas “the expressive phone-in”, segundo a tipologia desenvolvida por Crisell (1994: 192), e nos quais se procura a expressão de pontos de vista privados sobre assuntos públicos. Crisell distingue ainda mais dois tipos de programas de antena aberta: “the exhibitionist phone-in”, onde o ouvinte é encorajado a projectar a sua personalidade e dos quais não há uma tradição de emissões sistemáticas na rádio portuguesa; o terceiro tipo, inventariado por Crisell, é designado por programa confessional ou “the confessional phone-in”, no qual o ouvinte relata os seus problemas perante o apresentador que se assume como um conselheiro. Algumas experiências marcantes de programas confessionais na rádio portuguesa ocorreram nos anos 80 e 90 do século XX com “O passageiro da noite” de Cândido Mota e “O postigo” de Fernando Alves. A distinção entre estes três tipos de programas de antena aberta não é, todavia, rígida. Crisell admite que os formatos se interpenetrem, podendo surgir intervenções confessionais em programas “the expressive phone-in” ou projecções exibicionistas em emissões confessionais. Em Portugal, os chamados fóruns, com uma componente maioritária de intervenções do tipo “the expressive phone-in”, são considerados 9

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como paradigmas da interacção social na rádio. O Fórum TSF, que faz parte do Espaço Público mediático desde há mais de uma década, foi o escolhido como objecto de análise do presente estudo.

1.2. OBJECTIVO DA INVESTIGAÇÃO

O objectivo da investigação visa determinar as motivações dos agentes sociais e as consequências da crescente interacção entre emissor e receptor, na rádio, no quadro da esfera pública ou Espaço Público. A pesquisa organizou-se de acordo com a problemática atrás enquadrada, isto é, tratava-se de saber se as transformações tecnológicas que se abrem (permitindo aos receptores colaborar na produção das emissões com a consequente redução de custos para os operadores) indiciam que a interacção social, propiciada pela interactividade técnica potenciada pelo digital, assegurará o primado da economia e entronizará o consumo (também de mensagens políticas) em detrimento da cidadania (vota-se como quem compra!). Ou se, pelo contrário, a participação das audiências, se bem que pensada a partir de uma lógica de rendibilidade económica, por parte da indústria, não deixará de ter repercussões na esfera pública. Com efeito, a dimensão da afirmação dos participantes, mesmo que seja por anseio de promoção social ou de visibilidade, pode acabar por ser relevante do ponto de vista político e obrigar a encontrar respostas novas para uma velha questão, ou seja, como articular, de um ponto de vista racional, o Mercado e o Espaço Público, o Consumo e a Cidadania. A procura dessas respostas deve passar pelo contributo de múltiplas formas de racionalidade e não deve excluir as emoções (Cfr. Goleman, 1996; Damásio, 1995). A principal hipótese aqui formulada foi a de que a cidadania e o consumo não são entidades arredias uma da outra, estão cada vez mais interligadas e, portanto, não devem ser colocadas em situação dicotómica (Cfr. García Canclini, 2001). À primeira vista, a interactividade técnica favorece, pura e simplesmente, o consumo. Porém, o “jogo” propiciado pela interacção dos actores sociais e económicos poderá acabar por incrementar o exercício da cidadania se o consumo passar a ser assumido como uma prática cívica, num Espaço Público alargado. A contribuição de interacções situadas já fora de uma estrita racionalidade dialógica 10

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poderá permitir a formação de uma opinião pública inserida num conceito de Espaço Público mais lato do que aquele que foi inicialmente pensado por Habermas e que esteve, entretanto, sujeito às transformações tecnológicas, à mediatização, à fragmentação social e cultural e à generalização do consumo. Assim, cidadania e consumo não têm de ser entendidos como conceitos rigorosamente dicotómicos. A retórica da pergunta inicial, saber se a interacção na rádio promove a cidadania ou favorece o consumo, pretende desencadear a reflexão e descortinar a pertinência de algum tipo de articulação entre as duas instâncias. Tendo, pois, a interacção como pano de fundo, foi estabelecido o seguinte corpo de hipóteses: Hipótese 1 – A interacção promove a cidadania Hipótese 2 – A interacção favorece o consumo Hipótese 3 – A interacção promove o alargamento do Espaço Público Hipótese 4 – A interacção estabelece a vinculação entre a cidadania e o consumo

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2. MOLDURA TEÓRICA

2.1. CIDADANIA E LEGITIMIDADE POLÍTICA

As interrogações dos cidadãos, de um lado, e a legitimidade do poder, do outro, marcam encontro no Espaço Público, entendido este como um espaço de comunicação pública onde se procede a uma luta pela construção simbólica da realidade social. O Espaço Público, ou esfera pública, surge assim como uma instância de interacção discursiva onde se produzem os debates sobre as questões que dizem respeito aos temas de interesse colectivo e que permite ao sistema político ter em conta a voz dos governados (Cfr. Sampedro Blanco, 2000: 30). A partir do momento em que está garantida a vigilância e o controlo da vontade popular perante o poder, através dos mecanismos de cidadania, fica estabelecida a legitimidade, isto é, o consentimento tácito dos governados aos governantes. E é da influência da opinião pública que emana esse consentimento necessário ao exercício do poder: “Reconhecer e atribuir ao Espaço Público capacidade de influência política corresponde à radicalização mais consequente e absolutamente decisiva do seu papel democrático.” (Esteves, 2005: 43) Para isso, segundo este autor, deveremos dar ao termo «influência» um sentido suficientemente lato, isto é, a formação de opinião como um contributo reflexivo indispensável para o trabalho em geral de construção da sociedade.

2.1.1. Do público à esfera pública Historicamente, a origem da noção de esfera pública pode situar-se no conceito de “público”, quando, no século XVII, os teatros e os salões musicais, literários, artísticos e culturais, iniciaram a cobrança de ingressos e a imprensa livre começou a florescer na Inglaterra, Alemanha e França. Peter Dahlgren sublinha a importância do novo conceito da seguinte forma: “The concept of the public sphere, as the historically conditioned social space where information, ideas and debate can circulate in society, and where political opinion can be formed, became a central, 13

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organizing motive.” (Dahlgren, 1996: Preface ix) Porém, na dimensão política da esfera pública, como ainda refere este autor, está subjacente a dimensão social e cultural devida à emergência da interacção sociocultural entre os cidadãos: “Not all interaction is a manifestation of the public sphere, but the point is that the functioning of the public sphere is greatly dependent upon the nature of sociocultural interaction.” (idem, ibidem: Preface xi) O conceito de esfera pública deriva de um livro de 1962 escrito pelo alemão Jürgen Habermas: Strukturwandel der Öffentlichkeit. Entre outras coisas, este livro é a história das práticas sociais, políticas e culturais, nomeadamente as práticas da livre troca de pontos de vista e discussão acerca de assuntos de generalizada importância social (Cfr. Boyd-Barret, 1995: 230). Se atentarmos no termo Öffentlichkeit, no original alemão, ele é mais conceptual do que físico, podendo afirmar-se que o Espaço Público é, assim, um fórum abstracto que possibilita o diálogo e o debate a vários níveis da sociedade. Conforme esclarece Alan McKee, remetendo para uma enunciação de John Hartley feita em 1992: “The public sphere, is not, of course, a sphere. It’s a metaphorical term that’s used to describe the virtual space where people can interact” (McKee, 2005: 4). Retomando Habermas e os seus primeiros trabalhos, a esfera pública é aí definida como sendo pública em dois sentidos: por causa das opiniões ou acordos conseguidos e validados por argumentos publicamente apresentados e porque a esfera é aberta ao acesso de todos os cidadãos de forma idêntica. Para clarificar esta concepção de esfera pública, o autor alemão invoca um dos documentos fundadores de uma organização cívica empenhada na consolidação do Espaço Público: “their intent was that in such manner an equality and association among persons of unequal social status might be brought about.” (Habermas, 1994: 34) Todavia, a primitiva descrição habermasiana, baseada no que se passava nos cafés londrinos do século XVIII, foi perdendo adesão à realidade com o advento da comunicação mediatizada. Habermas argumenta que inicialmente os media (do século XVIII) integravam esta esfera pública, mas posteriormente, quando se tornaram uma mercadoria através da distribuição de massas e da aquisição de espaço das audiências para vender aos anunciantes, os media distanciaram-se daquele papel. Esta teoria foi criticada, nomeadamente por Thompson, que apontou a Habermas o facto de idealizar e romantizar o que era não só um mundo demasiado elitista (envolvendo

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principalmente aqueles com suficiente instrução para frequentarem e falarem nos cafés), mas também “a predominantly male preserve.” (Thompson, 1995: 253) Naquilo que é entendido por Habermas como a decadência do Espaço Público vinculado aos media, podemos destacar a perda de três características básicas da esfera pública burguesa: a acessibilidade aos debates para todos os que tivessem condições de participação; a discursividade, como garantia da afirmação do melhor argumento fora da influência do poder político e económico; e a possibilidade de problematização racional de objectos, temas e obras (Cfr. Habermas, 1994: 36-37). Esta transformação teria ficado a dever-se à tentativa cíclica das estruturas do poder em condicionar as atitudes individuais. Tendo em vista neutralizar aquela ameaça, Peter Dahlgren defende a importância da interacção sócio-cultural e de uma relação equilibrada entre o Estado e a sociedade civil como uma pré-condição para a democracia e para uma esfera pública viável que englobe os media (Cfr. Dahlgren, 1996: 7). Segundo este autor, a saúde da democracia, no decorrer do século XX, foi ficando cada vez mais ligada à saúde do sistema comunicacional. (Cfr. idem, ibidem: 2) Porém, Dahlgren não deixa de assinalar que “a viable public sphere cannot exist solely as a media phenomenon, but must go via the interaction of civil society.” (Cfr. idem, ibidem: 135). Por esse motivo, convém analisar seguidamente os conceitos de opinião pública e sociedade civil.

2.1.2. Opinião pública e sociedade civil A história do termo «opinião pública» remonta ao século XVI quando os homens de Estado e pensadores procuravam no julgamento dos seus semelhantes o aval para as suas obras. Em 1532, Maquiavel recomendava a Lorenzo de Medicis que temperasse a fama com a simulação e o engano. David Hume e Adam Smith declararam que todo o governo se baseava na opinião. Todavia, a noção ganhará relevância mais acentuada após a revolução Francesa, com o aumento da leitura de jornais que florescem um pouco por toda a Europa no final do século XVIII (Cfr. Sampedro Blanco, 2000: 18-19). Com a generalização da imprensa, e na esteira do pensamento de Kant, a razão passou a ser identificada com a «publicidade», isto é, com aquilo que é tornado público. Como explica Habermas, a esfera pública

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burguesa nasceu no primeiro contexto histórico em que aparece uma sociedade civil separada do Estado (Cfr. Habermas, 1994: 127). Na actualidade, os media chegam a ser acusados de usurparem o lugar da opinião pública e há mesmo quem, algo provocatoriamente, garanta que a opinião pública não existe (Cfr. Bourdieu, 1984). Perante este contexto, não é difícil induzir à reflexão sobre “uma imagem de cidadania diminuída: o indivíduo produtor de opinião pública que se viu reduzido, nas presentes condições sociais e comunicacionais, à condição de mero consumidor de mensagens mediáticas” (Esteves, 2005: 15). É neste sentido que se diz que a opinião pública deixou de ser o que era, ou seja, o público enquanto tal foi substituído pelas negociações entre organizações e partidos, que são as formas pelas quais os interesses privados ganham configuração política. Quando o Espaço Público regride a opinião pública também se torna mais débil. Segundo Rémy Rieffel, “Opinião pública e espaço público são duas noções estreitamente ligadas: a existência da primeira depende do vigor da segunda.” (Rieffel, 2003: 44) Para Habermas, o espaço da opinião pública nas sociedades complexas “constituye una estructura intermediaria que estabelece una mediación entre el sistema político, por un lado, y los sectores privados del mundo de la vida y los sistemas de acción funcionalmente especificados, por otro.” (Habermas, 2005: 454) Isto, tendo em vista que o mundo da vida, para o autor alemão, é o domínio da racionalidade comunicativa, enquanto o mundo dos sistemas tem a ver com o domínio da racionalidade instrumental. Porém, ao falarmos do conceito de opinião pública importa distinguir entre opinião pública agregada e opinião pública discursiva. A primeira está associada à democracia representativa, em que as opiniões se somam estatisticamente de forma a legitimar as maiorias. Por outro lado, a opinião pública discursiva pretende ir mais longe através de um processo gerador de um colectivo de vontades em que o público interage em ambientes formais ou informais e em que se condiciona mutuamente (Cfr. Sampedro Blanco, 2000: 20). Nesta nova definição a esfera ou o espaço da opinião pública não é mais um agregado de indivíduos que se constituem num público, mas é formada por grupos auto-organizados, constituindo-se numa rede para a comunicação de factos e pontos de vista, numa arena para a detecção de problemas que necessitam ser processados pelo sistema politico (Cfr. Habermas, 2005: 440). Neste espaço associado à opinião pública discursiva o objectivo é trocar informações e conhecimentos de forma a 16

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conseguir a melhor deliberação possível. Os partidários da democracia deliberativa identificam-se com a teoria da representação. Porém, acreditam na existência de um espaço de participação cívica que não fica apenas circunscrito aos representantes. A democracia deliberativa implica a existência de uma instância onde se geram os espaços de deliberação independentes do Estado, isto é, a sociedade civil. Para Cohen e Arato (1995: ix), a sociedade civil é a esfera da interacção composta sobretudo pela família e pelas organizações sociais de participação aberta e voluntária, movimentos sociais e esferas de comunicação pública: “In compressed terms, they [Cohen e Arato] see civil society in the West as a domain of social interaction which is situated between market and state (and organized political society).” (Dahlgren, 1996: 127) Toda a sociedade civil não é equivalente à esfera pública, mas a sociedade civil constitui a base para a dimensão interaccional da esfera pública, pois, “civil society becames, therefore, not just a goal in itself, but also the vehicle for keeping alive a public sphere in the face of unfavourable media circunstances.” (idem, ibidem: 151) Porém, é esta assunção, pelos media, de uma dimensão importante na esfera pública que contribui para a fluidez do conceito de sociedade civil. Peter Dahlgren admite que se trata de um conceito controverso entre os teóricos contemporâneos (Cfr. idem, ibidem: 5), embora sublinhe a sua importância ao salientar: “the institutionalized dimensions of the lifeworld (that is, civil society) can in turn be seen as comprising both public and private dimensions.” (idem, ibidem: 130). Menos convencido com a bondade do conceito, Néstor García Canclini admite que a fórmula tem, por vezes, a vantagem de diferenciar os seus porta-vozes dos do Estado. Porém, este autor aponta pontos fracos à «sociedade civil»: a diversidade dos seus representantes, o carácter, muitas vezes, antagónico das suas reivindicações e a adesão quase sempre minoritária que os sustenta, o que leva Carcía Canclini a estabelecer uma analogia, afirmando que a conceptualização da noção de «sociedade civil» reproduz os mesmos problemas que sempre ficaram por resolver com o conceito de «popular». (Cfr. García Canclini, 2001: 27).

2.1.3. Modelos de Espaço Público Uma abordagem alternativa à noção de Espaço Público generalizada por Habermas foi introduzida pela pensadora alemã Hannah Arendt através da dialéctica entre agir e pensar – vita activa e vita contemplativa -, entre política e filosofia; na 17

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proposta da teoria das “esferas separadas” (pública e privada) e na emergência da esfera social, uma esfera híbrida que não é nem pública nem privada; ou no conceito de político como relação e acção comunicativa num espaço partilhado e aberto à pluralidade (Cfr. Martins, 2005: 21). O modelo de Hannah Arendt configura uma espécie de recuperação do ideal contido no espaço público grego onde a polis é considerada como a organização das pessoas emergindo da discussão e acção conjunta (Cfr. Arendt, 2001: 245). Apesar das críticas que a acusam de ter uma visão extremamente idealizada da esfera política grega e do seu modelo ser dificilmente exequível na modernidade, Hannah Arendt manifesta aspectos convergentes com as posições de Habermas na importância dada à comunicação, à retórica e à argumentação ou na rejeição das teorias que reduzem o político a uma tecnologia social. Segundo Jean-Marc Ferry (citado por Martins, 2005: 115) a divergência profunda entre Hannah Arendt e Jürgen Habermas situa-se na problemática do estatuto do político e da sua autonomia em relação a outras esferas sociais da actividade organizada (económica e militar) e ao saber organizado (científico, técnico-estratégico). Todavia, para Seyla Benhabib “the distinction between the social and the political makes no sense in the modern world, not because all politics has become administration and because the economy has become the quintessential public, as Hannah Arendt thought, but primarily because the struggle to make something public is a struggle for justice” (Benhabib, 1992: 79). Ainda segundo esta autora, “participation is seen not as an activity only possible in a narrowly defined political realm but as an activity that can be realized in the social and cultural spheres as well.” (idem, ibidem: 86) Para Pissarra Esteves, as limitações do modelo defendido por Hannah Arendt decorrem de uma concepção idealizada de Espaço Público: “Hannah Arendt acaba por passar ao lado dos mais importantes fenómenos de violência da vida política moderna: a «violência estrutural» - não física, não directa e não explícita – que se exerce essencialmente ao nível do plano simbólico e que contamina quer a linguagem, quer a comunicação humanas.” (Esteves, 2003: 121) Neste âmbito, também o próprio Habermas evoluiu nas suas posições. O modelo de Espaço Público actualmente defendido pelo pensador alemão abandonou algumas das tendências definidas pela escola crítica de Frankfurt, através de Adorno e Horkeimer, nomeadamente as que concluíam pela massificação generalizada da 18

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sociedade. Ao contrário da tese defendida na segunda parte de Strukturwandel der Öffentlichkeit, obra publicada originalmente em 1962, no seu livro Facticidad y validez, escrito nos anos 90, Habermas sustenta que os meios de comunicação podem desempenhar um papel mais positivo e a audiência exercer julgamento: Cuando la imagen, por difusa que sea, que la sociología de los medios de comunicación de masas nos transmite de un espacio de la opinión pública dominado por medios de comunicación de masas (…) uno tiende a valorar com muchas reservas las oportunidades que la sociedad civil pueda tener de ejercer influencia sobre el sistema político. Sin embargo, esta estimación solo se refiere a un espacio público en estado de reposo. En los instantes de movilizatión empiezan a vibrar las estructuras en las que propiamente se apoya la autoridad de un público que se decide a tomar posición. Pues entonces cambian las relaciones de fuerza entre la sociedad civil y el sistema político. (Habermas, 2005: 460) Apesar desta profissão de fé na deliberação, Habermas não rejeita a representação. Ou seja, “el espacio público-político tiene que reforzar además la presión ejercida por los problemas, (…) de suerte que puedan ser asumidos y elaborados por el complejo parlamentario.” (idem, ibidem: 439) Isto, porque os teóricos da democracia deliberativa são bastante cépticos no que respeita a quaisquer tentativas de aplicar directamente as suas exigências à estrutura das instituições políticas: “A perspectiva radical de transformação do actual Espaço Público tem por horizonte a possibilidade de um controlo mais efectivo do poder, mas não o exercício do poder propriamente dito” (Esteves, 2003: 68). Habermas reafirma a informalidade da esfera pública, que passa a ser entendida como uma rede de espaços de comunicação, de informação e de trocas de pontos de vista, e reconhece que há limitações no modelo por si preconizado (Cfr. Habermas, 2005: 404). Todavia, para o pensador alemão estas situações apenas ilustram “desviaciones respecto del modelo de la socialización o sociación comunicativa pura” (idem, ibidem), um modelo que nenhuma sociedade complexa, mesmo nas condições mais favoráveis, estará em condições de estabelecer porque se trata de uma “ficción metodológica” (Habermas, 2005: 405). A abordagem do modelo deliberativo de Espaço Público remete-nos, com alguma pertinência, para as teorias sistémicas. Segundo João Carlos Correia, na esfera pública preconizada por Habermas em Facticidad y validez:

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(...) pressentem-se traços provenientes da teoria dos sistemas sociais, na medida em que a opinião pública funciona como um sensor não ao serviço de um sistema referencial e autopoiético mas ao serviço de um sistema aberto. O sistema político deixa de ser um potencial colonizador do mundo da vida para passar a estar potencialmente aberto à esfera pública e ao mundo da vida. (Correia, 2003: 130) Neste

sentido,

a

esfera

pública

surge

caracterizada

como

estrutura

comunicacional enraizada no mundo da vida através da rede associativa da sociedade civil, longe do registo bem mais pessimista introduzido por Niklas Luhmann, em meados dos anos 70 do século XX, quando se propôs fazer a reconstrução do conceito de opinião pública pela referência do conceito ao sistema social da sociedade, excluindo qualquer referência à forma como os agentes sociais «pessoas» opinam, pensam, dirigem a sua atenção ou recordam (Cfr. Luhmann, 1992: 69). A comunicação seria medida em função de uma eficácia simbólica relacionada com a capacidade de regularizar e estabilizar a vida social. Segundo este autor, o sistema dos media opera, como o resto dos sistemas, em circuito fechado e autoalimenta-se com aquilo que são os valores específicos da sua função de forma a procurar a manutenção do equilíbrio social. A opinião pública deixa de ser o fruto da livre discussão de opiniões sobre temas. Em vez disso resulta da actividade selectiva dos meios de comunicação, tal qual preconiza a teoria do agenda-setting. Por isso, Niklas Luhmann defende que a opinião pública produz-se através da chamada «tematização», entendida como um processo de definição e estabelecimento de grandes temas pelos media. Na perspectiva da teoria luhmaniana da complexidade e da diferenciação funcional, é a comunicação que produz os sistemas e os diferencia. Os indivíduos limitam-se a preencher o contexto desses sistemas. Ao simplificar a complexidade em termos inteligíveis para o sistema social, a realidade dos media pressuporia o engano e a simulação: “Os temas da opinião pública, as notícias e os comentários na imprensa e no audiovisual têm uma óbvia importância para a política e ao mesmo tempo escondem com a sua evidência o que é realmente importante” (Luhmann, 1992: 85). Esta perspectiva, considerada pragmática pelos autores mais próximos das teorias sistémicas, não deixa de ser vista como eivada de algum cinismo pelos defensores do modelo deliberativo.

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2.1.4. Habermas e a democracia deliberativa A ideia da esfera pública na sua acepção actual – aberta a toda a gente, porque todos podem desempenhar um papel público – não existia na Idade Média. Habermas sustenta que só o rei era a esfera pública nos sistemas sociais feudais (Cfr. Habermas, 1994: 5). Com o advento da modernidade, o Espaço Público evoluiu da esfera pública literária e estética, consubstanciada nos cafés, salões e clubes onde se assumia o princípio do livre arbítrio e da racionalidade dialógica, para uma dimensão política. A obrigatoriedade do conhecimento público das votações efectuadas no Parlamento, o alargamento do sufrágio ou o aparecimento da imprensa crítica, são as etapas que marcaram esse processo: “Thus raised to the status of an institution, the ongoing comentary on and criticism of the Crown’s actions and Parliament’s decisions transformed a public authority now being called before the forum of the public.” (idem, ibidem: 60) Como refere Jürgen Habermas, na sua obra clássica The Structural Transformation of the Public Sphere (1994 [1962]), as instâncias do «público» sofreram uma mudança estrutural profunda no decurso do processo de desenvolvimento das sociedades modernas: evolução do modelo burguês dos séculos XVII e XVIII (Cfr. idem, ibidem: 149 e sg.s); alteração das funções políticas do Espaço Público na sequência da subversão do princípio da publicidade (idem, ibidem: 181 e sg.s); e a deriva da Opinião Pública como uma ficção constitucional e dissolução sócio-psicológica do conceito, a partir da sua raiz no pensamento filosófico moderno e na teoria política liberal (Cfr. idem, ibidem: 236 e sg.s). Generalizando a partir dos desenvolvimentos ocorridos na Grã-Bretanha, França e Alemanha nos séculos XVIII e XIX, Habermas delineou o modelo de evolução da esfera pública burguesa e caracterizou a sua degeneração no século XX. Peter Dahlgren chama-lhe uma melancólica narrativa histórica em dois actos: “In the first act he portrays a fledgling bourgeois public sphere emerging under liberal capitalism in the eighteenth century (…) The second act traces the decline of the bourgeois public sphere in the context of advanced industrial capitalism and the social welfare state of mass democracy (Dahlgren, 1995: 8). Como também explica Rémy Rieffel, a perversão progressiva do modelo burguês de Espaço Público é atribuída à alteração do ideal da publicidade e ao peso do mercado:

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A transformação de um público que discute a cultura num público que a consome, o desenvolvimento do mercantilismo, a influência cada vez maior das técnicas de marketing e a crise do ideal burguês da publicidade (no sentido de publicar, tornar público), despromovida para a categoria de publicidade mediática (no sentido do reclame) geram uma degenerescência do espaço público contemporâneo. (Rieffel, 2003: 45-46) Na perspectiva de Habermas, a chamada refeudalização da esfera pública traduziu-se na intrusão do Estado na vida privada e na envolvência dos interesses privados nos assuntos do Estado (Cfr. Habermas, 1994: 142). Porém, John B. Thompson duvida que haja substância quanto à tese da refeudalização da esfera pública. Em primeiro lugar, porque “it is very doubtful whether the recipients of media products can plausibly be regarded as enthralled and manipulated consumers.” (Thompson, 1995: 255) Depois, porque Habermas não equacionou o profundo impacto que os mass media tiveram no mundo moderno: “For the development of the media – and especially of the various types of electronic communication – has created new forms of social interaction and information diffusion which exist on a scale and are organized in a manner that preclude any serious comparison with the theatrical practices of feudal courts.” (idem, ibidem). Para além destes, há ainda outros aspectos dos escritos iniciais de Habermas que foram contestados. Ao focar a sua atenção na esfera pública burguesa, o autor alemão negligenciou o significado de outras formas de discurso público e actividades que existiam nos séculos XVII, XVIII e XIX na Europa, formas que não faziam parte da sociabilidade burguesa. Assim, foram excluídos os plebeus, as mulheres, os pobres, os não-educados e as minorias étnicas. Seguindo a tradição kantiana, que liga a liberdade à autonomia pessoal formatada no exercício da razão pública, Habermas concebeu o papel da esfera pública (ou Espaço Público) como o sítio onde a formação da opinião pública e da vontade política, legitimada por essa opinião, provêm da prática discursiva de cada um sujeita à razão crítica dos outros. Esta visão da esfera pública habermasiana foi criticada a três grandes níveis. Segundo a síntese coligida por Nicholas Garnham, em primeiro lugar, foi-lhe apontado o facto de os seus procedimentos serem demasiado racionais. Secundariamente, o modelo da esfera pública racional foi criticado por fazer a distinção entre público e privado de tal forma que excluía vários grupos de cidadãos, ou assuntos de potencial interesse político e público como a regulação intra-familiar ou as relações sexuais. Finalmente, os críticos de Habermas 22

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argumentam que o consenso generalizado à volta de um conjunto de valores ou normas universais conduz a um modelo super-centralizado de esfera pública incompatível com as políticas de identidade nas sociedades multiculturais, onde o que é preciso é um modelo descentralizado de múltiplas esferas públicas que traduzam cada distinta identidade colectiva, cada cultura ou cada forma de vida (Cfr. Garnham, 2000: 170). Ao voltar a estas questões trinta anos mais tarde, e na sequência de uma série de leituras críticas da sua obra, Habermas admitiu que a sua antiga análise teria de ser substancialmente revista. No centro da sua teoria da democracia, o pensador alemão acentuou o conceito da formação discursiva da vontade através de um processo de debate fundamentado. Porém, segundo John B. Thompson este argumento não convenceu plenamente. Tendo em conta a pluralidade de pontos de vista característicos das modernas sociedades, muitos duvidaram que faça sentido construir uma teoria política baseada na possibilidade do consenso racional (Cfr. Thompson, 1995: 256). Irís Marion Young, citada por Peter Dahlgren, em vez do consenso habermasiano moldado na intersubjectividade, opta por um compromisso prático menos ambicioso onde as pessoas não atingem necessariamente a compreensão mútua: “If we concede, realistically, that in multicultural and hyperpluralistic societies we may not always really understand each other, what is to be the basis for communication between citizens?” (Dahlgren, 1995: 141). Por seu lado, John Keane, diz que “não há, em princípio, razões para que o conceito de esfera pública tenha necessariamente de ser ligado ao ideal de comunicação orientada para a obtenção de consensos, baseados na força do melhor argumento” (Keane, 2001: 211). Também Douglas Kellner levantou reticências ao modelo de Habermas porque, em seu entender, a linguagem nas sociedades contemporâneas serve interesses hegemónicos: “While there is a utopian promise in language and communication that minds can meet, that shared understanding can be established, that truth can be revealed, and that unforced consensus can be reached, this is merely a utopian ideal.” (Kellner, 2004). Mais complacente com as teses de Habermas, Jean-Marc Ferry considera que existem no Espaço Público idealizações necessárias. Ferry, citado por João Carlos Correia, argumenta que só o assumir de tais idealizações permite o entendimento com os outros, e, nas palavras de Correia, “nesta medida, desenvolve a ideia engenhosa segundo a qual se é verdade que não

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existe comunicação ideal e transparente não é menos verdade que é possível existir um ideal de comunicação.” (Correia, 2004). Um outro argumento da teoria habermasiana que tem merecido contestação diz respeito à distinção entre sistema e mundo da vida, elaborada na Teoria da Acção Comunicativa. Aquela distinção teve implicações importantes na teoria da democracia de Habermas: “He now accepts that the state and economy are systematically organized fields of action which can no longer be transformed democratically from within” (Thompson, 1995: 256). Porém, nem toda a gente ficou convencida que, com as noções de sistema e mundo da vida, Habermas tivesse encontrado o melhor caminho para reformular o programa político da democratização radical. Mostrando-se contrário a uma dicotomia rígida, Douglas Kellner reconhece que o mundo da vida está cada vez mais sujeito às ameaças do sistema, mas o processo é contraditório: “in the current era of technological revolution, interaction and communication play an increasingly important role in the economy and polity that Habermas labels the «system».” (Kellner, 2004). Por essa razão, sustenta Kellner, tanto na economia como na política há, simultâneamente, conflitos e oportunidades que podem possibilitar a transformação e a intervenção democrática. Ainda segundo Douglas Kellner, foi a partir do momento em que a teoria da acção comunicativa e a distinção entre sistema e mundo da vida se tornaram centrais no projecto de Habermas, que a ênfase foi colocada no processo de teorização da «democracia deliberativa», entendida esta como um modelo de reflexão, argumentação, fundamentação pública e busca do consenso (Cfr. idem, ibidem). Se bem que, neste processo, possamos encontrar raízes antigas no pensamento político, foi no final do século XX que Joshua Cohen e Jürgen Habermas estabeleceram as bases da democracia deliberativa. Segundo Maria João Silveirinha, “Joshua Cohen foi o primeiro a definir em detalhe as características de um procedimento deliberativo para a tomada de decisão política (Cohen, 1989) ainda que Habermas o tenha feito primeiramente de forma indirecta, através das suas teorias do espaço público e da comunicação.” (Silveirinha, 2005: 216). Só a partir dessa altura o modelo ganhou consistência porque a noção de democracia deliberativa implica, obrigatoriamente, a existência do Espaço Público.

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2.1.5. Limitações da deliberação A democracia deliberativa é um ideal. Habermas, ao teorizar, actualmente, sobre a situação de discurso “ideal”, na comunidade ideal de comunicação da esfera pública, admite implicitamente que uma democracia participativa autêntica pode não ser atingível no mundo real. Estaríamos, assim, perante um contrafactum: “Los presupuestos contrafácticos de que han de partir los participantes en la argumentatión abren, ciertamente, una perspectiva desde la que esos participantes transcienden la provincialidad de sus contextos espacio-temporales” (Habermas, 2005: 401). Já no prefácio do seu livro de 1962, o autor alemão admitia algum enviesamento, na sequência das primeiras críticas que argumentavam que ele idealizou a primitiva esfera pública ao apresentá-la como um fórum de discussão racional e debate quando, de facto, alguns grupos eram excluídos e a participação era limitada: “Our investigation presents a stylized picture of the liberal elements of the bourgeois public sphere” (Habermas, 1994: xix). Na perspectiva de Habermas é o uso público da razão que estabelece uma relação entre participação e argumentação pública: “The parity on whose basis alone the authority of the better argument could asset itself against that of social hierarchy and in the end can carry the day meant in the thought of the day, the parity of common humanity” (Habermas, 1994: 36). Porém, aqui coloca-se um problema: o melhor argumento é aquele que é possível determinar analiticamente ou é, simplesmente, o mais brilhantemente explicitado? A questão que se levanta é se os chamados «públicos fracos», isto é, aqueles que dispõem de menores recursos discursivos ou desigual capacidade económica, social ou política, poderão assumir a participação de uma forma paritária: Enfatizando a participação como o processo pelo qual um sujeito privado se orienta para o público, o procedimento deliberativo estabelece a natureza e condições desta participação, tendendo a compará-las a alguma versão do que Habermas chama «racionalidade comunicativa». Esta ideia tem atraído críticas de diferentes perspectivas, nomeadamente pelos problemas da sua real abrangência e das questões práticas formais da sua realização (Silveirinha, 2005: 218)

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Algumas das reticências apontadas aos mecanismos deliberativos foram sintetizadas na introdução que Jon Elster (2001) fez à obra La democracia deliberativa por si organizada: Las patologias que Stokes identifica, sin embargo, no se originan en los debates entre iguales, sino en el sistema político en un sentido más amplio, que incluye a políticos, ciudadanos, y medios de comunicación. Este es también el caso de los fenómenos identificados por Przeworski, en especial la tendencia de los grupos con mayores recursos a imponer el conjunto de creencias equilibrantes que los beneficien (Elster, 2001: 24) Após a recensão de todos os contributos, uns mais, outros menos favoráveis, Jon Elster deixa um conjunto de perguntas que apontam para as possíveis limitações do processo deliberativo: La distribución desigual de la educación, de la información y de la participación supone una amenaza a la democracia deliberativa? Producirá la deliberación todos sus buenos efectos si tiene lugar principalmente en el seno de una elite que se autoselecciona porque tienne más conocimientos que otros acerca de los assuntos públicos y está más preocupada por ellos? (idem, ibidem: 30) E mesmo entre os autores mais optimistas, face ao processo deliberativo, há quem sublinhe aspectos que podem afectar as possibilidades de deliberação: Cultural pluralism, which produces potentially deep and persistent moral conflicts; large social inequalities which make it difficult for many to participate effectively in public decisions; and social complexity, which make it necessary for us to revise our models of what constitutes a forum for deliberation to include large and dispersed public spheres (Bohman, 2002: 2-3) Entre as posições críticas dos mecanismos da deliberação, não abandonando o modelo deliberativo ou o modelo do Espaço Público, ressalta a formulação de Íris Marion Young, explicitada aqui por Maria João Silveirinha: As suas propostas aceitam a centralidade da deliberação para a formação de uma democracia autêntica, mas rejeitam a forma como alguns autores – nomeadamente Habermas e Cohen – fizeram dela uma formação demasiado abstracta, excluindo grupos subordinados e marginalizados dentro da sociedade. Do sistema por eles proposto ficam de fora aqueles que podem não possuir a educação ou o vocabulário exigido para o argumento 26

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abstracto, sendo necessário conceder-lhes formas alternativas e culturalmente situadas de fazerem passar a sua mensagem (Silveirinha, 2005: 220). A partir de uma compreensão da acção comunicativa envolvendo reciprocidade assimétrica entre os sujeitos, Íris Marion Young propõe-se esboçar uma teoria onde visa enfatizar a importância de reconhecer as diferenças e descentrar os processos de deliberação, mais do que estabelecer como objectivo alcançar o consenso participativo. O objectivo de se chegar ao reconhecimento através de múltiplas formas de comunicação levou à designação de «democracia comunicativa» em vez de «democracia deliberativa». (Cfr. Silveirinha, 2005: 222) Do lado dos indefectíveis deste modelo, a democracia deliberativa é “uma resposta política exigente (mas viável e exequível) aos problemas que hoje se colocam à vida colectiva, como afirmação renovada de continuidade e aprofundamento do projecto da modernidade (reforço da legitimidade das instituições e radicalização da autonomia dos indivíduos).” (Esteves, 2003: 144). Habermas, por seu lado, destaca a possibilidade de constituição da opinião e vontade do público a partir da própria perspectiva deste, em oposição àquele tipo de acção que é dirigida ao público a partir do exterior e que visa influenciá-lo “desde la perspectiva del mantenimiento del próprio poder político, no yendo a la esfera pública a outra cosa que a extraer de él lealtad de una población reducida a masa” (Habermas, 2005: 460). Para o autor alemão, a democracia deliberativa apresenta-se como uma resposta conceptual às transformações do Espaço Público. Resta saber se, para isso, é suficiente opor as virtualidades do discurso à agregação pura e simples, característica da democracia representativa. E se o modelo deliberativo já encontrou o enquadramento certo num tempo marcado por desigualdades de todo o tipo (de género, discursivas, económicas) e de uma mediatização em acelerado processo de transformação, como iremos ver a seguir.

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2.2. TRANSFORMAÇÕES DO ESPAÇO PÚBLICO

Depois de enquadrar a interacção social através da rádio (ver 1.1.) na cidadania e na legitimidade política, à luz da teoria do Espaço Público (ver 2.1.), vamos agora analisar em detalhe as mudanças por que está a passar a esfera pública, começando pelos dispositivos de interactividade técnica que estão a moldar as transformações tecnológicas.

2.2.1. Mudanças tecnológicas na migração para o digital

Em 2001, a Apple lançou um leitor de áudio digital do qual, passados cinco anos, foram vendidos 42 milhões de unidades (Cfr. Gorjão Santos, 2006). Por outro lado, em 2005, os editores do New Oxford American Dictionary escolheram para palavra do ano o termo podcast, que significa a disponibilização de programas de rádio através da Internet. O fenómeno, porém, não fica por aqui. A rádio pública norte-americana (NPR) disponibiliza para os telemóveis, usando um serviço chamado Mobilcast, 45 dos seus programas em podcast (Cfr. Bruno, 2006), enquanto a Nokia e o presidente da Microsoft, Bill Gates, estimam que, no futuro, os dispositivos multimédia estarão concentrados no telemóvel, provocando o desaparecimento dos fabricantes de leitores de áudio e câmaras digitais. A aposta dos fabricantes de telemóveis nos leitores de áudio digital, dos quais o iPod é o mais popular do mercado, tem em vista a apresentação de uma nova geração de musicphones com boas opções de reprodução musical e capacidade de armazenamento, expansível por cartão de memória. Este conjunto de exemplos demonstra como a onda avassaladora de inovações tecnológicas, no campo digital, não pára e tem, necessariamente, repercussões no Espaço Público. Porém, o sentido, mais ou menos positivo, deste tipo de fenómenos não é fácil de determinar: As novas tecnologias integram-se de uma forma plena no processo de desenvolvimento das sociedades modernas, estão elas próprias profundamente atravessadas pelas grandes ambivalências que caracterizam a 28

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modernidade e que mantiveram desde sempre no seu interior a coexistência tensional de duas dimensões contraditórias: uma repressiva e outra emancipatória (Esteves, 2003: 172) A erupção de gadgets tecnológicos como fenómenos culturais não é um fenómeno específico da contemporaneidade, muito embora até ao século XX, antes do processo de massificação mercantilista, fosse mais fácil afirmar que a tecnologia era moldada pela cultura e não o inverso: “It took from about 1880 until well in the 1920s before the telephone began to be promoted as suitable for sociability, as opposed to pratical, economic matters.” (Mackay, 1997: 273) O exemplo do telefone demonstra como as novas tecnologias não são inventadas apenas para satisfazer uma prévia necessidade humana, muito embora, no decorrer do século XX, fizesse escola o determinismo tecnológico, uma corrente de pensamento que subalternizava os processos culturais aos desígnios da tecnologia. Com o advento da pós-modernidade, os consumidores, mais do que simples receptores, passaram a ser vistos como desempenhando um papel crucial no processo da inovação. O determinismo tecnológico puro foi sendo abandonado em detrimento de uma perspectiva que pressupõe a existência de uma dinâmica com a envolvente cultural. A propósito das posições de Bertold Brecht sobre a rádio, Nicholas Garnham sublinha o aspecto da produção cultural que o medium representa em detrimento

da

dimensão

tecnológica:

“Brecht

argued

(demonstrating

his

technological ignorance) that it was a mere capitalist conspiracy that radio sets were not designed and marketed as transmitting as well as receiving devices, without realizing that he was talking about the telephone, which already existed on the market” (Garnham, 2000: 68). A utopia de Brecht, de que todo o receptor de rádio deveria ser um potencial emissor, depara-se, desde logo, com um limite: saber quem vai ouvir tamanha cacofonia. É certo que a difusão das tecnologias interactivas faz crescer a posibilidade de uma pluralidade de públicos. Todavia, não se podem ignorar as condicionantes: “A interacção dos vários sub-públicos no Espaço Público político tem, porém, tanto de prioritário como de dificuldades no seu controlo.” (Esteves, 2003: 55) E não permite determinar se a proliferação de públicos contribui “para a criação de um público – um encontro activo e democrático de cidadãos que, através das suas diferenças ideológicas e culturais, permita estabelecer uma agenda comum de preocupações e em debate de pontos de vista rivais” (Todd Gitlin citado por Esteves, 2003: 198). A 29

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questão das relações entre a tecnologia e o Espaço Público foi exemplarmente colocada por João Carlos Correia: “A emergência de possibilidades tecnológicas que assegurem uma maior interactividade entre produtores e receptores só têm sentido quando são encaradas como possibilidades de transformação das condições de deliberação colectiva no sentido do aprofundamento da democracia” (Correia, 2004: 232). Sendo assim, o desenvolvimento dos meios de comunicação assentes na interactividade obriga a colocar a questão: terão as tecnologias de informação e comunicação uma incidência positiva no Espaço Público? A resposta, como assinala Rémy Rieffel, não se afigura clara: (…) as conclusões oscilam, uma vez mais, entre duas visões do problema. Uma atribui às TIC um efeito amplificador dos efeitos perversos denunciados acerca dos media (fechamento em relação ao exterior, desigualdade de acesso, assimetria, etc); a outra insiste na transparência e na interactividade dos meios capazes de suscitar uma participação crescente do público (uso da palavra, solidariedade internacional, popularização dos problemas públicos). (Rieffel, 2003: 49) Seja como for, pode dizer-se que o repensar dos media no Espaço Público contemporâneo exige repensar o modo como o sistema mediático está a ser recomposto pelas novas tecnologias da informação. 2.2.1.1.

A tecnologia e a hegemonia simbólica

Não há ainda uma resposta definitiva sobre se a interacção social proporcionada pela interactividade técnica reduz ou alarga o Espaço Público. Uma coisa é certa: a comunicação já não precisa ser dialógica – face a face – porque, hoje em dia, podemos comunicar sem partilhar os mesmos contextos. Os meios técnicos permitem um certo grau de distanciamento espaço-temporal, como assinala John B. Thompson: “Com o advento da disjunção entre espaço e tempo trazida pela telecomunicação,

a

experiência

de

simultaneidade

separou-se

do

seu

condicionamento espacial” (Thompson, 1998: 37). Paralelamente, “in the shift from broacasting to niche markets and multiple choice (of cable, satellite, digital television and the Internet) we are seeing a move away from the simultaneity of mass consumption which characterized earlier broadcasting” (Mackay, 1997: 289).

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As transformações tecnológicas fomentaram a segmentação e a fragmentação, mas também promoveram a interacção e a interactividade. Actualmente, não é possível olhar os media apenas sob o ponto de vista da transmissão de informações, mas sim também através de um novo modelo de interacção proporcionado pelas transformações tecnológicas. Pode mesmo dizer-se que um novo paradigma está em elaboração. Nos meios audiovisuais, os fóruns, os espaços de conversa e o correio electrónico facilitam a interacção entre emissores e receptores. Resta saber se as motivações de uns e doutros estão orientadas para uma efectiva busca do aprofundamento do Espaço Público ou, simplesmente, se se estão a aproveitar as possibilidades abertas pela tecnologia para tornar os processos produtivos mais rendíveis, no caso da industria de media, ou para alcançar montras de visibilidade, para quem pretende aceder à esfera pública. Esta última situação configuraria uma curiosa simbiose de motivações, respondendo ao interesse comercial de uns e ao interesse pessoal de outros, que marcariam encontro no Espaço Público mediático. John B. Thompson reconhece que os aspectos técnicos dos media são certamente importantes mas “não deveriam, porém, obscurecer o facto de que o desenvolvimento dos meios de comunicação é, em sentido fundamental, uma reelaboração do carácter simbólico da vida social” (Thompson, 1998: 19). Em primeiro lugar, os meios técnicos fixam as formas simbólicas de comunicação (Cfr. idem, ibidem: 26). Um segundo atributo é o que permite aos meios técnicos um certo grau de reprodução: “A reprodutibilidade das formas simbólicas é uma das características que estão na base da exploração comercial dos meios de comunicação. As formas simbólicas podem ser «mercantilizadas», isto é, transformadas em mercadorias para serem vendidas e compradas no mercado” (idem, ibidem: 27). Porém, de acordo com Nicholas Garnham, “debates on media economics and policy or on the social and cultural impact of the media are in fact often largely debates about technology” (Garnham, 2000: 66). Segundo este autor, “no one studying media can avoid the question of technology” (idem, ibidem: 64). Por tal motivo, os novos dispositivos tecnológicos de mediação simbólica estão no cerne de uma discussão ainda sem consenso: For the optimists the development of an information society which results from harnessing the full potential of information and communication technology is liberating because it leads to the general democratization of intellectual work and critical discourse. Everybody becomes an intellectual 31

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and participates in the new electronic agora. For the pessimists these same developments place increased powers of manipulation and control in the hands of a new technocratic elite (…) But whatever mix of approaches one chooses to adopt it is best to start from the Gramscian position that all human beings are intellectuals in the sense that they are not creatures of pure instinct but constantly apply their innate powers of rational analysis and imagination to those everyday interactions (idem, ibidem: 85-86) De acordo com Correia (2004: 210) “a partir do capitalismo avançado do século XX, os media estabeleceram uma posição decisiva naquilo que Gramsci designa pela formação da hegemonia.” Assim, sublinha Pissarra Esteves, “o centro dos conflitos sociais tem de ser repensado: hoje em dia ele já não se situa nas esferas da reprodução material da sociedade, como supunha o marxismo, mas nas esferas da vida simbólica” (Esteves, 1997: 65-66). Por esse motivo, pode afirmar-se com João Carlos Correia que “nesta luta pela hegemonia simbólica, é impossível, hoje, pensar sem os media.” (Correia, 2004: 211)

2.2.2. A mediatização Com o contributo fornecido pelas novas tecnologias, os meios de comunicação social impuseram a sua lógica na estruturação de uma nova natureza da esfera pública. A mediatização da sociedade surge associada quer às transformações tecnológicas (miniaturização dos media, incremento da interactividade), quer a “transformações de natureza narrativa como o aligeiramento e encurtamento das mensagens” (Correia, 2004: 161). É todo este contexto com implicações políticas, sociais e económicas que levou Mark Poster a invocar a tese de John Hartley para quem os media audiovisuais são a esfera pública, “the place where and the means by which the public is created and has its being” (Poster, 1997: 217). Mesmo que tal possa não corresponder exactamente à realidade, o facto é que os media electrónicos produziram um novo tipo de esfera pública. Do ponto de vista de Hartley, os media proporcionam um espaço que embora não possiblite a interacção directa, permite aos participantes expressar a opinião pública através do acto do consumo dos media. O alargamento da esfera pública aos media e às tecnologias de informação e comunicação (TIC) permitiu, igualmente, verificar que “o espaço público não é apenas simbólico, mas também material: os modernos meios e redes de comunicação são, indubitavelmente, elementos-chave da sua estrutura actual” (Rieffel, 2003: 46). 32

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Atento à forma como o desenvolvimento dos meios de comunicação transformou a natureza da interacção social, John B. Thompson (1998) criou uma tipologia designada como “teoria interaccional” que analisa os media na sua relação com as formas de interacção que possibilitam e de que são parte integrante: Les médias de communication ne sont pas de simples dispositifs techniques qui transmettent de l’information d’un individu à un autre en laissant intacte la relation; mais, bien plutôt, en faisant usage des médias de communication, les individus créent de nouvelles formes d’action et d’interaction qui ont leurs propres propriétés. (Thompson, 2005: 62) Para contextualizar as formas de situação interactiva, John B. Thompson (1998) distingue três tipos: “interacção face a face” (dialógica e que exige a presença mútua), “interacção mediada” (também dialógica e exercida através de um meio técnico como a escrita ou o telefone) e a “interacção quase mediada” (monológica e específica dos media: jornais, livros, rádio e televisão). Ainda segundo o mesmo autor, há que ter atenção a outras características que as diferenciam: (…) há dois aspectos-chave em que as interacções quase mediadas se diferenciam dos outros dois tipos (…) as formas simbólicas são produzidas para um número indefinido de receptores potenciais (…) e o fluxo de comunicação é predominantemente de sentido único (…) Como a interacção quase mediada tem carácter monológico e implica a produção de formas simbólicas para um número indefinido de receptores potenciais, será melhor classificada como um tipo de quase-interacção (Thompson, 1998: 79) Porém, esta precisão terminológica não explica como o incremento da interactividade complexifica a caracterização da interacção quase mediada, uma vez que passa a haver receptores definidos e indefinidos. Também parece forçado o carácter monológico da interacção através dos media. O modelo de Thompson pode ser instrumental para a rádio e TV convencionais, mas evidencia limitações para a rádio e TV interactivas, que têm incorporado um certo número de formas de reciprocidade. Thompson, contudo, mantém a defesa da sua tipologia. Uma perspectiva que é contrariada por David Holmes: 33

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Broadcast isn’t entirely monological. There is the reciprocity which occurs when media consumers also become producers. Thompson gives examples with television, but it needs to be appreciated that it is common to all forms of broadcast: ‘letters’ to the editor, opinion pages, talkback radio and street interviews (Holmes, 2005: 146). David Holmes lembra ainda que o conceito de quase interacção foi adoptado por Thompson a partir da interacção para-social de Horton e Wohl (Holmes, 2005: 144) e, apesar de considerar útil o modelo de Thompson, refere que as características da interacção mediada e quase mediada limitam-se a replicar ou a notar a ausência daquilo que é a interacção face a face, sem avançar com outras distinções: Thompson does not, however, add what is unique to technologically extended media which are absent in the face-to-face. Thus, for example, under mediated interaction, he could add the fact that print is capable of information storage, or, in the quasi-mediated interaction list, the fact that broadcast communication is synchronous between large audiences, something unachievable in mutual presence. (Holmes, 2005: 139) Também José Luiz Braga critica Thompson por “excessiva presença do «modelo conversacional» na análise das interacções mediáticas” (Braga, 2001: 112). A interacção face a face “frequentemente referida como ‘simétrica’ (…) não deve nos fazer esquecer que as relações reais de troca na sociedade são frequentemente assimétricas” (idem, ibidem: 110). O autor brasileiro descortina no estudo de John B. Thompson sobre interacção “os limites impostos pela obsessão com o modelo dialógico” (idem, ibidem: 113) e aponta para a “necessidade de superar uma visão simplificadamente valorativa (reciprocidade dialógica como automaticamente positiva e sua ausência como negativa)” (idem, ibidem: 109). Vemos, assim, como o desenvolvimento tecnológico está a baralhar as categorias interactivas, uma situação, de resto, reconhecida pelo próprio Thompson: (…) muitas das interacções que se desenvolvem no fluxo da vida diária podem envolver uma mistura de diferentes formas de interacção (…) 34

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indivíduos podem discutir com outros numa sala, enquanto assistem à televisão, combinando a interacção face a face com a quase interacção mediada na mesma situação interactiva (…) Outras formas de interacção podem ser criadas, por exemplo, pelo

desenvolvimento de novas

tecnologias da comunicação que permitem um maior grau de receptividade (Thompson, 1998: 80-81) Ao colocar esta hipótese, Thompson deixa em aberto a possibilidade de, por exemplo, nos media interactivos se produzir uma combinação entre interacção mediada (que contempla o dialogismo) com a quase-interacção mediada, específica das relações sociais estabelecidas pelos meios de comunicação social. Vemos assim que, com a sua tipologia, Thompson não dá uma resposta completamente satisfatória a todas as questões postas pela interacção através dos media (que nem sempre é monológica), embora sublinhe várias alterações sociais provocadas pelos meios de comunicação social, uma ideia recorrente em outros autores: “Os media detêm a capacidade de prolongarem quase infinitamente no tempo e no espaço as formas simbólicas, o que constitui uma alteração significativa do modo convencional como se estrutura a experiência colectiva” (Esteves, 2003: 159). E é, justamente, partindo da des-espacialização e do desfasamento temporal, específicos dos media, que José Luiz Braga aponta a fragilidade de algumas das características tipológicas avançadas por John B. Thompson: Se o processo de comunicação mediática é diferido no tempo e no espaço e difuso com relação aos destinatários não seria pertinente cobrar que o fluxo de retorno seja específico e não-diferido. Nem pretender que (por não ser voltado para destinatário específico e nem de processo imediato) não exista fluxo de retorno. Deve-se portanto discordar da afirmação de Thompson de que o processo seria monológico e «predominantemente de sentido único» (Braga, 2001: 119) No seu livro, “Media e Modernidade”, John B. Thompson parece não ter prestado a devida atenção aos media interactivos apesar de, na obra, ser central o conceito de quase-interacção mediada, específico para os meios de comunicação social. Todavia, não deixa de salientar que não é possível chegar a uma compreensão 35

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satisfatória da natureza da vida pública no mundo moderno com uma concepção de publicidade que seja espacial e dialógica, criticando o original modelo de esfera pública desenvolvido por Habermas que estava baseado nas relações face a face: “Ao aderir à noção tradicional de publicidade como co-presença, Habermas privou-se dos meios de compreensão das novas formas de publicidade criadas pelos media: ele vêas através das lentes do modelo tradicional, quando é justamente este modelo que foi substituído” (Thompson, 1998: 119). Na perspectiva de Thompson, o principal problema para Habermas em entender os media residia no facto de a sua concepção de esfera pública ser espacial e dialógica. Um modelo que tem pouco a ver com a realidade de hoje: A concepção de Habermas de esfera pública – tanto na forma de esfera pública burguesa, quanto na forma do seu modelo filosoficamente mais elaborado de discurso prático – é uma concepção espacial e dialógica (…) O problema é que esta concepção tem pouca relação com os tipos de acção e comunicação que se tornaram comuns no mundo moderno. (…) O modelo de Habermas é essencialmente uma extensão (embora mais elaborada) da concepção tradicional de publicidade como co-presença. Por isso é difícil relacionar este modelo com os tipos de acção e comunicação – e com o tipo de publicidade criado pela midia – com os quais estamos tão familiarizados hoje. Olhando desta perspectiva, podemos ver algo através dessa falta de realidade que cerca a obra de Habermas (idem, ibidem: 225-226) John B. Thompson contesta uma outra vertente da concepção dos meios de comunicação feita por Habermas e não comunga da opinião dos comentadores que viram atribuído um papel significativo à imprensa aquando da formação da esfera pública burguesa: If we re-read Structural Transformation carefully, we will find, I think, that Habermas was not interested in print as such, in the distinctive characteristics of this communication medium and in the kinds of social relations established by it. His way of thinking about print was shaped by a model of communication based on the spoken word: the periodical press was part of a conversation begun and continued in the shared locales of 36

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bourgeois sociability. (…) So while the press played a crucial role in the formation of the bourgeois public sphere, the latter was conceptualized by Habermas not in relation to print, but in relation to the face-to-face conversations stimulated by it. (Thompson, 1995: 257) Para Habermas, os jornais funcionavam como instrumentos de criticismo, daí que o autor alemão tenha estabelecido uma relação forte dos media com o Espaço Público ao descrever os primeiros passos da esfera pública burguesa (Cfr. Habermas, 1994: 31 e sgs.). Porém, na perspectiva de Habermas a situação alterou-se uma vez que os media teriam perdido essa função crítica com a sua transformação em mercadoria, através da produção e distribuição em massa. E o aparecimento dos media electrónicos na esfera pública tornou as coisas ainda piores: “the rigorous distinction between fact and fiction is ever more frequently abandoned." (Habermas, 1994: 170). O que levou Habermas a concluir, nos anos 60, que “the world fashioned by the mass media is a public sphere in appearance only." (idem, ibidem, 171), uma posição que, como já vimos (Cfr. 2.1.3.), veio a atenuar nas obras mais recentes. Na perspectiva de John B. Thompson, “os pontos mais fracos da explicação de Habermas são provavelmente não os argumentos que dizem respeito à emergência da esfera pública burguesa, mas aqueles apontados para o seu suposto declínio” (Thompson, 1998: 71). Segundo este autor, seria necessária uma concepção mais realista dos meios de comunicação social, embora Thompson veja alguma substância na tese da refeudalização da esfera pública, na sequência da comercialização dos media: “o que era antes um fórum exemplar de debate crítico-racional torna-se apenas mais um domínio de consumo cultural, e a esfera pública burguesa esvazia-se num mundo fictício de imagens e opiniões. A vida pública assume um carácter quase feudal” (idem, ibidem). Nesta sequência de perspectivas críticas, Jesús Timoteo Álvarez aponta limitações à proposta de Habermas para a esfera pública, valorizando mais aquilo que sugere e possibilita e menos o que define e demonstra: Habermas não chegou a contemplar dois factos que alteram a sua proposta: o da explosão de conteúdos do seu ‘espaço público’, que ele sempre imaginou platónico e com actores respeitados por serem racionais e hierarquizados; e o papel central que no seu espaço desempenham os media, 37

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que ele, sem negá-los, considerou sempre com reticência e como uma ferramenta imprescindível mas limitada, preferindo o mito da superioridade total do diálogo directo e a nostalgia da discussão entre grupos menores (Timoteo Álvarez, 2006: 164) Por seu lado, Douglas Kellner considera que Habermas não teorizou adequadamente a natureza e as funções sociais dos media contemporâneos, considerando-os apenas mecanismos para transmitir mensagens e instrumentos secundários na economia, na política e na configuração da democracia, em comparação com os processos de debate racional e procura do consenso adstritos ao mundo da vida. Segundo Kellner, em Between Facts and Norms (ou Facticidad y Validez, a tradução espanhola que aqui temos seguido) Habermas não discutiu o carácter normativo dos meios de comunicação em democracia ou sugeriu como uma política progressista nos media podia torná-los parte de um equilíbrio constitucional de poder, promovendo pesos e contrapesos contra as outras esferas políticas (Cfr. Kellner, 2004) A herança habermasiana tem sido questionada por outros autores com base na reflexão sobre a alteração estrutural da natureza dos meios de comunicação social, designadamente, no que respeita à capacidade de autonomia dos media. Segundo Annel A. Vásquez “los medios de comunicación siguen la racionalidad sistémica, se están volviendo más independientes y complexos, y – junto com los sistemas económico y administrativo – están subordinando los espacios del mundo de la vida a la lógica sistémica” (Vásquez, 2004: 248). No entender deste autor, há uma omissão de Habermas sobre a lógica de mercado dominando os media e omissão dos efeitos dos media no mundo da vida. Nesta linha de pensamento podemos sublinhar que, por exemplo, em Facticidad y Validez, é admitido o processo de centralização dos media e reconhecido que os actores da sociedade civil têm um poder de influência muito limitado (Cfr. Habermas, 2005: 457-458), mas não são concretizados os termos de uma subordinação sistémica, apesar de o modelo de Espaço Público actualmente defendido por Habermas estar associado a um modelo de democracia deliberativa que é devedora de reflexões teóricas originárias da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Os media, ao integrarem o paradigma sistémico através do sistema económico, têm vida própria, separam-se do mundo da vida. Luhmann (2000: 167) concebe os 38

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meios como um sistema autónomo, encapsulado nas suas próprias dinâmicas, códigos, actores e estruturas. Porém, a autonomia pode não significar isolamento. Annel A. Vásquez rejeita a estanquicidade entre as entidades sistémicas: (...) los medios, en contra de lo que diria Luhmann, no son privados de su habilidad de comunicarse directamente com otros sistemas: influencian y son influenciados por ellos. Los medios de comunicación son influenciados por los sistemas económico y político – mucho más por el económico – y tienen el poder de influencia en los dos sistemas – mucho más en el político (Vásquez, 2004: 260) Por isso, na perspectiva deste autor, é necessária uma concepção mais realista do papel dos meios de comunicação e ter em conta a influência que os meios têm na esfera pública e no mundo da vida mediante a reformulação da consideração de Habermas sobre o poder dos meios no estabelecimento da agenda. Com uma perspectiva mais optimista, Pissara Esteves aponta para a possibilidade de se dotar os media de uma ética emancipatória oposta à racionalidade instrumental. Este autor acredita que os novos media vão permitir à sociedade civil ultrapassar as restrições impostas pelos procedimentos selectivos (agenda-setting e framing) dos media tradicionais (Cfr. Esteves, 2003: 195) embora, o mesmo Pissarra Esteves (2005), reconheça que a caracterização da mudança estrutural do Espaço Público feita por Jürgen Habermas permite-nos identificar uma situação de verdadeira crise ao nível da comunicação pública: “os media organizados em função de interesses particulares e um universo de comunicação cada vez menos livre e autónomo, limitado na sua capacidade de exprimir as dinâmicas sociais e apresentando-se com um carácter técnico-instrumental cada vez mais marcante.” (Esteves, 2005: 14). Para Pissarra Esteves, todavia, não há dúvidas quanto a um aspecto: “Os media são hoje, indiscutivelmente, um dos factores mais poderosos de transformação das estruturas do Espaço Público” (Esteves, 2003: 56). Angel A. Vásquez (2004), por seu lado, insiste em que se deve considerar a dominação da lógica do mercado nos meios, para que o seu poder não seja ainda maior. Aponta para os perigos existentes no sistema económico e não só no sistema administrativo. E adverte que convém “ser cauto acerca de los efectos supuestamente neutrales o ambivalentes de los medios de comunicación” (Vasquez, 2004: 271). 39

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Segundo Pissarra Esteves, o carácter ambivalente é justificado “em consequência quer da própria natureza técnica destes dispositivos de mediação simbólica, quer da sua estrutura económico-política (isto é, o seu sistema de organização, formas de utilização e quadro de objectivos nas presentes condições sociais).” (Esteves, 2003: 143). Os media poderiam, assim, ajudar a consolidar uma democracia deliberativa, que se fundamenta num incremento de participação cívica. Porém, para Angel A. Vásquez “la idea de la democracia deliberativa, sin concebir a los medios como una parte de la lógica sistémica, se convierte en un ideal, una falsa promesa más de la democracia.” (Vásquez, 2004: 272) 2.2.2.1.

Emissores activos, receptores passivos?

Perante as posições que salientam a força dos meios, materializada numa alegada autonomia do campo dos media, é habitual contrapor-se a reacção no campo dos receptores (Cfr. Correia, 2004: 210). Os media podem gerar novas formas de experiência colectiva pelo lado da recepção: “pela margem de liberdade mantida pelos destinatários das mensagens dos media, que mesmo as lógicas mais duramente performativas e funcionais dos dispositivos técnicos nunca conseguiram erradicar.” (Esteves, 2003: 162). Este autor reconhece que “os mais cépticos serão tentados a ver nesta formulação a mera profissão de fé numa esperança (ou de um desejo)”, mas garante que o seu âmbito é outro: “A quase-interacção que os media facultam não está desconectada dos processos convencionais da interacção social; e é a este nível que as práticas da recepção e de apropriação simbólica das mensagens mediáticas têm lugar, no contexto da vida quotidiana” (Esteves, 2003: 162). Esta linha de pensamento é visível noutros autores que fazem a elegia da recepção activa: “A recepção deveria ser vista como uma actividade: não como algo passivo, mas o tipo de prática pela qual os indivíduos percebem e trabalham o material simbólico que recebem” (Thompson, 1998: 42). John B. Thompson chega mesmo a destacar a suposta subordinação dos produtores aos receptores, tal qual Daniel Miller, a propósito da alegada supremacia dos consumidores sobre os produtores, como veremos adiante (Cfr. 2.3.3.4.): “Embora os receptores não estejam fisicamente presentes na esfera de produção e não interfiram directamente no curso e no conteúdo da representação, os produtores orientam o próprio comportamento para os receptores” (Thompson, 1998: 92).

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Hoje em dia, é generalizadamente reconhecido que os públicos sujeitos aos media detêm alguma capacidade de acção na recepção das mensagens. O próprio Habermas reclama-se dos estudos da recepção e dos efeitos (Cfr. Habermas, 2005: 458 n.66) para proclamar que estas pesquisas acabaram com a imagem do consumidor passivo (Cfr. idem, ibidem: 458). Uma linha de pensamento explicitada plasticamente por João Carlos Correia: “Os receptores não são audiências de plasticina mas comunidades interpretativas que codificam e descodificam segundo o mundo da vida a que pertencem” (Correia, 2004: 189). Este mesmo autor salienta o papel emancipador decorrente das interacções entre os media e os agentes sociais: Se é verdade que a influência dos media na construção social da realidade é um dado incontornável, não é menos verdade que cada vez mais é obsoleto e irrealista opor os media aos agentes sociais, como se os primeiros ocupassem uma posição a-histórica, desligada das interacções entre os homens. Pelo contrário, hoje abre-se a possibilidade de que os agentes sociais irem recorrendo aos próprios media, através de uma intervenção cada vez mais directa na descodificação, recepção activa e até na produção de mensagens (Correia, 2002) Também a pesquisa sobre a audiência, particularmente na televisão, tem inspirado debates sobre a natureza activa/passiva, retomando as tradicionais discussões sobre o poder dos media. E chegou-se à conclusão que o grau de liberdade atribuído à audiência foi inflacionado em alguns sectores: “as Curran (1990) argues in his critique of the ‘new revisionists’; the problems of social structure, the dynamics of ideology and the hierarchical configurations of social power cannot be transcended merely by the interpretive pratices of viwers.” (Dahlgren, 1995: 121). A ideia de que os públicos são meros actores passivos e consomem irreflectidamente os produtos mediáticos que lhes são dirigidos não tem tido muita sustentação. Resta saber qual é a capacidade que as pessoas têm em ultrapassar o mero acto reflexivo e conseguirem efectivamente actuar na realidade, tendo em vista o desigual controlo existente entre os indivíduos e as forças políticas e económicas. Numa tentativa de ultrapassar a questão, Thompson propõe o conceito de “pluralismo regulado”, um modelo que exige “uma nítida separação entre as instituições da mídia e o exercício do poder do Estado” (Thompson, 1998: 210). Este 41

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autor sugere uma intervenção legislativa na indústria dos media “como meio de truncar o excessivo poder dos grandes conglomerados” (idem, ibidem). Porém, nas actuais circunstâncias, Thompson admite como “inexequível quanto indesejável tentar prescrever as formas mais apropriadas de organização” (idem, ibidem). Por isso, para que haja diversidade e pluralismo nos media propõe “a existência de uma variedade de formas organizacionais” (idem, ibidem: 211). Como vimos, é muito duvidoso que a recepção dos produtos dos media possa ser considerada como um simples acto manipulado e irreflectido de consumo. Porém, uma coisa é o grau de conhecimento que as mensagens mediáticas produzem nos receptores, outra coisa é a eventual actividade decorrente do acto da recepção. Nicholas Garnham expressou as suas dúvidas na discussão crítica que realizou sobre as pesquisas de audiências: “the point is not whether the audience is active or passive, but rather the fields of action which are opened up or closed down” (Garnham, 2000: 118). Com o intuito de deixar claro que um comportamento não passivo pode não se traduzir numa acção efectiva, Garnham lembra a necessidade de distinguir entre comportamento e acção: “behaviour being habitual and unreflexive while action is consciously intentional” (idem, ibidem: 111). Este mesmo autor, na sequência da sua conceptualização da relação audiência-media como uma actividade de consumo, especificou o alcance das limitações individuais desmistificando o conceito dos chamados consumos activos: “In particular I will do this by critiquing the idea that an active audience is necessarily a powerful or resistent audience.” (idem, ibidem: 126). Também, segundo Nick Couldry, “we need also to understand better how media contribute to people’s agency across various institutional spheres outside media. Every sphere of life requires separate study (for example, consumption, personal relations, health, education, work, politics).” (Couldry, 2004) Em resumo, parece que o cerne da questão sobre os consumos activos ou passivos deverá ser procurado em esferas institucionais exteriores aos media que acabam por determinar as assimetrias entre produtores e receptores, de que iremos falar a seguir. 2.2.2.2.

Assimetrias entre emissores e receptores

As relações assimétricas têm sido um dos aspectos marcantes das investigações sobre receptores e produtores nos media: “Em todos os tipos de comunicação de massa, o contexto de produção é geralmente separado do contexto (ou contextos) de 42

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recepção. (…) Os receptores são, pela própria natureza da comunicação de massa, parceiros desiguais no processo de intercâmbio simbólico” (Thompson, 1998: 3435). Desta forma, a comunicação pública não tem forma de escapar à assimetria: “a forma institucional, profissional e crescentemente especializada dos processos de produção e difusão de mensagens – em contraste com o que acontece ao nível da recepção – desequilibra decisivamente a favor destes níveis (e dos complexos sociais que os sustentam) a dinâmica geral dos processos comunicacionais” (Esteves, 2003: 152). A situação é reconhecida pelo próprio Habermas, três décadas depois de escrever a sua obra clássica The Structural Transformation of the public Sphere: Las estructuras de la esfera pública reflejan inevitables asimetrías en lo concerniente a las informaciones de que se dispone, es decir, desiguales oportunidades de acceso a la producción, validación, regulación, control y presentatión de los mesajes. A estas restricciones sistémicas se añade la desigual distribución debida a la contingência de las capacidades individuales (Habermas, 2005: 404) A dificuldade da teoria habermasiana em entender a actual natureza dos media também pode passar por aqui. Contrariamente à situação do diálogo face a face, em que, apesar de poder haver uma desigual relação de poder, a troca de significados é constantemente recíproca e imediata, os processos de comunicação social envolvem, geralmente, relações assimétricas e distanciadas entre o emissor e o receptor da mensagem: “This is indeed why, contrary to the position of ethnomethodology, the face-to-face dialogue is not a good model upon which to base the analysis of mediated social communication.” (Garnham, 2000: 114). Olhar para as relações entre os agentes sociais e os media sem ter em conta os dados da economia política é o primeiro passo para não nos apercebermos dos constrangimentos à comunicação pública: (…) a forma de funcionamento dos media nas nossas sociedades é por demais sintomática de uma séria preocupação. Nomeadamente, pelo modo como neles é posto em causa o princípio da igualdade. A complexidade técnica dos dispositivos e, sobretudo, a economia-política que rege o funcionamento dos media favorecem uma quase-institucionalização de 43

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estatutos diferenciados dos participantes (membros dos públicos), que corresponde a uma verdadeira estrutura hierárquica do poder (Esteves, 2003: 56). Os meios não tratam igualmente os actores sociais. Por esse motivo, é nos media que se concentra, em grande medida, a luta pelo capital simbólico, pela influência e pela hegemonia. 2.2.2.3.

A visibilidade pública através dos media

A multiplicação do “tomar a palavra” por parte de numerosas subculturas que só conheciam uma remota visibilidade é, talvez, o efeito mais evidente dos meios de comunicação de massa (Cfr. Vattimo, 1992: 11-12). Para compreender esta nova visibilidade temos de perceber como o desenvolvimento dos media transformou a natureza da interacção social: A melhor forma de abordar a realidade das transformações que afectam o espaço público é elaborar uma espécie de cartografia dos lugares e dos repertórios da expressão pública, por outras palavras, referenciar os fóruns ou as arenas que permitem aceder a este espaço público, identificar quais os actores que conseguem alcançar uma real visibilidade. (Rieffel, 2003: 49) Este é mais um indício da fragmentação das sociedades actuais onde, devido à importância da dimensão simbólica, a construção das identidades se processa de forma cada vez menos linear. O que não invalida que essa construção continue a passar por uma dimensão conflitual: “Numa sociedade que produz uma pulsão para a mediatização de tudo, para a espectacularização da identidade, para os ‘15 minutos de fama’ e depois deixa no anonimato e na sombra os proletários da fama e da influência (…) não é de admirar que se esteja em plena luta de classes.” A frase é do historiador José Pacheco Pereira (2006) e remete, com alguma ironia, para o impacto da visibilidade na estrutura hierárquica do poder e para o facto de, nos dias de hoje, os intervenientes nos media disporem de recursos distribuídos de forma muito desigual.

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Seguindo o pensamento de John B. Thompson (1998: 121), os media criaram formas distintas de interacção mediatizada que diferem significativamente da interacção face a face. Para isso contribuiu a mudança da natureza da publicidade – da publicidade tradicional de co-presença para as várias formas de publicidade mediada prevalecentes hoje – o que alterou profundamente as condições sob as quais o poder político é exercido pois “antes do desenvolvimento da midia, os líderes políticos eram invisíveis para a maioria das pessoas que eles governavam, e podiam restringir as suas aparições públicas a grupos relativamente fechados em assembleias ou reuniões de corte” (idem, ibidem: 109). Em contrapartida, a publicidade mediatizada possibilitou que tanto os dirigentes, os indivíduos em geral ou os acontecimentos pudessem adquirir uma publicitação independente da sua capacidade de ser vistos e ouvidos directamente por um conjunto de pessoas co-presentes. A transformação começou com o advento da imprensa escrita, quando a ligação entre a percepção directa de um evento e a sua publicitação foi alterada. A ligação entre visibilidade e publicidade foi, desse modo, atenuada porque uma acção ou evento deixou de ter de ser presenciada pelos indivíduos para os quais ela adquire um significado político (Cfr. idem, ibidem: 116). Na perspectiva de Thompson, esta nova forma de publicidade levou os indivíduos a assumir graus de visibilidade e invisibilidade (Cfr. idem, ibidem: 118). Afastando-se de Habermas, Thompson relaciona os media electrónicos com uma nova forma de publicidade baseada na visibilidade e que não requer “discurso” no sentido habermasiano. 2.2.2.4.

Espaço Público e espaço mediático

Hoje em dia, os media constituem, em grande parte, o novo espaço público simbólico. Neste sentido, o espaço mediático configura um novo tipo de esfera pública associada a um novo conceito de publicidade: “A reinvenção da publicidade implica a criação de novas formas de vida pública que estão fora da alçada do estado” (Thompson, 1998: 206). Estas alterações significam a chegada ao Espaço Público de um conjunto de entidades que ultrapassam os mediadores da administração pública: O número de participantes do Espaço Público alargou-se entretanto extraordinariamente: em termos formais, hoje em dia a sua acessibilidade tornou-se praticamente irrestrita à generalidade da população, mas a par da presença dos cidadãos individuais, encontramos aí também poderosos 45

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agentes colectivos – o campo dos media, as instituições e organizações sociais mais diversas, e até o próprio Estado (Esteves, 2003: 180) A tendência de identificar a vida pública com a actividade do Estado deixou de fazer o mesmo sentido após a formação do Estado moderno, pois “como Habermas e outros mostraram, o desenvolvimento dos meios impressos de comunicação desempenhou um papel muito importante na emergência destas formas de vida pública” (Thompson, 1998: 207). Porém, com o advento dos media electrónicos atingiu-se um novo patamar: “Hoje, tem-se por adquirido que o espaço público se identifica em grande parte com o espaço mediático” (Correia, 2004: 184). O que leva, por vezes, à confusão entre a visibilidade mediática, logo pública, com uma efectiva representatividade na esfera pública. Dominique Wolton fez um estudo das contradições do Espaço Público mediatizado e alargado, mostrando que “a comunicação, em sentido lato, é hoje a condição funcional e normativa do espaço público e da democracia de massas, mas ela não pode, por si própria, garantir a qualidade do funcionamento deste espaço público democrático”. Uma das questões que perpassam várias destas contradições é o “papel regular da opinião pública através das sondagens”, que “constroem uma representação permanente da opinião pública” e passam, assim, juntamente com as informações dos media, a ser uma “condição para o funcionamento do espaço público alargado da democracia de massas”. Além disso, o público não vota sobre a grande maioria das questões que são abordadas pelas sondagens e as sondagens são usadas como complemento da legitimidade política, sem que possuam este significado (Cfr. Wolton, 1995). As transformações dos processos democráticos referidas anteriormente são devidas, em grande parte, ao facto de os media electrónicos se terem tornado no espaço priviliegiado da política. Sem os media, não é possível adquirir ou exercer poder pois “fora da esfera dos media existe apenas marginalidade política.” (Castells, 2003: 379) Ainda segundo este autor, “o que acontece no espaço político dominado pelos media não é determinado por eles: trata-se de um processo social e político aberto. Contudo, a lógica e a organização dos media electrónicos enquadram e estruturam a política” (idem, ibidem). Assim, pode dizer-se que actualmente, já não encontramos uma esfera pública como aquela descrita inicialmente por Habermas, ou seja, a reunião de um público, formado por pessoas privadas, que constroem uma 46

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opinião pública, com base na racionalidade do melhor argumento, e fora da influência do poder político e económico. Porém, tal não significa que a mediatização da sociedade e da política, tenha eliminado a existência da opinião pública. 2.2.2.5.

Media e opinião pública

Fora dos media existe opinião pública, mas a verdade é que o campo mediático controla, em larga medida, a palavra pública e a mediação simbólica. A vinculação entre a indústria dos media e a comunicação pública atingiu tais níveis que deixou pouco espaço para outras manifestações da opinião pública. Blogues e contactos via SMS são expressões recentes que ainda conseguem fugir ao mainstream da comunicação pública, mas não sabemos por quanto tempo. De acordo com Wilson Gomes, hoje em dia, os meios de comunicação, o mundo político e o público integram-se numa espécie de sistema de produção, circulação e consumo da opinião política (cfr. Gomes, 2000: 78). As lógicas deste sistema equilibram-se pela simbiose de interesses e pelo contraste de forças: “Conquistado o público, a indústria da informação trata-o como sua posse e passa a vendê-lo como consumidor ao mundo da produção económica, ao mesmo tempo em que o torna acessível como opinião pública ou eleitorado para o mundo da política.” (idem, ibidem: 79-80). Por outro lado, a omnipresença dos meios de comunicação social na vida quotidiana levanta a questão da manipulação da opinião remetendo para a teoria do agendamento, segundo a qual os media definem as questões da actualidade, ou para a teoria da espiral do silêncio, que tende a explicar a conformação geral com a opinião da maioria. Porém, a influência dos mediadores na opinião pública não é uma questão fechada: (…) os media tanto podem impor os temas na ordem do dia e fomentar o conformismo como podem alargar o debate e favorecer a multiplicidade de opiniões. No estado actual dos nossos conhecimentos, qualquer posição demasiado categórica em relação a esta matéria colide com a diversidade de casos observáveis e esquematiza exageradamente a realidade (Rieffel, 2003: 41)

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E, apesar de reconhecer a “enorme influência dos media”, Rémy Rieffel admite a incapacidade dos meios, por si só, “para construir de facto a opinião pública” (Rieffel, 2006). Jesús Timoteo Álvarez é mais categórico sobre a influência dos media na formação da opinião pública. Os media, convertendo-se no centro do processo político, “são na realidade configuradores e criadores do processo” (Timoteo Álvarez, 2006: 188), depois de recolherem o pulso da sociedade civil e as actividades e opiniões dos actores políticos. E, mesmo para os autores que não têm ainda uma resposta definitiva sobre o assunto, uma coisa é certa: “os media tornam-se, cada vez mais, no único padrão de legitimidade para todos os agentes sociais e para todas as formas de tomada da palavra” (Rieffel, 2003: 52). Ainda segundo este autor, citando Dominique Wolton, há que ter atenção numa mudança qualitativa do Espaço Público: “fala-se de tudo na praça pública, mesmo de problemas privados, e o maior risco é o de se confundir espaço público, concebido como espaço de troca de argumentos racionais, com espaço público utilizado apenas como simples lugar de livre expressão, sem hierarquia e sem normatividade” (Rieffel, 2003: 53). Como sublinha Wilson Gomes, “a opinião pública não é simplesmente o sujeito colectivo de opiniões, mas o sujeito colectivo capaz de manifestar decisões” (Gomes, 2000: 68). Por tal motivo, há quem advirta para as possíveis perversões do modelo discursivo: “Se apenas julgarmos pelo imediatismo e pela espontaneidade do uso da palavra, se apenas julgarmos pela bitola dos resultados das sondagens ou das audiências, caminharemos em direcção a uma «democracia de opinião» que se substituiria à democracia representativa, de que o Parlamento é o centro” (Rieffel, 2003: 53). Por outro lado, a crise da representatividade passa pelos “vícios do sistema tradicional de partidos” (Timoteo Álvarez, 2006: 191) onde o cidadão mantém alguma capacidade de influência através do voto, “mas este vem condicionado pela propaganda e pelo marketing eleitoral, pela exposição prolongada aos efeitos dos media e pela capacidade dos próprios media na definição de agendas e na determinação das preocupações gerais dos mesmos” (idem, ibidem). Ainda segundo este autor, no mercado dos votos as ideias contam cada vez menos, enquanto a definição dos espaços públicos se vai fazendo em função dos estilos de vida.

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2.2.2.6.

O papel central dos media

Na hipótese levantada no livro de Jesus Timoteo Álvarez (2006), os media “já não são apenas meios de informação, mediadores, mas um todo: fazem muito mais do que intermediar entre outros agentes (políticos e de mercado) e, inclusive, muito mais do que definir a agenda e converter a política num espectáculo, os media são o poder” (Timoteo Álvarez, 2006: 203). Na sequência da mudança nos referentes básicos da sociedade ocidental, marcada pelo absoluto peso dos meios de comunicação, o autor chega a uma reorganização que define como “poder diluído”, um poder social em que todos podem influenciar as decisões dos demais “uns, sem dúvida, mais que outros” (idem, ibidem: 220) e em que a “representação institucional dos partidos perde peso em tudo o que é intermediação política, a favor da nova democracia de opinião ou democracia de público” (idem, ibidem: 208). Em contrapartida, “os media são o território em que os vários actores públicos jogam o jogo da conquista de opinião, da presença pública, da ocupação de espaço público” (idem, ibidem: 223) na busca de um poder baseado em três pilares: “no monopólio da lei e da violência, na organização e gestão de recursos e na fundamentação, coesão e justificação da sua própria existência” (idem, ibidem: 217). Ainda segundo Timoteo Álvarez, o jogo proporcionado pelos media cria uma nova opinião pública que já não se manifesta prioritariamente através do sufrágio, indirectamente através de inquéritos e sondagens de opinião e subsidiariamente através dos meios de comunicação, mas que hiperactua e muda todo o processo porque “qualquer objecto de opinião é ponto de cruzamento de interesses muito variados (…), as situações são dificilmente previsíveis e costumam surgir por canais indirectos não controláveis (…), desencadeiam-se e estendem-se no momento em espaços e tempos novos (…) e exigem respostas ágeis e multidireccionais” (idem, ibidem: 223-224). De todo este complexo contexto resultaria a centralidade, senão mesmo a autonomia sistémica dos media, sustentados por uma lógica de actuação independente tanto do poder político como do poder económico: São um poder central porque recolhem a força que representa a opinião, porque

têm

força

para

organizar

a

dita

opinião,

porque

são

consequentemente um instrumento consciente dos agentes sociais, porque, ao terem-se convertido numa indústria com peso específico nos PIBs, têm 49

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objectivos económicos e de mercado próprios e porque têm a capacidade de estabelecer regras próprias dentro do jogo do poder (idem, ibidem: 217). Estabelecido o poder dos media na origem do “poder diluído”, Jesús Timoteo Álvarez define, contudo, os limites da influência dos meios de comunicação. Tendo em conta a dialéctica media-públicos e a capacidade de reacção das sociedades aos efeitos sociais dos media, a opinião pública não é directamente gerada pelos media, mas é sim “o resultado de um processo interpessoal cujo eixo dominante tem a ver com a interpretação e reorientação que os cidadãos fazem dos materiais servidos pelos media” (idem, ibidem: 258). 2.2.2.7.

Públicos e audiências

Com o desenvolvimento da relação entre os media e a opinião pública vem ganhando maior peso o conceito de «audiência» em detrimento do conceito de «público». De acordo com Nicholas Garnham, o incremento das formas de comunicação mediada separa, hierarquicamente, um pequeno número de produtores de um grande número de receptores participantes no processo da comunicação social mais como audiências do que como interlocutores dialógicos (cfr. Garnham, 2000: 115). Os «públicos», no sentido de agentes sociais interactivos, são envolvidos pela grande massa de audiências, o que tem consequências ao nível da esfera pública que pressupõe a existência de «públicos» empenhados nas questões de cidadania. Peter Dahlgren corrobora a ideia: “A noção de «audiência» torna-se, a este nível, demasiado limitativa e do ponto de vista teórico, precisamos passar dos membros da audiência para os cidadãos. (…) Tratando a «audiência» e o «público» como distintos, estaremos em melhor posição para estabelecer articulações sociais com a recepção” (Dahlgren, 1995: 120 e 122). Porém, este mesmo autor defende que não faz sentido opor de forma rígida «públicos» às «audiências» (Cfr. Dahlgren, 1997: 16) porque os media desempenham um papel fundamental na criação de percepções culturais comuns que não existiriam sem eles e o consumo de bens culturais serve para manipular recursos simbólicos para a construção de identidades (Cfr. idem, ibidem: 17). Parece, então, claro que, cada vez mais, os «públicos» são audiências, mas as «audiências» também querem ser «públicos».

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2.2.2.8.

Mediação e mediatização

A par da crescente mediatização da sociedade contemporânea há sinais que apontam para uma crescente desvalorização da mediação. Em Espanha, o PSOE deu, em Abril de 2006, mais um passo na chamada desintermediação dos meios, inaugurando a transmissão de comícios através da página do partido na Internet. Com esta inovação, o PSOE aproveita as possibibilidades audiovisuais da web procurando escapar ao controlo dos meios televisivos. Ao oferecer o sinal institucional gratuitamente, o partido procura evitar a propagação, para fora dos comícios, de imagens e enfoques não controlados. Esta novíssima tendência das instituições, em ultrapassar a função editorial dos meios, surge na sequência de outros sinais que vão dando conta de um cada vez menor papel da mediação. Nomeadamente, os media electrónicos, através do aumento da interactividade, eliminam intermediários ou orientam-nos para um papel residual: “No Fórum TSF, (…) a preocupação primordial do moderador face aos ouvintes não é manter a controvérsia, mas assegurar a clareza das intervenções” (Taborda, 2000). A aposta no «directo» e a desvalorização da editorialização, com a consequente poupança nos custos operacionais, é outra das tendências que configuram a própria mediatização como uma entidade mediadora: “ao ponto de hoje em dia os media quase terem abandonado a sua função constitutiva de mediação (de uma realidade exterior), tornando-se essencialmente geradores de realidade (da sua própria realidade)” (Esteves, 2003: 160). Segundo o relatório The State of the News Media 2006, do “Project for Excellence in Journalism” (2006) a redundância e a falta de conteúdo próprio são os maiores problemas do jornalismo moderno. Os novos meios preferem investir em tecnologia em vez de canalizar recursos para promover informação própria de qualidade. O novo paradoxo do jornalismo é que mais meios cobrem menos informações. Em consequência, a redundância dos meios limita o conhecimento e o debate público. Cada vez há menos jornalistas nos media e mais nos gabinetes de imprensa e comunicacão. De acordo com uma comunicação do administrador da RTP, Luís Marques, no IV Congresso da SOPCOM, em Portugal, “existem cerca de 100 empresas de comunicação, nas quais trabalham cerca de mil profissionais. Se se incluírem os profissionais em câmaras municipais e noutros tipos de informação esse número ultrapassa os dois milhares, o que é mais do que o conjunto dos jornalistas 51

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dos grandes órgãos de informação” (Marques, 2005). Pode, assim, concluir-se que o que falta em jornalismo, informação própria e diferenciada, sobra em comunicação e relações públicas, cujo objectivo é trabalhar a opinião pública na busca do consenso. Outros sinais da crise da mediação, entendida esta como promotora da comunicação pública, são referidos por Pissarra Esteves: (…) prevalece um fechamento objectivo das agendas (dos media e de discussão pública), cuja causa é sobretudo determinada pela supremacia de formatos mediáticos do género «infomercial» ou «infotainment» - em termos utilizados por Peter Dahlgren para caracterizar um tipo especial de discurso dos media, no qual as linhas de distinção de géneros tão diferentes como notícias, entretenimento e publicidade tendem a diluir-se (Esteves, 2005: 19) Com o objectivo de alcançar maiores índices de audiência, os media não recusam, muitas vezes, fazer concessões ao grotesco, ao violento e ao sensacionalista. Seguindo a lógica do «fait-divers», o consumidor de media torna-se um mero coleccionador de ilusões, onde o espectáculo é a palavra de ordem. Mas nem todos os autores diabolizam, à partida, os efeitos do «infotainment» e da política-espectáculo. Nicholas Garnham sintetiza, desta forma, as duas posições: (…) debates over the evaluation of the political implications of talk shows, or over the so-called ‘dumbing down’ or tabloidization of news and political reporting in both newspapers and broacasting, have in part turned on a difference between those who stress the populist and emotive nature of the discourse as dangerously anti-rational and thus anti-democratic on the one hand and, on the other, those who stress the democratically positive nature of the increased acess of ‘ordinary’ people to arenas of public debate previously dominated by political and intellectual elites. (Garnham, 2000: 172) Nesta segunda perspectiva o conceito de esfera pública mantém toda a actualidade, apesar das actuais condições de crescente mediatização. John B.

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Thompson argumenta que os media podem ajudar a abrir novos caminhos nas formas de organização democrática das sociedades modernas: (…) as instituições da midia têm um papel particularmente importante no desenvolvimento da democracia deliberativa (…) uma democracia deliberativa seria uma democracia mediada, no sentido de que os processos de deliberação dependeriam de instituições de midia, tanto quanto um meio de informação quanto um meio de expressão. (Thompson, 1998: 222) Em jeito de manifesto, que mais facilmente pode ser entendido como uma profissão de fé do que como uma análise da realidade, este mesmo autor sustenta que: Somente a vigorosa aplicação do princípio do pluralismo regulado acoplado ao desenvolvimento de novos mecanismos que permitam que os juízos de valor de indivíduos sejam incorporados reflexivamente em processos deliberativos em vários níveis da vida social e politica, poderão renovar a politica democrática (idem, ibidem: 223) Já vimos como os media electrónicos contribuíram decisivamente para a constituição de uma esfera pública não sujeita às contingências do tempo e do espaço. A vertente monológica da publicidade, que John B. Thompson associa à quase-interacção mediada, caracteriza, sobretudo, os media tradicionais. Porém, nos meios mais abertos à interactividade é comum a publicidade ser dialógica, ou mesmo trilógica ou plurilógica (a emite para b, que recebe e emite para c, que, por sua vez, funciona simultaneamente como receptor e emissor com destino novamente a a). Trata-se de complexos ambientes comunicacionais que sustentam um novo tipo de esfera pública segmentada com tradução na crescente fragmentação social e cultural que analisaremos a seguir.

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2.2.3. A fragmentação social e cultural

Para além da dificuldade em entender a realidade dos media, Habermas também não foi sensível à questão da fragmentação do Espaço Público, particularmente na obra dos anos 1960, onde defendeu a ideia de um espaço público homogéneo e coerente (Cfr. Rieffel, 2003: 52). Conforme já assinalámos (2.1.1.), e de acordo com Thompson (1995: 69-70), a esfera pública burguesa, descrita pelo autor alemão, tinha uma natureza restrita que só contemplava os homens e as élites instruídas, esquecendo a esfera pública plebeia. Daí, as críticas que Habermas recebeu de algumas feministas, designadamente Joan Landes na obra Women in the public sphere in the Age of French Revolution, onde a autora sublinha que a exclusão das mulheres era constitutiva da própria noção de esfera pública. Ao rever as suas teses três décadas mais tarde, e face às condições de diferenciação e de complexidade em que existe a esfera pública, Habermas admite a existência de vários níveis: a esfera pública episódica (bares, cafés, encontros na rua), esfera pública da presença organizada (encontros de pais, públicos que frequentam o teatro, concertos de rock, reuniões de partidos) e esfera pública abstracta ou virtual produzida pelos media (leitores, ouvintes e espectadores singulares espalhados globalmente). Apesar destas diferenciações, “todos esos espacios parciales de opinión pública, constituídos a través del lenguaje ordinário, permanecen porosos los unos para los otros.” (Habermas, 2005: 455). 2.2.3.1.

Espaço Público ou Espaços públicos?

O primitivo espaço social habermasiano caracterizava-se pela homogeneidade social do público e esta identidade permitia estabelecer um certo consenso. Porém, no espaço que corresponde à cultura de massas, é natural que existam interesses contraditórios, o que dá lugar a uma fragmentação do espaço em sub-espaços de classes, culturas, grupos de interesse ou minorias associativas. As razões são as mais diversas: alterações de costumes e do estatuto da mulher, enfatização das diferenças identitárias no que respeita a temas como a religião ou o ambiente, aumento da mobilidade e dos fluxos migratórios, especialização dos mercados e a emergência de novos segmentos de consumidores, aparecimento de novas tecnologias relacionadas com a produção de informação e conhecimento, ou ainda a relativização dos Estados54

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Nação. Daí que surjam naturalmente “novas transformações estruturais do espaço público, que passam pelo lançamento de esferas públicas múltiplas nas quais os media poderão desempenhar um papel estruturante” (Correia, 2004: 219). Porém, a segmentação da esfera pública suscita questões à própria democracia. A democracia requer um público ou públicos? Uma esfera pública ou diversas esferas públicas? Todd Gitlin avançou com a ideia de “esferículas públicas”, esferas segmentadas de assimilação que têm a sua própria dinâmica e formas de integração, em cuja formação teriam um papel decisivo os media interactivos e as novas formas de publicidade decorrentes desses meios: The diffusion of interactive technology surely enriches the possibilities for a plurality of publics – for the development of distinct groups organized around affinity and interest. What is not clear is that the proliferation and lubrication of publics contributes to the creation of a public – an active democratic encounter of citizens who reach across their social and ideological differences to establish a common agenda of concern and to debate rival aproaches. (Gitlin, 1998: 175) John Keane considera que a fragmentação da esfera pública é irreversível, o que exige uma revisão do conceito. Os antigos cafés e salões têm agora a sua correspondência em inúmeras “micro esferas públicas” características dos movimentos sociais com objectivos mais localizados. As “médias esferas” são aquelas que têm correspondência mais ou menos com os Estados nacionais e são mediadas por jornais de grande circulação e pelos media electrónicos. Já as “macro esferas públicas” de centenas de milhões de cidadãos são a consequência da concentração internacional das empresas de comunicação de massa, anteriormente pertencentes e operadas no nível do Estado-nação: O ideal de uma esfera pública unificada e a visão a ela correspondente de uma república territorialmente limitada de cidadãos que se empenham por viver à altura da sua definição do bem público são obsoletos. Em seu lugar, de maneira figurativa, a vida pública está hoje sujeita a uma «refeudalização», não no sentido que o termo assumiu no Strukturwandel der Öffentlichkeit, de Habermas, mas no sentido de uma modularização, do 55

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desenvolvimento de um complexo mosaico de esferas públicas de dimensões diferentes, sobrepostas e interconectadas, que nos obrigam a rever radicalmente a nossa visão da vida pública e as expressões suas «parceiras», como opinião pública, bem público e distinção público/privado. (Keane, 2001: 195). Quanto aos media, Keane (1997) citando Harold Innis, considera que “todas las clases políticas han buscado incrementar su poder haciendo uso de ciertos medios de comunicación para definir y controlar los espacios en los que viven sus súbditos”. Para o futuro, John Keane deixa em aberto a possibilidade de uma crescente conflitualidade com origem na luta pelo acesso ao Espaço Público: ¿Acaso la modernidad, al igual que las épocas anteriores, se distingue por formas dominantes de medios de comunicación que absorben, registran y transforman la información en sistemas de conocimiento acordes con las estructuras institucionales de poder dominantes? (…) ¿O verá el futuro una diversidad de tendencias contradictorias, influyendo no sólo nuevos modos de dominación, sino también batallas públicas sin precedente para definir y controlar los espacios en los que aparecen los ciudadanos? (idem, ibidem) Num ponto John Keane é peremptório: “la teoría de la vida pública que se aferra dogmáticamente a la visión de una esfera pública unificada, en la que se definen la «opinión pública» y «el interés público», es una quimera, y que por el bien de la democracia dicha teoría debe ser ahora arrojada al mar.” (idem, ibidem) Hoje em dia, parece claro que as sociedades modernas já não correspondem a um modelo unidimensional. Porém, a fragmentação social, só por si, não permite o aprofundamento da cidadania. Resta saber se as formas contraditórias e ambíguas decorrentes do pluralismo cultural induzido pelos media podem conduzir a novos direitos e práticas que consubstanciem novas formas de cidadania. 2.2.3.2.

Novas articulações público/privado

O advento da publicidade mediada, primeiro com a imprensa e depois com os meios electrónicos, atenuou as fronteiras entre o público e o privado: “a publicidade de indivíduos, acções ou eventos, não está mais limitada à partilha de um lugar 56

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comum” (Thompson, 1998: 114) como nas origens da modernidade europeia, no século XVIII, em que a emergência da esfera pública é situada nos cafés. Em 1700, por exemplo, havia 3000 cafés em Londres (Cfr. Habermas, 1994: 32). Hoje em dia, face às condições de diferenciação e de complexidade em que existe a esfera pública, registam-se diversos sentidos do que é privado e do que é público, e este é um dos aspectos que separa, por exemplo, o pensamento de Nancy Fraser do de Habermas, que entendeu a interpenetração entre a esfera pública e privada como uma mudança degenerativa na estrutura social da esfera pública burguesa. Segundo Habermas, quando o Estado atribuiu status público aos grupos de interesses ocorreu uma substituição do poder público pelo poder social. A assunção de uma esfera social repolitizada, que escapa à distinção entre o público e o privado, dissolve a separação entre a sociedade e o Estado: “In this intermediate sphere the sectors of society that had been absorbed by the state and the sectors of the state that had been taken over by society intermeshed without involving any rational-critical political debate on the part of private people” (Habermas, 1994: 176). Porém, para Nancy Fraser, somente os participantes podem definir o que é um assunto público; por vezes um assunto da esfera privada torna-se um assunto público (Cfr. Fraser, 1996: 128). No moderno capitalismo, a distinção público/privado é de tal maneira complexa que o privado existe na esfera pública, e o público existe no privado: Privacy might be commonly thought of as being confined to the spaces of the home, but this is also, increasingly, the place where, paradoxically, individuals gain access to the public sphere. This is mutually generated; the less individuals engage in practices of interaction in ‘public spheres’, the more they are likely to be engaged in interactive practices in private spaces, and vice versa. (Holmes, 2005: 77) Nicholas Garnham reconhece que múltiplas esferas públicas alargam o domínio do privado. Mas há que ter atenção: “we need to distinguish between a truly private realm, the irreducible site of individual autonomy (…) from the multiple public spheres within which we necessarily live” (Garnham, 2000: 187). Essas esferas contribuem para a formação das nossas identidades e podem ser mais ou menos democráticas na medida em que alcançam os requisitos do discurso ético. “The media are integral to these multiple public spheres and should be judged in each case 57

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on the basis of the identities and practices they foster” (idem, ibidem: 188). Ainda segundo Nicholas Garnham, estas múltiplas esferas públicas devem ser distinguidas da esfera pública política, onde a discussão é levada a cabo com o intuito de se chegar a um consenso necessário para acções concertadas no seio do Estado como sociedade organizada (Cfr. idem, ibidem). 2.2.3.3.

Fragmentação do Espaço Público e segmentação de formatos

As redes de comunicação intersubjectivas conduzem ao esvaziamento da fronteira entre os domínios público e privado. Neste contexto, a legitimidade do poder político deixa de assentar no modelo de comunicação racional-argumentativo “responsável pela exclusão dos não cidadãos do domínio público” (Esteves, 2003: 200) fundamentando-se antes nas relações conflituosas entre as diversas esferas públicas que constituem um Espaço Público multifacetado e heterogéneo. Assim surgem os shows pessoais tipo Oprah Winfrey em que especialistas são chamados a contribuir para uma discussão ao vivo com uma audiência de assuntos da vida pública e privada. Nicholas Garnham sustenta que estas formas de mediação e a relação dos media com os ditos especialistas são ambíguas: “The attempt to extend the boundaries of public discourse in the slogan «the personal is political» has become the radical narrowing of those boundaries in the enactment, orchestrated by the media, of «only the personal is political».” (Garnham, 2000: 106). Há uma televisão da intimidade, da mesma forma que proliferam os fóruns radiofónicos que permitem falar da própria vida. Perante tais exemplos, Garnham alerta para os perigos do populismo demagógico (Cfr. idem, ibidem). Nos actuais debates acerca dos media e dos conceitos de público e de privado, surge uma outra questão central - a privacidade, que os media electrónicos, primeiro, e a Internet, depois, ajudaram a transformar. Segundo o jornalista Paulo Querido, autor do livro “Amizades Virtuais, Paixões Reais”, as novas gerações não sabem o que é a questão da privacidade. Para quem nasceu em meados da década de 80, o facto de terem parcelas significativas das suas vidas expostas on-line não é preocupante. (Cfr. Querido, 2005: 21-22). Segundo John Keane o alargamento do processo da publicidade mediada ajuda a explicar os talk shows e a atracção dos jovens pelos jogos digitais: “O domínio da privacidade – considerado por Hegel e

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outros, o fundamento oculto das modernas sociedades civis – está a desaparecer” (Keane, 2001: 209). O facto de tudo ser, cada vez mais, tendencialmente, «público» origina uma banalização do «público» que acaba por ter reflexos no político. Daí a justificação para a proposta lançada por Néstor García Canclini: (...) la rehabilitación o la reinvención de lo público es clave para reconstruir lo político, entendiéndolo como la disputa reglada que hace posible la convivencia en la polis, en la ciudad.(…) Tenemos que explorar, entonces, qué es lo común. (…) Al mismo tiempo que los partidos políticos extraviaron su credibilidad y capacidad de representacion de los intereses públicos, los medios fueron ocupando esos lugares de intermediación y deliberación social. (…) Tal vez haya que buscar el sentido del lado de la ritualidad. Toda sociedad se articula no sólo por un conjunto de prácticas que contribuyen a la reproducción pragmática de las relaciones sociales sino también por acciones simbólicas – del orden de las ceremonias – que, más que operar, significan. (García Canclini, 2002: 136: 141: 150) De certa maneira, os programas de antena aberta podem entender-se como rituais e como acções simbólicas que se situam no interface dos domínios público e privado. São um espaço onde os indivíduos expressam as suas opiniões privadas sobre assuntos públicos: "as vozes dos cidadãos comuns são transportadas da esfera doméstica para o espaço institucional do estúdio e, logo em seguida, de novo projectadas, pelo rádio, para a esfera doméstica da audiência” (Taborda, 2000). Trata-se de um curioso circuito em que os indivíduos são estimulados a interagir para ultrapassar as limitações dialógicas dos media electrónicos, mas acabam por ver reforçada a esfera doméstica da sua atomizada existência. A fragmentação do Espaço Público e as novas articulações entre o «público» e o «privado» acabam por ter tradução nos formatos mediáticos e na própria concepção do estatuto dos media. No auge da polémica em que combateu o modelo de serviço público de radiodifusão, John Keane deixou críticas para Nicholas Garnham (defensor do serviço público) e, simultaneamente, para Jürgen Habermas:

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Las esferas públicas no están «alojadas» exclusivamente en los medios de comunicación de servicio público protegidos por el Estado, como tampoco (contrariamente a Habermas) están de alguna manera ligadas,

per

definitionem, a esa estrecha zona de la vida social ceñida entre el mundo del poder y del dinero (Estado/economía) y las agrupaciones prepolíticas de la sociedad civil. (Keane, 1997) Ao propor reconsiderar radicalmente a teoria da esfera pública, Keane defende uma perspectiva mais abrangente: “Las esferas públicas pueden desarrollarse y de hecho se desarrollan en diversos planos de la sociedad civil y de las instituciones estatales, entre los cuales se encuentran el territorio supuestamente enemigo de los mercados de consumo y el mundo de poder, que se extiende fuera del alcance de los Estados-nación” (idem, ibidem). Num sentido algo semelhante vão as preocupações de Néstor Garcia Canclini. Segundo este autor, todas as mudanças comunicacionais e tecnológicas no Espaço Público que recenseámos antes são vistas como parte de reestruturações mais amplas. García Canclini sumariza em cinco processos as modificações sócio-culturais que estão a ocorrer: 1. A rearrangement of the institutions and circuits for the exercise of public life. Local and national institutions decline in importance as transnational corporate conglomerates benefit. 2. The reformulation of patterns of urban settlement and coexistence. Condominiums rather than neighborhoods, multicentric distribution throughout the urban landscape rather than face-to-face interaction (…). 3. The reelaboration of “one’s own,” as a consequence of the predominance of goods and messages emitted by a globalized economy and culture over goods and messages based in the cities and nations in which one lives. 4. The consequent redefinition of the sense of belonging and identity, ever less shaped by local and national loyalties and more and more by participation in tansnational or deterritorialized communities of consumers (…). 5. The shift from the citizen as a representative of public opinion to the consumer interested in enjoying quality of life. One indication of this 60

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change is that argumentative and critical forms of participation cede their place to the pleasure taken in electronic media spectacles where narration or the simple accumulation of anecdotes prevails over reasoned solutions to problems. Another indication is the ephemeral exhibition of events instead of a sustained and structural treatment. (García Canclini, 2001: 24) Do ponto de vista de Habermas, num Espaço Público transformado, “ha de agudizarse el problema de como mundos de la vida diferenciados y en si pluralizados y desacralizados pueden integrarse socialmente si crece a la vez el riesgo de disentimiento en âmbitos de acción comunicativa desligados de autoridades sacras y liberados de instituciones fuertes.” (Habermas, 2005: 88). Definida a situação e colocadas as premissas parece não haver dúvida de que a resposta para o problema da fragmentação social e cultural não poderá deixar de ter em conta a forma como o Espaço Público se articula com as condições do Mercado.

2.2.4. A generalização do consumo

Até aqui recenseámos as perspectivas de diferentes autores sobre as transformações do Espaço Público ao nível tecnológico, comunicacional e da fragmentação sócio-cultural. Vamos agora deter-nos nas implicações das mudanças ao nível do Mercado. Actualmente, vivemos num mundo que gira em torno das mercadorias, às quais não escapa o próprio mercado dos votos: (…) a sociedade do século XX não foi organizada nem estruturada – nem exclusiva, nem principalmente – pelos governos, pelos sistemas políticos e pelos seus aparelhos de propaganda. O mercado e os hábitos de consumo, o marketing (…) tiveram e têm um papel-chave na articulação social. Este protagonismo só foi possível, no entanto, pela actuação decidida e orientada dos meios de comunicação social (Timoteo Álvarez, 2006: 120).

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Segundo este autor, a presença dos media ocorreu paralelamente com o desenvolvimento da estruturação social: “o protagonismo das massas ordenou-se no mundo ocidental em torno de dois grandes ciclos. O primeiro teve carácter político. Abrangeria, grosso modo, de 1915 até 1945. (…) O segundo ciclo alcançou o seu auge nas décadas dos anos 60 e 70. A sua característica fundamental é o desenvolvimento e a organização do consumo” (idem, ibidem: 119). Chegados ao início do século XXI, sustenta Jésus Timoteo Álvarez, os media são cada vez menos de massas, tal qual a sociedade: (…) encontramo-nos com um mercado, e uma sociedade, que é muitas coisas. É de massas – cada vez menos - , mas também é de cidadãos, com uma clara consciência dos seus direitos individuais históricos, e é de espectadores e de leitores, com consciência intelectual, e de consumidores, numa encruzilhada de interacções e interesses marcada pela complexidade e compreensível a partir dessa ilimitada presença dos media (idem, ibidem: XIX) Assim, o processo de consumo em massa reconfigurou o Espaço Público, onde o Mercado já marcava presença desde os primórdios da esfera pública burguesa. Porém, a dimensão económica introduzida pelos media acelerou transformações e provocou mudanças significativas tanto no mercado de bens materiais como no mercado de bens simbólicos. 2.2.4.1.

O valor simbólico das mercadorias

O menosprezo pela veracidade e a crescente valorização da sedução, que começou por ser apanágio da publicidade (propaganda) aos bens materiais, atingiu o universo simbólico em diversas áreas da vida social e política. O sociólogo francês Jean Baudrillard foi o primeiro, a partir dos anos 70 do século XX (Cfr. Baudrillard, 1975), a chamar a atenção para a importância do valor simbólico das mercadorias, para além do valor estritamente económico. O consumo consistiria numa relação activa estabelecida entre objectos, sujeitos e o mundo. Iria além de um simples processo de satisfação de necessidades de uso e troca e seria detentor de uma lógica própria, sendo parte do sistema cultural. Segundo John B. Thompson, as formas simbólicas submetem-se a dois tipos de valorização: 62

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A «valorização simbólica» é um processo de atribuição de «valor simbólico» às formas simbólicas. Este é um valor que os objectos têm em virtude do apreço, da estima, da indiferença ou do desprezo dos indivíduos. A «valorização económica» é o processo de atribuição de «valor económico» às formas simbólicas, um valor pelo qual elas podem ser trocadas no mercado. Em virtude da valorização económica, as formas simbólicas tornam-se mercadoria. (…) A comunicação de massa implica a mercantilização das formas simbólicas no sentido de que os objectos produzidos pelas instituições da midia passam por um processo de valorização económica (Thompson, 1998: 33) Vemos, assim, como as mensagens simbólicas (políticas e culturais) se tornaram, em larga medida, mercadorias. Por outro lado, há um processo de semiotização graças ao qual os bens e serviços já não são apenas bens e serviços. De acordo com Baudrillard, qualquer bem, para que seja consumido, deve transformar-se primeiramente em signo. 2.2.4.2.

Os media entre o político e o económico

À medida que o mercado dos media se ia desenvolvendo, a indústria apelava, cada vez mais, ao consumidor e relegava o cidadão para segundo plano. A contradição crescente entre o político e o económico foi assim descrita por Nicholas Garnham: Within the political realm the individual is defined as a citizen exercising public rights of debate, voting, and so on, (…) The value system is essencially social and the legitimate end of social action is the public good. Within the economic realm, on the other hand, the individual is defined as producer and consumer exercising private rights through purchasing power on the market in the pursuit of private interests (Garnham, 1995: 245-246). Ao operar simultaneamente através dos dois níveis (político e económico) o campo dos media é um espaço ideal para examinar esta contradição: “On one side the market is seen as a bulwark against the great enemy, state censorship. (…) On the 63

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

other side capitalist control of the media is seen as an obstacle to free political communication and as the explanation of the media’s role in maintaining capitalist class hegemony. ” (idem, ibidem: 246). Assim sendo, a tradicional teoria liberal da imprensa livre não pode ser transposta directamente para os nossos dias sem ter em conta a “concentração de recursos da indústria de midia, levando à formação de conglomerados em grande escala, com interesses numa diversificada teia de actividades de midia” e “a intensificação do processo de globalização.” (Thompson, 1998: 207). É por isso que este autor sublinha quão diferente é hoje em dia a configuração destas questões relativamente àquilo que enfrentaram os pensadores liberais de há dois séculos atrás: Para eles, a principal ameaça à liberdade individual e de expressão vinha do Estado (…) Com a transformação das organizações da midia em organizações comerciais de grande escala, a liberdade de expressão teve que enfrentar novas ameaças que provêm não do excessivo uso do poder do Estado, mas antes do desimpedido crescimento das organizações da midia e de seus interesses comerciais. (idem, ibidem: 208) Até porque, como lembra John B. Thompson, o Mercado sozinho não cultiva necessariamente a diversidade e o pluralismo na esfera da comunicação. Tal como noutros campos produtivos, a indústria dos media é orientada principalmente pela lógica do lucro e da acumulação de capital, e não há correlação necessária entre lógica do lucro e o cultivo da diversidade. (Cfr. idem, ibidem: 208-209). Todavia, há uma particularidade nas organizações jornalísticas. Elas fazem a mediação entre um sistema produtivo baseado na propriedade privada e na busca do lucro e um sistema político que pressupõe a organização colectiva e a busca do bem comum. É esta situação sui generis que, segundo Sónia Serra, gera tensões e contradições internas e externas aos media jornalísticos: “Visões simplistas sobre a imprensa como um autónomo quarto poder ou como um subserviente aparato ideológico do Estado não são mais levadas em conta seriamente pelos herdeiros das tradições liberais ou radicais” (Serra, 2000: 107). Segundo esta autora, a visão mais aceite encara os media como um campo de conflito.

64

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

2.2.4.3.

A economia política dos media

Conforme já vimos (2.1.4.), na génese do Espaço Público esteve a contestação ao Estado absolutista por parte da burguesia, uma situação que não se verificou relativamente ao Mercado pois, desde sempre, foi impossível desligar o Mercado do Espaço Público burguês. Logo no século XVIII, o florescimento da imprensa surgiu intimamente associado às actividades mercantis e financeiras. E foi o alargamento do Mercado e a capacidade de aquisição e de afirmação cultural de uma classe ascendente (a burguesia) que permitiu a formação do «público». Desta forma, o incremento do consumo acabou por proporcionar o alargamento da esfera pública. Paralelamente, desenvolveu-se a indústria dos media com base em empresas onde a racionalidade económica foi assumida como um critério fundamental. Para estimular um tipo de publicidade que nem faça parte do Estado nem seja inteiramente dependente dos processos autónomos do Mercado, John B. Thompson defende (ver 2.2.2.1.) o princípio do pluralismo regulado, uma estrutura institucional que garanta a existência de uma pluralidade de organizações independentes. Porém, o autor reconhece os limites da sua proposta: “supor que debates intelectuais sobre as formas ideais de propriedade e de controlo nas indústrias de midia possam ter algum impacto significativo nas actividades destes grandes conglomerados é, com toda a probabilidade, um mero desejo.” (Thompson, 1998: 210). Pissarra Esteves corrobora esta ideia: A economia política dos media do mundo ocidental tem sido dominada, de há muito tempo a esta parte, por dois dispositivos centrais de regulação, o dinheiro e o poder – os dispositivos identificados por Niklas Luhmann, no quadro de uma teoria dos sistemas sociais, como os verdadeiros paradigmas dos «media simbolicamente generalizados» das sociedades complexas dos nossos dias (Esteves, 2005: 16) Pode, então, dizer-se que, perante o desenvolvimento do modo de produção capitalista, a colonização da esfera pública pelas forças do Mercado estendeu-se aos media. Ou, utilizando a linguagem de Habermas, o “mundo dos sistemas” passou a dominar o “mundo da vida” e, naturalmente, a comunicação pública não escapou às questões do poder: “questions about cultural production and consumption are never 65

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simply matters of economic organisation or creative expression and the relations between them. They are always also questions about the organisation of power and its consequences for the constitution of public life.” (Murdock, 2005: 11) Ao longo dos três últimos séculos, a comunicação pública foi sendo controlada administrativamente, por parte do Estado, primeiro, através da censura na imprensa, depois, através dos contratos de concessão de frequências no caso mais recente dos media electrónicos. Porém, não pode esquecer-se que as regras no Espaço Público mediático foram sendo definidas, numa crescente intersecção, entre o poder político e o poder económico, com este último a assumir, cada vez mais, uma maior relevância: (…) merece referência a viragem registada a partir da década de 80 do século XX, de onde resultou o estabelecimento de um novo equilíbrio no que respeita ao jogo de influências no binómio Estado-Mercado sobre os media: o poder do dinheiro como dispositivo central de regulação reforçouse enormemente desde então (Esteves, 2003: 155) Neste contexto, de supremacia do Mercado sobre o Estado, há que atender à actuação destas duas entidades sistémicas no Espaço Público e às interligações daí decorrentes, como sublinha Helena Sousa: O estudo das comunicações e dos media não é, de facto, mais pensável sem a tentativa de compreensão das estruturas de mercado e das suas articulações com a esfera política, sem a interrogação da propriedade das empresas e dos actores que dominam os mercados nas chamadas sociedades livres, sem a análise cuidada das tendências e das contratendências, das forças e das tensões que sistematicamente reorganizam o poder comunicacional de que as esferas públicas estão dependentes. (Sousa, 2005: 5) Numa lógica de mercado, os meios de comunicação social são sistemas para a produção económica e distribuição de bens e serviços culturais. Assim sendo, “we need to see the media as a process of production and consumption” (Garnham, 2000: 115). As preocupações deste autor sobre a economia política dos media são tanto 66

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mais relevantes porque o Mercado não só distanciou, do rol de preocupações imediatas da população, a actividade política, como a incorporou em regras de espectáculo consumista e de publicidade. Uma vez que a política não conseguiu fugir às leis do Mercado, a análise do exercício da cidadania no Espaço Público tem de se ater, em primeiro lugar, aos condicionamentos de ordem económica, na medida em que a separação estrutural entre os produtores e as audiências está ditada pelas relações no Mercado: “the first level of analysis of the audience is an understanding of the constraints placed on cultural production and audience formation by patterns of disposable income” (idem, ibidem: 116). Também Peter Golding e Graham Murdock, citados por Peter Dahlgren, criticam algumas perspectivas dos Estudos Culturais que excluem ou denigrem a dimensão da economia politica dos media. Tratar as instituições mediáticas como indústrias culturais implica a necessidade de assumir uma perspectiva que não seja unívoca, isto é, “focus on the interplay between the symbolic and economic dimensions of public communication” (Golding and Murdock citados por Dahlgren, 1995: 28) 2.2.4.4.

O Mercado e os conteúdos na rádio

Neste tempo de mudança, para os media em geral e para a rádio em particular, é importante avaliar em que medida os desenvolvimentos tecnológicos estão a reposicionar a indústria no Mercado. Um estudo da consultora Deloitte (2006), sobre as principais tendências da tecnologia, media e telecomunicações, admite que a rádio seguirá o caminho percorrido pela televisão, à medida que o seu modelo de negócio evolui, deixando de depender da publicidade para passar a contar com a subscrição ou assinatura. Ou seja, as empresas de radiodifusão terão que desenvolver modelos de estações consideradas de nicho em que o ouvinte escolhe o que ouve, quando (emissão em directo ou gravada) e onde ouve (no rádio, no computador, walkman, ou iPod). Esta alteração deverá proporcionar maior flexibilidade aos clientes e abrir novas oportunidades para os operadores. De acordo com o mesmo estudo, serão lançados novos mecanismos de distribuição do meio radiofónico. Neste momento, existem já 12 milhões de assinantes norte-americanos de rádio por satélite e prevê-se que este mercado registe um crescimento de 35% até ao final da década. No mercado de rádio em Portugal são esperadas contracções do volume de negócios e dos recursos humanos pelo menos até ao final de 2006. A previsão consta 67

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do relatório “Portugal Audiovisual” elaborado pelo Obercom (2006). De acordo com a mesma Análise Prognóstico é esperada ainda uma estabilidade do consumo de rádio. Segundo os resultados do estudo Bareme-Rádio da Marktest (2006), no primeiro trimestre de 2006, 4 milhões e 727 mil indivíduos ouviram rádio (referência: véspera), o que representa 56,9% do universo composto pelos residentes em Portugal continental com 15 e mais anos. No mesmo período de 2005 a Audiência Acumulada de Véspera foi de 60,6%, o que equivale a cerca de 300 mil ouvintes a mais (Cfr. Diário Digital, 2006). Também no Reino Unido, a audição de rádio não regista aumentos significativos,

verificando-se

uma

estagnação.

Segundo

o

relatório

The

Communications Market 2005 do Ofcom (2006), as razões para o fraco aumento das audiências prendem-se com a maior oferta que os ouvintes têm para consumir áudio, como por exemplo o aumento de 4,5% das vendas de álbuns em CD’s que se verificou em 2004, ou o uso de novos leitores de música que, segundo um inquérito da Ofcom, no final de 2004, 18% dos inquiridos possuia um leitor de música digital. Ainda assim, a indústria radiofónica apresenta-se na primeira linha da convergência. Os serviços de rádio estão disponíveis através de uma variedade de plataformas desde a televisão digital, aos telemóveis e à Internet, como também nos tradicionais receptores. Um quarto dos adultos britânicos escutou rádio através da televisão e o aumento da audição através da Internet é outra expectativa da indústria devido aos rápidos desenvolvimentos tecnológicos que se têm verificado, como por exemplo as redes wireless de banda larga ou a rádio on-demand. O leque de opções também se alargou devido ao podcasting que permite aos ouvintes descarregar os programas favoritos para os leitores de música digital e ouvi-los quando e onde quiserem. Deste modo, os conceitos de multimédia e a interactividade estão cada vez mais presentes na indústria radiofónica e no consumo de rádio, o que permite aumentar os serviços, satisfazer os ouvintes e gerar mais receitas para a indústria. Nos Estados Unidos da América, após um longo período de crescimento sustentado, a rádio enfrenta nos últimos anos uma diminuição da taxa de aumento das receitas. Esta conclusão surge no relatório Radio’s Leading Indicator publicado pela Arbitron (2005). Não obstante, a Arbitron conclui que a rádio, pelas suas características (nomeadamente a portabilidade e a capacidade de segmentação que proporciona) adapta-se bem às necessidades actuais dos publicitários, pelo que é previsível uma aceleração da taxa de crescimento do sector para breve. Em termos de 68

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

conteúdos, é de destacar nos últimos anos um aumento das audiências dos programas de tipo informativo, devido ao boom de informação que se seguiu ao 11 de Setembro. Segundo o estudo Radio Today 2005 da Arbitron (2005b), nos EUA o maior número de emissoras de rádio é de cariz informativo com 2179 estações. Todavia, a rádio

informativa

é

um

conceito

muito

lato.

O

chamado

formato

News/Talk/Information vai desde as rádios baseadas em notícias all news, que têm, efectivamente, custos de produção elevados – “news and current affairs involves a large web of production, employing staff to research story ideas, to gather information on the ground in costly bureaux across the globe, and yet more staff to select, edit and present the various bulletins and programmes in complex live studio operations” (Hendy, 2000: 38) – até ao phone-in e à rádio em directo, “cheaper than any other form of radio” (idem, ibidem: 88). Se atentarmos nas razões económicas, percebemos melhor por que razão existem nos EUA mais de duas mil rádios de palavra, a maior parte das quais de antena aberta aos comentários e intervenções dos ouvintes: An even cheaper form of speech programming is the phone-in, where again the live nature of the format means very little processing of material is required and where much of the speech is ‘produced’ virtually free of charge by listeners (…) there is an economic basis for the popularity of ‘talk’ formats, which can be even cheaper than music formats (idem, ibidem: 38) Assim, para David Hendy, as motivações da indústria ao apostar neste tipo de formatos são claramente de ordem económica, se bem que os interesses materiais acabem por confluir, no Mercado, com as expectativas das audiências em aumentar a sua participação no Espaço Público mediático. Habitualmente, estabelece-se uma linha divisória entre os estudos da produção (economia política) e os estudos do consumo (estudos culturais). Os membros da Escola de Frankfurt foram os primeiros a incorporar tanto a cultura como as comunicações no enquadramento da teoria social crítica, se bem que Adorno e Horkheimer priviligiassem a economia política, o que se tornou explícito ao preferirem o conceito de indústria cultural à comunicação de massas. Porém, a crescente convergência entre emissores e receptores nos media abre caminho a uma resolução da dicotomia produção/consumo através da interacção, que funcionaria, 69

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

assim, como ponto de encontro entre os anseios da audiência e os interesses da indústria. Esta pode ser uma explicação para a convergência, no Espaço Público, das motivações cruzadas entre emissores e receptores. Resta saber se a simbiose entre as manifestações do interesse público ou privado das audiências (cidadania, visibilidade, protagonismo) e as motivações económicas da indústria (minimização de custos, marketing social) podem resultar ou não num renovado e sustentado Espaço Público. 2.2.4.5.

O Mercado como Espaço Público

De acordo com o modelo habermasiano o Mercado é apontado como uma ameaça à esfera pública, não levando em conta que, na sua origem, o Mercado não era um lugar para negociar interesses privados, mas sim de troca de bens públicos. Neste domínio, segundo Nicholas Garnham, há duas questões a considerar: First that Adam Smith’s classic defense of the market, from which our core ideas about the market in relation to politics still derive, was that it was public, as opposed to the private corporate monopolies of the mercantilist absolutist feudal state. (…) But, second, a crucial, and largely neglected, aspect of Smith’s defense of the market as a public sphere also mobilizes the private/public distinction in terms of the beneficial effect on social behaviour of its public display. (Garnham, 2000: 176-177) Mas há ainda um outro problema: se acompanharmos Habermas na defesa de um Espaço Público autêntico, afastado da influência do Estado e do Mercado, não se vê bem como poderiam ser esfera pública os media que, ou são empresas capitalistas, ou são órgãos e empresas de Estados burocráticos. Por outro lado, parece forçada a conclusão de Habermas que o Mercado vai contra o Espaço Público. A dimensão cultural (literária e estética), que esteve na origem do conceito habermasiano da esfera pública, implica a democratização do consumo porque o aparecimento de novos segmentos de mercado aparece quase sempre associado à possibilidade de emergência de novos públicos. Resumindo, na sequência das transformações de ordem tecnológica, mediática, social e cultural que atingiram o Espaço Público, alargou-se o campo de exposição dos receptores que, ainda assim, permanece limitado porque é, em primeira linha, 70

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

estruturado pelos media à medida dos seus próprios interesses. Por tal motivo, para além do facto de a recepção ser mais activa ou mais passiva, parece importante determinar se a elaboração subjectiva feita pelo público, a partir das mensagens mediáticas, permite desencadear um efectivo campo de acção. E, neste caso, saber se esse campo está virado para aspectos puramente consumistas ou, em contrapartida, suscita o incremento dos valores da cidadania. Para já, a consideração habermasiana de uma dimensão cultural do Espaço Público, que implica a democratização do Mercado, permite concluir que o consumo e a cidadania não são entidades completamente arredias uma da outra.

2.3. CIDADANIA E CONSUMO

Até aqui procurou-se fazer o enquadramento teórico do estado da arte na rádio como Espaço Público no início do século XXI. Será agora oportuno retomar o espírito da pergunta inicial deste trabalho: mais interacção social, propiciada pelo desenvolvimento tecnológico, traduz-se num aprofundamento da cidadania ou simplesmente num incremento do consumo de bens e serviços, mas também de mensagens simbólicas políticas e culturais, que se tornaram em larga medida mercadorias? A introdução da dicotomia serve aqui, fundamentalmente, para efeitos analíticos porque, à partida, admito que ela não é completamente justa sob o ponto de vista científico. Se é verdade que o sistema económico vai frequentemente contra a cidadania, também pode contribuir para o seu alargamento se tivermos em conta que a democratização cultural e política deve boa parte da sua implantação a alguns traços do consumo de massas, por exemplo, a defesa das liberdades atribuída aos media. Ao longo do ponto 2.2., o objectivo foi demonstrar como a inovação tecnológica, a mediatização, a fragmentação social e cultural e a generalização do consumo determinaram uma formatação diferente das relações sociais no Espaço Público. A actividade dos media acabou por ter consequências determinantes no exercício da cidadania, na sequência da inépcia ou da incapacidade do Estado que, com as suas 71

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respostas lentas ou inexistentes aos anseios da população, abriu espaço para ser substituído pelos meios de comunicação social. Reclamações, protestos, ou simplesmente espaço para exprimir opiniões, encontraram eco no consumo dos media que, assim, fizeram deslocar o desempenho da cidadania em direcção às práticas do Mercado. Concorrendo com a cidadania, o consumo passa a ser utilizado como estratégia política. Nos meios de comunicação social, o aumento de formas de participação foi permitindo às pessoas exercer a sua liberdade de expressão e aceder ao Espaço Público que lhes foi negado noutras instâncias, por exemplo, nos partidos políticos, nas organizações sociais, etc. No início do século XXI, os media, em especial os audiovisuais, estão a dar um contributo decisivo para a construção de uma cidadania que se pode tornar civicamente empenhada ou exclusivamente vinculada ao consumo.

2.3.1. A cidadania como um conceito dinâmico

Nos tempos modernos, a cidadania foi concebida como uma noção que incluia as prerrogativas e subordinava as diferenças em função da igualdade de direitos, definidos em termos universais e estabelecidos juridicamente na sequência das revoluções americana e francesa e com o estabelecimento do conceito de Estadonação. Na obra clássica Citizenship and Social Class, publicada originalmente em 1950, T. H. Marshall (1992) distingue três fases diferentes na evolução da cidadania: a civil, que consagra a liberdade de expressão, de pensamento, de confissão religiosa e os direitos à propriedade e à justiça; a política, sobre o direito ao voto e em participar em decisões públicas; e a social, relativa ao direito à segurança, à assistência e a partilhar a herança social “and to live the life of a civilized being according to the standards prevailing in the society” (idem, ibidem: 8). A formação histórica dos direitos correspondentes a cada uma destas três fases remonta, em termos esquemáticos, respectivamente aos séculos XVIII, XIX e XX. Porém, o próprio T. H. Marshall admite que a cidadania social não seria o fim do desenvolvimento histórico do conceito, que entendia como sendo “dinâmico” e sempre em conexão com a vida e com o fluxo de “participação” dos indivíduos na sociedade. 72

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

Também autores mais recentes seguem esta tese: “verificamos que o conceito de cidadania está sujeito a mudar ao longo do tempo e consoante as condições” (Puhle, 2000: 32). Isin & Wood especificam o alcance da mudança: “We want to go beyond the forms of citizenship he [T.H. Marshall] mentions and advocate ethnic, sexual, technological, ecological and cultural forms” (Isin & Wood, 1999: viii). Por tal motivo, segundo estes dois autores, a perspectiva de T. H. Marshall deve ser actualizada: “While we find his framework useful, especially his focus on class, we also stress the need to go beyond his work by including different forms of citizenship, which he perhaps could not have considered” (Isin & Wood, 1999: 22). Seguindo o pensamento de Isin & Wood: Citizenship can be described as both a set of practices (cultural, symbolic and economic) and a bundle of rights and duties (civil, political and social) that define an individual’s membership in a polity. It is important to recognize both aspects of citizenship – as practice and as status – (…) many rights often first arise as practices and then become embodied in law as status. Citizenship is therefore neither a purely sociological concept nor purely a legal concept but a relationship between the two (Isin & Wood, 1999: 4) Esta abrangência torna o exercício da cidadania, na esfera pública contemporânea, cada vez mais complexo, razão pela qual não custa admitir que o conceito assuma parâmetros completamente diferenciados daqueles que balizaram a cidadania até ao século XX. Neste âmbito, regista-se que os direitos de cidadania são reivindicados, hoje em dia, por segmentos da população cada vez mais específicos. Refira-se, a título de exemplo, que o presidente da Associação de Doentes Obesos e ex-Obesos de Portugal, Carlos Oliveira, considera que o agravamento e até recusa dos seguros de vida aos doentes crónicos representa para estes uma “perda de cidadania” que é preciso combater (Oliveira, 2006). No início do século XXI forjamse, deste modo, novas conceptualizações de cidadania para a saúde, tal como para a cidadania ambiental, cultural ou mesmo a cidadania global, através da qual activistas transnacionais procuram, de uma forma inovadora, formas institucionais de actuação que vemos emergir num mundo cada vez mais globalizado e interdependente.

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A CIDADANIA COMO MERCADORIA

2.3.1.1.

Da cidadania civil à cidadania global

Hoje em dia, parece claro que é insuficiente uma estrita dimensão civil, política e social da cidadania. Assim sendo, importa reconfigurar o conceito, na sequência dos fenómenos de mediatização e da generalização do consumo que atingiram a cidadania, à semelhança do que sucedeu com as transformações ocorridas no Espaço Público: “new concepts of citizenship are emerging as modern capitalism is transformed in new ways and thereby dislocates us as producers and consumers.” (Isin & Wood, 1999: ix). Ainda segundo estes autores: The result is a conception of consumer citizenship which neither accepts the consumer citizen as the passive automaton of traditional critical theory, following the rules set out by mass media and advertising, nor constitutes the consumer citizen as the free subject, making unmediated and unconstrained choices (Isin & Wood, 1999: 24) Vai no mesmo sentido o pensamento da professora de Ética e Filosofia, Adela Cortina: “El consumidor no es soberano, no elige con perfecta información, sin estar condicionado por la propaganda ni presionado por sus deseos, pêro tampoco mas es un esclavo determinado por fuerzas ocultas. Goza de una libertad básica (…) que le permite forjarse a su autonomía” (Cortina, 2002: 235). Afinal de contas, uma liberdade idêntica à do cidadão que, ao tomar racionalmente opções políticas, não deixa de estar condicionado pelos media, pelo marketing político e pelas suas próprias emoções. A interpenetração dos dois conceitos é, assim, explicada por João Carlos Correia: A distinção entre «cidadãos» e «consumidores» é meramente analítica, servindo de referência para atitudes nem sempre fáceis de distinguir. Um consumidor tem direitos, pode defendê-los de modo activo e protestar contra a forma grosseira como eles são objecto de manipulação pela publicidade enganosa. Ao invés, um cidadão, no exercício da sua cidadania, pode ser motivado por atitudes irracionais e consumistas. (Correia, 1999)

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A CIDADANIA COMO MERCADORIA

Os pontos de contacto entre o cidadão e o consumidor vão aparecendo à medida que avançamos no desbravamento teórico. Saber até que ponto, a partir da interacção na rádio, vai a vinculação entre as duas entidades (cidadania e consumo) é, afinal de contas, a pergunta que está na origem desta investigação. 2.3.1.2.

Cidadania económica

A incorporação de questões relacionadas com o consumo na agenda das lutas dos novos movimentos sociais, o que acontece por exemplo no movimento ecológico, sugere que a soberania do consumidor, propagada pelo capitalismo avançado, “can also move in the direction of consumer citizenship in which individuals constitute consumption as an active political, social and ecological practice” (Isin & Wood, 1999: 158). A questão, todavia, não é pacífica porque há consumos passivos, imobilistas e completamente condicionados que fazem duvidar da pertinência de levar tão longe a articulação entre cidadania e consumo. Os direitos do consumo são já considerados direitos de cidadania, mas uma maior integração tem sido posta em dúvida porque, tradicionalmente, a cidadania é vista apenas como o exercício de direitos e o consumo como a aquisição e fruição de bens e serviços. Paralelamente, é estabelecida uma delimitação absoluta dos campos colocando o consumo estritamente no sistema económico e referindo a cidadania à participação no sistema político. Há, todavia, quem sustente que o consumo não é só uma questão de economia: “Es una forma de relacionarse los seres humanos” (Cortina, 2002: 13). Segundo esta autora, a participação cidadã não tem que ser só politica, mas também económica. Quem não é cidadão no económico também não o é no político. Por isso, o consumo implica gozar de direitos, estar obrigado a cumprir deveres, assumir responsabilidades e reforçar o solidum da comunidade (Cfr. Cortina, 2002: 269). Os limites e as prerrogativas dos cidadãos económicos são, assim, sintetizados por Adela Cortina: Los consumidores no son una clase ni tienen por qué proponerse construir una república, en tanto que consumidores. Son, eso sí, personas y ciudadanos y, como tales, están obligados a forjar su ciudadanía, también como consumidores. Es ésta una dimensión suya como ciudadanos económicos. (…) La noción de ciudadanía económica es sumamente 75

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compleja pero, a mí juício ver, se despliega fundamentalmente en tres lados: es ciudadano económico quien participa de los bienes económicos de una comunidad política, quien decide junto con sus conciudadanos «qué se produce», como y para qué, y, por último, quien decide junto com sus ciudadanos «qué se consume», «para qué» y «quién consume». (Cortina, 2002: 138-139) Esta proposta de cidadania económica, apresentada por Adela Cortina (2002), entronca com as teses de Garcia Canclini (2001) e Isin & Wood (1999). Todos eles sublinham que a concepção moderna de cidadania necessita de uma transformação radical na sua teoria e prática. Enquanto estratégia política, o conteúdo da cidadania é definido pela luta política sendo capaz de incorporar novas dimensões de subjectividade, aspirações, desejos e interesses que consigam generalizar-se como interesse colectivo e instituir-se como direitos. Assim sendo, novas formas de cidadania estarão a emergir, envolvendo um conjunto de práticas sociais e culturais, entre elas o consumo.

2.3.2. A estruturação da identidade

Os media, e de uma maneira geral a esfera pública, desempenham um papel decisivo na organização da subjectividade individual e colectiva: “the public sphere is not just a ‘marketplace of ideas’ or an ‘information exchange depot’, but also a major societal mechanism for the production and circulation of culture, which frames and gives meaning to our identities.” (Dahlgren, 1995: 23) A questão identitária na esfera pública é de tal maneira central que Peter Dahlgren situa neste ponto uma das principais tensões ideológicas dos dias de hoje: “if we link pervasive commodification of public culture with the notion of citizenship as an identity, we see how, at the level of political ideology, forces on the right have been defining citizenship precisely in consumerist terms.” (idem, ibidem) Embora esta ligação não seja exclusivamente redutível a um campo político e tenha defensores de vários quadrantes, que invocam uma noção de cidadania dinâmica e um papel do consumo cada vez mais importante na formação da identidade, Dahlgren equaciona a questão de uma forma clara e aparentemente definitiva: “what is at stake is whether people’s 76

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

identities as citizens can largely be reduced to and framed in consumer terms or whether some sense of the political – beyond market logics – can be retained in people’s conceptions of citizenship. (idem, ibidem). 2.3.2.1.

Identidade e consumo

Segundo John B. Thompson, o self “é um projecto que o indivíduo constrói com os materiais simbólicos que lhe estão disponíveis, matérias com que ele vai tecendo uma narrativa coerente da própria identidade” (Thompson, 1998: 183). Deste modo, a vivência individual não pode ficar imune perante as actuais vagas avassaladoras do consumo descritas por João Carlos Correia da seguinte forma: A relação entre o uso das coisas e a identidade que o seu utilizador constrói é, talvez, uma das descobertas fundamentais do capitalismo moderno. Sobre ela ergue-se todo o marketing, publicidade e moda modernos, os quais, por seu lado, evidenciam uma nova natureza do consumo. Por mais que se despreze esta alteração estrutural em nome de uma permanência dos mecanismos de dominação, haverá que aceitar que ela constitui um dado novo que altera a economia e a vivência individual, os padrões de consumo, a relação com o corpo e o self. Talvez seja nessa arena que se tenham de travar, também, as sempre inacabadas lutas pelas emancipações que marcam o destino humano. (…) Será tudo isto uma ilusão induzida pelo funcionamento do mercado? Ou, por detrás, desta insistência no desejo e na fruição da subjectividade se esconde uma nova geração de direitos que implica a reconfiguração da ideia de cidadania? (Correia, 2001: 3-5) Esta dúvida metodológica acaba por colocar o problema da identidade no lugar central onde são detectáveis as transformações por que está a passar a relação entre o Mercado e o Espaço Público. Na estruturação da identidade o consumo vem atrelado à cidadania ou vice-versa? A construção da identidade através do consumo entronca no facto de, para além dos aspectos materiais, a fruição e exibição dos bens ter sobretudo um valor simbólico porque as pessoas necessitam de comunicar que têm êxito na vida, ou procuram aceder a uma classe a que não pertencem através dos bens de consumo:

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A CIDADANIA COMO MERCADORIA

Si es verdad que el consumo tiene una función comunicativa, si es verdad que las gentes consumen determinados productos para comunicarse a sí mismas y a otras que pertenecen a un determinado grupo social, que se identifican con él, es importante fragmentar los mercados y dirigirse a distintos sectores de la población con cada tipo de productos, ofereciéndoles la oportunidad de consumirlos y, com ello, de pertrecharse de nuevas identidades (Cortina, 2002: 81) Uma vez que o consumo não tem a ver só com aquisição de bens utilitários, mas com a construção da própria identidade, a exibição dos bens revela a nossa pertença a uma cultura particular. Segundo Engin F. Isin & Patrícia K. Wood a questão da cidadania erigiu-se a partir das transformações significativas no caminho para a condição pós-moderna caracterizada, desde os anos 70, por várias mudanças interligadas “to an increasing aestheticization of everyday life where consumption has become a constitutive aspect of identity formation” (Isin & Wood, 1999: 155156). Assim, não é difícil conceber que “any gains in the identity of citizenship will, to a large extent, have to be won at the expense of consumerist identities” (Dahlgren, 1995: 148). Néstor García Canclini (2001) defende que o consumo não significa simplesmente a posse material de um bem, mas também a sua apropriação simbólica. A função mercantil dos bens é apenas uma das múltiplas funções que possuem. Por tal motivo, este autor considera o consumo um procedimento de identificação muito mais eficaz que a territorialidade: (…) postmodern identities are transterritorial and multilinguistic. They are structured less by the logic of the state than by that of markets. Instead of basing themselves on oral and written communications that circulated in personalized spaces, characterized by close interaction, these identities take shape in relation to the industrial production of culture (García Canclini, 2001: 29) De resto, a relação com a identidade só recentemente começou a ser analisada no estudo do consumo dos meios de comunicação social. John B. Thompson mostrou

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A CIDADANIA COMO MERCADORIA

atenção a esta realidade e apontou algumas deficiências sobre a natureza e o papel dos receptores, verificadas nas pesquisas anteriores: (…) ao procurar sobretudo medir e quantificar o público e as suas respostas, elas tendem a negligenciar o que poderíamos descrever como o caráter mundano da atividade receptiva. Por ele entendo o fato de que a recepção dos produtos da midia é uma rotina, uma actividade prática que muitos indivíduos já integram como parte das suas vidas quotidianas. Se quisermos entender a natureza da recepção, devemos nos aproximar dela com uma sensibilidade para os aspectos rotineiros e práticos da atividade receptiva (Thompson, 1998: 41-42) Em resumo, no mundo pós-moderno, o consumo cultural é visto como o material com que construímos as nossas identidades, isto é, segundo as palavras de Hugh MacKay, “we become what we consume” (Mackay, 1997: 2). 2.3.2.2.

Consumo e estilo de vida

Featherstone, citado por Isin & Wood, chega a uma original descrição do consumismo e desenvolve três temas que os anteriores estudos sobre o assunto negligenciaram: (…) that individuals are not passive consumers (in the way suggested by theorists of mass society) but are actively engaged in consumer practices; that such forms of activism could be seen as related to class strategies and habitus (and hence that they are not part of an undifferentiated ‘mass’); and that the term ‘lifestyle’ could be used to understand the dynamics of consumer cultures (as individuals exercised agency to mould their consumer practices into distinctive patterns). (Isin & Wood, 1999: 150) O consumo e o consumidor reflexivo, auto-afirmativo, são essenciais para a emergência daquilo que Anthony Giddens chamou política do «estilo de vida», característica da pós-modernidade. João Carlos Correia clarifica a insistência de Giddens no argumento segundo o qual o «estilo de vida», tantas vezes referido a

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A CIDADANIA COMO MERCADORIA

propósito da recente emergência das identidades, não significa um afastamento radical da esfera pública: Este percurso passa afinal por uma relação entre a política e o quotidiano, onde se pretende que os assuntos da vida, isto é, do privado, ascendam ao público. (…) A emergência da política da vida tem a ver com a ideia de que o espaço público deve manter uma abertura essencial no sentido de evitar que novas identidades permaneçam reprimidas e ocultas na esfera sombria da domesticidade. Deste modo, a relação entre o mundo privado e o universo da polis conhece novas fronteiras (Correia, 2004: 158) Naquilo que é, muitas vezes, apontado como a decadência da esfera pública moderna e onde se regista a diluição entre os contornos das esferas pública, privada e íntima, a generalização do uso do telemóvel traduz, porventura, a situação mais emblemática de uma transgressão da fronteira entre público e privado: trata-se de uma tecnologia destinada a “conducting private conversations but in public space” (Mackay, 1997: 275). Desta forma, ganha novos limites a relação entre o mundo privado e o universo da esfera pública que passa a integrar elementos da vida privada que acabam, também eles, por ajudar a formar a opinião pública. Por mais paradoxal que pareça assistimos, hoje em dia, a um auge da «cultura do eu» (privatização de atitudes e condutas) numa altura em que os media tendem a alargar o espaço comum de ideias e de símbolos que representa o «público». 2.3.2.3.

Uma teoria sócio-cultural do consumo

Verificamos assim que, a par da dimensão económica, o consumo está imbuído de uma dimensão social e cultural que vem ganhando cada vez mais consistência. No conceito proposto por Néstor García Canclini “consumption is the ensemble of sociocultural processes in which the appropriation and use of products takes place” (García Canclini, 2001: 38). Socorrendo-se das contribuições da sociologia e da antropologia, este autor explica por que razão o consumo não é uma realidade unívoca: Marxist studies of consumption, as well as earlier mass communications research (from 1950 to 1970), exaggerated the determining force of 80

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

corporations on consumers and audiences. A more complex theory of the interaction of producers and consumers, senders and receivers, as developed in certain currents of urban anthropology and sociology, shows that consumption is also motivated by an interactive socio-political rationality. (…) If consumption was once a site of more or less unilateral decisions, it is today a space of interaction where producers and senders no longer simply seduce their audiences; they also have to justify

themselves rationally

(idem, ibidem, 39) É este, igualmente, o sentido em que vão as pesquisas da antropologia do consumo, disciplina que visa entender o fenómeno no quadro das relações sociais e sistemas simbólicos. Concretamente, Mary Douglas e Baron Isherwood defendem que os bens de consumo são, em última instância, comunicadores de categorias culturais e valores sociais. Citados por García Canclini, aqueles dois antropólogos vão ainda mais longe e abrem caminho à teoria de que o consumo pode servir para pensar: “aside from their usefulness in expanding the market and reproducing the labor force, insofar as they distinguish us from others and help us communicate with them, «commodities are good for thinking», in Douglas and Isherwood’s words.” (idem, ibidem, 42). 2.3.2.4.

Identidade e reconhecimento

Enquanto o consumo foi ganhando uma vertente cultural e social, o exercício da cidadania tem vindo a ser associado a uma dimensão económica (ver 2.3.1.2.) e a registar uma fragmentação crescente em consequência da segmentação da sociedade, razão pela qual se questiona, cada vez mais, a pertinência da inclusão ser conseguida pela identidade e não pelo reconhecimento: Na medida em que as pessoas têm necessidades e capacidades diferentes o tratamento igual que lhes é dispensado pode significar, na prática, um aprofundamento da desigualdade. (…) O exercício da cidadania, num espaço tão diferenciado e fragmentado como o das democracias modernas, deve por isso reconhecer algumas das eventuais potencialidades normativas da fragmentação e do conflito, mais do que as potencialidades organizadoras de uma qualquer ordem sistémica (Correia, 2004: 154) 81

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

A necessidade de aceitar uma estrutura identitária com conflitos e contradições é igualmente sublinhada por García Canclini: (…) we should go beyond cultural studies limited to hermeneutic analysis and open up to a research agenda that combines signification and facts, discourses and their empirical groundings. (…) Contradiction and conflict are categories to be found at the core of this conception of cultural studies. Not to see the world from only one pole of the contradiction but to understand its specific structure as well as its potential dynamics. (…) I take up here a suggestion made by Paul Ricoeur in his critique of U.S. multiculturalism, that it would be better to emphasize a politics of recognition over a politics of identity. «In the notion of identity there is only an idea of the same, while recognition is a concept that directly integrates alterity, that permits a dialectic of same and other. The search for recognition, on the other hand, entails reciprocity» (García Canclini, 2001: 13) No processo de legitimação das lutas pela identidade os grupos sociais procuram acesso ao Espaço Público político para fazer ouvir a sua voz e manifestar as suas necessidades. Neste âmbito, há que assegurar as condições reais de uma utilização dos direitos formalmente iguais que ofereçam uma verdadeira igualdade de representação ao nível público. Mas não só. Como refere Maria João Silveirinha, o processo passa também “por encontrar formas comunicativas que não se centrem exclusivamente na questão do argumento, por considerar a deliberação não apenas como o processo que visa o bem comum, mas como aquele que ajuda os participantes a clarificar os seus interesses” (Silveirinha, 2005: 228). A exclusão passa, muitas vezes, por um critério que não parece ser de ordem sociológica (mulheres, negros, pobres) “mas sim de carácter normativo, directamente relacionado com um determindo modelo racionalista que se impôs ao nível do Espaço Público: a racionalidade que corresponde à comunicação argumentativa” (Esteves, 2003: 200). Por esse motivo, a exigência de igualdade, tendo em conta a heterogeneidade e a pluralidade, tem levado os movimentos sociais comprometidos com os cidadãos que se julgam oprimidos a lutarem chamando a atenção para um conceito de “cidadania 82

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diferenciada” como a melhor maneira de conseguir a inclusão de todas as pessoas (Cfr. Young citada por Correia, 2004: 150). Como alternativa à democracia deliberativa, Íris Marion Young propõe (ver 2.1.5.), o modelo da democracia comunicativa invocando um mais amplo espectro de formas de linguagens públicas: as saudações, a retórica e as narrativas. Com o intuito de superar a exclusão linguística é preconizada “a imposição ao nível da comunicação pública de outras formas de expressão, que não apenas a do discurso racional-critico-argumentativo” (Esteves, 2003: 201). Maria João Silveirinha (2005) clarifica, desta forma, o pensamento de Íris Marion Young: Muitas pessoas são intimidadas pelas regras formais das instituições deliberativas, sendo certo que a capacidade de argumentação (que conduz ao melhor argumento, nos termos de Habermas) não se encontra distribuída de forma uniforme por toda a gente (…) A democracia comunicativa – ao contrário da democracia deliberativa que parte do principio que a crítica e o dissenso são perigosamente disruptivos – espera a diferença, a discordância e o conflito. O objectivo do discurso não é a identificação mútua, mas o reconhecimento e o abranger das diferenças (Silveirinha, 2005: 222-223) Para além da questão do reconhecimento desenvolvida por Íris Marion Young, e prosseguindo na leitura de Maria João Silveirinha, é também citada Nancy Fraser, uma autora que insiste “na importância das lutas contra a injustiça, ancoradas na economia política da sociedade” (Silveirinha, 2005: 224). Segundo Nancy Fraser, a forma de vencer tais lutas passaria pela garantia de uma efectiva paridade participativa. Sem abandonarem o modelo deliberativo ou o modelo de Espaço Público, Íris Marion Young e Nancy Fraser vinculam as suas propostas à convicção de que as lutas de identidade apenas possuem força de legitimação na medida em que todos os grupos possam ter acesso ao Espaço Público político. Este contexto parece apontar que o caminho para se poder chegar a uma nova agora, num tempo dominado pela comunicação electrónica, terá de passar pela constituição de uma democracia comunicativa paritária, na qual o Mercado e o consumo dos media não mascarem nem adulterem a diversidade social no exercício da cidadania, assegurando as condições reais de uma utilização dos direitos formalmente iguais que ofereçam uma verdadeira igualdade de oportunidades ao nível público. Desta 83

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

forma, a paridade participativa poderia constituir, de facto, uma paridade comunicacional.

2.3.3. Consumo e política A desmaterialização dos bens e a proliferação de identidades como estilos de vida tiveram profundas consequências na cidadania. Para Néstor García Canclini, no mundo de hoje, a identidade do cidadão comum é ditada mais através do consumo privado de bens, insuflado pelos meios de comunicação, do que por dados relacionados às origens territoriais dos indivíduos ou pelos direitos promovidos pelo corpo de leis da sua comunidade: “We are leaving behind the era in which identities were defined by ahistorical essences. Today, instead, shaped by consumption, identities depend on what one owns or is capable of attaining.” (García Canclini, 2001:16). Para este autor, vincular consumo e cidadania é vincular uma série de práticas sociais e culturais que dão um sentimento de pertença a um grupo social: Redefining citizenship in connection with consumption and political strategy requires a conceptual framework for examining cultural consumption as an ensemble of practices that shape the sphere of citizenship. (…) In the past, the state provided the framework (albeit unjust or biased) that contained the variety of forms of participation in public life. Nowdays, the market brings together these forms of participation through the medium of consumption. We need to respond with a strategic concept that can articulate the various strands of citizenship so that they complement each other in the new and the old settings of the state and the market. (García Canclini, 2001: 22) Poderia ser este um caminho para articular a esfera pública e o Mercado, instâncias que se desenvolveram em conjunto desde os alvores da modernidade. O Mercado foi decisivo para configurar o Espaço Público contemporâneo (Cfr. Habermas, 1994: 79) e o consumo, apesar de ser habitualmente colocado fora da esfera pública, contribui para o seu funcionamento e transforma-a. De resto, a economia, e particularmente o consumo, não podem ser avessos à cidadania porque a economia tem relevância política, razão pela qual os direitos do consumo são 84

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

considerados direitos de cidadania. Parece, por isso, razoável repensar a esfera pública (ou Espaço Público) à luz da generalização do consumo que, cada vez menos, pode ser considerado um acto meramente privado, tal é o conjunto de interacções sociais que nele confluem. 2.3.3.1.

Cidadãos e consumidores

A dicotomia cidadão versus consumidor foi sempre apresentada de uma forma maniqueísta e o consumo começou por ser concebido como oposto à cidadania. Ao contrário do cidadão, os meios de expressão do consumidor eram limitados: enquanto os cidadãos podiam falar sobre qualquer aspecto da vida cultural, social ou económica (operando naquilo que Habermas chamou a esfera pública) os consumidores só encontravam capacidade de expressão no Mercado. Mas, se nos lembrarmos que foi o próprio Habermas quem sublinhou que o Mercado e o Estado definiam em conjunto a esfera pública, então o cidadão e o consumidor não são entidades contraditórias, mas sempre e inevitavelmente interligadas numa sociedade capitalista. Por outro lado, o conceito de cidadão foi desde sempre associado a um Estado-nação, com o qual as pessoas mantinham uma relação de direitos legais. Porém, a emergência de instituições políticas supranacionais, como a União Europeia, e de uma economia cada vez mais mundializada, através da globalização, rompeu com este status quo e abriu caminho a noções de cidadania europeia ou de cidadania global. Outro aspecto da dicotomia, classificava a cidadania como colectiva – idealmente os cidadãos constituiam um corpo homogéneo com direitos iguais perante a lei – enquanto o consumo era visto habitualmente como um acto individual. García Canclini contesta que o consumo seja uma actividade privada e despolitizada e sustenta que, com a degradação da política e a descrença nas instituições sociais, surgem fortalecidos outros modos de participação política e de identidade cultural. Citando o antropólogo Arjun Appadurai, García Canclini sublinha que o consumo não é algo «private, atomized and passive», mas sim «eminently social, correlative and active», subordinado a um certo controlo político das elites. (García Canclini, 2001: 43). Há mesmo quem defenda que as actividades de consumo operam na intersecção entre vida pública e privada, actuando no sentido de alterar as fronteiras entre elas (Cfr. Strasser, McGovern & Judt, 1998: 4). Para García Canclini, “this revision of the links between state and society cannot take place unless we take into 85

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

account the new cultural conditions in which the public and private have been rearticulated.” (García Canclini, 2001: 22). A possibilidade de politização da esfera privada permite, deste modo, alargar o campo das práticas políticas. Consumidores educados podem ser tão politicamente relevantes como os cidadãos conscientes e a construção de novas formas de acção política, por parte dos consumidores, pode fortalecer a cidadania e revitalizar o Espaço Público. 2.3.3.2.

O consumo como estratégia política

García Canclini propõe um programa estratégico para travar a mercantilização da política. O objectivo é apropriar-se do consumo para desenvolver, através do Mercado, um regresso à política. A proposta é sugestiva, mas obriga a juntar à cidadania práticas de consumo que nunca tinham sido objecto dessa vinculação: Once we rethink citizenship as a «political strategy» we can more easily include emerging practices that have not yet been sanctioned by the juridical order and recognize the role of subjectivities in the renewal of civil socitey. In thus becomes possible to understand the relative place of these practices within the democratic order and to search for new forms of legitimimacy that take a more lasting form in another type of state (García Canclini, 2001: 21) Pelo menos num ponto, García Canclini (2001) e Habermas (1994) estão de acordo: todas as esferas da vida têm sido sujeitas à mercantilização. Dos serviços às relações sociais, do corpo humano à política, tudo se tem transformado em mercadoria. Deste modo, García Canclini reconhece, pragmaticamente, a dimensão globalizante do Mercado e tenta encontrar uma saída para a crise da política demarcando-se, todavia, das vias neoliberais: Not long ago a political perspective was seen as an alternative. The market discredited that position in a curious way: not only by fighting it and showing itself more efficient as a way of organizing societies, but also by cannibalizing it, submitting politics to the rules of commerce and advertising, spectacle and corruption. A better alternative, however, may be 86

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found in the social relation at the heart of politics: the exercise of citizenship (García Canclini: 19-20) Se bem que possam ser apontadas fragilidades à tese de García Canclini, nomeadamente o facto de poder induzir na ideia de uma submissão da cidadania ao consumo, a opção é, todavia, desmentida pelo autor: “Recognizing these transformations does not mean endorsing the dissolution of the citizenship in consumption” (idem, ibidem: 5). O intuito não é dissolver, mas articular, quiçá integrar o consumo como parte da cidadania e não o contrário. Pode também vislumbrar-se no trabalho de García Canclini uma rendição à ideologia consumista, pretendendo atribuir ao consumidor características de um indivíduo activo e puramente racional, tal qual um cidadão plenamente consciente dos seus direitos e deveres. Porém, tal como nunca existiu uma cidadania completamente esclarecida e imune a uma certa construção da realidade formatada pelos agentes políticos e pelos media, também o consumo não é passível de ser completamente intelectualizado, o que não obsta a que se possa pensar o papel do consumidor de uma maneira mais abrangente. Para isso é necessária uma diferente concepção do Mercado: “as not only a place for the exchange of commodities, but as a part of more complex sociocultural interactions” (idem, ibidem: 46). Paralelamente, o consumo deve ser visto não como a mera posse individual de objectos isolados, mas como apropriação colectiva em relações de solidariedade e diferenciação com outros, de bens que dão satisfações biológicas e simbólicas e que servem para enviar e receber mensagens. Ao repensar a cidadania em conexão com o consumo e como estratégia política, (Cfr. idem, ibidem: 22), García Canclini pode estar a abrir uma via para a resposta à pergunta inicial do presente estudo: mais interacção social na rádio, propiciada pelo desenvolvimento tecnológico, equivale a um aprofundamento da cidadania ou simplesmente a um incremento do consumo de bens e serviços, mas também de mensagens simbólicas políticas e culturais, que se tornaram, em larga medida, mercadorias? Se assumirmos um consumo dignificado como estratégia política, e atrelado à cidadania, então a dicotomia deixa de ter razão de ser e a interacção, para a cidadania ou para o consumo, pode transformar-se num dois em um. Os próximos capítulos deste trabalho tentarão responder a esta problemática.

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A CIDADANIA COMO MERCADORIA

2.3.3.3.

O consumismo político

Quando se opta por um bem ou um serviço, em detrimento de outro, a dimensão ética da escolha pode ser tão relevante como uma opção política directamente decorrente da recepção de uma mensagem simbólica. O boicote a produtos indonésios, durante a crise em Timor-Leste, ou o banimento de empresas turísticas ligadas à exploração sexual de crianças, são casos extremos de situações que poderiamos alargar às denúncias de produtores que não assumem a sua responsabilidade social, colocando no mercado bens de duvidosa qualidade; de intermediários que não cumprem elementares regras de higiene ou segurança; ou de promotores que mascaram características de bens ou serviços de modo a transaccionar gato por lebre. O consumismo político, isto é, consumir bens ou serviços na base de considerações éticas ou politicas, pode ser também uma forma de participação política (Cfr. Stolle, Hooghe, & Micheletti, 2005). Um estudo realizado, por estes investigadores, com jovens estudantes do Canadá, Bélgica e Suécia revelou que o consumismo político e outras formas emergentes de participação são elementos essenciais, embora frequentemente negligenciados, para o debate acerca do declínio da participação cívica (idem, ibidem: 249). O governo e o Estado já não são vistos como os primeiros alvos da acção politica: “as states tend to lose control or meet with competion from other spheres over the authoritative allocation of values in society, citizens seek new arenas for political participation” (idem, ibidem: 251). O estudo revelou ainda que os consumidores políticos não estão tão desligados dos processos políticos como se poderia pensar: “These citizens are not alienated: they continue to engage in conventional forms of participation, although they are aware of their limitations” (idem, ibidem: 263). Ao assumirem comportamentos eticamente relevantes, os consumidores estão também a contribuir para elevar os padrões de cidadania e integrar o consumo na agenda política global, o que nos remete, de novo, para o pensamento de Adela Cortina: “la economia global, que propicia una distribuición global del consumo, exige una ciudadanía global del consumidor.” (Cortina, 2002: 297). Este é mais um aspecto que revela como a dicotomia consumo/cidadania está em transformação, tem novos limites e, porventura, cada vez menos pertinência. Todavia, não se podem escamotear os entraves ainda existentes à cidadania económica do consumidor: nem 88

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todos os seres autónomos, capazes de fazer escolhas, têm capacidade aquisitiva e informação plena sobre os bens (simbólicos e não simbólicos) colocados no mercado. Daí, a importância que pode assumir a dignificação da ética do consumo no esbatimento dessa linha de alteridade. 2.3.3.4.

Ética e consumo

É com o consumo em massa, nos EUA do pós-guerra, que nasce a equação consumidor = cidadão. “Later, leaders of the consumer movement of the 1960s and 1970s would insist that all good citizens must become politically responsible and socially conscious consumers” (Cohen, 2003: 409). Actualmente, há autores que chegam a falar dos consumidores como a vanguarda da história, por alegadamente dirigirem grande parte da produção: “By recognising consumption as the vanguard of history, we acknowledge the massive influence of consumption upon the political economy” (Miller, 1995: 54). Ora, este duplo estatuto do consumo, como necessidade e como poder, deve, quando se trata de cidadãos, resultar em obrigações éticas: “El consumo, como toda actividad humana consciente, es expresión de la libertad y, por eso mismo, entra por derecho propio en el ámbito ético, en el ámbito de las acciones que se eligen y tienen que ser, por tanto, implícita o explícitamente justificadas.” (Cortina, 2002: 179). No seu livro, Adela Cortina explica que a ética a partir da qual é avaliado o consumo “es una nueva versión de la llamada «ética discursiva» creada en la década de los setenta del passado siglo por Karl-Otto Apel y Jürgen Habermas.” (idem, ibidem: 153). Segundo John B. Thompson, os media são um domínio no qual sérias preocupações éticas foram banidas há muito tempo e a recepção dos seus produtos tornou-se apenas uma outra forma de consumo (Cfr. Thompson, 1998: 224). Este autor lembra que “parte do persistente apelo da explicação original de Habermas sobre a transformação da esfera pública está nesta aguda perspectiva crítica daquilo que se poderia descrever como o esvaziamento da ética na vida pública” (idem, ibidem). Ao reconhecer que o consumo “ha podido llegar a convertirse en la piedra angular de la cultura, la política y la economía en la Sociedad de la Información” (Cortina, 2002: 64), Adela Cortina tenta reverter a situação a favor da cidadania propondo uma teoria ética do consumo:

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Ciudadanía obliga, y obliga en esa dimensión humana que es la de ser consumidor a elegir la forma de consumo atendiendo a unos critérios, y no a otros, favoreciendo unas actitudes y debilitando otras, proponiendo estilos de vida en la línea de lo que debería ser. Una «teoría normativa» del consumo se hace necesaria, una teoría acorde con esa noción de ciudadanía densa, de la que ya no podemos apearnos. (idem, ibidem: 38). A concretização do projecto não é de somenos importância: “Generar buenos hábitos de consumo y transmitirlos a través de la educación es una de las formas de enseñar a ser libre” (idem, ibidem: 78). Concluindo, poderemos dizer que as mudanças tecnológicas, comunicacionais e sócio-culturais alteraram profundamente a natureza do consumo e as formas de exercer a cidadania. García Canclini (2001) sustenta que num mundo globalizado, onde a própria actividade política foi submetida às regras do Mercado, o exercício da cidadania não pode ser desvinculado do consumo. Paralelamente, aquele autor rejeita as concepções que julgam os comportamentos dos consumidores como irracionais e alienados, negando igualmente a ideia de que os cidadãos actuam somente em função da racionalidade dos princípios ideológicos. O consumidor também pensa e o cidadão consome políticas e atitudes. Para García Canclini a globalização propicia a conversão de cidadãos em consumidores e a interculturalidade democrática está sobretudo subordinada ao Mercado. Não se trata apenas de uma alteração de conceitos, sob o desenrolar de um novo cenário cultural. Os cidadãos do século XVIII foram transformados nos consumidores do século XXI. A questão está em saber se existe uma racionaldade pós-moderna, formada por comunidades transnacionais de consumidores.

2.3.4. A razão e a emoção na cidadania e no consumo Na pluralidade de explicações para a racionalidade pós-moderna, “emotions are a resource” enquanto, nos tempos da modernidade, “emotions must be disciplined” (Nicholson citada por McKee, 2005: 118). Assim, da modernidade para a pósmodernidade, alteraram-se substancialmente as visões sobre a razão e a emoção, o que originou implicações no ordenamento político da sociedade, consequentemente na cidadania e no consumo. 90

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

2.3.4.1.

O adeus à razão pura

Se há uma noção a reter das mais recentes investigações, ao nível da Neurociência, é o adeus à razão pura, isto é, as decisões humanas estão longe de ser puramente baseadas na razão. A este propósito, o contributo de António Damásio foi inestimável. A inseparabilidade entre razão e emoção, o papel do marcador-somático na selecção das opções de resposta e, de uma maneira geral, “a simbiose entre os chamados processos cognitivos e os processos geralmente designados por «emocionais» torna-se evidente” (Damásio, 1995: 187). O filósofo Robert Solomon, citado por Daniel Goleman, já tinha defendido no seu livro "The Passions.The Myth and Nature of Human Emotions" (1976) que as emoções desempenham um papel fundamental nos nossos juízos ou decisões: (…) diz-se que as emoções distorcem a nossa realidade; eu defendo que elas são

responsáveis

por

ela.

As

emoções,

dizem,

dividem-nos

e

desencaminham-nos dos nossos interesses; eu defendo que as emoções criam os nossos interesses e os nossos propósitos. As emoções, e consequentemente as paixões em geral, são as nossas razões na vida. Aquilo a que se chama ‘razão’ são as paixões esclarecidas, ‘iluminadas’ pela reflexão e apoiadas pela deliberação perspicaz que as emoções na sua urgência normalmente excluem. (Goleman, 1996: 11) Porém, é com António Damásio que a impossibilidade de separar a racionalidade das emoções surge devidamente caucionada pela metodologia científica. Do trabalho desenvolvido pelo investigador português poderemos concluir que não parece sensato “excluir as emoções e os sentimentos de qualquer concepção geral da mente, muito embora seja exactamente o que vários estudos científicos e respeitáveis fazem quando separam as emoções e os sentimentos dos tratamentos dos sistemas cognitivos.” (Damásio, 1995: 172). 2.3.4.2.

Consumo racional, cidadania irracional

A propósito da suposta irracionalidade dos consumidores, García Canclini invoca alguns estudos antropológicos sobre rituais, lança perguntas pertinentes e avança com uma explicação: 91

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

How we can distinguish forms of expenditure that contribute to social reproduction from those that dissipate and fragment it? Is the «squandering» of money in the consumption of popular groups a self-sabotage of the poor, a simple demonstration of the inacapacity to organize themselves for progress? A clue in answering these questions is the frequency with which these sumptuary, «excessive» expenditures are associated with rituals and celebrations. A birthday or the anniversary of a patron saint may justify the expense on the basis of morality or religion. However, the expense also makes possible an event through which the given society consecrates a rationality that gives it order and security. (…) Through this play of desires and structures, commodities and consumption also serve to give political order to each society. (García Canclini, 2001: 41-42) Se podemos afirmar que o consumo integra alguma dose de racionalidade, também a cidadania, ainda antes do consumo, já tinha uma componente não racional: o amor à pátria, o desejo de justiça, o desejo de liberdade, não podem ser reduzidos ao imperativo categórico. Estão ligados a emoções. Pode, assim, concluir-se que o debate público discursivo concebido por Habermas, com uma crença desmesurada na racionalidade pura e esquecendo enviesamentos provocados pela retórica, demagogia, background social e pulsões afectivas e emocionais dos intervenientes, sofre, na pós-modernidade, das debilidades evidenciadas pelo esfumar da dicotomia racionalidade/emoção. Deste modo, o repensar da linguagem no Espaço Público passa também pela redefinição dos próprios processos deliberativos: Como o trabalho de Íris Marion Young mostra, essa linguagem não pode ser apenas a do discurso puramente racional, o que implica saber integrar os discursos informais e a linguagem dos que têm menos recursos linguísticos, mas também dos que têm menos recursos sociais, económicos e políticos, nas estruturas de decisão, como defende Nancy Fraser (Silveirinha, 2005: 228) O uso cognitivo da linguagem foi, desde sempre, apresentado como o caminho ideal para se conseguir a objectividade. Porém, hoje em dia, o conceito dificilmente 92

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resiste às mais recentes contribuições da Neurociência. Em última análise, a objectividade pura não existe, visto que o subjectivo contamina o objectivo através das emoções. Em consequência, o Espaço Público que se pretendia racionalista, logo objectivo, não deixa de estar isento de sujectividade devido às emoções. Insistir, por isso, na exclusiva discursividade racionalista no Espaço Publico pode soar a esquizofrenia, a um corte com a realidade. 2.3.4.3.

Os limites da comunicação racional no Espaço Público

Este adeus ao paradigma cartesiano “penso, logo existo” serve para voltar a enquadrar as teses de García Canclini, segundo o qual, para vincular a cidadania ao consumo e vice-versa, há que desconstruir as concepções que avaliam os comportamentos dos consumidores como predominantemente irracionais e que só vêem os cidadãos actuando em função da racionalidade dos princípios ideológicos. (Cfr. García Canclini, 2001: 20). Segundo este autor, “such a separation is evident even in the latest work by a lucid political theorist such as Jürgen Habermas” (García Canclini referia-se aqui ao trabalho L’espace publique, 30 ans après, publicado em 1992). Numa obra mais recente, Habermas explica aquilo que, na sua perspectiva, são as derivas que pode sofrer a formação racional da vontade: Los recursos para una participación en las comunicaciones políticas vienen por lo general estrechamente tasados, empezando por el tiempo de que individualmente se dispone y la fragmentada atención individual a temas que tienen su propia lógica y su proprio curso, pasando por la disponibilidad y la capacidad para aportar algo propio en relación con esos temas, hasta las actitudes oportunistas, las pasiones, los prejuícios, etc, que merman o menoscaban la formación racional de la voluntad. (Habermas, 2005: 404). Esta é uma “austere notion of rationality”, como lhe chamou Peter Dahlgren (1995: Preface xii). “For Habermas, we recall, it is important to retrieve some element of the Enlightenment’s rationality as liberatory; thus he introduces the concept of the communicative rationality of the lifeworld as the conceptual polarity to the strategic rationality of the system.” (idem, ibidem: 129). Peter Dahlgren

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respeita o legado de Habermas sobre o Espaço Público, mas aponta-lhe limitações neste ponto: For the public sphere, rational communication is necessary, but if our horizons do not penetrate beyond the conceptual framework of communicative rationality and the ideal speech situation, we will be operating with a crippled critical theory. We will be incapable of grasping the discursive dynamics of ideology and its resonances within the primary processes of the unconscious, within the arational. (idem, ibidem: 109) O conceito estrito de racionalidade, aplicado à esfera pública, também foi posto em causa num recente artigo de Peter Lunt e Paul Stenner: The Jerry Springer Show as an emotional public sphere. À partida, este talk show parece ter pouco a ver com a discussão crítica racional. Porém, aqueles autores detectaram “a possibility of an analysis of talk shows as linking individual problems to social issues” (Lunt & Stenner, 2005: 79), a partir da recuperação do conceito da esfera pública cultural presente nos primeiros trabalhos de Habermas. Segundo Peter Lunt e Paul Stenner, “The Jerry Springer Show is a metaphor for the complexities of the relation between the emotions of social and political involvement and their connection to deliberation and public reflection.” (idem, ibidem: 76) Na mesma linha de pensamento, John Keane invoca o estudo, dos talk shows televisivos, que fizeram Sonia Livingstone e Peter Lunt para salientar “os diversos modos como os programas com públicos intervenientes põem em causa a noção filosófica dominante de racionalidade, derivada da lógica dedutiva” (Keane, 2001: 211). Segundo este autor, num regime democrático saudável, nenhuma esfera pública deve deter o monopólio nas discussões públicas acerca da distribuição do poder: (…) um regime dominado por «talk shows» televisivos ou por eventos mediáticos espectaculares compromete a integridade dos seus cidadãos. Poderá ser tão sufocante como um regime em que «discussões racionais» altamente intelectuais ou uma pregação politica demagógica sirvam como único padrão «civilizado» de discussão acerca de quem fica com quê, quando e como. (Keane, 2001: 212-213)

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Na sequência da sua investigação, António Damásio não nega que as emoções e os sentimentos podem, em determinadas circunstâncias, perturbar o processo normal de raciocínio. Todavia, não deixa de sublinhar que “certos aspectos do processo da emoção e do sentimento são indispensáveis para a racionalidade” (Damásio, 1995: 14). Neste contexto, é legítimo perguntar se a comunicação no Espaço Público implicará sempre uma estrita racionalidade dialógica? Ou, por outras palavras, como manter a natureza racional do Espaço Público se, quer queiramos quer não, os actores sociais estão imbuídos de afectos e emoções? Tendo em vista os factores subjectivos que incorporam a formação da opinião pública, os governantes, no exercício da actividade política, já não se limitam a actuar sobre a realidade social, mas preocupam-se igualmente com a forma como a realidade é percepcionada. Num exemplo dado pelo Ministro da Administração Interna, António Costa (SIC Notícias de 19/03/2006, Programa “Outras Conversas” com Maria João Avilez) a criminalidade violenta tem diminuído em Portugal nos últimos anos. É esse o dado objectivo que revelam os números oficiais. Todavia, a percepção das pessoas é inversa. Crêem que cada vez há mais crimes violentos. Por isso mesmo, a gestão política desta situação tende a estabelecer um compromisso entre a actuação sobre a realidade e as medidas psicológicas e mediáticas tendentes a minimizar o desconforto das pessoas devido ao presumido aumento da criminalidade violenta. Como refere José Rebelo, “hoje sabe-se que a realidade social não é superfície lisa nem o acontecimento existe de per si, mas antes na convergência entre o acontecimento e a sua percepção” (Rebelo, 2000:17). É, justamente, neste ponto de confluência que tem lugar a interacção dos cidadãos-consumidores nos fóruns radiofónicos, um dos quais serviu para materializar o objectivo desta investigação através da análise das motivações e consequências da interacção entre emissor e receptor, conforme está descrito nos pontos seguintes.

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3. DESENHO METODOLÓGICO

Na investigação que a seguir é descrita foi tomado como unidade de análise o Fórum TSF (Cfr. 1.1.3.). A pesquisa realizada inscreve-se na linha dos estudos de caso, por dizer respeito a uma realidade actual contextualizada. Dada a necessidade de verificar e validar hipóteses previamente definidas (Cfr. 1.2.), recorreu-se ainda a uma análise correlacional entre os conceitos em estudo com o objectivo de retirar inferências associativas. A descrição e análise reflexiva dos dados foram feitas a partir de uma perspectiva simultaneamente quantitativa e qualitativa. Segundo Martin W. Bauer e George Gaskell (2004) não há quantificação sem qualificação, nem análise estatística sem interpretação: “Pensamos que é incorrecto assumir que a pesquisa qualitativa possui o monopólio da interpretação, com o pressuposto paralelo de que a pesquisa quantitativa chega a suas conclusões quase que automaticamente.” (Bauer e Gaskell, 2004: 24).

3.1. OS SUJEITOS

Os dados foram obtidos, ao longo de treze programas, a partir da aplicação de um questionário respondido telefonicamente pelos ouvintes intervenientes do Fórum que se mostraram disponíveis para colaborar. Ao todo foram contactados 149 participantes do programa: 34 recusaram participar no inquérito, 9 eram repetentes de emissões anteriores nas quais já tinham respondido ao questionário e 3 não foi possível contactar para recolher as respostas depois de, inicialmente, terem acedido participar. Deste modo, foram validados 103 questionários. Os resultados estão disponíveis (Anexo 1 e 2) com as respostas em números agregados e em percentagem. Trata-se de uma amostra arbitrária, constituída na base daquilo que pareceu razoável de acordo com os objectivos e em função das condições da pesquisa. Como refere Jorge Pedro Sousa, “por vezes a necessidade determina a utilização de amostras arbitrárias de conveniência, que, embora não conduzam a resultados que 97

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possam considerar-se totalmente representativos (em termos de validade externa) não deixam de poder fornecer pistas para a resolução de determinados problemas científicos” (Sousa, 2004: 55). A fim de avaliar a fiabilidade interna da amostra foram comparados os dados recolhidos na primeira metade (52 inquéritos) com os dados recolhidos na segunda metade (51 inquéritos). Como se pode verificar pelos quadros (Anexos 3, 4, 5 e 6) tanto os dados agregados como em percentagem não diferem substancialmente da primeira para a segunda metade, o que permite aduzir da fiabilidade interna da amostra. Para aquilatar da fiabilidade externa foi utilizada como termo comparativo a composição da audiência da TSF em percentagem pelas variáveis sóciodemográficas analisada pelo Bareme-Rádio 2005 (Anexo 7). O Bareme-Rádio estuda o universo constituído pelos indivíduos residentes em Portugal Continental com 15 e mais anos. Para a quantificação do universo deste estudo são utilizados os dados definitivos do Recenseamento Geral da População (Censos) do INE de 2001. Nos participantes do Fórum, que foram objecto da recolha de informação para a presente investigação (Anexo 2), foi contabilizada uma nítida maioria do género masculino (86,4%) o que está em conformidade com o perfil dos ouvintes da TSF (75,9% masc. / 24,1% fem.). Por outro lado, o Fórum regista uma nítida maioria de participantes entre os 25-54 anos (74,7%) também em consonância com o perfil dos ouvintes da TSF (71,1% entre os 25-54 anos). Quanto às ocupações dos participantes, no presente estudo observou-se uma predominância de quadros médios e superiores (30,1%). No Bareme-Rádio da Marktest esta categoria representa 32,5% dos ouvintes da TSF. A segunda categoria mais representada nesta investigação é a dos trabalhadores especializados (21,4%) igualmente em conformidade com o estudo da Marktest – os trabalhadores especializados são também a segunda categoria mais representada no perfil dos ouvintes da TSF com 15,8%. Verifica-se, assim, um paralelismo, nas variáveis sócio-demográficas apuradas pelo Bareme-Rádio para os ouvintes da TSF e os resultados da presente pesquisa, o que permite concluir que a amostra utilizada é representativa, pois, como referem Martin W. Bauer e George Gaskell, “A amostra representa a população se a distribuição de algum critério é idêntica tanto na população como na amostra” (Bauer e Gaskell, 2004: 41).

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3.2. OS INSTRUMENTOS

Para responder à questão de partida: “na rádio como Espaço Público, a interacção promove a cidadania ou favorece o consumo?”, e tendo em conta a amostra escolhida e o recurso à comunicação telefónica, optou-se pela aplicação de um questionário com perguntas fechadas (quadro 3.1) de forma a tornar o processo simples e rápido e tentando evitar os pretextos de não participação devido à morosidade ou à complexidade do inquérito. O intuito era que as 12 perguntas, com opções “sim” ou “não”, fossem respondidas em cerca de cinco minutos o que, de facto, aconteceu na esmagadora maioria dos casos. Quadro 3.1

Questionário aos participantes do Fórum TSF

PERGUNTAS

RESPOSTAS Sim

1) É a primeira vez que participa no programa? 2) Tenciona voltar a participar? 3) Fala com os seus amigos e conhecidos sobre a intervenção? 4) Tenta intervir seja qual for o tema? 5) Utiliza o Fórum para expor situações pessoais? 6) Acha que a sua intervenção produz efeitos junto dos ouvintes e das entidades responsáveis? 7) A sua participação deve-se só a razões de cidadania? 8) Gosta de saber que o (a) ouvem na rádio? 9) Era capaz de pagar para participar? 10) Admite receber dinheiro pela participação? 11) Ao participar no Fórum tem consciência que está a ajudar a fazer uma emissão de rádio? 12) Acha que a rádio pede a participação dos ouvintes somente

por razões cívicas e de responsabilidade social?

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□ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □

Não Out/Nsab

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□ □ □

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Fem. Sexo







Idade Bás. Grau de escolaridade Actividade profissional

Masc.

Sec.

Sup

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Para além da recolha das variáveis sócio-demográficas supra-citadas, o questionário tinha em vista detectar as linhas de força que permitissem clarificar o objectivo da investigação: motivações e consequências da interacção entre emissor e receptor na rádio, no quadro da esfera pública ou espaço público e testar as hipóteses (Cfr. 1.2.). Nessa perspectiva foi definido um conjunto de indicadores: grau de envolvimento com o programa, busca de notoriedade/interesse próprio, grau de altruísmo, motivação cívica e credibilidade atribuída ao meio. Com estes cinco indicadores pretendeu-se avaliar a dimensão cívica, pessoal e económica de cada um dos conceitos em estudo: cidadania, consumo e interacção na rádio. Como observam Raymond Quivy e LucVan Campenhoudt, “o indicador é, em princípio, uma manifestação observável e mensurável das dimensões do conceito” (Quivy e Campenhoudt, 1992: 260). Porém, há situações em que o indicador é uma apreciação subjectiva exprimindo percepções, “neste caso, o que é observável são as palavras que exprimem a opinião e o que é «mensurável» é o conteúdo ou o sentido de um discurso” (idem, ibidem). Ainda segundo estes mesmos autores, “a construção de um conceito consiste em definir as dimensões que o constituem e, em seguida, precisar os seus indicadores, graças aos quais estas dimensões podem ser medidas” (idem, ibidem: 151). É este conjunto estruturado e coerente, composto por conceitos e hipóteses articulados entre si através dos indicadores e das dimensões, que constitui aquilo a que se chama o modelo de análise de uma investigação (ver Quadro 3.3).

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A CIDADANIA COMO MERCADORIA

3.3. OS PROCEDIMENTOS

No método de investigação aqui utilizado, os indicadores foram construídos a partir das hipóteses. Após a definição do objecto de estudo e da pergunta de partida concretizou-se o objectivo da investigação de onde se apuraram as quatro hipóteses. A partir do momento em que foi formulado, o corpo de hipóteses forneceu à pesquisa um fio condutor mais sólido que permitiu definir com exactidão os indicadores e partir para o trabalho empírico. Todavia, como a investigação não tem compartimentos estanques, foi sendo recorrente o recurso à reflexão teórica mesmo durante a pesquisa no terreno. Os dados foram recolhidos entre 8 e 31 de Maio de 2006. A recolha decorreu de uma forma mais sistemática nas duas primeiras semanas, concretamente nos dias 8, 9, 11, 12, 15, 16, 18 e 19. Nas duas semanas seguintes, por imperativos de programação da TSF, nem sempre se realizou o Fórum, razão porque a pesquisa foi mais intercalada, referindo-se a recolha aos dias 22, 25, 29, 30 e 31. Este procedimento implicou a colaboração da assistente do programa que, antes de cada intervenção, perguntava aos participantes se estavam disponíveis para colaborar num inquérito por questionário destinado a um trabalho académico. Aos que respondiam afirmativamente era solicitada permissão para voltarem a ser contactados, no final do programa, pelo doutorando que se encarregou pessoalmente do preenchimento de todos os questionários. Terminada a recolha dos dados verificou-se a validação ou não das hipóteses previamente definidas a partir do objectivo de investigação, consubstanciado no modelo proposto (ver Quadro 3.3) e suportado pela moldura teórica apresentada (ver ponto 2.). “Esta fase de confrontação da hipótese e dos dados de observação chamase a verificação empírica.” (Quivy e Campenhoudt, 1992: 138). Como é próprio das investigações correlacionais, a pesquisa teve em vista estabelecer inferências associativas entre os diversos conceitos em análise (cidadania, consumo, interacção), a partir das dimensões (cívica, económica e pessoal) de cada um dos conceitos e dos respectivos indicadores, qualitativos ou quantitativos.

101

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

3.4. A ORGANIZAÇÃO DOS DADOS Como já foi referido (ver ponto 3.2.), para testar o corpo de hipóteses, elaborouse um conjunto de indicadores para avaliar as dimensões cívica, pessoal e económica dos conceitos de cidadania, consumo e interacção. O Quadro 3.2 esquematiza o procedimento para a análise dos dados, pretendendo ilustrar a forma como cada pergunta do questionário responde aos indicadores escolhidos para caracterizar as dimensões decorrentes dos três conceitos identificados. Quadro 3.2 CONCEITOS

Cidadania

Consumo

Esquema do procedimento para a análise dos dados

DIMENSÕES

INDICADORES

Cívica

Motivação cívica

Pessoal

Busca notoriedade / Interesse próprio

Económica

Grau de altruísmo

Pessoal

Grau de envolvimento com o É a primeira vez que participa programa no programa? Tenciona voltar a participar? Grau de envolvimento com o Era capaz de pagar para programa participar?

Económica Cívica Pessoal

Interacção

Económica

A sua participação deve-se só a razões de cidadania? Tenta intervir seja qual for o tema? Utiliza o Fórum para expor situações pessoais? Admite receber dinheiro pela participação?

Busca notoriedade/ Interesse próprio

Fala com os seus amigos e conhecidos sobre a sua intervenção? Busca de notoriedade/ Gosta de saber que o (a) ouvem Interesse próprio na rádio? Motivação cívica

Cívica

PERGUNTAS

A sua participação deve-se só a razões de cidadania? Credibilidade atribuída ao Acha que a sua intervenção meio produz efeitos junto dos ouvintes e das entidades responsáveis? Grau de envolvimento com o Era capaz de pagar para programa participar? Grau de altruísmo Ao participar no Fórum tem consciência que está a ajudar a fazer uma emissão de rádio? Credibilidade atribuída ao Acha que a rádio pede a participação dos ouvintes meio somente por razões cívicas e de responsabilidade social? 102

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

Definidos os parâmetros da investigação, as respostas ao questionário (Quadro 3.1) servirão para validar ou não cada uma das quatro hipóteses colocadas em 1.2.: Hipótese 1 – A interacção promove a cidadania Hipótese 2 – A interacção favorece o consumo Hipótese 3 – A interacção promove o alargamento do Espaço Público Hipótese 4 – A interacção estabelece a vinculação entre a cidadania e o consumo Para testar a hipótese 1, conta-se com a “motivação cívica”, decorrente da pergunta 7, com o objectivo de quantificar a dimensão cívica da cidadania; a “busca de notoriedade/interesse próprio”, implícita nas perguntas 4 e 5, para avaliar a dimensão pessoal da cidadania; e o “grau de altruísmo”, subjacente à pergunta 10, para determinar a dimensão económica da cidadania. Na procura de validação para a hipótese 2, tomam-se como indicadores o “grau de envolvimento com o programa”, presente nas perguntas 1 e 2, para medir a dimensão pessoal do consumo e a “busca de notoriedade/interesse próprio”, detectável através da pergunta 8, para determinar a dimensão pessoal da interacção. Com o objectivo de quantificar a dimensão económica do consumo utiliza-se o “grau de envolvimento com o programa”, decorrente da pergunta 9. Quanto à dimensão cívica do consumo será medida através da “busca de notoriedade/interesse próprio”, integrada na pergunta 3. Relativamente à hipótese 3, opta-se pela “credibilidade atribuída ao meio”, pressuposta na pergunta 6, para caracterizar a dimensão cívica da interacção. Finalmente para a hipótese 4, utiliza-se como indicador o “grau de altruísmo”, decorrente da pergunta 11, para clarificar a dimensão económica da interacção, e a “credibilidade atribuída ao meio”, implícita na pergunta 12, para detectar como é percepcionada essa mesma dimensão. Recorre-se ainda à correlação entre os indicadores “motivação cívica” e “grau de envolvimento com o programa”, implícitos nas perguntas 7 e 9, para inferir a vinculação entre as dimensões económica e cívica da interacção. Concretizando o esquema de procedimento para a análise dos dados (Cfr. Quadro 3.2), através da articulação de conceitos e hipóteses, esquematiza-se, de seguida (Quadro 3.3), o modelo de análise da investigação: 103

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

Quadro 3.3 CONCEITOS

Modelo de análise da investigação

DIMENSÕES

INDICADORES

Motivação cívica (perg. 7 para testar

Cívica

hipótese 1) Cidadania

Pessoal

Busca de notoriedade/ Interesse próprio (pergs. 4 e 5 para testar hipótese 1) Grau de altruísmo (perg. 10 para

Económica

testar hipótese 1) Grau

Pessoal

de

envolvimento

com

o

programa (pergs. 1 e 2 para testar hipótese 2) Consumo

Económica

Grau

de

envolvimento

com

programa (perg. 9 para

o

testar

hipótese 2) Cívica

Busca

de

notoriedade/Interesse

pessoal (perg. 3 para testar hipótese 2) Busca

Pessoal

de

notoriedade/Interesse

pessoal (perg. 8 para testar hipótese 2) Interacção

Motivação cívica (perg. 7 para testar

Cívica

hipótese 4); Credibilidade atribuída ao meio (perg. 6 para testar hipótese 3) Económica

Grau

de

envolvimento

programa

(perg. 9 para

hipótese 4) ;

com

o

testar

Grau de altruísmo

(perg. 11 para testar

hipótese 4) ;

Credibilidade atribuída ao meio (perg. 12 para testar hipótese 4).

104

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

4. PALETA DE RESULTADOS

Até aqui foi descrito o caminho que, através do objectivo da investigação, levou dos conceitos até às hipóteses, e destas à construção dos indicadores e à elaboração das perguntas do questionário. Fazendo agora o percurso inverso, “regressamos das perguntas para o conceito” (Quivy e Campenhoudt, 1992: 212) e passamos a expor (Quadro 4.1) os resultados obtidos no questionário a que foram sujeitos 103 participantes do Fórum TSF. Quadro 4.1

Resultados do questionário aos participantes do Fórum TSF PERGUNTAS

RESPOSTAS % Sim

Não

Out/N. Sabe

1) É a primeira vez que participa no programa?

44,7

55,3

2) Tenciona voltar a participar?

99,0

3) Fala com os seus amigos e conhecidos sobre a intervenção?

89,3

10,7

4) Tenta intervir seja qual for o tema?

19,4

80,6

5) Utiliza o Fórum para expor situações pessoais?

19,4

80,6

6) Acha que a sua intervenção produz efeitos junto dos ouvintes e 74,8 das entidades responsáveis?

9,7

15,5

1,0

7) A sua participação deve-se só a razões de cidadania?

47,6

11,6

40,8

8) Gosta de saber que o (a) ouvem na rádio?

46,6

20,4

33,0

9) Era capaz de pagar para participar?

54,3

43,7

2,0

10) Admite receber dinheiro pela participação?

19,4

78,6

2,0

11) Ao participar no Fórum tem consciência que está a ajudar a 96,0 fazer uma emissão de rádio?

2,0

2,0

12) Acha que a rádio pede a participação dos ouvintes somente por 39,8 razões cívicas e de responsabilidade social?

56,3

3,9

105

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

4.1. RESULTADOS ORDENADOS POR HIPÓTESES

Com base nas respostas ao questionário expressas em percentagem (Quadro 4.1) explicitam-se, de seguida, os resultados obtidos, ordenados pelas hipóteses: Hipótese 1 – A interacção promove a cidadania Apenas 11,6% dos inquiridos reconheceram que a sua participação no Fórum não se deve a razões de cidadania. A maioria (47,6%) disse que a participação devese somente a razões de cidadania e outros 40,8% admitiram que se deve “essencialmente” a razões de cidadania, o que permite verificar que a esmagadora maioria dos inquiridos (88,4%) aponta a “motivação cívica” como a razão principal para a interacção com o Fórum, donde se pode inferir que, do ponto de vista dos participantes, o processo interactivo serve para promover a cidadania. Por outro lado, o interesse pessoal na participação foi admitido apenas por 19,4% dos inquiridos, enquanto que uma larga maioria (80,6%) diz não utilizar o Fórum para expor situações pessoais. A mesma percentagem de inquiridos (80,6%) rejeita implicitamente atribuir importância à notoriedade que uma qualquer intervenção possibilita, garantindo que tenta intervir apenas quando tem algo a dizer sobre o tema em discussão. Também o indicador “grau de altruísmo”, que serve para avaliar a resposta à pergunta 10, revela claramente uma atitude de consciência cidadã, por parte de uma larga maioria, uma vez que 78,6% dos inquiridos não admite receber dinheiro pela sua participação no Fórum. Hipótese 2 – A interacção favorece o consumo As respostas às perguntas 1 e 2 são bem elucidativas quanto ao elevado “grau de envolvimento com o programa”, o que permite avaliar a dimensão pessoal do consumo. Dos participantes inquiridos 55,3% já tinham intervindo por mais de uma vez, enquanto que para 44,7% tratava-se da primeira participação no Fórum. Acresce ainda que uma esmagadora maioria de inquiridos (99,0%) disse que tenciona voltar a participar. 106

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

Com o intuito de medir a dimensão pessoal da interacção foi utilizado o indicador “busca de notoriedade/interesse próprio” decorrente da pergunta 8. Apesar de 33,0% dos inquiridos terem respondido que não lhes interessa saber se são ouvidos (as) na rádio e de 20,4% ter mesmo dito que não aprecia tal facto, uma maioria (46,6 %) admitiu que gosta de saber que é ouvida na rádio. Para detectar em que ponto se situava o “grau de envolvimento com o programa”, por parte dos inquiridos, e avaliar a respectiva dimensão económica do consumo, foi-lhes perguntado se seriam capazes de pagar para participar. Uma maioria (54,3%) admitiu que “sim”, enquanto 43,7% rejeitaram a ideia. A dimensão cívica do consumo foi avaliada através do indicador “busca de notoriedade/interesse próprio”, na pergunta 3, à qual uma esmagadora maioria de inquiridos (89,3%) respondeu que costuma falar com os amigos e conhecidos sobre a sua intervenção no Fórum. Hipótese 3 – A interacção promove o alargamento do Espaço Público Através do indicador “credibilidade atribuída ao meio”, que está inerente à pergunta 6, podemos verificar que uma larga maioria de respondentes “sim” (74,8%) tem a percepção de que as suas intervenções no Fórum produzem efeitos junto dos outros ouvintes e das entidades responsáveis promovendo, assim, o alargamento do Espaço Público. Hipótese 4 – A interacção estabelece a vinculação entre a cidadania e o consumo Há dois indicadores que permitem estabelecer um resultado claro na vinculação entre a cidadania e o consumo. São eles a “motivação cívica” e o “grau de envolvimento com o programa” aplicados às perguntas 7 e 9. Correlacionando os resultados verificamos que uma maioria de 47,6% de inquiridos reconhece que a sua participação se deve somente a razões de cidadania (a maioria sobe para 88,4% se substituirmos o “somente” por “essencialmente”) e, paralelamente, também uma maioria de 54,3% diz estar disposta a pagar para poder participar no Fórum, o que permite inferir uma interligação entre a dimensão cívica e a dimensão económica nas percepções dos participantes do processo interactivo.

107

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

Por outro lado, o indicador “grau de altruísmo”, que serve para avaliar a resposta à pergunta 11, mostra que 96,0% dos inquiridos revelam estar conscientes de que, com a sua intervenção, estão a ajudar a fazer uma emissão de rádio. No entanto, uma maioria de 56,3%, confrontada com a pergunta 12, destinada a medir a “credibilidade atribuída ao meio”, deixa entender que reconhece a dimensão económica da interacção ao admitir que a rádio não pede a participação dos ouvintes somente por razões cívicas e de responsabilidade social.

4.2. RESULTADOS ORDENADOS POR INDICADORES

Após ter testado cada uma das hipóteses, apresentam-se, de seguida, os resultados decorrentes do parcelamento dos indicadores, por dimensão e por conceito: 4.2.1. Indicadores da dimensão cívica Quadro 4.2 Resultados globais dos indicadores da dimensão cívica

INDICADORES DA DIMENSÃO CÍVICA

Respostas % Sim

Não

NA CIDADANIA (Motivação cívica)

88,4%

11,6%

NO CONSUMO (Busca de notoriedade/Interesse próprio)

89,3%

10,7%

NA INTERACÇÃO (Credibilidade atribuída ao meio)

74,8%

9,7%

N.sabe

15,5%

Reagrupando, duas a duas, as respostas que se referem aos indicadores de cada um dos conceitos em análise podem inferir-se diversas correlações. Tomando em conta os indicadores utilizados para quantificar a dimensão cívica na cidadania (“motivação

cívica”)

e

a

dimensão

cívica

no

consumo

(“busca

de

notoriedade/interesse próprio”), e comparando as respostas, verifica-se uma consonância nos valores, o que permite inferir que uma larga maioria dos participantes do Fórum associa a cidadania ao consumo (Cfr. Figura 4.1). 108

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

100%

89, 3%

88, 4%

80% 60% 40% 11, 6%

20%

10, 7%

0% Sim

Não

Motivação cívica (pergunta 7) Busca de notoriedade/Interesse próprio (pergunta 3) Figura 4.1 Correlação entre indicadores da dimensão cívica na cidadania e da dimensão cívica no consumo

Procedendo de idêntica forma com os indicadores utilizados para quantificar a dimensão cívica na cidadania (“motivação cívica”) e a dimensão cívica na interacção (“credibilidade atribuída ao meio”), e comparando as respostas, verifica-se que os dados não são tão sobreponíveis como no caso anterior. Ainda assim, há uma larga coincidência, o que permite inferir que uma maioria dos participantes do Fórum associa a cidadania à interacção (Cfr. Figura 4.2)

100% 80%

88, 4% 74, 8%

60% 40% 20%

11, 6%

0%

9, 7%

15, 5% 0, 0%

Sim Não Não sabe Motivação cívica (pergunta 7) Credibilidade atribuída ao meio (pergunta 6) Figura 4.2 Correlação entre indicadores da dimensão cívica na cidadania e da dimensão cívica na interacção

109

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

Também não é despicienda a sobreposição dos dados relativos aos indicadores usados para medir a dimensão cívica no consumo (“busca de notoriedade/interesse próprio”) e a dimensão cívica na interacção (“credibilidade atribuída ao meio”), como se pode ver a seguir (Figura 4.3)

100% 80%

89, 3%

74, 8%

60% 40% 10, 7%

20%

15, 5%

9, 7%

0% Sim

Não

Não sabe

Busca de notoriedade/Interesse próprio (pergunta 3) Credibilidade atribuída ao meio (pergunta 6) Figura 4.3 Correlação entre indicadores da dimensão cívica no consumo e da dimensão cívica na interacção

Assim sendo, pode inferir-se que das três associações estabelecidas com os indicadores da dimensão cívica esta última é a que revela dados menos sobreponíveis, embora se possa dizer que há uma larga maioria de participantes do Fórum que associa a interacção e o consumo.

4.2.2. Indicadores da dimensão pessoal Quadro 4.3 Resultados globais dos indicadores da dimensão pessoal INDICADORES DA DIMENSÃO PESSOAL

Respostas % Sim

Não

NA CIDADANIA(Busca de notoriedade/Int. próprio) (Busca de notoriedade/Int. próprio)

19,4% 19,4%

80,6% 80,6%

NO CONSUMO(Grau envolvimento com o programa) (Grau envolvimento com o programa)

44,7% 99,0%

55,3%

NA INTERACÇÃO(Busca de notoriedade/Int. próprio)

46,6%

20,4%

110

N.sabe

1,0% 33,0%

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

Reagrupando, duas a duas, as respostas que se referem aos indicadores de cada um dos conceitos em análise podem inferir-se diversas correlações. As duas perguntas relativas

ao

indicador

da

dimensão

pessoal

na

cidadania

(“Busca

de

notoriedade/Interesse próprio”) obtiveram exactamente o mesmo resultado (Cfr. Figura 4.4). A expressiva maioria obtida, em ambos os casos, pelo “não” permite inferir a existência de genuínas razões de cidadania para a intervenção da esmagadora maioria dos participantes do Fórum. 100%

80, 6%

80%

80, 6%

60% 40% 20%

19, 4%

19, 4%

0% Sim

Não

Busca de notoriedade/Interesse próprio (pergunta 4) Busca de notoriedade/Interesse próprio (pergunta 5) Figura 4.4

Correlação entre duas perguntas relativas ao indicador da dimensão pessoal da cidadania

Tal como sucedeu na dimensão cívica, os indicadores da dimensão pessoal também apontam para o estabelecimento de uma associação entre a cidadania e o consumo por parte dos participantes do Fórum TSF. Tomando em conta os indicadores utilizados para quantificar a dimensão pessoal na cidadania (“busca de notoriedade/interesse próprio) e a dimensão pessoal no consumo (“grau de envolvimento com o programa”) verifica-se que os inquiridos, apesar de relevarem os aspectos de uma participação por razões de cidadania não deixam de valorizar igualmente o consumo (Cfr. Figura 4.5).

111

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

100%

99, 0%

80%

80, 6%

60% 40% 20%

19, 4% 1, 0%

0, 0%

0% Sim

Não

Não sabe

Busca de notoriedade/Interesse próprio (pergunta 4) Grau de envolvimento com o programa (pergunta 2) Figura 4.5 Correlação entre a dimensão pessoal na cidadania e a dimensão pessoal no consumo

Por outro lado, através das respostas a uma pergunta relativa ao indicador da dimensão pessoal no consumo (“grau de envolvimento com o programa”) é possível chegar a uma consonância de valores com os resultados do indicador da dimensão pessoal na interacção (“busca de notoriedade/interesse próprio”):

100% 80% 60%

44, 7%

46, 6%

55, 3%

40%

20, 4%

20%

33, 0%

0% Sim

Não

Não sabe

Grau de envolvimento com o programa (pergunta 1) Busca de notoriedade/Interesse próprio (pergunta 8) Figura 4.6 Correlação entre a dimensão pessoal no consumo e a dimensão pessoal na interacção

Assim, (Cfr. Figura 4.6) uma maioria de participantes habituais do Fórum TSF (já tinham intervindo por mais de uma vez) coincide com uma maioria que admite gostar de saber que o (a) ouvem na rádio, o que permite inferir uma associação implícita entre o consumo e a interacção. 112

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

4.2.3. Indicadores da dimensão económica Quadro 4.4

Resultados globais dos indicadores da dimensão económica

INDICADORES DA DIMENSÃO ECONÓMICA

Respostas %

NA CIDADANIA (Grau de altruísmo)

Sim 19,4%

Não 78,6%

Nsabe 2,0%

NO CONSUMO (Grau de envolvimento com o programa)

54,3%

43,7%

2,0%

NA INTERACÇÃO (Grau de altruísmo) (Credibilidade atribuída ao meio) (Grau de envolvimento com o programa)

96,0% 39,8% 54,3%

2,0% 56,3% 43,7%

2,0% 3,9% 2,0%

Através dos indicadores da dimensão económica também é possível verificar como os participantes do Fórum associam a cidadania à interacção. O mesmo indicador (“grau de altruísmo”) revela que, na pergunta destinada a medir a dimensão económica na cidadania, uma larga maioria de inquiridos rejeita a possibilidade de receber dinheiro pela participação no Fórum, apesar de, noutra pergunta, com o intuito de avaliar a dimensão económica na interacção, uma esmagadora maioria dos mesmos inquiridos diz ter consciência que, ao participar, está a ajudar a fazer a emissão da rádio (Cfr. Figura 4.7).

100%

96, 0%

80%

78, 6%

60% 40% 20%

19, 4% 2, 0%

2, 0%

2, 0%

0% Sim

Não

Grau de altruísmo (pergunta 10) Grau de altruísmo (pergunta 11) Figura 4.7 Correlação entre indicadores da dimensão económica na cidadania e da dimensão económica na interacção

113

Não sabe

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

Com estes mesmos indicadores é, igualmente, possível correlacionar a percepção que os participantes do Fórum têm da associação entre a cidadania, por um lado, e o consumo e a interacção, por outro (Cfr. Figura 4.8). Como já vimos, utilizando como indicador o “grau de altruísmo” podemos inferir que a grande maioria dos inquiridos rejeita a possibilidade de receber dinheiro, elegendo a participação como um acto de cidadania. Paralelamente, também uma maioria, embora menos expressiva, através do indicador “grau de envolvimento com o programa”, valoriza tanto o consumo como a interacção, admitindo que era capaz de pagar para poder participar no Fórum. 100%

78, 6%

80% 54, 3%

60% 40% 20%

43, 7%

19, 4% 2, 0%

2, 0%

0% Sim Não Não sabe Grau de altruísmo (pergunta 10) Grau de envolvimento com o programa (pergunta 9) Figura 4.8

Correlação entre indicadores da dimensão económica na cidadania e da dimensão económica no consumo e na interacção

Finalmente (Cfr. Figura 4.9), o indicador da dimensão económica na cidadania (“grau de altruísmo”) pode ser correlacionado com um outro indicador da dimensão económica na interacção (“credibilidade atribuída ao meio”) 100%

78, 6%

80%

56, 3%

60% 40% 20%

39, 8% 19, 4% 2, 0%

3, 9%

0% Sim Não Não sabe Grau de altruísmo (pergunta 10) Credibilidade atribuída ao meio (pergunta 12) Figura 4.9 Correlação entre indicadores da dimensão económica na cidadania e da dimensão económica na interacção 114

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

Nesta associação entre a cidadania e a interacção é possível verificar que, independentemente das razões de cidadania que levam a maioria dos inquiridos a intervir, os participantes no Fórum expressam, também maioritariamente, a convicção que a rádio, ao pedir a participação dos ouvintes, não está a agir somente por razões cívicas e de responsabilidade social, o que remete para a dimensão económica. Desta forma, pode inferir-se que, segundo a percepção dos inquiridos, o consumo está indissoluvelmente ligado à cidadania e à interacção.

115

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

116

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

CONCLUSÃO

Chegados a este ponto, importa fazer o balanço e ver em que medida os dados apurados respondem à interrogação que desencadeou a pesquisa. Por que motivos interagem os ouvintes? Quais as razões que levam a indústria da rádio a promover programas de antena aberta? Este desdobramento da pergunta inicial (no século XXI, a rádio como Espaço Público constitui-se como um agente de interacção para a cidadania ou para o consumo?) permite, desde já, evidenciar uma lacuna: as razões da indústria não puderam ser apuradas, directamente, visto que não foi possível obter, em tempo útil, resposta dos responsáveis pela direcção e administração da rádio TSF. Esta é uma das perspectivas que limita a abrangência deste

estudo

e

que

merece

desenvolvimento

em

posteriores

pesquisas.

Simultaneamente, deverá ser alargada a investigação a outras emissões de rádio interactiva com o objectivo de apurar se há ou não coincidência com os resultados agora obtidos. No que respeita às motivações dos ouvintes do Fórum TSF e às consequências da crescente interacção entre emissor e receptor, na rádio enquanto Espaço Público, foi possível reunir um conjunto de dados que confirmam, genericamente, o corpo de hipóteses colocadas. Para construir uma resposta coerente à pergunta de partida foi elaborado um modelo que estabelecia a relação entre os principais conceitos em estudo e as hipóteses. O modelo de análise revelou-se operativo visto que, de uma maneira geral, os indicadores escolhidos para caracterizar os conceitos tornaram observáveis as hipóteses. A principal hipótese era a de que a cidadania e o consumo não são entidades arredias uma da outra, estão cada vez mais interligadas e, portanto, não devem colocar-se em situação dicotómica (Cfr. García Canclini, 2001; Cortina, 2002). A correlação que foi possível estabelecer entre uma maioria de inquiridos que alega participar no Fórum TSF por razões de cidadania e, simultaneamente, admite estar disposta a pagar para poder participar (Cfr. 4.1, Hip. 4) mostra claramente a existência de uma vinculação entre a cidadania e o consumo. 117

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

Decorrente desta situação, não ficou claro se as pessoas participam no Fórum mais por razões altruístas ou mais por motivos de interesse próprio como, de resto, tinha acontecido com a série de estudos recenseados por Mendelberg citado por Delli Carpini, Cook and Jacobs (2004: 324): “As Mendelberg notes, however, these studies cannot demonstrate that altruism (as opposed to self-interest) is the prime motivator for cooperative behavior.” Na presente investigação deve dizer-se que aqueles dois indicadores, colocados em oposição, não se revelaram operativos, o que, por outro lado, poderá significar que, no processo interactivo, não há razões para colocar dicotomicamente altruísmo e interesse próprio. A dificuldade em estabelecer uma contradição nítida entre altruísmo e o interesse próprio também ficou patente na correlação estabelecida a partir das perguntas 9 e 10, entre os indicadores da dimensão económica (ver Figura 4.8). Apesar de uma larga maioria de participantes no Fórum rejeitar a hipótese de receber dinheiro pela participação, há também uma maioria que admite pagar para poder participar, o que permite inferir a existência de uma correlação entre a cidadania, por um lado, e o consumo e a interacção, por outro. Para além das correlações entre pares de conceitos, que foi possível estabelecer com os resultados obtidos a partir dos indicadores das dimensões cívica e pessoal (Cfr. pontos 4.2.1. e 4.2.2.) – vinculando a cidadania e o consumo, a cidadania e a interacção, e a interacção e o consumo – as correlações entre os indicadores da dimensão económica (Cfr. ponto 4.2.3) permitiram vincular, simultaneamente, o consumo, a cidadania e a interacção (ver Fig. 4.9). Parece agora mais claro que, no século XXI, na rádio como Espaço Público, deixa de ter razão de ser a dicotomia: “interacção para a cidadania ou para o consumo?”. Em contrapartida, apresenta-se com mais pertinência a hipótese de a interacção servir, simultaneamente, para a cidadania e para o consumo. É também a crescente interacção vivida através dos media que pode ajudar a explicar a emergência do conceito de cidadãos-consumidores, no qual a cidadania deixa de ter apenas uma dimensão sócio-política, mas passa também a ter uma dimensão sóciocomunicacional, cultural e económica (Cfr. García Canclini, 2001; Isin & Wood, 1999; e Cortina, 2002). Assim, na actual sociedade de informação, uma nova prática cidadã interage directamente com a cultura do consumo através de um modelo de convivência que gera um novo paradigma de cidadania e que transforma o receptor em produtor. A 118

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

interactividade técnica proporciona o ponto de encontro entre estas duas entidades, dando resposta ao anseio de participação das audiências e dos públicos em convergência com os interesses da indústria dos media, cujo objectivo é comercializar toda a espécie de mensagens simbólicas e não simbólicas. Desta forma fica estabelecida a ponte entre a cidadania e o consumo. Entre o Mercado e o Espaço Público. Na rádio, os fóruns representam um novo paradigma de interacção que está a ganhar cada vez mais espaço no processo produtivo, a que não será alheio o facto de tal formato ser possível de realizar com baixos custos. (Cfr. ponto 2.2.4.4.). Ao equacionar o papel do exercício da cidadania na rádio como Espaço Público, invocando a herança de Habermas, podemos concluir que não há uma direcção única, mas antes uma tensão dialéctica permamente entre uma dimensão condicionante e outra emancipatória. Como refere Douglas Kellner (2004): “New forms of citizenship and public life are simultaneously enabled by new technology and restricted by market power and surveillance.” Seja como for, uma cidadania alargada à dimensão económica, num Espaço Público reformulado, poderia envolver o consumo de bens, serviços e mensagens simbólicas, num processo de abrangência semelhante ao que aconteceu anteriormente quando o discurso político foi integrando as questões ambientais, os direitos das mulheres ou as reivindicações dos trabalhadores. Se os cidadãos se tornaram consumidores parece não haver razão para que a prática do consumo (e não só a educação para o consumo que já integra a esfera pública) não seja considerada um acto de cidadania. Retomo o que diz Néstor García Canclini: “Recognizing these transformations does not mean endorsing the dissolution of the citizenship in consumption” (García Canclini, 2001: 5). O intuito não é dissolver, mas articular, quiçá integrar o consumo como parte da cidadania e não o contrário. Subordinando o consumo à cidadania, o consumidor deve estar preparado para a melhor escolha e inclusive para, eventualmente, não consumir. A única solução verdadeiramente emancipatória parece ser a de integrar as práticas de consumo nas práticas de cidadania e, desse modo, consagrá-las como um direito para que mais interacção através do consumo possa significar mais cidadania.

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A CIDADANIA COMO MERCADORIA

ANEXO 1 – Respostas globais (nºs. agregados) ao inquérito aplicado a 103 participantes do Fórum TSF

PERGUNTAS

RESPOSTAS Sim

1)

É a primeira vez que participa no programa?

Não Out/Nsab

46

57

2) Tenciona voltar a participar?

102

3) Fala com os seus amigos e conhecidos sobre a intervenção?

92

11

4) Tenta intervir seja qual for o tema?

20

83

5) Utiliza o Fórum para expor situações pessoais?

20

83

6) Acha que a sua intervenção produz efeitos junto dos ouvintes e das entidades responsáveis?

77

10

16

7) A sua participação deve-se só a razões de cidadania?

49

12

42

8) Gosta de saber que o (a) ouvem na rádio?

48

21

34

9) Era capaz de pagar para participar?

56

45

2

10) Admite receber dinheiro pela participação?

20

81

2

11) Ao participar no Fórum tem consciência que está a ajudar a fazer uma emissão de rádio?

99

2

2

12) Acha que a rádio pede a participação dos ouvintes somente por razões cívicas e de responsabilidade social?

41

58

4

1

Fem. Sexo Idade

(25-54)

Grau de escolaridade Actividade profissional

131

14

Bás. 7

Masc. 89

77 Sec. Sup. 38

58

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

ANEXO 2 – Respostas globais (em %) ao inquérito aplicado a 103 participantes do Fórum TSF

PERGUNTAS

RESPOSTAS % Sim

Não Out/Nsab

1) É a primeira vez que participa no programa?

44,7

55,3

2) Tenciona voltar a participar?

99,0

3) Fala com os seus amigos e conhecidos sobre a intervenção?

89,3

11,7

4) Tenta intervir seja qual for o tema?

19,4

81,6

5) Utiliza o Fórum para expor situações pessoais?

19,4

81,6

6) Acha que a sua intervenção produz efeitos junto dos ouvintes e das entidades responsáveis?

74,8

9,7

15,5

7) A sua participação deve-se só a razões de cidadania?

47,6

11,6

40,8

8) Gosta de saber que o (a) ouvem na rádio?

46,6

20,4

33,0

9) Era capaz de pagar para participar?

54,3

43,7

2,0

10) Admite receber dinheiro pela participação?

19,4

78,6

2,0

11) Ao participar no Fórum tem consciência que está a ajudar a fazer uma emissão de rádio?

96,0

2,0

2,0

12) Acha que a rádio pede a participação dos ouvintes somente por razões cívicas e de responsabilidade social?

39,8

56,3

3,9

1,0

Fem. Sexo

13,6

Idade (25-54)

Grau de escolaridade Actividade profissional

132

Masc. 86,4 74,7

Bás.

Sec.

Sup.

6,8

36,9

56,3

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

ANEXO 3 – 52 respostas (nºs. agregados) ao inquérito aplicado a 103 participantes do Fórum TSF (1ª semana) PERGUNTAS

RESPOSTAS Sim

Não Out/Nsab

1) É a primeira vez que participa no programa?

22

2) Tenciona voltar a participar?

52

3) Fala com os seus amigos e conhecidos sobre a intervenção?

48

4

4) Tenta intervir seja qual for o tema?

14

38

9

43

6) Acha que a sua intervenção produz efeitos junto dos ouvintes e das entidades responsáveis?

38

5

9

7) A sua participação deve-se só a razões de cidadania?

24

5

23

8) Gosta de saber que o (a) ouvem na rádio?

26

8

18

9) Era capaz de pagar para participar?

30

20

2

7

44

1

11) Ao participar no Fórum tem consciência que está a ajudar a fazer uma emissão de rádio?

49

1

2

12) Acha que a rádio pede a participação dos ouvintes somente por razões cívicas e de responsabilidade social?

23

26

3

5) Utiliza o Fórum para expor situações pessoais?

10) Admite receber dinheiro pela participação?

Fem.

Masc.

7

45

Sexo Idade

(25-54)

Grau de escolaridade Actividade profissional

133

30

40 Bás.

Sec.

Sup.

2

20

30

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

ANEXO 4 – 51 respostas (nºs. agregados) ao inquérito aplicado a 103 participantes do Fórum TSF ( 2ª, 3ª e 4ª semanas)

PERGUNTAS

RESPOSTAS Sim

Não Out/Nsab

1) É a primeira vez que participa no programa?

18

2) Tenciona voltar a participar?

50

3) Fala com os seus amigos e conhecidos sobre a intervenção?

44

7

5

46

5) Utiliza o Fórum para expor situações pessoais?

11

40

6) Acha que a sua intervenção produz efeitos junto dos ouvintes e das entidades responsáveis?

39

5

7

7) A sua participação deve-se só a razões de cidadania?

25

7

19

8) Gosta de saber que o (a) ouvem na rádio?

22

13

16

9) Era capaz de pagar para participar?

26

25

10) Admite receber dinheiro pela participação?

13

37

11) Ao participar no Fórum tem consciência que está a ajudar a fazer uma emissão de rádio?

50

1

18

32

4) Tenta intervir seja qual for o tema?

12) Acha que a rádio pede a participação dos ouvintes somente por razões cívicas e de responsabilidade social?

Actividade profissional

134

1 Masc.

7

44

(25-54)

Grau de escolaridade

1

Fem. Sexo Idade

33

37 Bás.

Sec.

Sup.

5

18

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A CIDADANIA COMO MERCADORIA

ANEXO 5 – 52 respostas (em %) ao inquérito a aplicado a 103 participantes do Fórum TSF (1ª semana) PERGUNTAS

RESPOSTAS EM % Sim

1)

É a primeira vez que participa no programa?

Não Out/Nsab

42,3 57,7

2) Tenciona voltar a participar?

100,0

3) Fala com os seus amigos e conhecidos sobre a intervenção?

92,3

7,7

9,8

90,2

5) Utiliza o Fórum para expor situações pessoais?

27,0

73,0

6) Acha que a sua intervenção produz efeitos junto dos ouvintes e das entidades responsáveis?

73,0

9,7

17,3

7) A sua participação deve-se só a razões de cidadania?

46,1

9,7

44,2

8) Gosta de saber que o (a) ouvem na rádio?

50,0

15,4

34,6

9) Era capaz de pagar para participar?

57,7

38,4

3,9

10) Admite receber dinheiro pela participação?

13,4

84,6

2,0

11) Ao participar no Fórum tem consciência que está a ajudar a fazer uma emissão de rádio?

94,2

1,9

3,9

44,2

50,0

5,8

4) Tenta intervir seja qual for o tema?

12) Acha que a rádio pede a participação dos ouvintes somente por razões cívicas e de responsabilidade social?

Sexo Idade

Masc.

13,4

86,6

(25-54)

Grau de escolaridade Actividade profissional

135

Fem.

76,9 Bás.

Sec.

Sup.

3,9

38,4

57,7

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

ANEXO 6 – 51 respostas (em %) ao inquérito aplicado a 103 participantes do Fórum TSF ( 2ª, 3ª e 4ª semanas) PERGUNTAS

RESPOSTAS EM % Sim

Não Out/Nsab

1) É a primeira vez que participa no programa?

35,3

64,7

2) Tenciona voltar a participar?

98,0

3) Fala com os seus amigos e conhecidos sobre a intervenção?

86,3

13,7

4) Tenta intervir seja qual for o tema?

9,8

90,2

5) Utiliza o Fórum para expor situações pessoais?

21,6

78,4

6) Acha que a sua intervenção produz efeitos junto dos ouvintes e das entidades responsáveis?

76,5

9,8

13,7

7) A sua participação deve-se só a razões de cidadania?

49,0

13,7

37,3

8) Gosta de saber que o (a) ouvem na rádio?

43,1

25,5

31,4

9) Era capaz de pagar para participar?

51,0

49,0

10) Admite receber dinheiro pela participação?

25,5

72,5

11) Ao participar no Fórum tem consciência que está a ajudar a fazer uma emissão de rádio?

98,0

2,0

12) Acha que a rádio pede a participação dos ouvintes somente por razões cívicas e de responsabilidade social?

35,3

62,7

Sexo Idade

Actividade profissional

136

2,0

2,0

Fem.

Masc.

13,7

86,3

(25-54)

Grau de escolaridade

2,0

72,5 Bás.

Sec.

Sup.

9,8

35,3

54,9

A CIDADANIA COMO MERCADORIA

ANEXO 7 – Elementos de caracterização da audiência da TSF Perfil de Estações - TSF Universo

8311 100,0

4894

58,9

100,0

463

5,6

100,0

Masculino

3968

47,7

2699

68,0

55,2

351

8,9

75,9

Feminino

4343

52,3

2195

50,5

44,8

112

2,6

24,1

15/17 anos 18/24 anos 25/34 anos 35/44 anos 45/54 anos 55/64 anos + 64 anos

373 1027 1501 1428 1275 1080 1629

4,5 12,4 18,1 17,2 15,3 13,0 19,6

256 767 1108 928 705 494 637

68,7 74,6 73,8 65,0 55,3 45,7 39,1

5,2 15,7 22,6 19,0 14,4 10,1 13,0

4 23 104 120 104 64 43

1,1 2,2 6,9 8,4 8,2 6,0 2,6

0,9 4,9 22,5 26,0 22,6 13,9 9,3

Grande Lisboa Grande Porto Litoral Norte Litoral Centro Interior Sul

1651 914 1605 1352 1842 948

19,9 11,0 19,3 16,3 22,2 11,4

969 599 1037 765 1028 495

58,7 65,6 64,6 56,6 55,8 52,3

19,8 12,2 21,2 15,6 21,0 10,1

125 73 97 53 102 13

7,6 8,0 6,1 4,0 5,5 1,4

27,0 15,7 21,0 11,5 21,9 2,8

Quadros MSup. Téc.Esp/Peq.PP. Serv./Adm.Com. Trab.Espec. Trab.N.Espec. Ref./Pens. Estudantes Domésticas

790 632 881 1446 823 2219 914 607

9,5 7,6 10,6 17,4 9,9 26,7 11,0 7,3

585 447 639 994 436 958 646 189

74,1 70,7 72,6 68,7 53,0 43,2 70,6 31,1

12,0 9,1 13,1 20,3 8,9 19,6 13,2 3,9

151 55 67 73 16 70 21 11

19,1 8,7 7,6 5,0 1,9 3,1 2,3 1,9

32,5 11,9 14,5 15,8 3,4 15,1 4,5 2,5

Classe A Classe B Classe C1 Classe C2 Classe D

457 989 2070 2577 2219

5,5 11,9 24,9 31 26,7

326 682 1363 1561 962

71,3 68,9 65,8 60,6 43,4

6,7 13,9 27,8 31,9 19,7

84 133 132 77 37

18,4 13,4 6,4 3,0 1,7

18,2 28,6 28,6 16,7 7,9

Género

Universo

Idade

Perfil %

Região

TSF AAV %

Ocupação

Perfil % AAV(000)

Classe Social

(000)

Total Rádio AAV (%) AAV(000) %

Fonte: Marktest, Bareme Rádio 2005 in Anuário de Media & Publicidade 2005 NOTAS: AAV: Audiência Acumulada de Véspera AAV (000): Audiência Acumulada de Véspera em Milhares de Indivíduos AAV %: Audiência Acumulada de Véspera em Percentagem Perfil %: Composição da Audiência em Percentagem pelas variáveis sócio-demográficas

137

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