A Cidadania, fundamento de legitimidade e argumento legitimador do TCUE (2005)

June 13, 2017 | Autor: João Pedro Dias | Categoria: União Europeia, Tratado Constitucional
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JOÃO PEDRO SIMÕES DIAS Centro de Estudos Europeus do Instituto Amaro da Costa Instituto Politécnico de Tomar Universidade Internacional

A CIDADANIA FUNDAMENTO DE LEGITIMIDADE E ARGUMENTO LEGITIMADOR DO TCUE

DOCUMENTO APRESENTADO AO VI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO ESPANHOLA DE CIÊNCIA POLÍTICA E DA ADMINISTRAÇÃO. MADRID, 21 A 23 DE SETEMBRO DE 2005

A cidadania – fonte de legitimidade e argumento legitimador do TCUE

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NOTA CURRICULAR João Pedro Simões Dias Licenciado em Direito (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), Mestre em Estudos Europeus (Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, Braga), Doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais (Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, Braga). Professor do Instituo Politécnico de Tomar (Escola Superior de Gestão e Escola Superior de Tecnologia de Abrantes) e da Universidade Internacional nas Disciplinas de “Direito Comunitário”, “Direito Internacional Público”, “Ciência Política e Direito Constitucional” e “História das Instituições (União Europeia)” Membro da Associação Portuguesa de Ciência Política, Associação Espanhola de Ciências Políticas e da Administração, Academia Norte-Americana de Ciência Política e Instituto Francês de Relações Internacionais Centro de Estudos Europeus do IDL – Instituto Amaro da Costa. Principais textos e publicações: A Europa dos projectistas da paz e dos pais fundadores. Editora Internacional. Lisboa 2003. Cronologia comunitária. Edição O Espírito das Leis. Lisboa 2003. Será possível uma democracia supranacional? Conferência apresentada no Congresso Portugal e o Futuro da Europa, IEEI, Lisboa, Março 2003. Publicada in Revista Estratégia, nº 18/19. 2003. pag 59-67. O Conselho Europeu. Estudo de Direito Comunitário Institucional. Edição Quarteto. Coimbra 2002. O Conselho da União Europeia. Estudo de Direito Comunitário Institucional. Edição Quarteto. Coimbra 2001. Portugal e a Cooperação Europeia (1945–1986). Edição SPB. Lisboa 1999. O Conselho Europeu e a Ideia de Europa: Estudos Europeus e Comunitários. Edição FEDRAVE. Aveiro 1995. Sobre a origem das Comunidades: as instituições comunitárias. Edição FEDRAVE. Aveiro 1992. «A Comunidade Europeia (União Europeia) e o Ambiente». in O Conselho Europeu e a Ideia de Europa: Estudos Europeus e Comunitários. Edição FEDRAVE. Aveiro 1995. «A «ideia de Europa» e o anseio de unidade europeia. A cooperação europeia nos domínios militar, económico e político». in O Conselho Europeu e a Ideia de Europa: Estudos Europeus e Comunitários. Edição FEDRAVE. Aveiro 1995. «A «política externa e de segurança comum» e a defesa europeia», in O Conselho Europeu e a Ideia de Europa: Estudos Europeus e Comunitários. Edição FEDRAVE. Aveiro 1995. «O direito comunitário e a sua relação com a ordem jurídica interna. Sobre o efeito directo e a aplicabilidade directa do direito comunitário» in O Conselho Europeu e a Ideia de Europa: Estudos Europeus e Comunitários. Edição FEDRAVE. Aveiro 1995. «O Parlamento Europeu. Análise e evolução», in O Conselho Europeu e a Ideia de Europa: Estudos Europeus e Comunitários. Edição FEDRAVE. Aveiro 1995. «Introdução ao estudo dos elementos e dos fins do Estado». In Estudos Aveirenses — Revista do ISCIA. Aveiro. «Principal cronologia comunitária», In Estudos Aveirenses — Revista do ISCIA. Aveiro. A democracia-cristã - das suas origens. Edição IADC - Instituto Aveirense da Democracia-Cristã. Aveiro 1991 Contactos: Endereço Profissional – Travessa do Mercado, 5 – 2º Dto. 3800-224 Aveiro. Portugal. Tel.: +(351)234.382.053 Tlm.: +(351)96.712.9144 Fax Móvel: +(351)96.719.9189 Endereço de Email: [email protected] Sites e web pages [email protected] e www.joaopedrodias23.blogspot.com

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PARTE PRIMEIRA I Pese embora todas as vicissitudes por que vem passando ao longo do seu processo de ratificação nos 25 Estados-membros da União Europeia1, e apesar de, fruto de algumas dessas vicissitudes, se encontrar verdadeiramente «ferido de morte» no plano jurídico2, poucas dúvidas existirão sobre

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No momento em que é feita a última revisão deste texto – Agosto de 2005 – é o seguinte o ponto da situação no que diz respeito às ratificações já efectuadas do Tratado: Alemanha (aprovado em 12 de Maio de 2005 no Bundestag e em 27 de Maio do mesmo ano no Bundesrat), Áustria (aprovado em 11 de Maio de 2005 no Nationalrat e em 25 de Maio do mesmo ano no Bundesrat), Chipre (aprovado pelo Parlamento a 30 de Junho de 2005), Espanha (realização de referendo a 20 de Fevereiro de 2005 com 76,7% de sufrágios favoráveis, aprovado pelo Congresso dos Deputados a 28 de Abril de 2005 e aprovado pelo Senado a 18 de Maio de 2005), França (realização de referendo a 29 de Maio de 2005 com 54,68% de sufrágios negativos), Grécia (aprovado pelo Parlamento a 19 de Abril de 2005), Hungria (aprovado pelo Parlamento a 20 de Dezembro de 2004), Itália (aprovado pela Câmara dos Deputados a 25 de Janeiro de 2005 e pelo Senado a 6 de Abril do mesmo ano), Letónia (aprovado pelo Parlamento a 2 de Junho de 2005), Lituânia (aprovado pelo Parlamento a 11 de Novembro de 2004), Malta (aprovado pelo Parlamento a 6 de Julho de 2005), Holanda (realização de referendo a 1 de Junho de 2005 com 61,7% de sufrágios negativos), Eslovénia (aprovado pelo parlamento a 1 de Fevereiro de 2005), Eslováquia (aprovado pelo Parlamento a 11 de Maio de 2005). Na mesma data, o Tratado encontra-se em curso de ratificação nos seguintes Estados-membros: Bélgica (tendo sido aprovado pelo Senado a 28 de Abril de 2005, pela Câmara dos Deputados a 19 de Maio de 2005, pelo Parlamento da Região de Bruxelas a 17 de Junho de 2005, pelo Parlamento da Comunidade Germanófona belga a 20 de Junho de 2005, pelo Parlamento da Valónia a 29 de Junho de 2005 e pelo Parlamento da Comunidade Francófona belga a 19 de Julho de 2005. Falta a aprovação pelo Parlamento da Região da Flandres, ainda sem data marcada/conhecida) e Luxemburgo (onde foi aprovado em primeira leitura pela Câmara dos Deputados a 28 de Junho de 2005, tendo sido posteriormente objecto de referendo a 10 de Julho de 2005 com 56,52% de sufrágios favoráveis. Falta a aprovação em segunda leitura pela Câmara de Deputados a qual, não tendo ainda data marcada/conhecida, deve realizar-se no prazo de três meses após a votação em primeira leitura). Dinamarca, Estónia, Finlândia, Irlanda, Polónia, Portugal, República Checa e Reino Unido ainda não encetaram os respectivos processos tendentes à aprovação do Tratado. 2

Sem perder de vista que estamos num domínio predominantemente político, onde não raro a dimensão política se sobrepõe às próprias exigências jurídicas, do estrito ponto de vista jurídico, não temos qualquer dúvida em assumir que – no actual estado do seu processo de ratificação – o Tratado, na exacta medida em que foi assinado, se encontra morto e não poderá, jamais, tender a produzir quaisquer efeitos práticos. Isto porque, para o mesmo poder produzir os efeitos jurídicos a que tendia, ele deveria ser ratificado por todos os Estados-membros da UE. Ora, até ao momento (e enfatizamos a expressão…), dois desses Estados (França e Holanda), por via referendária, já recusaram a respectiva ratificação. Objectivamente, resta assim que, para o Tratado poder entrar em vigor, das–duas–uma: a) ou os Estados que já recusaram a ratificação mudariam de opinião e, eventualmente em novos referendos, aprovariam o Tratado (à semelhança do ocorrido com a Dinamarca em 1992 a propósito da ratificação do Tratado da União Europeia e com a Irlanda em 2001 e 2002 a propósito da ratificação do Tratado de Nice) – o que se afigura de todo improvável em termos práticos e nem deve ser considerado como hipótese senão no

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a importância política do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa – assim denominado oficialmente3 – assinado em 29 de Outubro de

mero plano académico, pelo desrespeito que significa ante a legítima expressão da vontade popular e perante o próprio instituto do referendo; b) ou o Tratado entraria apenas em vigor para os Estados-membros que o ratificaram – o que também não se afigura viável em termos práticos, porquanto significaria apartar do processo de integração europeia, com todas as consequências daí resultantes (muitas delas seguramente nem sequer imagináveis) dois Estados fundadores desse mesmo processo. A pretender manter-se a via constitucionalizante da UE, a alternativa sobrante poderá passar pela reabertura das negociações intergovernamentais visando introduzir no Tratado as alterações que se afigurem necessárias por forma a que o mesmo possa, em nova ronda de ratificações, merecer a aprovação unânime de todos os Estados-membros da União. Mas aí, a ser esse o caminho a seguir, estaremos sempre ante um novo Tratado. Um Tratado jurídica e formalmente diferente (muito ou pouco diferente é irrelevante) daquele que foi assinado em Roma em 29 de Outubro de 2004. E um Tratado que terá sempre de ser ratificado por todos os Estados-membros da UE, inclusive por aqueles que já ratificaram (com recurso a processos referendários ou apenas por via parlamentar) a sua versão originária. Daí o já termos tido oportunidade de, publicamente (em http://joaopedrodias23.blogspot.com/2005/07/o-luxemburgo-acaba-de-aprovar-com.html), considerar como juridicamente inúteis (pese embora admitíssemos que pudessem ter uma relevância política) todos os actos de ratificação do Tratado subsequentes à primeira rejeição ocorrida. Essa rejeição – que, recorde-se, ocorreu por efeito do resultado do referendo acontecido em França em 29 de Maio de 2005 e acabou por ser reforçada com idêntica rejeição acontecida no referendo holandês de 1 de Junho do mesmo ano) tornou dispensáveis juridicamente os actos de ratificação que se lhe vierem a suceder. Mas não só – tornou, também, insusceptíveis de produzir quaisquer efeitos jurídicos práticos os actos de ratificação que a antecederam. É este um corolário lógico e óbvio da metodologia escolhida e adoptada para aprovar os Tratados comunitários e da União Europeia. E essa metodologia assenta num princípio basilar: o princípio da completa igualdade jurídica dos Estados-membros (primeiro, das Comunidades Europeias; posteriormente, da própria União Europeia). Independentemente da sua dimensão, população, riqueza ou qualquer outro critério, entenderam os pais fundadores recorrer a essa trave-mestra do direito internacional público (o princípio clássico da igualdade jurídica entre os Estados de uma sociedade internacional em trânsito acelerado para o estatuto de comunidade) para o momento alfa do próprio projecto comunitário. Metodologia que, posteriormente, não foi transposta para o funcionamento das instituições comunitárias e da União (maxime, o Conselho, órgão legislativo por excelência) posto que o método normal de estas adoptarem as suas deliberações respeita o princípio maioritário (e, no específico caso do Conselho, o princípio da maioria qualificada, onde os factores atrás referidos – demografia, dimensão… – são levados em consideração através da ponderação do número de votos atribuído a cada Estado-membro). 3

Sobre esta designação oficial do Tratado – Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa – veja-se o estudo de José Acosta Sánchez, ”Riqueza y utilidad del nombre del “Tratado por el que se establece una Constitución para Europa””, in Stvdia Ivridica, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra n.º 84 (Colóquio Ibérico: Constituição Europeia. Homenagem ao Doutor Francisco Lucas Pires), Coimbra 2005, onde o Autor analisa com detalhe a denominação deste Tratado, anotando desde logo a sua origem certamente barroca que deixa antever não se estar ante uma designação convencional de um texto jurídico-político, mas sim ante uma designação sui generis. Assinalando o significado dos dois elementos que mais se destacam na designação do referido documento – “Tratado” e “Constituição” – que nos aparecem umbilicalmente associados nesta designação, Acosta Sánchez recorda que «dizer Tratado é falar de um contrato e dizer Constituição é falar de uma lei suprema, e o primeiro nasce do princípio da unanimidade e a segunda, na sua irredutível condição de lei, do princípio da maioria. Um retira a sua validade do pacto entre poderes soberanos e a outra teria de o retirar de um

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2004 em Roma (e doravante designado apenas, de forma simplificada e abreviada, TCUE). Independentemente de o mesmo poder vir – ou não – a entrar em vigor nos exactos termos em que foi assinado, ou de poder vir a servir de base para um novo Tratado que o substitua, o TCUE assinala e simboliza a mais séria e mais acabada tentativa de aprofundamento político registada no processo de integração europeia iniciado nos alvores da década de cinquenta do século passado. Sobre isto, de resto, já tivemos oportunidade de escrever que o novo Tratado constituiu um marco talvez só equiparado ao anterior Tratado comunitário assinado na mesma cidade de Roma4, nesse longínquo 25 de Março de 1957, com o qual se deu início a essa aventura fantástica que consistiu na tentativa de promover a união política do Velho Continente de uma forma voluntária – voluntariamente consentida e não autoritariamente imposta – tal como a ousou sonhar uma plêiade de ilustres pais fundadores que, tendo vivido – e sofrido na pele – as agruras e os horrores da segunda guerra, esse conflito dito mundial pelas suas consequências e efeitos mas – não o esqueçamos! – totalmente europoder supremo socializado, abarcando o conjunto de cidadãos dos 25 Estados. O Tratado invoca uma união de Estados, a Constituição é invocada por uma união de cidadãos. O primeiro nível de união é por natureza alheio a um poder constituinte democrático, sendo os sujeitos da democracia seres humanos, nunca entidades abstractas. O segundo nível de união só é compatível com o primeiro se for por ele criado, se for a vontade dos cidadãos a criadora da União de Estados, o que apenas pode ocorrer plasmando-se essa vontade dos cidadãos numa lei suprema, ou Constituição acima das Constituições dos Estados, o que supõe a eliminação do Tratado entre estes». Do que se tratará, em rigor e no dizer do mesmo Autor, é de «um Tratado que aspira a estabelecer uma Constituição», sendo que ambos os termos em análise – “Tratado” e “Constituição” – levando consigo a associação a diferentes níveis do processo de associação entre Estados – o Tratado invoca a fase confederal e a Constituição remete para um nível federal – acabam por reflectir a realidade da União Europeia que conhece um processo de integração assimétrico que oscila entre um grau de integração de natureza confederal – no domínio político – e um grau de integração de natureza federal – nos domínios económico e jurídico. 4

Ignoramos, nesta passagem do texto, voluntariamente, o primeiro Tratado comunitário, assinado em Paris em 1951 e mediante o qual foi instituída a primeira Comunidade Europeia (a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço) por entendermos que o processo comunitário apenas se sedimentou quando foram criadas as duas Comunidades subsequentes – e isso só aconteceu com o Tratado de Roma de 1957 que instituiu a Comunidade Económica Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica. Até este momento, entre 1951 e 1957, o processo comunitário era um mar de incertezas e dúvidas, de que a tentativa (falhada) de constituição quer da Comunidade Europeia de Defesa quer da Comunidade Política Europeia mais não será do que um (ilustrativo) exemplo.

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peu pelas suas causas e determinações, acreditou que só uma união política de Estados europeus democráticos poderia assegurar para a Europa e para o Mundo, nos tempos próximos, esse bem supremo chamado paz. União de uma Europa que começou por ser a «pequena Europa», resto sobrante de um Ocidente em processo de recuo, mas que lentamente se foi alargando e que, com o final da guerra-fria e da ordem internacional que foi a dos pactos militares, fez coincidir praticamente o seu conceito político com a sua dimensão geográfica. Fruto de um processo original em termos da sua elaboração5, desde cedo se suscitaram várias questões em torno do TCUE – a menor das quais não terá sido, certamente, a de determinar qual a sua fonte de legitimidade, isto é, a questão fundamental que nos propomos abordar ao longo deste estudo. Antes, porém, de nos centrarmos na questão principal deste estudo, outras considerações preliminares sobre o TCUE não podem deixar de ser abordadas para melhor enquadramento e compreensão da própria questão central a analisar subsequentemente. II A aprovação do TCUE proporcionou o recrudescimento do debate constitucional no quadro da Europa da União. Ora, o debate constitucional europeu constituiu, até Maio de 2000, uma área ou um domínio restrito e reser5

Recorde-se que, pela primeira vez, um Tratado comunitário ou da União Europeia não foi elaborado exclusivamente no quadro de uma Conferência Intergovernamental. À semelhança da metodologia já utilizada para elaborar a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, os chefes de Estado e de governo dos quinze Estados membros da União deliberaram, por ocasião do Conselho Europeu de Laeken, convocar uma Convenção – a Convenção sobre o futuro da Europa – a quem conferiram o mandato necessário para elaborar um projecto de reforma dos Tratados comunitários que servisse de base aos trabalhos da futura Conferência Intergovernamental. Recorde-se por ser importante: conforme veremos adiante, em momento algum do mandato outorgado pelo Conselho Europeu à Convenção se refere a elaboração de um projecto de Constituição ou de Tratado constitucional para a União Europeia. A responsabilidade pela designação do documento elaborado pela Convenção Europeia ficou a dever-se à própria Convenção Europeia, significativamente impulsionada pelo respectivo Praesidium para assumir a redacção de uma Constituição para a União Europeia.

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vado, quase em exclusivo, a sectores muito limitados do meio académico e universitário ou, então, aos movimentos de âmbito federal europeu que, preconizando a criação dos Estados Unidos da Europa, ou em alternativa de um verdadeiro Estado federal europeu, defendiam a redacção de uma verdadeira Constituição europeia. Porém, a situação alterou-se profundamente quando, em 12 de Maio de 2000, em discurso pronunciado na Universidade de Hamböldt, em Berlim, por ocasião do quinquagésimo aniversário da Declaração Schuman, o Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Joschka Fischer – respondendo à pergunta: quo vadis, Europa?6 –, preconizou explicitamente a necessidade relançamento do processo de integração da Europa numa base federal. Para o efeito sustentou a necessidade de ser elaborado um novo Tratado fundamental europeu, primeiro passo para a constituição da Federação Europeia que ele desejava que se viesse a constituir. Após este discurso estava definitivamente relançado o debate sobre a Constituição europeia – porque uma coisa é uma Constituição ser reclamada por movimentos federalistas europeus ou sectores académicos ou universitários mais ou menos dispersos, outra a mesma ser defendida pelo chefe da diplomacia do maior Estado-membro da União Europeia7… Como já pudemos observar noutro local8, este processo dito de «constitucionalização» da União Europeia9, convirá observá-lo, tem sido 6

Maria Manuela Tavares Ribeiro, A ideia de Europa, uma perspectiva histórica, Quarteto, Coimbra, 2003, pag 79

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Na recente literatura jurídica portuguesa, sobre o processo de constitucionalização da União Europeia, Ana Maria Guerra Martins, “A revisão do Tratado e a constitucionalização”, in AA.VV., A União Europeia e Portugal: a actualidade e o futuro, Curso de Verão de Direito Comunitário e Direito da Integração. Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa. Almedina, Coimbra, 2005, pag 46-74. 8 9

Em http://joaopedrodias23.blogspot.com/2003/11/o-processo-dito-de-constitucionalizao.html.

Sobre o processo de constitucionalização da União Europeia, Paul Craig, “Constituciones, constitucionalismo y la Unión Europea”, in Eduardo Garcia de Enterría (Direc), La encrucijada constitucional de la Unión Europea, Colégio Libre de Eméritos e Civitas, Madrid, 2002, pag 229-265. Sobre o mesmo tema, também Luís Maria Díez-Picaso, Constitucionalismo de la Unión Europea, Civitas, Madrid, 2002.

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acompanhado no tempo por dois factos que devem merecer alguma atenção e alguma ponderação. Em primeiro lugar, tem sido acompanhado pelo recrudescimento do chamado eixo franco-alemão. Em segundo lugar, pelo dispensável e indesejável surgimento de algumas posturas arrogantes, de que se poderiam mencionar as quatro seguintes a título de exemplo: 1) o reforço do esforço militar francês, com o próprio desrespeito pelo tratado sobre limitação de armas nucleares, permitindo ao Presidente francês autorizar ensaios nucleares proibidos, findos os quais se permitiu declarar que regressava ao direito e às normas internacionais; 2) a posição do mesmo Presidente francês, inédita em termos de diplomacia europeia, dizendo que os chefes de Estado dos países do alargamento, quando se solidarizaram com a administração republicana norte-americana a propósito da crise iraquiana, perderam uma boa oportunidade para ficarem calados; 3) a posição do Praesidium da Convenção Europeia, transmitida por Valéry Giscard d’Estaing (também francês…), segundo a qual quaisquer alterações ao projecto de Constituição europeia aprovado por essa mesma Convenção só se deveriam aceitar se fossem objecto de um consenso alternativo, isto é, no máximo idêntico ao consenso obtido pelo texto que se pretendesse substituir; 4) a proclamação contida no ponto sexto do Preâmbulo da Constituição europeia, segundo o qual os europeus se devem mostrar agradecidos aos convencionais pela Constituição que elaboraram. Estes quatro exemplos acabam por ilustrar uma postura arrogante que tem andado a par do referido processo de «constitucionalização» da União Europeia. e que era dispensável que tivessem ocorrido, fazendo surgir legítimas dúvidas sobre o futuro do processo no caso de, por qualquer motivo imprevisto, o mesmo não poder ser concluído. Recolocada a questão constitucional europeia no centro do debate político europeu após o referido discurso do Ministro dos Negócios Estrangeiros

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alemão de 12 de Maio de 2000, foi sob o seu signo que se travaram os principais debates que antecederam as importantes cimeiras do Conselho Europeu de Nice (Dezembro de 2000) e, após os escassos e desoladores resultados nesta obtidos, de Laeken (Dezembro de 2001). De facto, se é verdade que o Conselho Europeu de Nice abriu as portas à adesão de doze novos Estados-membros da União Europeia10, não é menos verdade que deixou bem patentes e bem evidenciadas todas as fraquezas da União e as suas muitas debilidades internas. Enredados numa lógica puramente intergovernamental de negócios e permutas de parcelas de poder, algumas vezes mais aparente do que real, os chefes de Estado e de governo deixaram por responder duas questões fundamentais que estavam subjacentes ao processo negocial que decorreu no quadro da Conferência Intergovernamental: 1) quais as tarefas, missões e ambições da nova União Europeia alargada? 2) Como organizar, politica e institucionalmente, a nova União Europeia alargada para que a mesma pudesse responder às suas novas missões e ambições? Ora, a modéstia dos resultados a que chegou o Conselho Europeu de Nice acabou por ser reconhecida, de forma implícita, pela própria instituição que, em anexo às suas Conclusões finais, aprova um documento intitulado "Declaração sobre o futuro da União" que lista as questões que ocupariam o centro do debate europeu nos anos subsequentes, algumas das quais era suposto terem sido resolvidas pela própria Cimeira francesa. Assim, e no quadro de uma futura revisão dos Tratados fundacionais, deveriam ser equacionadas e respondidas fundamentalmente as seguintes questões: 1) a repartição de competências entre a União Europeia e os seus Estados-membros; 2) a simplificação e consolidação dos Tratados; 3) o estatuto jurídico da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia 10

A cimeira do Conselho Europeu de Nice abriu as portas da União Europeia, no plano do funcionamento das instituições, não só aos dez Estados que acabaram por aderir à União no quinto alargamento ocorrido a 1 de Maio de 2004, mas também à Bulgária e à Roménia cuja inclusão na União Europeia se prevê que possa ocorrer a 1 de Janeiro de 2007.

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que a Cimeira de Nice se limitou a "proclamar"; 4) o papel dos Parlamentos nacionais na futura arquitectura institucional europeia. Ora, o carácter constitucional destas questões é absolutamente inegável e incontornável. E foram estas questões de carácter constitucional que, por não terem sido resolvidas pelo Conselho Europeu de Nice, foram colocadas pela própria cimeira francesa no centro da agenda do debate político europeu. E que viriam a determinar as principais deliberações tomadas em Dezembro de 2001 na Cimeira do Conselho Europeu que reuniu em Laeken. III Confrontados com o inêxito e com o desaire em que se havia transformado a cimeira francesa, conscientes de que as questões que permaneciam sem resposta eram susceptíveis de afectar o regular e normal funcionamento de uma União Europeia alargada, cientes das insuficiências do quadro institucional corporizado no Tratado de Nice – os chefes de Estado e de governo dos quinze sabiam que não se podiam dar ao luxo de perder e de desperdiçar uma nova oportunidade para responderem às questões que permaneciam sem resposta, a maioria das quais se prendia com o próprio funcionamento institucional da União11. O diagnóstico então efectuado consta da Declaração sobre o futuro da União Europeia – aprovada no referido Con11

Recorde-se que em Nice não havia sido logrado nenhum entendimento sobre a verdadeira reforma institucional da União Europeia – a reforma necessária ao funcionamento de uma organização que se aprestava a passar a funcionar com 25 Estados-membros mas que, no plano institucional, continuava fiel à arquitectura desenhada e pensada para funcionar com, apenas, 6 Estados-membros. O que em Nice se conseguiu alcançar foi, apenas, um remendo institucional, transitório e precário por natureza, que permitiu adaptar as regras de funcionamento da União às adesões resultantes dos quinto e, eventualmente, sexto alargamentos. A verdadeira reforma institucional, porém, ficou por realizar. E mais do que nunca as exigências reclamavam-na. Não só porque a União viu aumentar (quadruplicar, relativamente ao seu momento alfa) o número dos seus Estados-membros como, sobretudo, porque a sua matriz mudou – de um bloco essencialmente económico de âmbito sub-regional, evoluiu para uma organização que aspira a ser um bloco geopolítico de vocação continental (pan-europeia). Ora, será de todo impossível a União Europeia pretender enfrentar os desafios resultantes da sua nova natureza com as instituições e a arquitectura institucional pensada para a sua missão original. Mas essa reforma institucional ficou por fazer em Nice. E permanece por fazer até aos nossos dias….

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selho Europeu de Laeken – e aí se constata que a União se encontra numa encruzilhada e num momento crucial da sua existência. São, então, identificados os grandes desafios com que a União Europeia se acha confrontada nesse final de 2001 – e são dois esses desafios: um, de natureza interna – sente-se a necessidade de aproximar cada vez mais as instituições europeias dos cidadãos europeus que, cada vez mais, sentem a União Europeia e o funcionamento das suas instituições como algo de longínquo e distante, domínio nebuloso apenas ao alcance de uns quantos que se movimentam pelos corredores da eurocracia; outro, de natureza externa – a União Europeia, sobretudo após a queda do Muro de Berlim e os trágicos acontecimentos do 11 de Setembro, vê-se confrontada com um mundo globalizado e em rápida mutação. Ora, os chefes de Estado e de governo dos quinze sentiram que era necessário repensar o papel da Europa neste mundo alterado. E, ao mesmo tempo, impunha-se que nesse mundo em mutação acelerada a Europa assumisse integralmente as suas responsabilidades. Ambos os desafios que se colocam à União Europeia deverão ser abordados – ainda segundo a deliberação do Conselho Europeu de Laeken – segundo uma estratégia que deve obedecer a três pressupostos fundamentais: 1) em primeiro lugar, definindo uma melhor repartição e definição das competências entre a União Europeia e os seus Estados-membros; 2) em segundo lugar, consolidando os Tratados fundamentais, esse emaranhado de documentos jurídicos de difícil percepção, em regra apenas ao alcance de uma minoria de especialistas que, por dever de ofício, dos mesmos e com os mesmos se têm de preocupar; 3) em terceiro lugar, reforçando os princípios da democracia, da transparência e da eficácia na actuação quotidiana das instituições comunitárias. Para melhor responder aos grandes desafios supra identificados de acordo com os pressupostos enunciados, o Conselho Europeu deliberou convocar

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uma Convenção composta pelos principais participantes no debate europeu sobre o futuro da Europa12 – Convenção que, estudando as diferentes questões identificadas, deveria elaborar um documento final que servisse de ponto de partida para os trabalhos da futura Conferência Intergovernamental13. Esta deliberação do Conselho Europeu de Laeken de instituir e convocar uma Convenção responsável pela elaboração de um documento que servisse de ponto de partida para os trabalhos da futura Conferência Intergovernamental não escapou aos comentários da doutrina – que sobre ela produziu algumas observações que merecem o necessário registo. Em primeiro lugar uma reflexão sobre a própria necessidade de ser convocada uma Convenção. Tratou-se de uma originalidade em matéria de elaboração ou preparação de Tratados europeus comunitários. Até ao momento a elaboração dos principais documentos de direito comunitário originário havia sido sempre confiada em absoluto exclusivo aos Estados-membros das Comunidades e da União que se socorriam do mais clássico método intergovernamental previsto pelo clássico direito internacional público para, em conferência diplomática (Conferência Intergovernamental), negociarem e aprovarem os Tratados de incidência comunitária e as suas respectivas alterações que por regra constavam, elas também, de outros Tratados comunitários. Desta feita, o Conselho Europeu deliberou inovar – e 12

A Convenção tinha a seguinte composição, nos termos da deliberação tomada pelo Conselho Europeu de Laeken: o Presidente (Valéry Giscard d’Estaing) e dois Vice-Presidentes (Giuliano Amato e Jean-Luc Dehaene) nomeados pelo Conselho Europeu, 15 representantes dos Chefes de Estado ou de Governo dos Estados-membros (1 por Estado-membro), 30 membros dos Parlamentos nacionais (2 por Estado-membro), 16 membros do Parlamento Europeu e 2 representantes da Comissão. Os Estados à altura candidatos à adesão à União Europeia participaram plenamente nos trabalhos da Convenção e fizeram-se representar nas mesmas condições que os Estados-membros (um representante do governo e dois membros do Parlamento nacional).

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Sobre a Convenção Europeia, na mais recente literatura jurídica portuguesa, Maria Eduarda Azevedo, “A Convenção e a Europa do século XXI”, in AA.VV., A União Europeia e Portugal: a actualidade e o futuro, Curso de Verão de Direito Comunitário e Direito da Integração. Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa. Almedina, Coimbra, 2005, pag 21-27. E também, sobre o mesmo tema, Guilherme d’Oliveira Martins, Que Constituição para a União Europeia? Análise do projecto da Convenção, Fundação Mário Soares e Gradiva, Lisboa, 2003.

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envolver no processo de elaboração do Tratado uma instância ad hoc, criada especificamente para o efeito. Recuperou-se, assim, a prática anteriormente seguida por ocasião da elaboração da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais – cuja elaboração também foi confiada a uma Convenção ad hoc, especificamente instituída para essa finalidade. Numa altura em que, na própria Declaração sobre o futuro da União Europeia, o Conselho Europeu de Laeken fazia apelo à necessidade de criar uma maior transparência no processo de funcionamento das instituições e de aproximar esse mesmo funcionamento dos próprios cidadãos – o recurso à convocação da Convenção Europeia deve, justamente, enquadrar-se nesse mesmo esforço. Um esforço no sentido de libertar o processo de reforma dos Tratados da confidencialidade própria da eurocracia burocrática e da conferência diplomática, tornando-o mais participado, mais transparente e mais conhecido do grande público e da opinião pública europeia, desde logo por força do aumento do número de membros participantes e intervenientes na sua elaboração e na sua preparação. A posteriori, analisando e avaliando a forma como decorreu a actuação da Convenção Europeia – independentemente dos critérios de actuação desta, que analisaremos infra – é forçoso reconhecer-se que o objectivo da transparência foi plenamente alcançado, e que nunca um processo de reforma ou revisão ou alteração dos Tratados europeus foi tão noticiado, tão comentado, tão analisado como o foi durante o período em que esteve reunida a Convenção Europeia, objecto de interesse permanente na comunicação social europeia. Nessa medida, a actuação da Convenção Europeia alcançou plenamente o objectivo que se propunha alcançar. Em segundo lugar – e apesar do objectivo enunciado ter sido amplamente alcançado – impõe-se recordar que, no momento da sua criação, a própria instituição da Convenção Europeia foi objecto de acesas críticas e vasta

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polémica, sobretudo por parte de vozes e sectores oriundos do Parlamento Europeu que entendiam que a missão atribuída à Convenção Europeia poderia e deveria ter sido confiada – com acrescida legitimidade – justamente à Assembleia de Estrasburgo. «A Convenção é também resultado de um processo institucional que prima pela confusão e pela indefinição de poderes e de responsabilidades. Em primeiro lugar, em bom rigor, ela não deveria existir, dado que a instituição naturalmente vocacionada para cumprir o papel que foi atribuído à Convenção era o Parlamento Europeu. Eleito directamente por todos os cidadãos europeus, ele tinha uma legitimidade virtual certamente muito maior do que um “rassemblement” de deputados nacionais escolhidos por quotas, que deixavam de fora correntes políticas importantes, funcionários superiores dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e algumas personalidades avulsas escolhidas pelos governos. Ninguém verdadeiramente responde pelo seu mandato “convencional” e por isso também ninguém se sente aí representado» – escreveu, de forma incisiva e certeira, sintetizando muitas outras vozes, José Pacheco Pereira14, opinion maker português e, à data, também deputado no Parlamento Europeu. O argumento invocado era de peso e dificilmente contornável: enquanto a Assembleia de Estrasburgo estava directamente legitimada pelo voto dos cidadãos europeus, a nova Convenção Europeia que acabava de ser instituída não possuía essa legitimidade directa e democrática, antes se limitava a reunir um conjunto de personalidades que apenas representavam os Parlamentos e os governos nacionais, bem como as instituições comunitárias. E se os representantes dos Parlamentos dos Estadosmembros e do Parlamento Europeu ainda poderiam invocar uma legitimidade democrática directa – por serem eleitos para as respectivas assembleias – já os representantes das demais entidades presentes na Convenção

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José Pacheco Pereira, Jornal Público, 23 de Janeiro de 2003.

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(governos nacionais, Conselho da União e Comissão Europeia), não poderiam invocar essa legitimidade democrática directa, o que faria com que a sua representatividade aparecesse significativamente diminuída. Sob este ponto de vista – importante para o desenvolvimento do nosso estudo, conforme adiante se perceberá – a verdadeira auscultação da opinião pública europeia deveria ter sido confiada à instância que tem por missão representar os povos da Europa e que funda a sua legitimidade na expressão democrática do voto emanado por esses mesmos povos. Veremos, adiante, o quão importante poderia ter sido optar por confiar ao Parlamento Europeu a missão atribuída à Convenção Europeia – especialmente em termos de determinação da fonte de legitimidade do Tratado a que se chegou. O observador atento ao funcionamento e ao relacionamento que intercede entre as diferentes instituições da Europa da União remete para a desconfiança latente que o Parlamento Europeu suscita junto do Conselho (e neste caso do Conselho Europeu) a razão pela qual a cimeira de Laeken não confiou à Assembleia de Estrasburgo a missão que veio a atribuir à Convenção sobre o futuro da Europa. E existem razões objectivas que justificam essa desconfiança latente – nunca assumida, obviamente, mas frequentemente evidenciada – entre o Conselho – enquanto instituição da união que também representa os executivos nacionais – e o Parlamento Europeu – enquanto instituição da União que representa os povos da Europa. De facto – e tomando por exemplo o ocorrido em 2004 nas últimas eleições para o Parlamento Europeu – os actos eleitorais para a Assembleia de Estrasburgo vêm demonstrando sistematicamente que, mais e antes do que servir para elegerem deputados europeus, têm servido para avaliar governos e políticas nacionais, censurando-as invariavelmente. Só assim se explica que os partidos políticos no poder conheçam, sucessivamente, maus resultados eleitorais nessas eleições. É um fenómeno transversal que atravessa toda a

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Europa e que não obedece a nenhuma tendência de voto susceptível de qualquer teorização. Em termos exclusivamente empíricos, verifica-se que nos países onde os partidos de esquerda estão no poder, a esquerda perde eleições. E que nos países onde os partidos de direita estão no poder, a direita perde as eleições europeias. Todos os partidos que exerciam o poder nos respectivos governos nacionais ou que haviam ganho as eleições legislativas nacionais imediatamente anteriores às últimas eleições europeias, sendo os mais votados, perderam essas mesmas eleições europeias – ou deixaram de ser as formações mais votadas, ou perderam percentualmente votos. Desta regra exceptuam-se apenas os casos em que as eleições legislativas imediatamente anteriores às eleições europeias decorreram no mesmo ano destas (2004), ou seja, com menos de seis meses de intervalo. Nestes casos (Grécia e Espanha15) as formações partidárias que venceram os sufrágios nacionais não sofreram desaires nas eleições europeias, chegando inclusivamente num desses casos a reforçar percentualmente a sua votação. A explicação radicará seguramente no facto de que tais formações políticas, recém-vencedoras de eleições nacionais, recentemente chamadas ao poder, ainda se encontrariam no «estado-de-graça» político de que desfrutam os ganhadores, ainda não tendo decorrido o tempo necessário para que se fizesse sentir qualquer voto de censura política por parte dos eleitores nacionais relativamente à governação nacional. Ora, uma visão muito pragmática desta realidade mostra-nos que, por regra, a composição partidária e político-ideológica do Parlamento Europeu tende a ser diferente (e oposta) à que prevalece no Conselho (e, por maioria de razão, no Conselho Europeu). E aqui se funda, a nosso ver, a razão da referida desconfiança latente entre ambas as instituições16, que ainda estão longe de terem encon15

Ambos os Estados com eleições legislativas no primeiro semestre de 2004, menos de seis meses antes das eleições para o Parlamento Europeu.

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Consideramos esta desconfiança latente entre ambas as instituições como recíproca, ocorrendo em ambas as direcções, e não apenas como unívoca, de uma instituição perante a outra.

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trado o ponto óptimo do seu relacionamento institucional e da necessária cooperação entre instituições de diferente natureza mas vinculadas, ambas, à prossecução do interesse comum da União17. Interesse esse, todavia, não raro objecto de diferentes interpretações e de diferentes valorações. Assim, com um ambiente dominado por um clima de desconfiança latente entre o Conselho (e o Conselho Europeu) e o Parlamento Europeu, nunca poderia a cimeira de Laeken ter mandatado a Assembleia de Estrasburgo para desempenhar a tarefa que outorgou à Convenção Europeia. E este ponto – o âmbito do mandato conferido pelo Conselho Europeu à Convenção sobre o futuro da Europa – acaba por ser o terceiro aspecto a merecer destaque de entre todos os comentários mais relevantes que a doutrina foi tecendo a propósito da deliberação da cimeira belga de convocar a Convenção Europeia. Importa recordar, a este propósito, que o Conselho Europeu não mandatou a Convenção sobre o futuro da Europa para esta redigir qualquer projecto ou ante-projecto de Constituição europeia ou de Tratado que estabelecesse uma qualquer Constituição para a Europa. O mandato conferido pelo Conselho Europeu à Convenção Europeia tinha um alcance bem determinado – apesar de os termos em que o mesmo foi conferido terem sido demasiado amplos e vagos, permitindo o surgimento das mais díspares interpretações sobre a sua real extensão. Nos exactos termos da deliberação aprovada pelo Conselho Europeu de Laeken, a Convenção sobre o futuro da Europa deveria ser responsável pela elaboração de um documento que servisse de ponto 17

Temos outro exemplo perfeito desse estado de desconfiança latente entre ambas as instituições comunitárias no processo conducente à designação da Comissão Europeia liderada por José Manuel Durão Barroso, que foi forçado a promover instáveis equilíbrios políticos (com evidentes custos para a coesão e fortalecimento da sua equipa de comissários) para formar a sua equipa, vinculado que estava a duas legitimidades e a duas vontades políticas (dos executivos nacionais simbolizadas no Conselho e do Parlamento Europeu) não raro contraditórias e reciprocamente excludentes.

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de partida para os trabalhos da futura Conferência Intergovernamental. Duas conclusões resultam de imediato da análise dos termos em que este mandato foi conferido: 1) em primeiro lugar, a missão da Convenção passaria pela elaboração de "um documento", documento esse que o Conselho Europeu não define, não designa nem delimita. Apenas – um documento. À Convenção o Conselho Europeu não pediu que fosse elaborado um "relatório", um "Tratado", uma "Constituição", um "Livro Branco", um "Memorando". Apenas pediu que fosse elaborado um documento. 2) Em segundo lugar, o documento que viesse a ser elaborado pela Convenção Europeia não seria um "documento fechado", definitivo, inalterado. Seria, apenas, uma base ou um ponto de partida para os trabalhos da futura Conferência Intergovernamental. Porque, por muita transparência que a cimeira de Laeken quisesse introduzir no processo de reforma ou alteração dos Tratados fundadores, a mesma não dispunha de poder para alterar a forma de revisão ou alteração desses mesmos Tratados. E essa forma continuava a ser a da Conferência Intergovernamental, de cariz diplomático, exclusivamente confiada à vontade unânime dos Estados-membros da União Europeia, Assim, o produto final do trabalho da Convenção Europeia mais não seria do que a base ou ponto de partida para o trabalho da instancia que, em último termo, teria o poder de introduzir nos Tratados fundacionais as alterações que se afigurassem pertinentes. E essa instância seria, em definitivo, a Conferência Intergovernamental. Ambas as conclusões que resultam da análise da extensão do mandato conferido pelo Conselho Europeu à Convenção Europeia permitem-nos formar um juízo mais correcto sobre aquilo que, de facto, foi pedido aos membros da Convenção Europeia – e que, não raro, era substancialmente diferente da imagem que alguns membros da própria Convenção Europeia se esforçavam por transmitir à opinião pública europeia.

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IV Vistas, com a brevidade que se impunha, as razões que levaram o Conselho Europeu de Laeken a convocar a Convenção sobre o futuro da Europa e recordadas as principais observações tecidas pela doutrina sobre essa deliberação da cimeira belga – que se prenderam com a razão-de-ser da convocação de uma Convenção, com a razão por que não foram confiadas ao Parlamento Europeu as missões atribuídas à Convenção Europeia e com a definição e delimitação do âmbito do mandato recebido pela mesma Convenção Europeia – impõe-se uma análise sucinta sobre três questões fundamentais emergentes da actuação da Convenção. Uma das primeiras decisões que a Convenção Europeia foi chamada a tomar, teve que ver com a posição sobre a questão de se saber se se estaria perante um momento de "inovação" e refundação de uma "nova" União Europeia ou se, pelo contrário, se estaria ante uma missão de continuação e de continuidade relativamente às pioneiras Comunidades Europeias e à própria União Europeia tal qual a mesma era conhecida. O mandato outorgado por parte de Conselho Europeu era omisso nessa matéria. Como vimos, o mandato contemplava, apenas, a elaboração de um documento que servisse de base à actuação futura da Conferência Intergovernamental. Ora, esse documento fruto do trabalho da Convenção Europeia poderia inserir-se numa perspectiva de continuidade ou numa perspectiva de ruptura relativamente à União Europeia existente e às suas predecessoras Comunidades Europeias. E a deliberação a tomar sobre esta matéria não era desprovida de consequências. Optando pela tese da ruptura, a Convenção Europeia estaria livre para, no seu documento e nas suas conclusões, propor as soluções que melhor se adequassem às suas opiniões. Optando pela tese da continuidade, rejeitando qualquer visão refundadora da própria União Europeia, a Convenção estaria a auto-limitar-se, aceitando todo um acervo

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jurídico-polìtico que integra todo o rico e vasto património do processo de integração europeia do pós-segunda guerra mundial. Pois bem – colocada ante a necessidade de escolher, a Convenção Europeia recusou o caminho do "corte refundacional" optando por desenvolver as suas actividades num quadro de continuidade relativamente à União Europeia e às Comunidades Europeias – acentuando, assim, a dimensão de continuidade com a mesma ênfase com que recusava e rejeitava a dimensão da ruptura. Outra deliberação – também de carácter processual mas que acabou por revestir uma importante dimensão material – da Convenção Europeia, significativamente impulsionada pelo respectivo Praesidium, relacionou-se com a forma e o método original utilizados para a adopção das suas deliberações: o método consensual, que inviabilizou a realização de votações entre os membros da Convenção Europeia, que iam progredindo nos seus trabalhos à medida que o respectivo Praesidium considerasse que se havia formado o necessário e requerido consenso. Evitando as fracturas (democráticas) emergentes da realização de votações sobre a matéria em discussão, a adopção do método consensual não foi pacífica no âmbito da própria Convenção Europeia e parece inquestionável que serviu para enfraquecer e diminuir os resultados a que a própria Convenção Europeia chegou, ferindo profundamente o documento final (ele próprio também "consensualizado" e não votado) que a Convenção entregou ao Conselho Europeu no final do seu trabalho. A terceira deliberação tomada pela Convenção sobre o futuro da Europa que maiores comentários e maior atenção concitou por parte da doutrina prendeu-se com a aprovação de uma Constituição para a Europa18,19. Foi a

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Foi a posterior Conferência Intergovernamental que se sucedeu à Convenção sobre o futuro da Europa que enquadrou a Constituição no âmbito de um Tratado, sugerindo a fórmula de “Tratado que estabelece uma Constituição”.

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deliberação central tomada pela Convenção Europeia que determinou toda a sua actividade. E neste domínio a questão prévia e fulcral foi a de saber se, deliberando aprovar uma Constituição para a Europa para entregar ao Conselho Europeu e servir de base aos trabalhos da futura Conferência Intergovernamental, a Convenção Europeia estaria ou não a exorbitar nas suas competências, estaria ou não a ultrapassar o mandato recebido do Conselho Europeu de Laeken. Recordando a extensão do mandato recebido pela Convenção Europeia, o mesmo contemplava a elaboração de um documento (inominado) que servisse de ponto de partida e de base de trabalho para a futura Conferência Intergovernamental. Contemplaria esse mandato a elaboração de uma Constituição? Cremos que não. Exorbitou, 19

Reflectindo sobre a Constituição europeia, algumas vozes – sobretudo as que pretendem criticar ou apoucar a iniciativa – capricham em salientar os aspectos semelhantes que podem interceder entre a génese do texto europeu e as origens do texto constitucional dos EUA. A tentativa tem alguns laivos de insídia porquanto, no fundo, com o que se pretende acenar é com o velho, batido e estafado argumento do federalismo, da ideia de criação de um Estado federal na Europa, quiçá mesmo de uns Estados Unidos da Europa. E para alertar contra o «perigo», nada melhor do que recorrer a eventuais semelhanças entre a génese da Constituição dos EUA e as origens da Constituição europeia. Cremos que o argumento improcede de todo – sem embargo de, efectivamente, em aspectos laterais ou acessórios, se poderem verificar algumas similitudes. Vejamos: uma semelhança assinalável entre o processo de criação da Constituição dos EUA e o processo que conduziu ao texto europeu parte da constatação de que entre 1877 e 1887 os pais fundadores lançaram as bases de criação de um Estado federal como evolução do modelo confederal. Porém, o Estado federal era, até então, figura desconhecida. Só depois da sua criação foi teorizado. A teoria surgiu depois dos factos. Actualmente, com a União Europeia, passa-se algo de semelhante. Está-se a construir um modelo novo, ainda em fase embrionária, ainda não teorizado nem conceptualizado. À semelhança do que ocorreu nos EUA, primeiro vai surgir o modelo. Só depois ele será teorizado. Outro aspecto a merecer a devida nota: a Constituição dos EUA de 1787 foi elaborada pela Convenção de Filadélfia composta por delegados dos 13 Estados que compunham a Confederação. Essa Convenção tinha sido convocada pelo Congresso dos Estados Unidos – o único órgão da Confederação existente desde a independência de 1776 e que era formado por representantes de todos os Estados. O mandato explícito atribuído pelo Congresso à Convenção ia apenas no sentido de este estudar as necessárias reformas ao pacto confederal, reunindo-as num documento intitulado Articles of Confederation, por forma a melhorar esse mesmo Pacto. Ora, este facto explica que, durante os anos seguintes à Convenção, os antifederalistas norte-americanos tenham invocado até à exaustão o argumento de que a Convenção de Filadélfia havia ultrapassado o mandato recebido ao elaborar um novo texto constitucional que, para mais, substituía a Confederação por algo de novo e diferente, até então desconhecido – e que se viria a chamar Federação. Ora, neste aspecto – o desrespeito pelo mandato recebido e criação de um documento que não havia sido pedido – também se regista uma grande semelhança entre o processo constitucional norte-americano e a elaboração da Constituição europeia. Em qualquer dos casos referidos, todavia, forçoso é constatar-se estarmos colocados ante semelhanças processuais ou metodológicas que esquecem em absoluto a materialidade dos factos e o conteúdo de ambos os textos constitucionais.

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nessa medida, a Convenção Europeia do mandato que recebeu do Conselho Europeu de Laeken, ultrapassando esse mesmo mandato? Cremos que sim. Afectou, esse incumprimento do mandato recebido, o TCUE? Cremos que não, na medida em que a Conferência Intergovernamental acabou por ratificar a deliberação da Convenção, suprindo ou sanando a invalidade resultante do facto de a mesma haver ultrapassado os limites do mandato recebido. Vejamos, individualmente, cada uma destas questões. Quando o Conselho Europeu de Laeken deliberou convocar a Convenção sobre o futuro da Europa, o debate constitucional europeu já estava instalado e era actualidade permanente há, pelo menos, dois anos. Como vimos supra, esse debate constitucional europeu foi relançado com particular acuidade após o célebre discurso de Hämboldt de 12 de Maio de 2000, pronunciado pelo Ministro alemão dos Negócios Estrangeiros. A partir de então, a “constitucionalização formal”20 da União Europeia era assunto de actualidade e tema de discussão recorrente. A cimeira de Laeken não ignorava nem podia ignorar a actualidade do tema. Logo, se tivesse pretendido que a Convenção acabada de convocar elaborasse um projecto ou anteprojecto de Constituição europeia, ou de Tratado constitucional, tê-lo-ia dito explicitamente. Teria assumido expressamente que era isso que pretendia. Porém, o que foi pedido à Convenção Europeia foi “um documento” – expressão genericamente vaga, bem diferente de um conceito preciso e determinado como é o conceito de “Constituição” ou de “Tratado constitucional”.

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Colocamos particular ênfase na questão da constitucionalização “formal” da União Europeia porque cremos ser disso que verdadeiramente se trata quando se fala em aprovar ou dotar a União Europeia de uma Constituição. É que, conforme veremos infra, somos de opinião que, no plano “material” há muito que a União Europeia possui a sua própria Constituição – que, mais do que um texto ou uma norma, reveste a característica de um autêntico “bloco de constitucionalidade”. Infra, detalharemos mais desenvolvidamente este aspecto.

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Como consequência, cremos que a Convenção sobre o futuro da Europa exorbitou nas suas competências e, muito devido à actuação do respectivo Praesidium, ultrapassou claramente o âmbito da mandato que lhe foi atribuído pelo Conselho Europeu de Laeken – que, em nossa opinião, não contemplaria a possibilidade de elaboração de uma Constituição para a União Europeia. Assim sendo, todavia, colocar-se-á a questão de saber se esse desrespeito pelo mandato recebido será ou não sanável, será ou não susceptível de afectar o documento elaborado pela própria Convenção Europeia. Ora, a partir do momento em que a Conferência Intergovernamental decidiu aceitar como base de trabalho e ponto de partida para a sua actuação o documento saído da Convenção Europeia, cremos que ficou sanado o vício identificado na actuação da Convenção Europeia. Uma vez que a força jurídica residia no documento aprovado pela Conferência Intergovernamental – que era a instância que possuía competência para rever e alterar os Tratados da União Europeia – e não na proposta de trabalho que era a qualificação correcta do texto aprovado pela Convenção Europeia, a partir do momento em que a Conferência Intergovernamental, legitimamente, adoptou como ponto de partida para o seu trabalho o documento que a Convenção Europeia havia consensualizado – a partir desse momento cremos ter ficado sanada a invalidade ou vício apontado à actuação da Convenção Europeia.

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PARTE SEGUNDA V Se, na parte precedente do nosso estudo, analisámos brevemente o percurso conducente à convocação da Convenção Europeia e a actuação desta – concluindo que a mesma ultrapassou o mandato recebido do Conselho Europeu de Laeken, mas que essa invalidade acabou por ser sanada e ultrapassada pela Conferência Intergovernamental (rectius: pelos Estados-membros da União Europeia reunidos em conferência diplomática) ao aceitar como boa base de trabalho para a revisão dos Tratados comunitários o documento (Constituição europeia) consensualizado pela Convenção Europeia – é chegado o momento de centrar a nossa atenção no resultado final da sua actuação – a Constituição europeia que a Convenção consensualizou – e de nos preocuparmos com a determinação da sua fonte de legitimidade ou do seu argumento legitimador. Antes, porém, e por uma questão metodológica, teremos de desenvolver o nosso trabalho a partir de duas noções dadas por adquiridas, que aceitamos como premissas base: os conceitos de União Europeia e de Constituição. Encaramos a União Europeia, no plano conceptual, como uma nova forma de organização política da sociedade, de âmbito supraestadual. Enquanto forma nova, original e inovadora de organização política da sociedade, de âmbito supraestadual, a mesma não se confunde com outras formas já clássicas de organização política da sociedade, de âmbito estadual (Estado) ou de âmbito infraestadual (regiões ou municípios). Como também já tivemos oportunidade de escrever21, acreditamos que este processo de integração europeia permitirá à Europa assistir ao nascimento de uma terceira grande

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Em http://joaopedrodias23.blogspot.com/2003/11/o-processo-de-integrao-europeia-que.html.

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forma de organização política da sociedade, após ter presenciado o nascimento da polis e, depois, do Estado. Essa terceira grande forma de organização política da sociedade será a União Europeia e possuirá um perfil supraestadual. E da mesma forma que os Estados não destruíram a polis – pese embora o surgimento daquele tenha obrigado a uma redistribuição de poderes e competências entre ambos, tendo passado para a organização de nível superior (o Estado) alguns poderes e competências até aí possuídas pela polis – também a nova União Europeia não destruirá os Estados préexistentes a montante – apesar de, também aqui, ser perfeitamente admissível e normal que se suscite um processo de redistribuição de competências entre a organização de nível estadual e a organização de nível supraestadual, podendo passar para esta competências até ao momento detidas pelo Estado mas que, por variados factores relativos aos tempos da modernidade e da pós-modernidade que vivemos, melhor possam ser exercidas a um nível supraestadual. Já relativamente ao conceito de Constituição, entendemos ser mister para a sequência do nosso estudo recuperarmos a distinção corrente na melhor doutrina constitucional que separa os conceitos de Constituição formal e de Constituição material. Recorrendo à melhor doutrina constitucional nacional, aceitamos que a Constituição formal, a Constituição como norma, designa o conjunto de normas jurídicas positivas (regras e princípios) geralmente plasmadas num documento escrito (“constituição escrita”, “constituição formal”) e que apresentam relativamente às outras normas do ordenamento jurídico carácter fundacional e primazia normativa22; e que a Constituição material é, a partir de uma cultura constitucional fortemente radicada como é o caso da italiana, o conjunto de fins e valores constituti-

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J.J.Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª Edição, pag. 1131, Coimbra 2002.

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vos do princípio efectivo da unidade e permanência de um ordenamento jurídico (dimensão objectiva), e o conjunto de forças políticas e sociais (dimensão subjectiva) que exprimem esses fins ou valores, assegurando a estes a respectiva prossecução e concretização, algumas vezes para além da própria Constituição escrita23. Ora, recuperada esta distinção doutrinária essencial para o prosseguimento do nosso estudo, caberá recordar que a generalidade das discussões travadas em torno do TCUE sobrevaloriza por regra o âmbito formal da Constituição. Quando se discute a Constituição europeia, é da Constituição formal que se cuida, é do texto aprovado pelo Tratado assinado em Roma a 29 de Outubro de 2004 que se trata. Logo, é natural que seja sobre a Constituição europeia em sentido formal que, para já, tenhamos de nos ocupar. E sobre a aprovação do Tratado mediante o qual se pretende dotar a União Europeia de uma Constituição formal algumas considerações devem ser tecidas. Num processo político sem igual nem exemplo ou precedente histórico que se lhe assemelhe, como é o da criação e desenvolvimento da União Europeia – dando-se como adquirido que esta, sendo «mais» do que uma simples organização internacional, será sempre «algo» de diferente de um Estado, será sempre uma forma original de organização política da sociedade supra estadual, uma forma de organização política «nova», «inovadora» e «diferente» – pode suscitar-se a questão de saber se é legítimo e correcto o recurso a "instrumentos", institutos e instituições pensadas para a realidade estadual e adaptá-los à realidade da União Europeia, ainda que conferindo-lhes um significado novo e um sentido próprio. A questão é controversa e ganhou nova actualidade quando a Convenção sobre o futuro da Europa deliberou que deveria apresentar à Conferência Intergoverna-

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J.J.Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª Edição, pag. 1123, Coimbra 2002.

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mental uma proposta de Constituição europeia. A figura da «Constituição» ilustra, assim, com perfeição aquela dúvida. Decerto – dirão alguns que é apenas uma questão semântica. Sem dúvida que a questão conhece uma componente semântica. Não cremos, porém, que o assunto se reconduza apenas a esse plano. É uma questão semântica – mas é mais do que uma questão semântica! As Constituições estão, historicamente, ligadas de uma forma indissociável à realidade política chamada «Estado». E como é suposto que cada forma de organização política da sociedade possua os seus próprios institutos e instituições jurídicas, pedir emprestados à realidade estadual alguns instrumentos, institutos ou instituições para os utilizar no processo de construção da União Europeia, além de profundamente inadequado, pode ter a nefasta consequência de obrigar a rever e reformular por completo esses mesmos conceitos. Não parece, assim, muito acertado que, primeiro a Convenção Europeia e depois a Conferência Intergovernamental, ao pretenderem organizar e dotar de um novo estatuto jurídico fundamental uma realidade que se quer nova e diferente – a União Europeia – tenham recorrido a uma figura típica de outra forma de organização política – neste caso o Estado – para alcançar esse objectivo. Melhor seria, também aqui, termos permanecido fiéis ao princípio inovador e fundar nomenclatura diferente e nova para designar o que também se pretende que seja diferente e novo – o texto jurídico fundamental de uma forma nova e original de organização política como é a União Europeia. Tão inovadora em alguns aspectos, esta mostra-se aqui deveras presa à doutrina pré-concebida e préestabelecida, assim contribuindo para uma sempre indesejável indefinição ou confusão conceptual. Além do mais – e no estado actual em que se encontra o debate europeu esta não será uma consideração despicienda – foi um favor e um serviço prestados a todos quantos acenam com o fantasma do Estado europeu, do

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desaparecimento dos Estados nacionais, com o retorno da velha e estafada ideia do federalismo, não tendo percebido ainda que o debate actual europeu já não se pode travar entre federalistas e não federalistas, devendo travar-se, sim, a propósito de diferentes e diversos níveis de integração europeia, numa União Europeia que caminha assimetricamente, muito mais integrada, por exemplo, nos planos jurídico, económico e monetário (onde conhece já um nível de integração muito próximo do federal) do que no plano político (onde o nível de integração ainda não alcançou mais do que o patamar confederal). Relativamente ao documento aprovado, primeiro pela Convenção Europeia e depois pela Conferência Intergovernamental, outras designações poderiam, com vantagem, ter evitado a confusão e a crítica – Tratado Europeu, Tratado.... Ao optar pelo termo «Constituição», os «convencionais» – e os Estados-membros da União Europeia que adoptaram o texto no fim da Conferência Intergovernamental – não contribuíram para a clarificação do debate europeu24. Todavia, se é verdade que as questões semânticas não podem nem devem centrar o essencial do debate sobre o tema da Constituição europeia constante do Tratado que a pretende estabelecer, convirá começar por averiguar se se justifica, ou não, materialmente, a sua existência. Ora, parece razoavelmente evidente que a actual situação de profunda confusão e complexidade em matéria de textos de direito comunitário originário não é benéfica 24

De resto, se tivesse havido uma efectiva vontade de recorrer à terminologia estadual para designar tal documento estruturante da União Europeia, então o verdadeiramente adequado seria designá-lo de «Carta Constitucional» e não de Constituição. A diferença não é de somenos importância. A Carta Constitucional era, como se sabe, «dada» ou outorgada pelo príncipe ao Estado. Ora, o que se passou com a Constituição Europeia estabelecida pelo Tratado que a institui é algo de semelhante ou de muito parecido. De facto, foram (serão) os Estados membros da União, quais donos da criatura, a dotarem-na de um texto constitucional, oferecendo-lhe esse mesmo texto – tal qual o príncipe fazia ao Estado. Repete-se: a pretender-se o recurso à semântica e à terminologia estadual para identificar o que indubitavelmente é uma realidade política nova (e que por isso também poderia e deveria ter fundado uma terminologia nova) – então a opção mais correcta, face às categorias existentes e conhecidas, seria a de classificar o texto fundamental da União Europeia (dado a esta pelos seus Estados-membros) não como Constituição mas sim como Carta Constitucional.

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nem salutar. Trata-se de um emaranhado de textos interligados, muitos deles a revogarem-se uns aos outros sucessivamente, de difícil compreensão e não fácil acesso, apenas compreensíveis (?) por um restrito número de estudiosos e técnicos da função, que contribuem para tornar mais opaca e menos transparente essa realidade que é a União Europeia aos olhos dos cidadãos europeus. Nessa medida, o esforço de consolidar, sistematizar e, eventualmente, «codificar» esses mesmos textos de direito comunitário originário (os Tratados comunitários e da União Europeia) é uma tarefa útil, necessária e bem-vinda. Contribui para conferir uma maior transparência à União Europeia e ao seu funcionamento, tornando-a mais acessível e de mais fácil compreensão pela generalidade dos cidadãos europeus. Expurga o direito comunitário de uma injustificada duplicação – às vezes triplicação – de normas exactamente idênticas e de conteúdo semelhante. Materialmente o processo é, pois, estimável e necessário. Não se conclua daqui, porém, que uma tarefa com essa finalidade apenas poderia ser concretizada mediante a elaboração de uma Constituição europeia. Mas aqui, neste ponto do nosso estudo, caberá recordar que, para qualquer sociedade organizada politicamente – e a União Europeia não deixa de ser uma forma de organizar politicamente uma parcela da sociedade internacional que caminha gradualmente para o estatuto de comunidade – mais importante do que a qualquer Constituição formal25, isto é, mais importante do que a existência de um texto formalmente designado de «Constituição», é a existência de uma Constituição material, isto é, das regras e princípios que, mesmo não enquadradas num documento formal assim designado, desempenham uma função de regulação da vida dessa mesma sociedade que se pretende organizar politicamente. Com a União Europeia passa-se

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E é por regra de uma Constituição formal que se cuida quando se discute a Constituição europeia que pretende ser estabelecida pelo respectivo Tratado instituidor.

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algo de semelhante. Todavia, num sentido puramente material, a União Europeia possui já a sua Constituição. Constituição não formal mas material, não contida num texto único mas integrando um verdadeiro "bloco de constitucionalidade" composto pelos Tratados institutivos e pelos que sucessivamente os modificaram (o direito comunitário originário), pelas principais decisões jurisprudenciais do tribunal comunitário, mas também, e isto deve ser realçado, pelas Constituições dos Estados membros e pela alta jurisprudência constitucional desses mesmos Estados26. Ora, este verdadeiro "bloco de constitucionalidade", já hoje existente, constitui a verdadeira Constituição material da União Europeia. Que nessa medida já possui o seu ordenamento constitucional próprio mesmo na ausência de uma Constituição formal de semelhança e inspiração estadual27. E com a enorme vantagem de, múltiplo na diversidade, esse ordenamento ilustrar com perfeição a realidade plural que a União Europeia é e que se pretende que continue a ser. Do que não haverá dúvida é de que o novo TCUE, susceptível ou insusceptível de ser uma efectiva Constituição formal da União Europeia, alarga já significativamente a Constituição material da União28. VI A existência de uma Constituição (pelo menos de uma Constituição em sentido formal clássico, e o Tratado que pretende estabelecer a Constituição europeia é isso que ambiciona instituir) supõe, sempre, a existência de um poder constituinte legítimo e prévio, poder constituinte esse detido por um 26

No mesmo sentido, Antonio-Carlos Pereira Menaut, “Res publica europea: propostas constitucionais para a Unión Europea medrar en constitucionalismo sem medrar en estatismo”, in Celso Cancela Outeda (Coord), A Unión Europea do século XXI, refléxions dende Galicia, Vigo, 2002, pag. 21.

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No mesmo sentido, defendendo a tese da existência de uma Constituição material da União Europeia mesmo na ausência de uma Constituição formal, Paulo de Pitta e Cunha, “Tratado ou Constituição?”, in AA.VV. Uma Constituição para a Europa, Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa, Almedina, 2004, pag. 49.

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No mesmo sentido, Fausto de Quadros, jornal Diário de Notícias de 20 de Outubro de 2003.

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titular dito soberano, que o exerce de forma voluntária, normalmente de um modo indirecto, através de representantes seus que escolhe (elege) para tal finalidade. Nos Estados, quem é o soberano detentor desse poder constituinte é o povo; que normalmente exerce esse poder com recurso ao sufrágio elegendo os seus representantes que, em seu nome e reunindo em Assembleia dita Constituinte, elaboram e aprovam, em nome desse mesmo soberano, a Constituição do Estado. Ora, no caso da União Europeia, não existindo um povo europeu detentor da soberania, em quem e onde reside esse poder constituinte? Quem tem legitimidade para aprovar uma Constituição? Os Estados membros da União Europeia? Uma Convenção designada e não eleita que, no seu labor constituinte, não efectuou uma única votação, recorrendo sistematicamente a um sempre questionável método consensual? Até aqui sabíamos que uma Constituição formal podia nascer, basear-se e ser legitimada por um de três critérios possíveis: 1) Pelo exercício e manifestação normal de um poder constituinte soberano; 2) Pela afirmação de uma norma ou de um princípio jurídico anterior de âmbito natural e supraconstitucional; 3) Ou pela ruptura – revolucionária – de uma ordem constitucional estabelecida, afirmando-se e proclamando-se uma nova ordem constitucional. Ora, impõe-se averiguar se a criação da Constituição europeia, com que se pretendeu dotar a União Europeia pelo acto de assinatura do TCUE, se enquadra ou não em algum dos critérios enunciados e que são aqueles geralmente apontados como fontes admissíveis de legitimidade de um texto constitucional. A Constituição europeia não resulta da manifestação normal de um poder constituinte soberano pelo facto de inexistir um povo europeu detentor

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desse poder soberano que é o poder constituinte; na Europa da União não existe – nem se deseja que venha a existir – um povo europeu, antes existe uma pluralidade de povos. Inexistindo um povo europeu detentor da função soberana constituinte, pareceria impossível existir uma Constituição em sentido formal. Pelo menos com o sentido clássico que o termo e a função de uma Constituição supõem. Ou então seríamos reconduzidos a uma noção de Constituição sem ethos (sem povo) e sem demos (sem democracia) – o que se revelaria uma contradição nos próprios termos, uma autêntica impossibilidade29. E se dúvidas ainda existissem, repare-se que estamos colocados face a um documento que está contido num Tratado internacional, aprovado pelo mais clássico dos métodos intergovernamentais que é o da outorga de um Tratado internacional – sinal inequívoco de que foi produzido pelos Estados da União e com o qual esses mesmos Estados pretenderam dotar esta mesma União; e não como uma emanação formal de qualquer poder constituinte desta União Europeia que, a existir, dispensaria tal dotação. Não parece resultar, também, a mesma Constituição da revelação de qualquer norma ou de algum princípio que lhe seja anterior, de natureza jurídica ou meramente natural. Ao longo dos seus trabalhos preparatórios – quer em sede de Convenção Europeia quer em sede de Conferência Intergovernamental – nunca houve uma única notícia de, quer os convencionais quer os diplomatas dos Estados-membros da União Europeia, terem estado a revelar algo de semelhante ou de parecido com qualquer norma ou princípio jurídico ou natural pré-existente…

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Sobre a possibilidade de existência de uma democracia supranacional, matéria estreitamente relacionada com esta temática, o nosso estudo João Pedro Simões Dias, “É possível uma democracia supranacional?”, in Estratégia, Revista do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, Número 18/19, 2003, Edição Principia, pag 59-67, também disponível online em http://www.jpdias.web.pt/.

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E, finalmente, não é a Constituição estabelecida pelo TCUE fruto de nenhuma ruptura – revolucionária – com qualquer ordem constitucional pré-existente. Já se constatou que, mesmo na ausência de uma Constituição formal, a União Europeia possui uma Constituição material, um ordenamento jurídico fundamental que se assume como um verdadeiro «bloco de constitucionalidade». Ora, esse bloco de constitucionalidade fixa regras e impõe princípios em matéria de revisão ou alteração dos seus Tratados fundadores. Nomeadamente, fixando a regra intergovernamental para proceder à sua revisão. Regra essa escrupulosamente respeitada pela Conferência Intergovernamental para aprovar o TCUE – quer quanto à sua forma (alteração dos Tratados comunitários e da União Europeia) quer quanto ao seu conteúdo30. Não se fundando a Constituição europeia em qualquer um dos princípios ou categorias geralmente invocados como capazes de fundamentar o surgimento de um texto constitucional, poderá parecer que é legítima a dúvida: será que, para além dos critérios enunciados, poderá passar a ser possível uma Constituição formal ser «convencionada» – mudança significativa e assinalável na doutrina constitucional, tal qual a vimos conhecendo? Cremos que também não. E assim sendo, haverá que buscar e determinar o fundamento de legitimidade do texto constitucional europeu, tentando encontrar o seu argumento legitimador. Antes, porém, talvez auxilie esse trabalho uma breve incursão por alguns dos mais relevantes contributos particulares – individuais ou colectivos – que, coevos ao processo de elaboração do texto Constituição Europeia,

30

Se quiséssemos estabelecer qualquer analogia com o constitucionalismo estadual, dir-se-ia que os limites materiais de revisão (neste caso dos Tratados da União Europeia) foram respeitados e salvaguardados com a aprovação do TCUE.

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foram surgindo um pouco por toda a Europa31. Tentaremos averiguar e determinar onde os respectivos autores encontravam o fundamento de legitimidade dos documentos que propunham, onde iam buscar essa mesma legitimidade – e, a partir daí, tentar determinar o fundamento de legitimidade do texto constitucional europeu que o TCUE pretendeu estabelecer. VII Um dos primeiros contributos individuais que surgiram na Europa, apresentando uma proposta devidamente estruturada de Constituição europeia, proveio de Robert Badinter, antigo Ministro francês da Justiça que, em Setembro de 2002, apresentou o seu projecto32 de Constituição para a União Europeia. Tratava-se de uma proposta de Constituição fundada sobre os valores comuns europeus e numa estreita interligação ou combinação de duas soberanias – a dos Estados soberanos que compunham a União e a dos cidadãos europeus. No mesmo mês de Setembro de 2002, também F. Dehousse e W. Coussens, apresentaram o seu projecto33 de Constituição para a União Europeia como contributo para os trabalhos da Convenção europeia. Na proposta apresentada, evidenciam a natureza democrática – democratic nature – da União Europeia fundada nos princípios da liberdade, democracia, respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais e prevalência do direito. Noutra contribuição colectiva para os trabalhos em curso da Convenção Europeia, Alan Dashwwod, Michael Dougan, Christophe Hillion, Angus 31

Seguimos de perto, nesta relação de contributos particulares apresentados, a listagem feita por J.J.Gomes Canotilho, em «A cidadania como argumento na Constituição Europeia», tópicos para uma intervenção sobre «Cidadanias» na Fundação Bissaya Barreto, Coimbra, em 28 de Novembro de 2003 (não publicado) – cuja disponibilização agradecemos ao nosso Mestre. 32

Robert Badinter, Une Constitution Européenne, Editions Fayard, Paris, 2002. O seu texto encontra-se disponível online em http://www.aidh.org/Europe/Conv_05badin.htm. 33

Disponível online em http://www.theepc.be/Word/EUconst.doc

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Johnston e Eleanor Spaventa, em Outubro de 2002, tornaram pública a sua proposta34 de Constituição da União Europeia que, nas palavras dos seus autores, funda-se na combinação das soberanias – in so combining their sovereignties – dos Estados-membros. Elena Ornella Paciotti, deputada ao Parlamento Europeu e Presidente da Fundação Basso, apresenta igualmente, em Outubro de 2002, o seu contributo, sob a forma de um projecto35 de Constituição para a União Europeia. Segundo o projecto apresentado, todas as competências da União Europeia emanam dos cidadãos – L’Unione europea è costituta dagli Stati membri e dai loro cittadini. Ogni poteredell’Unione emana da questi ultimi – aí se fundando a sua legitimidade. Jo Leinen, outro deputado do Parlamento Europeu, contribuiu, em Outubro de 2002, para o debate promovido pela Convenção Europeia apresentando o seu próprio projecto36 de Constituição europeia, explicitando-se na mesma que os cidadãos da União Europeia dão a si mesmos a seguinte Constituição – the citizens of the Union give themselves the following Constitution – assumindo, assim, que a mesma se fundava na capacidade de os cidadãos se dotarem dos meios necessários ao exercício do seu autogoverno. Da Alemanha, dois deputados do SPD no Bundestag, Michael Roth e Gunter Gloser, apresentaram, em Novembro de 2002, um outro projecto37 de Constituição da União Europeias. No projecto apresentado, os Estadosmembros e a própria União Europeia, conjuntamente, aparecem como pos34

Disponível online em http://www.rewi.hu-berlin.de/WHI/english/verf/dashwood.doc

35

Disponível online em http://register.consilium.eu.int/pdf/de/02/cv00/00335d2.pdf

36

Disponível online em http://www.europa-web.de/europa/03euinf/08VERFAS/leinendr.htm

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Disponível online apenas na sua versão em língua alemã em http://www.fedtrust.co.uk/default.asp?pageid=264&mpageid=67&msubid=277&groupid=6

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suindo a necessária e suficiente legitimidade para instituírem a Constituição da União Europeia. Em Dezembro de 2002, Elmar Brok, membro da Convenção Europeia e também deputado do Parlamento Europeu, em representação do PPE-DE, Partido Popular Europeu/Democratas Europeus, apresentou o projecto38 de Constituição da União Europeia do seu agrupamento político (última versão). Nos termos deste projecto dos democratas-cristãos europeus, a Constituição da União Europeia fundava-se simultaneamente nos cidadãos e nos Estados-membros – this Constitution shall be founded on the citizens of the Union and the Member States – possuindo, assim, uma dupla legitimidade. VIII Depois de escrutinados alguns dos mais relevantes contributos particulares – individuais ou colectivos – chegados à Convenção Europeia sob a forma de projectos ou propostas globais de Constituições para a União Europeia, investigados os fundamentos de legitimidade que os mesmos invocavam para justificar ou fundamentar a respectiva existência, é chegado o momento de centrar a nossa atenção na Constituição Europeia estabelecida pelo TCUE – em primeira versão aprovada pela Convenção Europeia e em leitura final aprovada pelos Estados-membros da União reunidos em Conferência Intergovernamental39 – procedendo, relativamente a ela, à mesma operação de determinação da sua fonte de legitimidade ou do seu argumento legitimador. Retornemos, para o efeito, ao texto do TCUE. 38 39

Disponível online em http://register.consilium.eu.int/pdf/pt/02/cv00/00325p2.pdf

É importante referir que nesta matéria – em questão de fundamento de legitimidade – a Conferência Intergovernamental não introduziu qualquer alteração relativamente ao texto que havia sido aprovado pela Convenção Europeia, aceitando, assim, o fundamento de legitimidade que esta encontrou para a Constituição da União Europeia estabelecida pelo TCUE.

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Escreve-se, no respectivo Preâmbulo, no seu sexto considerando: [Os Chefes de Estado dos Estados signatários do TCUE estão] «gratos aos membros da Convenção Europeia por terem elaborado o projecto da presente Constituição, em nome dos cidadãos e dos Estados da Europa»40,41. E o primeiro artigo do articulado (na Parte I, Artigo I – 1º, sob a epígrafe Estabelecimento da União) esclarece, logo a abrir o texto constitucional, como primeira proposição normativa do documento, que «a presente Constituição [é] inspirada na vontade dos cidadãos e dos Estados da Europa…». Ainda na mesma Parte I da Constituição (Artigo I – 10º, sob a epígrafe Cidadania da União) estipula-se, recuperando-se o já previsto no TUE, que «possui a cidadania da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional, não a substituindo». Mais adiante, a Parte II da Constituição europeia – correspondente à incorporação no texto constitucional da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que havia, apenas, sido «proclamada» na cimeira do Conselho Europeu de Nice mas a quem os Estados-membros se dispuseram a conferir efectiva eficácia jurídica, integrando-a no TCUE como Parte II do texto constitucional europeu – dedica o seu Título V em exclusivo à cidadania da União, concretizando e positivando um conjunto de direitos fundamentais associados ao conceito de cidadania da União Europeia que havia sido enunciado no já referido Artigo I – 10º. Esses direitos funda40 41

Sublinhado de nossa responsabilidade.

Sobre este considerando, já tivemos oportunidade de publicamente escrever (em http://joaopedrodias23.blogspot.com/2003/12/h-um-claro-despropsito-no-ponto-6-do.html) – e mantemos na íntegra o então afirmado – que «há um claro despropósito no Ponto 6 do Preâmbulo do projecto de Constituição aprovado pela Convenção Europeia - os convencionais não foram mandatados por ninguém, nomeadamente pelos cidadãos da Europa, para redigirem uma Constituição. Assim sendo, não há qualquer razão para se estar grato aos convencionais por estes terem elaborado um projecto de Constituição que ninguém lhes pediu e para o qual ninguém os mandatou».

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mentais associados ao conceito de cidadania da União estendem-se ao longo de 8 Artigos (Artigos II – 99º a II – 106 do TCUE) e contemplam o direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu42, o direito de eleger e de ser eleito nas eleições municipais43, o direito a uma boa administração44, o direito de acesso aos documentos45, a consagração da figura do Provedor de Justiça Europeu46, o direito de petição47, a liberdade de circulação e de permanência no território dos Estados-membros da União Europeia48 e o direito a protecção diplomática e consular no território de países terceiros em que o Estado-membro de que um cidadão seja nacional não se encontre representado49,50. Que concluir destas disposições acabadas de citar, todas elas contidas no TCUE e verdadeiramente estruturantes do texto da Constituição europeia? Com o natural risco de contradita – ou não seja o debate e a discussão o cerne e a essência da actividade académica – cremos que as disposições transcritas nos habilitam a concluir que, primeiro a Convenção sobre o futuro da Europa e, posteriormente, os Estados-membros da União Europeia reunidos em conferência diplomática (Conferência 42

Artigo II – 99º do TCUE.

43

Artigo II – 100º do TCUE.

44

Artigo II – 101º do TCUE.

45

Artigo II – 102º do TCUE.

46

Artigo II – 103º do TCUE.

47

Artigo II – 104º do TCUE.

48

Artigo II – 105º do TCUE.

49

Artigo II – 106º do TCUE.

50

Ana Maria Guerra Martins, O projecto de Constituição europeia, contribuição para o debate sobre o futuro da União, Almedina, Coimbra, 2004, pag. 54, estabelece uma diferenciação considerando que o TCUE inova em matéria de direitos fundamentais – nomeadamente por incorporar no Tratado a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e por estabelecer as bases de uma futura adesão à Convenção Europeia dos Direitos do Homem – não tendo avançado praticamente nada em matéria de cidadania. Ora, acreditando que o conceito de cidadania possui um conteúdo que lhe é dado, entre outros, pelos direitos fundamentais previstos no TCUE, cremos que, de facto, também em matéria de cidadania se assistiu a uma inovação.

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Intergovernamental), – na esteira de alguns dos principais contributos e projectos de textos constitucionais para a União Europeia apresentados, quer individual quer colectivamente, durante o decurso da Convenção Europeia – elaboraram, negociaram e aprovaram o Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa (rectius: para a União Europeia) recorrendo à noção de cidadania51 – a qual se viu, assim, erigida em fundamento de legitimidade e em argumento legitimador do referido TCUE. Ou seja, se nos limitarmos aos fundamentos do constitucionalismo estadual, nunca superaremos a crise de legitimidade do TCUE. Este não pode ser fundamentado com base nos argumentos legitimadores do constitucionalismo estadual52. Há que buscar esse fundamento de legitimidade noutro local. Encontramo-lo no conceito de cidadania. IX Mas a conclusão a que chegámos coloca uma natural questão – o que significa, hoje em dia, ser-se cidadão e, particularmente, ser-se cidadão da União Europeia53,54? Antes de se tentar responder à questão formulada sob

51

Veremos, adiante, que quando nos referimos à noção de cidadania temos em mente quer o conceito de cidadania nacional quer o conceito de cidadania europeia. A cidadania como fonte de legitimidade (e argumento legitimador) do TCUE é uma combinação da cidadania europeia com a(s) cidadania(s) nacional(ais). Explicitaremos, infra, esta observação.

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No mesmo sentido, Marta Rebelo, Constituição e legitimidade social da União Europeia, Almedina, Coimbra, 2005, pag. 85: «fazendo assentar a questão constitucional europeia no constitucionalismo nacional, não superaremos, nunca, a crise de legitimidade [da União Europeia]». 53

Sobre este problema e a resposta à questão formulada, seguimos de perto o excelente estudo de Jorge Figueiredo Dias, «Cidadania Europeia e Cidadania: a Encruzilhada», comunicação proferida no Seminário sobre «Cidadanias» na Fundação Bissaya Barreto, Coimbra, em 28 de Novembro de 2003 (cremos que não publicado) – cuja disponibilização também agradecemos ao nosso Mestre. 54

Sobre a cidadania europeia na doutrina portuguesa, veja-se a recente obra de António José Fernandes, Direitos Humanos e Cidadania Europeia, fundamentos e dimensões, Almedina, Coimbra, 2004.

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o prisma particular (e por isso sempre redutor e incompleto) de uma qualquer ciência ou área de saber científico em concreto, impõe-se tentar determinar o que significa o conceito de cidadania para aqueles que são, simultaneamente, os seus criadores e os seus destinatários: os cidadãos. Assim, partindo do ponto de vista exclusivo dos cidadãos, a cidadania assenta fundamentalmente no reconhecimento comunitário de quatro pretensões ou exigências e respectivos deveres: 1) a pretensão de protecção contra o estrangeiro, protecção reclamada em nome do vínculo que resulta da pertença a uma determinada comunidade; 2) a pretensão de participação individual na condução da vida e dos negócios da polis; 3) a pretensão de um estatuto de igualdade entre todos os membros que pertencem à comunidade; 4) a pretensão do reconhecimento de um conjunto de direitos individuais que defendam o indivíduo contra a comunidade em que ele se insere. A consideração destas quatro pretensões ou exigências leva sempre subjacente uma relação que se estabelece entre o indivíduo, o cidadão, e o grupo ou comunidade em que o mesmo se insere. Essa relação supõe, portanto, uma delimitação entre a esfera individual e a esfera comunitária, delimitação que acaba por se reconduzir a uma relação binária que se pode enunciar semanticamente em termos de pertença/não pertença, inclusão/exclusão, cidadão/estrangeiro ou, mais simplesmente, nós/eles. Portanto, no limite, a cidadania consiste na representação e definição jurídica que deriva da pertença a um grupo capaz de garantir, pelo menos em abstracto, os mecanismos e as instituições necessárias a uma eficaz satisfação e protecção das referidas pretensões. E, contrariamente ao que possa parecer, a cidadania será, até, mais excludente do que inclusiva, porquanto serão sempre mais

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aqueles que não cabem no conceito do que aqueles que o conceito abrange55. A consideração desta relação binária vai, por seu lado, levantar o problema de saber, determinar ou delimitar qual o grupo ou comunidade com o qual o indivíduo se relaciona e contra o qual pode deduzir as mencionadas pretensões. Se, num primeiro momento historicamente considerado, esse grupo foi a família e a comunidade familiar assente nos laços de sangue e pela Idade Moderna se passou a identificar progressivamente com o Estado e, após a Revolução francesa, com o Estado-Nação (quer aqui quer ali, entidades que se reclamavam soberanas), actualmente – num tempo historicamente marcado pela emergência e afirmação dos grandes espaços supraestaduais – o grupo ou comunidade emergente que maiores desafios coloca em termos de relacionamento com o indivíduo é, justamente, a União Europeia – comunidade não dotada do atributo da soberania de que se reclamavam quer o Estado quer o Estado-Nação, mas que, todavia, à semelhança quer do Estado quer do Estado-Nação, se propõe criar e atribuir uma nova cidadania. Ora, aqui reside desde logo uma primeira e decisiva diferença entre as noções clássica e contemporânea (pós-moderna?) de cidadania. Enquanto, classicamente, a cidadania era uma prerrogativa outorgada por entidades que se reclamavam do atributo da soberania – o Estado, o Estado-Nação – modernamente a cidadania é atributo ou estatuto também conferido por quem não se pode arrogar do privilégio da soberania porque esta – apesar de estar em revisão por força da constante e consistente transferência de competências dos Estados para entes supra e infra

55

No caso particular da União Europeia, uma reflexão sobre a posição dos “excluídos”, dos que não possuem a cidadania europeia apesar de partilharem do espaço geográfico da União, pode ser vista na obra de Riva Kastoryano, Que identidade para a Europa? O multiculturalismo e a Europa. O problema da identidade europeia. Ulisseia, Lisboa, 2004.

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estaduais –, continua conceptualmente a ser um exclusivo das realidades estaduais e não uma característica das entidades supraestaduais56. Assim, é também a uma transmutação do conceito de cidadania que assistimos, com a sua alteração, transformação e profunda evolução57. Desde logo para um conceito de cidadania mais complexo porque não exclusivo – a cidadania da União não exclui nem afasta outras cidadanias. Pelo contrário – pressupõe-as e exige-as. A cidadania da União cumula com as cidadanias dos diferentes Estados-membros. Por outro lado, e ao contrário do que ocorre com as cidadanias estaduais e nacionais, a cidadania da União é muito mais do que uma qualificação político-geográfica. Decerto: possui a cidadania da União Europeia qualquer indivíduo que nasce ou que venha a adquirir a cidadania de um Estado-membro da União Europeia. Porém, o processo de aprofundamento da União Europeia vem tornar esse conceito de cidadania europeia muito mais complexo e muito mais denso. Apercebemo-nos da complexidade e da densidade que o instituto da cidadania europeia reveste analisando a fonte jurídica do mesmo – o actual artigo 17 do TCE58 e o artigo 10 do projecto de Tratado instituidor da Constituição Europeia. Ambos os normativos nos dão uma perspectiva originariamente estadual e nacional do conceito de cidadania europeia, posto que, para obter tal estatuto, é necessário e suficiente ser-se cidadão de um Estado-membro da União, possuir-se a cidadania de um Estado-membro da 56

Não levamos em consideração, neste ponto, a questão emergente na doutrina que começa a equacionar um conceito de soberania da União Europeia – não por desconhecermos o problema ou entendermos que o mesmo não possui relevância suficiente para ser mencionado (bem pelo contrário) mas por acreditarmos que o mesmo ainda não se encontra suficientemente amadurecido e reflectido.

57

Sobre esta evolução do conceito de cidadania num mundo globalizado, Georges Contogeorgis, “Identité nationale, identité «politéienne» et citoyenneté à l’époque de la «mondialisation»”, in Maria Manuela Tavares Ribeiro (Coord), Europa em mutação. Cidadania. Identidades. Diversidade cultural, Quarteto, Coimbra, 2003, pag. 155-174. 58

Apesar da cidadania europeia ser da União Europeia, atribuída pela União Europeia, o seu fundamento jurídico originário encontra-se no Tratado da Comunidade Europeia.

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União. Daqui derivam dois corolários lógicos: 1) não é possível possuir-se a cidadania europeia sem se possuir a cidadania de um dos seus Estadosmembros; 2) todos os cidadãos de todos os Estados-membros da União são, automaticamente, cidadãos da União Europeia. A afirmação destes dois corolários, bem como a consideração do específico regime jurídico do instituto da cidadania europeia consignado nas normas referenciadas, deixa em aberto e sem resposta, pelo menos, duas importantes questões: 1) quid iuris, em termos de cidadania europeia, nos casos e situações de privação do estatuto de cidadania nacional? 2) quid iuris sobre a possibilidade de perda ou privação do estatuto da cidadania europeia? Apesar de tudo poder-se-á concluir, sem risco de contraditório, que continua a estar e a residir nos Estados – neste caso nos Estados-membros da União – a prerrogativa essencial de definir quem possui a sua cidadania, mas também a de fixar quem possui a cidadania da ... União Europeia! Esta, a cidadania da União Europeia, 1) duplica as diferentes cidadanias nacionais; 2) não pode ser conferida ou outorgada autonomamente, independentemente das cidadanias nacionais; 3) nem, tão-pouco, pode ser conferida por qualquer instância da própria União; 4) o que leva à situação inédita de a cidadania da União Europeia depender, em último termo, dos seus Estados-membros e não da própria União, isto é, não depender de quem o confere (a União Europeia) mas de entidades terceiras (os Estadosmembros da União Europeia) – situação de todo original face ao conceito clássico da própria cidadania – 5) sem que se possa excluir a possibilidade, pelo menos teórica, de a obtenção da cidadania europeia – porque indirecta ou mediata, emanando da prévia obtenção de uma cidadania nacional de um dos Estados-membros da União – obedecer a critérios não homogéneos nem uniformes porquanto fixados em legislações nacionais – os critérios

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que determinam a obtenção do estatuto de cidadão nacional de um dos Estados-membros da União, os quais podem variar de Estado para Estado. Tudo isto considerado, conduz-nos necessariamente a encarar a cidadania europeia como «complementar» das cidadanias nacionais. Não pretendendo substituir estas, acresce-lhes um acervo de direitos (direitos, liberdades e garantias) e deveres, predominantemente europeus, que constituem a sua essência e a sua matriz. Direitos e deveres, europeus por natureza, logo, circunscritos na sua aplicação às instituições da União Europeia e aos respectivos Estados membros no momento em que devam aplicar o direito comunitário; mas também direitos, liberdades e garantias que não podem restringir nem cercear os direitos fundamentais reconhecidos e tutelados pelo direito internacional e pelas Constituições dos Estados membros. No limite, a cidadania europeia poderá nada acrescentar aos direitos, liberdades e garantias já reconhecidos aos cidadãos quer pelo direito internacional quer pelas Constituições nacionais; não poderá, contudo, limitar, restringir ou cercear direitos, liberdades e garantias já conferidos aos cidadãos59. Como se explica, então, a existência deste instituto – cidadania europeia – que no limite nada outorga e nada confere aos cidadãos que dele possam beneficiar e que igualmente não pode reduzir direitos, liberdades e garantias de que os mesmos já usufruam? O instituto jurídico da cidadania europeia apenas se explica e apenas faz sentido se for encarado como um contraponto aos poderes atribuídos às diferentes instituições da União Europeia. Ao consagrarem a cidadania europeia, os tratados vieram dizer que do exercício das suas competências por parte das instituições comunitárias 59

Como refere certeiramente Rui Moura Ramos, “A cidadania da União Europeia”, in Maria Manuela Tavares Ribeiro (Coord), Ideias de Europa: que fronteiras, Quarteto, Coimbra, 2004, 43-54, «se a cidadania da União não consagra ainda direitos de participação política semelhantes aos que este conceito engloba no plano estadual, não é menos verdade que o desenvolvimento jurisprudencial de que ela vem sendo objecto tem constituído um reforço substancial da esfera jurídica dos cidadãos da União».

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nunca poderia resultar uma lesão ou uma diminuição das garantias já consagradas pelos diferentes ordenamentos jurídicos dos diversos Estadosmembros. Ou seja, mesmo que nada de novo fosse conferido ou outorgado, os direitos, liberdades e garantias já atribuídas e já integrantes das cidadanias nacionais nunca poderiam ser postas em causa por efeito da actuação das instituições da União Europeia. Em síntese – a cidadania europeia é criada como forma de defesa e protecção dos cidadãos dos Estados-membros da União Europeia contra a actuação das respectivas instituições; ou seja, como uma forma de tutelar e proteger as pretensões dos cidadãos dos Estados-membros face à actuação do poder público comunitário. Porém, porque a cidadania europeia soma pouco, porque acresce pouco ao conteúdo já fixado pelas cidadanias nacionais, os cidadãos dos Estadosmembros da União Europeia – cidadãos europeus por força dos tratados comunitários – sentem-na pouco, vivenciam-na pouco, demonstram algum alheamento e alguma indiferença ante essa mesma realidade, face a esse próprio conceito. Por força da cidadania europeia, os cidadãos «beneficiam» pouco, «recebem» pouco, «usufruem» pouco. Por isso «sentem-na» pouco. Reclamam pouco. Participam pouco – sobretudo naqueles momentos (escassos) em que são chamados a uma participação cívica estreitamente ligada ao exercício de direitos emergentes do próprio conceito de cidadania europeia, como é o caso típico das eleições para o Parlamento Europeu. Algo de semelhante também é visível no plano da lealdade. Classicamente, como se referiu, o conceito de cidadania, estadual e nacional, não deixava de aportar consigo e de ter subjacente uma ideia e um sentimento de lealdade, um vínculo de lealdade para com a entidade que conferia o estatuto: o

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Estado, o Estado-Nação. Ora, acrescendo pouco e somando pouco relativamente aos direitos, liberdades e garantias já conferidos anteriormente pelas cidadanias nacionais, não se pode esperar que o conceito de cidadania europeia leve consigo, provoque ou suscite qualquer sentimento ou qualquer vínculo de lealdade para com a entidade que confere o estatuto: a União Europeia. Como resolver, então, o paradoxo em que se corre o risco de se cair, através da consagração de um instituto criado para defender os cidadãos contra a actuação do poder público comunitário, mas que é por estes mesmos cidadãos pouco sentido e pouco vivido, mercê em grande parte da sua fraca densidade e do seu escasso conteúdo? Parece evidente que o paradoxo apenas se resolverá através de uma maior densificação do próprio conceito de cidadania europeia. Isto é, para que a cidadania europeia adquira a dimensão e a dignidade semelhante às que desfrutam as cidadanias dos diferentes Estados-membros da União Europeia, impõe-se que o seu conteúdo seja alargado, que inclua um novel e original catálogo de direitos, liberdades e garantias de tipo assumidamente europeu, que confie aos seus destinatários (cidadãos da União Europeia) os meios, os mecanismos e os instrumentos necessários ao completo exercício desses mesmos direitos, liberdades e garantias. Dito de outra forma – enquanto a cidadania europeia se limitar a duplicar ou decalcar o conteúdo das diferentes cidadanias nacionais, pouco haverá a esperar da adesão dos cidadãos dos Estados-membros da União Europeia. No momento em que, inovando, consagrar novos direitos e correlativos deveres – europeus por natureza, distintos dos que já são consagrados e tutelados pelos Estados-membros da União Europeia – estará aberto o caminho ou a via para a (re)dignificação do conceito, para a efectiva transformação do seu conteúdo.

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X Feita a aproximação que se exigia ao sentido e ao conteúdo que deve incorporar o conceito de cidadania europeia (ou da União Europeia), estamos em condições de melhor perceber a razão pela qual o mesmo pode ser a necessária fonte de legitimidade ou o indispensável argumento legitimador do TCUE. É nessa noção renovada de cidadania (desnacionalizada, supraestadual) que se pode legitimar e fundamentar o TCUE – mas não apenas nela. Como se sabe, a União Europeia que o TCUE pretendeu constitucionalizar assume-se como uma união de cidadãos mas também como uma união de Estados. Esta dupla dimensão remete-nos para a necessidade de o seu principal documento estruturante ser objecto de uma dupla legitimação: uma, de âmbito estadual; outra, de natureza supraestadual. A legitimação de âmbito estadual – proveniente dos Estados-membros da União onde o poder soberano constituinte reside nos seus próprios cidadãos nacionais – só pode ser fornecida por esses mesmos cidadãos nacionais dos diferentes Estados (também eles cidadãos europeus), mas nos estritos limites estabelecidos pelas respectivas Constituições nacionais e segundo os métodos e as formas previstas nestas Constituições nacionais. Significa, por regra, uma partilha ou (auto)limitação do poder constituinte estadual e é exercida normalmente através da aprovação do TCUE por parte das instâncias representativas do soberano popular detentor do poder constituinte, em regra os Parlamentos nacionais. De acordo com as injunções constitucionais de cada Estado, a autorização para essa partilha ou limitação voluntária do poder constituinte estadual poderá, também, ser fornecida com recurso a institutos de democracia directa, nomeadamente auscultando-se directamente o soberano popular em referendo convocado para o efeito.

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Já a legitimação de âmbito supraestadual nos vai obrigar a uma reflexão mais aprofundada. Ensina-nos o constitucionalismo clássico – criado a pensar unicamente na realidade estadual – que o poder de criar uma Constituição reside no povo, titular único do poder constituinte. Ora, dando por adquirido que não existe um povo europeu – não existe, nem necessariamente devemos aspirar a que exista, um povo da União Europeia; para que existisse um povo europeu, no sentido posterior a 1789, teria de ser alcançado um indesejável nível de homogeneização social e cultural demasiado uniformizadora; a cidadania da União, por seu lado, não tem nem deve produzir um povo europeu60 –, não existiria um poder constituinte europeu, logo não seria possível existir nem um Estado Europeu nem uma Constituição europeia. Este silogismo, todavia, tem como corolário promover a estreita articulação entre os conceitos de Povo/Estado e de ethos/demos. No limite, excluiria em absoluto a possibilidade de existência de uma democracia supraestadual – consequência que já pudemos refutar anteriormente61 – da mesma forma que impediria o surgimento de uma organização política supraestadual regida por um documento constitucional. O surgimento de ambos – a organização política supraestadual e o documento constitucional para a reger – vai obrigar a substituir esse fundamento legitimador. É aqui que se nos depara o conceito de cidadania legitimadora. Cidadania legitimadora que se concretiza numa série de direitos dos cidadãos europeus, o mais importante dos quais é o direito ao sufrágio, ao sufrágio europeu. É o sufrágio europeu que permite 60

No mesmo sentido, António-Carlos Pereira Menaut, “Res publica europea: propostas constitucionais para a Unión Europea medrar en constitucionalismo sem medrar en estatismo”, in Celso Cancela Outeda (Coord), A Unión Europea do século XXI, refléxions dende Galicia, Vigo, 2002, pag. .

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Refutámos a tese da impossibilidade de existência de uma democracia supraestadual (aceitando a sua existência) no nosso já supra referido estudo, João Pedro Simões Dias, “É possível uma democracia supranacional?”, in Estratégia, Revista do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, Número 18/19, 2003, Edição Principia, pag 59-67, também disponível online em http://www.jpdias.web.pt/.

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aos cidadãos europeus manifestarem e exprimirem a sua vontade. Logo, a legitimação supraestadual do TCUE deverá passar, necessariamente, pela possibilidade de os cidadãos europeus – enquanto tais – se manifestarem directamente sobre o próprio TCUE62. Só assim o TCUE se poderá dizer legitimado e fundamentado no plano supraestadual. O que significa, a contrario sensu, que enquanto isso não se verificar, enquanto não existir um verdadeiro sufrágio europeu sobre o TCUE, enquanto os cidadãos europeus enquanto tais não se puderem pronunciar sobre a Constituição europeia esta, que funda a sua legitimidade num âmbito estadual e num plano supraestadual, conhecerá sempre um défice de legitimidade, nunca poderá ser tida por completamente legitimada por ambas as suas fontes de legitimidade: a cidadania, ou melhor, as cidadanias – nacional e europeia – que aqui assumem essa função legitimadora63.

62 63

Eventualmente através de um referendo europeu.

Também Paulo de Pitta e Cunha, A Constituição Europeia, um olhar crítico sobre o projecto, Almedina, Coimbra, 2004, pag. 11, sustenta que para que a União Europeia possua a sua própria Constituição, não basta que o seu texto se limite a ser outorgado por parte dos estados-membros da União Europeia.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS64 Azevedo, Maria Eduarda, “A Convenção e a Europa do século XXI”, in AA.VV., A União Europeia e Portugal: a actualidade e o futuro, Curso de Verão de Direito Comunitário e Direito da Integração. Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa. Almedina, Coimbra, 2005. Badinter, Robert, Une Constitution Européenne, Editions Fayard, Paris, 2002. Canotilho, J.J.Gomes, «A cidadania como argumento na Constituição Europeia», tópicos para uma intervenção sobre «Cidadanias» na Fundação Bissaya Barreto, Coimbra, em 28 de Novembro de 2003 (não publicado). Canotilho, J.J.Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª Edição, Coimbra 2002. Contogeorgis, Georges, “Identité nationale, identité «politéienne» et citoyenneté à l’époque de la «mondialisation»”, in Ribeiro, Maria Manuela Tavares (Coord), Europa em mutação. Cidadania. Identidades. Diversidade cultural, Quarteto, Coimbra, 2003. Craig, Paul, “Constituciones, constitucionalismo y la Unión Europea”, in Enterrá, Eduardo Garcia de (Direc), La encrucijada constitucional de la Unión Europea, Colégio Libre de Eméritos e Civitas, Madrid, 2002. Cunha, Paulo de Pitta e, “Tratado ou Constituição?”, in AA.VV. Uma Constituição para a Europa, Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa, Almedina, 2004. Cunha, Paulo de Pitta e, A Constituição Europeia, um olhar crítico sobre o projecto, Almedina, Coimbra, 2004. Dias, João Pedro Simões, “É possível uma democracia supranacional?”, in Estratégia, Revista do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, Número 18/19, 2003, Edição Principia Dias, Jorge Figueiredo, «Cidadania Europeia e Cidadania: a Encruzilhada», comunicação proferida no Seminário sobre «Cidadanias» na Fundação Bissaya Barreto, Coimbra, em 28 de Novembro de 2003 (não publicado) Díez-Picaso, Luís Maria, Constitucionalismo de la Unión Europea, Civitas, Madrid, 2002. Fernandes, António José, Direitos Humanos e Cidadania Europeia, fundamentos e dimensões, Almedina, Coimbra, 2004. Kastoryano, Riva, Que identidade para a Europa? O multiculturalismo e a Europa. O problema da identidade europeia. Ulisseia, Lisboa, 2004. Martins, Ana Maria Guerra, “A revisão do Tratado e a constitucionalização”, in AA.VV., A União Europeia e Portugal: a actualidade e o futuro, Curso de Verão de Direito Comunitário e Direito da Integração. Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa. Almedina, Coimbra, 2005. Martins, Ana Maria Guerra, O projecto de Constituição europeia, contribuição para o debate sobre o futuro da União, Almedina, Coimbra, 2004 Martins, Guilherme d’Oliveira, Que Constituição para a União Europeia? Análise do projecto da Convenção, Fundação Mário Soares e Gradiva, Lisboa, 2003. Menaut, Antonio-Carlos Pereira, “Res publica europea: propostas constitucionais para a Unión Europea medrar en constitucionalismo sem medrar en estatismo”, in Outeda, Celso Cancela (Coord), A Unión Europea do século XXI, refléxions dende Galicia, Vigo, 2002. 64

A bibliografia sobre o tema abordado neste texto é extensíssima. Limitámo-nos a referenciar apenas aquela que citámos directamente ao longo do texto.

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Pereira, José Pacheco, Jornal Público, 23 de Janeiro de 2003. Quadros, Fausto de, jornal Diário de Notícias de 20 de Outubro de 2003. Ramos, Rui Moura, “A cidadania da União Europeia”, in Ribeiro, Maria Manuela Tavares (Coord), Ideias de Europa: que fronteiras, Quarteto, Coimbra, 2004. Rebelo, Marta, Constituição e legitimidade social da União Europeia, Almedina, Coimbra, 2005. Ribeiro, Maria Manuela Tavares, A ideia de Europa, uma perspectiva histórica, Quarteto, Coimbra, 2003 Sánchez, José Acosta, ”Riqueza y utilidad del nombre del “Tratado por el que se establece una Constitución para Europa””, in Stvdia Ivridica, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra n.º 84 (Colóquio Ibérico: Constituição Europeia. Homenagem ao Doutor Francisco Lucas Pires), Coimbra 2005

SÍTIOS DA INTERNET REFERENCIADOS http://joaopedrodias23.blogspot.com/2003/11/o-processo-dito-de-constitucionalizao.html. http://register.consilium.eu.int/pdf/de/02/cv00/00335d2.pdf http://register.consilium.eu.int/pdf/pt/02/cv00/00325p2.pdf http://www.aidh.org/Europe/Conv_05badin.htm. http://www.europa-web.de/europa/03euinf/08VERFAS/leinendr.htm http://www.fedtrust.co.uk/default.asp?pageid=264&mpageid=67&msubid=277&groupid=6 http://www.jpdias.web.pt/. http://www.rewi.hu-berlin.de/WHI/english/verf/dashwood.doc http://www.theepc.be/Word/EUconst.doc

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