A cidade à prova do tempo: vida cotidiana e relacões de poder nos ambientes urbanos

June 3, 2017 | Autor: Gilvan Ventura | Categoria: History, Everyday Life, Cities, Power Relationships
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Descrição do Produto

ADRIANA PEREIRA CAMPOS GILVAN VENTURA DA SILVA MARIA BEATRIZ NADER SEBASTIÃO PIMENTEL FRANCO SERGIO ALBERTO FELDMAN Organizadores

A cidade à prova do tempo

Vida cotidiana e relações de poder nos ambientes urbanos

Vitória, 2010

© 2010 GM Editora/Université de Paris-Est Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte da obra, por qualquer meio, sem autorização da editora, constitui violação da LDA n° 9.610/98 Editor Gilvan Ventura da Silva Conselho Editorial Adriana Pereira Campos (Ufes) Antônia de Lourdes Colbari (Ufes) João Fragoso (UFRJ) Keila Grinberg (UNIRIO) Lucia Maria Paschoal Guimarães (UERJ) Manolo Garcia Florentino (UFRJ) Margarida Maria de Carvalho (UNESP/Franca) Norma Musco Mendes (UFRJ) Surama Conde Sá Pinto (UFFRJ) Wilberth Clayton F. Salgueiro (Ufes)



Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica Marcos Accioly Revisão Alina Bonella Revisão Técnica Georghia Quimquin Braga Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C568

A cidade à prova do tempo : vida cotidiana e relações de poder nos ambientes urbanos / Adriana Pereira Campos ... [et al.], organizadores. – Vitória : GM Editora ; Paris : Université de Paris-Est, 2010. 328 p. : il. ; 21 cm. ISBN

1. Historiografia. 2. Sociologia urbana – Usos e costumes. 3. Poder (Ciências sociais). 4. Política urbana. 5. Cidades e vilas antigas – História. 6. Cidades e vilas medievais – História. I. Campos, Adriana Pereira. II. Título: Vida cotidiana e relações de poder nos ambientes urbanos.

Imagem de capa

CDU: 930.1:304

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Sumário 7 9

Apresentação

Prefácio: A cidade e o tempo não param! Eneida Maria Souza Mendonça

Parte I - Formas e imagens da cidade antiga e medieval

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Cidade, cidadania e identidade no mundo romano: uma proposta de análise Ana Teresa Marques Gonçalves

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Pompeia: cidade, quotidiano e poder à luz das discussões epistemológicas recentes Pedro Paulo Funari Andrés Zarankin

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A região sul da Lusitânia: uma percepção arqueológica da mudança Norma Musco Mendes

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A apropriação do território urbano pelos cristãos no fim do Império Romano Gilvan Ventura da Silva

81

Cidade, representação e poder no Império Romano: a historiografia sobre Antioquia de Orontes Érica Cristhyane Morais da Silva

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Jerusalém, a cidade da paz: entre a idealização e a realidade Sergio Alberto Feldman

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Episcopados, hagiografia, cidade e relações de poder na Península Ibérica na Idade Média Central Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva

Parte II - A cidade e os dilemas da vida cotidiana

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Os pecados capitais e as normas de convívio urbano Lana Lage da Gama Lima

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História e historiografia da alimentação no Brasil (séculos XVI-XIX) Leila Mezan Algranti

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As corporações urbanas inglesas às vésperas da reforma de 1835: instituições do Antigo Regime confrontadas com a emergência de novos usos urbanos Frédéric Moret

175

Verso e reverso: a condição da mulher na comarca de Vitória a partir dos autos criminais (1845-1865) Sebastião Pimentel Franco

198

A luta cotidiana pelo fornecimento de água potável em Jerusalém (1850-1950): entre conflitos de poder e conflitos de memórias Vincent Lemire

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Morte na cidade ou morte da cidade? Quando um traficante ri Robert Moses Pechman Parte III – Cidade, cidadania e pensamento político

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A natureza do poder popular durante a Revolução Francesa: o caso de Jacques-René Hébert Josemar Machado de Oliveira

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A Guarda Nacional de Paris durante a Monarquia de Julho: interesses políticos de manutenção da ordem no cotidiano Mathilde Larrère

254

As cidades e a experiência eleitoral de magistrados (Vitória/ES, 1822-1841) Adriana Pereira Campos

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Liberalismo brasileiro no Oitocentos: pensamento político e ideias liberais nos debates parlamentares (1840-1860) Julio Bentivoglio

282

Liberalismo, ordem e participação política na Argentina do século XIX: a perspectiva alberdiana Fabio Muruci dos Santos

295

Políticas étnicas e cotidiano: transformações na política indigenista no México após a Revolução Mexicana de 1910 Antonio Carlos Amador Gil

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Movimento feminista e afirmação da cidadania: a luta contra a violência de gênero Maria Beatriz Nader

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Sobre os autores

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Apresentação Este livro é composto por um conjunto de conferências apresentadas no II Congresso Internacional realizado pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo em consórcio com a Université de Paris-Est, em novembro de 2009. O tema do referido evento, Cidade, cotidiano e poder, sugeria a reflexão sobre os vínculos entre identidade, espaço e poder, tendo como pano de fundo a cidade, uma experiência milenar em se tratando da trajetória do homem sobre a terra. Na oportunidade, a opção por discutir um assunto dessa natureza adveio da percepção da complexidade crescente assumida pela vida urbana no mundo contemporâneo, uma vez que os centros metropolitanos e, em especial, as assim denominadas megalópoles, constituem um autêntico desafio, não apenas para os pesquisadores interessados em captar a sua dinâmica, mas também para os gestores públicos, chamados a todo o momento a intervir com a finalidade de solucionar os inúmeros dilemas próprios do modus vivendi metropolitano. Para a compreensão de um tema que, na atualidade, se distingue como um dos mais relevantes, a contribuição dos historiadores é, sem dúvida, indispensável. Desde o seu alvorecer, no Oriente Próximo, a cidade representa, de modo evidente, uma fabricação do intelecto e da ação humana na sua interação com o meio ambiente, uma maneira peculiar de o homem tornar familiar o espaço no qual habita, transformandoo, segundo suas necessidades e desejos, quer para o bem quer para o mal. A cidade, por outro lado, é um ambiente saturado de relações de poder, seja do ponto de vista das estratégias que tentam disciplinar o território urbano, que visam a regular os trânsitos, delimitando os confins e os limiares e adestrando as sociabilidades, seja do ponto de vista das ações políticas que nela tem lugar e que a convertem num cenário privilegiado para os conflitos sociais e para o exercício da cidadania. Nesse sentido, a cidade emerge como um precioso objeto para todos aqueles que se dedicam à investigação das modalidades de manifestação do poder ao longo do tempo. Vitória, maio de 2010 Os organizadores

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Prefácio A cidade e o tempo não param! Eneida Maria Souza Mendonça Acreditando na cidade como resultado de avanço social e técnico e remetendo sua origem a um período superior a seis mil anos, destaca-se a fundamental contribuição de A cidade à prova do tempo: relações de poder e vida cotidiana nos ambientes urbanos a partir de reflexões produzidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, agregado à Université de Paris-Est. Temáticas relativas à cidade e ao tempo intrigam pesquisadores das mais diversas especialidades. No entanto, é, sem dúvida, no campo da História que os sentidos se firmam e as articulações se estabelecem de modo que seja possível, além de construir conhecimento sobre o passado, alcançar maior clareza quanto aos contextos urbanos da contemporaneidade, vislumbrar futuros cenários e projetar novas perspectivas. A cidade como marco da passagem da Pré-História para a História remete às possibilidades de organização social propiciadas por uma revolução agrícola, que permitiu ao ser humano a compreensão dos ciclos da natureza e, com isso, a racionalização de suas atividades cotidianas. A divisão social do trabalho daí advinda, passando a constituir uma característica marcante da diversidade de funções urbanas de todos os tempos, traz, por outro lado, também implícita, a noção de poder. É possível constatar a conformação das relações de poder que permanecem caracterizando a vida urbana, entre outros aspectos, pelo aperfeiçoamento na fabricação das armas, remetendo, ainda nos períodos pré-históricos, à passagem da pedra lascada ao metal polido. A conseqüente dominação de grupos sociais mais bem equipados em seus arsenais e a submissão, em parte consentida, de outros, remetem à instigante constatação de que o exercício do poder acompanha a cidade desde seus tempos mais remotos e mesmo introdutórios. A conquista de territórios por exércitos que controlam ou fundam cidades, passando a comprometer-se com sua proteção, ilustra situações também vivenciadas na atualidade por milícias diversas.

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Deste modo, a cidade vem se constituindo neste fenômeno para o qual convergem as relações sociais e técnicas mais avançadas de cada tempo e contexto regional, sediando poderes legítimos ou não. Incômoda contradição se estabelece quando é possível associar tanto a noção de avanço social e técnico quanto a noção de dominação à origem da cidade. Isso porque o avanço social, na sua essência e abrangência, só se concretiza se associado de forma ampla e completa à idéia de democracia. Assim, o desejo de alcançar na cidade a plena justiça social, diante de tecnologias ditas sustentáveis, alicerçadas em formas democráticas de poder, remete a pensamento conflitante à formação e evolução da cidade, ao mesmo tempo em que se constitui em fascinante busca, mesmo que eventualmente utópica. Neste contexto, o conteúdo deste livro organizado por Adriana Pereira Campos, Gilvan Ventura da Silva, Maria Beatriz Nader, Sebastião Pimentel Franco e Sergio Alberto Feldman contribui para o despertar de reflexões intrínsecas à cidade e ao tempo. Tratando da cidade no tempo, de forma abrangente e sem abdicar da profundidade necessária à compreensão dos processos urbanos de cada período, o livro permite ao leitor percorrer a milenar complexidade urbana ao incluir desde estudos sobre formas e imagens da cidade antiga e medieval, até dilemas da vida cotidiana, cidadania e ordem pública. Na parte I, intitulada Formas e imagens da cidade antiga e medieval, capítulos tratando do Império Romano cumprem a função de destacar a admirável participação desta sociedade na conquista de territórios e construção de cidades, bem como no exercício da cidadania e do poder. Galgando a marca inédita de um milhão de habitantes na Antiguidade, Roma constituiu-se em referência inequívoca no campo da estratégia política e da técnica construtiva. Valorizando o desenvolvimento de estudos sobre as sociedades clássicas, abordando especialmente, o Império Romano, encontra-se o texto de Ana Teresa Marques Gonçalves. Gilvan Ventura da Silva estabelece a importância da relação entre espaço, identidade e poder ao longo do tempo e na atualidade, analisando de modo específico a cristianização do Império Romano por meio da redefinição do ambiente construído em Antioquia. Érica Cristhyane Morais da Silva trata também de Antioquia e examina a historiografia e a documentação escrita, discorrendo sobre o Império Romano a partir do espaço da cidade. Com foco em

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Pompeia, Pedro Paulo Funari e Andrés Zarankin dão destaque ao papel da Arqueologia, realçando a compreensão da arquitetura pompeiana para o estudo da paisagem humana na Antiguidade. Tendo Jerusalém como objeto de análise, Sergio Alberto Feldman aborda a construção da cidade e a sucessão de revoltas que desde os tempos antigo e medieval caracterizam o lugar. Norma Musco Mendes analisa o colapso do Império Romano, estudando o litoral sul da Lusitânia, com suporte da Arqueologia. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva completa a cronologia, caracterizando a cidade medieval pelas relações entre poder e santidade na Península Ibérica. A parte II do livro, ao explorar, em seus capítulos, A cidade e os dilemas da vida cotidiana, valoriza a vivência urbana como elemento de investigação científica que auxilia a compreensão acerca da história da cidade a partir de costumes urbanos de cada tempo. O cotidiano, tido também como algo banal, habitual, vem deixando, então, na atualidade, de receber significado estritamente relacionado ao senso comum para ganhar espaço nos enfoques científicos das mais diversas áreas de conhecimento. Neste contexto, Lana Lage da Gama Lima associa determinadas transformações urbanas ao imaginário construído pela religião católica, na Europa Ocidental, durante a Alta Idade Média. Leila Mezan Algranti demonstra a articulação entre colônia e metrópole estudando aspectos da cultura imaterial referentes à alimentação e à culinária no Brasil colonial. Analisando mudanças e permanências na prestação dos serviços urbanos, Frédéric Moret acompanha criticamente as atividades das corporações inglesas no limiar da reforma de 1835. Tratando de aspectos relacionados à discriminação sofrida pela mulher na sociedade e na família, em meados do século XIX, em Vitória, Espírito Santo, Sebastião Pimentel Franco, utilizando como fonte principal de pesquisa os autos criminais, revela além das questões de gênero estudadas, o comportamento cotidiano da própria sociedade. Valorizando Jerusalém em sua condição de cidade, Vincent Lemire tira o foco historiográfico tradicional religioso do lugar, para abordar sua vida cotidiana relacionada ao poder inerente às redes técnicas, tratando em particular do serviço de água potável, transformado em estratégia geopolítica entre os meados dos séculos XIX e XX. Robert Moses Pechman trata do enfraquecimento da vida pública, modificando a percepção da cidade, que passa de lugar da vida coletiva para o do consumo e das oportunidades, analisando,

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por meio de matérias de jornal, a configuração da violência e da segurança pública, com destaque para a interpretação das denominações por apelido. A parte III deste livro encerra a abordagem proposta pelos organizadores, incluindo capítulos sobre Cotidiano, cidadania e pensamento político e acrescentando ao debate desenvolvido nas partes anteriores a noção dos direitos como conquista cidadã e da garantia e manutenção destes direitos como papel revolucionário do povo e, ou, institucional do Estado. O debate aí proposto recupera um dilema de fundo ético, já indicado neste prefácio quanto à noção de cidade como resultante de avanços sociais e técnicos e, ao mesmo tempo, como locus de dominação e poder. As reflexões possibilitadas por estes artigos finalizam então a abordagem proposta pelo livro, permitindo aprimorar a compreensão sobre a complexidade urbana e contribuindo para a idealização dos instrumentos organizacionais de democracia. Deste modo, o poder popular em curso na Revolução Francesa é examinado por Josemar Machado de Oliveira ao estudar a atuação de Jacques-René Hérbert, e seu ideal pautado no povo como legislador soberano. A Revolução Francesa emerge também, de certo modo, na abordagem de Mathilde Larrère, que analisa o papel e a organização da Guarda Nacional, instituída por ocasião da Revolução, estudada, porém, ao longo da Monarquia de Julho (1830-1848), em Paris, diante de interesses políticos e vivências cotidianas. Adriana Pereira Campos traz luz à construção da cidadania no Brasil no âmbito da política municipalista ao analisar a instituição, por eleição, da magistratura leiga em Vitória, capital do Espírito Santo, nas primeiras décadas do Império, ressaltando os efeitos promissores da experiência, a despeito da ação notadamente conservadora dos juízes e da sociedade. Por outro lado, Julio Bentivoglio identifica, no pensamento político brasileiro de meados do século XIX, posturas contemporâneas, em sintonia ao debate estrangeiro, concomitantemente a outras, mais arcaicas, ao examinar o liberalismo no Brasil a partir da interpretação de discursos políticos e da crítica. Ainda em torno do tema relacionado ao liberalismo, Fábio Muruci dos Santos analisa a construção da ordem pelo fortalecimento do Estado no século XIX, na Argentina, em busca da estabilidade pós-independência, com base no pensamento de Juan Bautista Alberdi. Antonio Carlos Amador Gil demonstra o esforço das políticas indigenistas ao longo do século XX,

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na construção da integração mexicana, sobretudo após a Revolução de 1910, ressaltando a instituição da ideologia da mestiçagem, em detrimento do reconhecimento da diversidade étnica nacional. Destacando o movimento social do feminismo como o mais importante do século XX, Maria Beatriz Nader conclui a seqüência de artigos do livro ao enfocar o Movimento Feminista no Brasil e as políticas públicas específicas para mulheres em situação de violência de gênero, utilizando como apoio decisões judiciais que obtiveram repercussão nacional. A abordagem que emerge de A cidade à prova do tempo reitera a importância do estudo da História no desenho político voltado ao alcance da democracia plena. O feliz entrelaçamento entre cidade e tempo favorece, ainda, de algum modo, a possibilidade de construção de perspectivas otimistas envolvendo as sociedades urbanas.

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Parte I Formas e imagens da cidade antiga e medieval

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Cidade, cidadania e identidade no mundo romano: uma proposta de análise Ana Teresa Marques Gonçalves

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o capítulo “Communicating culture, identity and power”, do livro Experiencing Rome: culture, identity and power in the Roman Empire, editado por Janet Huskinson, em 2000, dedicado a alunos de Graduação da The Open University, Richard Miles apresenta o interessante caso da tumba de Filopapo em Atenas. Trata-se de um monumento funerário concluído entre 114 e 116 d.C., de dois andares, no qual, na inscrição dedicatória, Filopapo, um dos netos de Antíoco IV, rei de Comagena, pequeno reino no leste da Anatólia, anexado por Roma em 72 d.C., sob o governo dos Flávios, se apresenta como cônsul romano, arconte ateniense e rei de Comagena, na Ásia Menor. Em Roma, ele foi admitido no Senado no governo de Trajano e chegou ao consulado em 109 d.C. Mais tarde se mudou para Atenas e, devido à sua riqueza e influência política, chegou ao arcontado. Apesar de não comandar mais seu reino, nunca perdeu a titulatura, já que era o herdeiro presumido e mantinha excelentes relações com os romanos, que dominavam a região. Miles (2005, p. 31) ressalta como sua tumba apresenta, na inscrição, nas esculturas, nos relevos e nos frisos uma grande quantidade de “[...] imagens contraditórias”. No alto do monumento, aparece uma estátua de Filopapo em nudez heroica, seguindo os cânones gregos. A estátua é ladeada à esquerda por uma pintura retratando seu avô, Antíoco IV, e à direita por uma pintura representando Seleuco Nicátor, fundador do Império Selêucida e um dos diádocos de Alexandre Magno. No primeiro andar da tumba, aparece um relevo no qual Filopapo está dirigindo uma quadriga, devidamente ves-

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tido com a toga romana e com a entourage de cônsul. Na mão esquerda, tem um cetro, lembrando que se tratava de um rei em sua terra natal. A quadriga aparece ornamentada com uma imagem de Héracles, à qual os reis de Comagena se associavam. Seu avô, Antíoco, aparece vestido com uma toga romana, apesar de ser um monarca oriental. Podem ser encontradas cinco epígrafes nesse monumento: quatro em grego e uma em latim. Na mais central, disposta abaixo da estátua, diz-se que se trata da tumba de Filopapo, filho de Epifanes do Demos de Besa, portanto, um cidadão ateniense. A inscrição em latim o identifica como Caius Iulius Antiochus Philopappus, filho de Caio, da tribo Fábia, cônsul e irmão Arval, admitido com posição pretoriana pelo imperador Caesar Nerva Trajano Optimus Augustus Germanicus Dacicus. A outra inscrição em grego proclama sua titulatura real, informando que se trata da tumba do rei Antíoco Filopapo, filho do rei Epifanes, por sua vez filho de Antíoco. As outras duas inscrições em grego estão dispostas nas bases das estátuas de Antóoco IV e de Seleuco e os identificam. Miles enfatiza que esse monumento funerário contém elementos de estilos gregos, comagenianos (asiáticos) e romanos. A presença dos ancestrais ilustres era comum nas tumbas de Comagena. O friso do primeiro andar, com a quadriga, é típico do estilo romano, enquanto a estátua heroica era parte integrante da cultura grega continental (MILES, 2005, p. 33). Assim, Miles, aproximando-se das ideias de Edward Said (1993, p. 15), na obra Culture and Imperialism, tenta demonstrar como esse monumento se torna um bom exemplo do processo de formação de culturas híbridas e heterogêneas no interior do Império Romano. Para Miles (2005, p. 34), cultura pode ser definida como uma construção sempre mutável, a partir de multifacetados condicionantes mentais transmitidos de forma oral e por meio de gestos e textos. Nesse monumento, arquitetura, arte e escrita se combinam para formar um mundo que integra vários parâmetros e dinâmicas. Como afirma H. K. Bhabha (1990, p. 296), cultura é como uma narrativa em constante estado de contestação, revisão e reforma. Nestor Canclini, em sua obra Culturas híbridas (2005), e Peter Burke, no livro Hibridismo cultural (2003), são bons exemplos de autores que tem estudado a formação de expressões culturais a partir da fusão de elementos advindos de culturas distintas. Burke (2003, p. 91-99), por exemplo, repensa, nos estudos culturais, a viabilidade de aplicação dos conceitos de adaptação, circularidade e tradução na for-

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mação dos aspectos culturais de uma sociedade complexa. O monumento funerário em questão exemplifica bem como a identidade é construída e representada, comunicada. Em sua tumba, o morto se representa e comunica sua representação aos que a veem. Miles (2005, p. 34) esclarece: “[...] as inscrições, esculturas e frisos na tumba claramente indicam a importância da escrita e das imagens visuais na construção e representação do poder”. Poder este de se autorrepresentar, de criar a representação de si e de comunicar essa representação aos outros, que, para compreendê-la, têm necessariamente que compartilhar os seus códigos culturais. O passado é usado para justificar o presente, tanto nas inscrições, que designam os vários títulos do morto, quanto nas imagens, que indicam seus antepassados. Lembremos que poder é também produzir limites para a criação e a recepção de informações (MILES, 2005, p. 35), pois os antigos souberam bem usar a arte, a arquitetura, a escrita textual e a formulação de discursos para legitimar seu poder, de acordo com as oportunidades. No livro Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia Antiga, François Hartog define o que ele chama de “Viajantes ou HomensFronteira”, como Odisseus/Ulisses, Dioniso, Pitágoras e/ou Apolônio de Tiana, este último conhecido pela biografia que dele foi feita por Filóstrato na passagem do II para o III século d.C. São homens itinerantes, que viajam muito por diferentes motivos e que vão, com isso, entrando em contato com outras culturas, aprendendo novos hábitos, costumes, línguas, mas nunca perdem sua “identidade original”, que se mantem por meio de uma memória sempre retomada. Para entender o outro, parte-se da recordação do que se viu antes. É pelo que já se conhece, pela formação que já se tem, que se tenta compreender o outro, o fruto da alteridade. É pelos parâmetros construídos que se afirma a diferença. Como diz Hartog (2004, p. 14-15):

Ulisses, em suas viagens, pelo próprio movimento desse retorno sem cessar contrariado e diferido, traça os contornos de uma identidade grega [...]. Ele marca as fronteiras (entre o humano e o divino, por exemplo), ou, sobretudo, ele, o resistente, prova-as ou experimentaas, arriscando-se a se perder totalmente. Móvel, agitado pelas ondas, tendo sempre de partir de novo, ele próprio é um homem-fronteira e um homem-memória [...]. Esses viajantes inaugurais deslocam-se até as fron-

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teiras, são eles próprios marcos de fronteira, embora móveis. Vão e estão, por assim dizer, dos dois lados das fronteiras, grandes ou pequenas: ao mesmo tempo dentro e fora, intermediários, barqueiros, tradutores.

E é em suas cidades de origem que esses homens-fronteira vão alicerçar seus cânones culturais; vão aprender suas primeiras letras, suas primordiais regras de convivência, plasmando na memória seu primeiro vir-a-ser. A cidade no mundo antigo torna-se, assim, vetor fundamental para o entendimento dos processos de formação de identidades e de expressão de alteridades. Na pequena obra Elogio da Pátria, de autoria de Luciano de Samósata, sírio que escreveu em grego e que chegou a funcionário imperial em Roma, no II século d.C., sob os governos dos Antoninos, percebe-se a posição fulcral da cidade e da cidadania para se repensar a posição ocupada pelos homens no tempo e no espaço. Luciano pode ser identificado como fruto do hibridismo cultural que marcava o Império Romano, como Filopapo e sua tumba, também erigida no II século d.C., demonstram. Na narrativa luciânica, a pátria é a cidade de nascimento. É fundamentalmente o lar dos patres, o solo de surgimento, que preferencialmente deveria ser o solo de enterramento, com o compartilhamento das sepulturas dos antepassados (LUCIANO, Elogio da Pátria, 9). Diz Luciano (Elogio da Pátria, 11): “[...] ainda que se possa ser feliz em outras terras, não aceitará a imortalidade que lhe oferecem (referindo-se a Odisseus), preferindo uma tumba em sua pátria, e a visão do húmus de sua pátria lhe parecerá mais brilhante que o fogo de outras terras”. A cidade é, dessa forma, apresentada como o locus de surgimento, nutrição e educação, os três pilares para a compreensão da pátria luciânica (LUCIANO, Elogio da Pátria, 1). A relação estabelecida entre o homem e sua cidade, na opinião de Luciano, deve ser definida nos mesmos parâmetros da relação firmada entre pais e filhos. O amor faz com que os filhos honrados vejam seu pai como o homem mais honrado do mundo, da mesma forma que os pais honestos identificam seus filhos como os mais belos e adornados com as melhores qualidades, tudo isso estipulado pela lei e pela natureza (LUCIANO, Elogio da Pátria, 3). Sendo assim, não reconhecer sua cidade de nascimento como sua pátria seria contra a natureza, quebrando os laços entre o divino e o sagrado. Lembra Luciano que até os deuses têm cidades de origem, “[...] ainda que supervisionem, como é lógico, todos os domínios humanos, considerando bens próprios toda a terra e todo

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o mar, mas cada um deles honra o lugar em que nasceu, preferindo-o frente a todas as outras cidades” (Luciano. Elogio da Pátria, 5). Toda a riqueza e a mais ampla sabedoria deveriam ser construídas em prol da pátria.

Os homens organizam todos os ensinamentos e conhecimentos preparando-se para serem úteis com eles em suas pátrias respectivas e adquirem riquezas pela mera satisfação de entregá-las aos cofres públicos do Estado, e com razão não devem se mostrar ingratos aqueles que receberam os maiores benefícios. Ao contrário, se se tributa gratidão individualmente, como é justo, quando se recebe um favor do outro, muito mais importante é se devolver à pátria o quanto esta merece, pois inclusive frente à injustiça dos pais há leis nas cidades, mas devemos considerar pátria como mãe comum de todos e tributarlhe nossos dons de gratidão por nossa criação e pelo conhecimento das leis mesmas (LUCIANO, Elogio da Pátria, 7).

Desse modo, a pátria deve ser gerenciada por leis que tornem a comunidade que a habita solidária. Mesmo o pai injusto é recolhido ao âmbito da Justiça pelas leis citadinas. Os que receberam os maiores benefícios, com o auxílio da Fortuna, devem se mostrar gratos e devolver parte desses benefícios ao solo pátrio.

Quem em seu tempo de permanência no exterior chegar a ser ilustre pela aquisição de riquezas, pela honra de ocupar cargos públicos, pelo testemunho de sua cultura ou o elogio de sua coragem, é de se notar que todos se apressam a regressar para sua pátria, como se não pudessem exibir os seus êxitos em outro lugar melhor (LUCIANO, Elogio da Pátria, 8).

Os nômades conseguem realizar facilmente suas migrações porque desconhecem a palavra pátria (LUCIANO, Elogio da Pátria, 10) e não é à toa que “[...] os legisladores têm prescrito o desterro como o mais duro castigo para os maiores delitos” (LUCIANO, Elogio da Pátria, 12), pois o pior que pode acontecer é o homem se tornar estrangeiro e não cidadão, portanto um ser desprotegido da segurança das leis e dos costumes em solo alheio. A pátria é, assim, local de solidez, de compartilhamento de símbolos e de códigos, de compreensão mútua, de entendimento, de

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paz e de abundância, na visão de Luciano. Pode haver conflitos entre as pátrias, mas não em seu interior, pois só a permanência da tranquilidade reveste-se de certeza de riqueza e prosperidade. Tanto que, ao se comparar cidades, os critérios a serem considerados são sua extensão, sua beleza e sua abundância de mercados, pois as poleis devem ser antes de tudo locais de prosperidade (LUCIANO, Elogio da Pátria, 2). O homem só conseguiria estipular sua identidade a partir de sua pátria, pois só lá ele conheceria os costumes de seus antepassados e poderia remontar seu nome até os deuses (LUCIANO, Elogio da Pátria, 4), unindo mais uma vez as esferas do sagrado e do humano. Dessa forma, mesmo que impregnado por várias culturas, para Luciano, o homem carregaria em si, na sua “essência”, uma identidade primordial, aquela aprendida na infância passada em sua cidade natal, que poderia até ser mesclada a outras identidades cunhadas a partir de outras referências culturais, mas a pátria nunca sairia de sua memória, como permanência ou anseio de retorno. Como no caso de Filopapo, as múltiplas referências culturais forjadoras de identidades diversas poderiam conviver em harmonia num mesmo ser, pois ele carregaria em si uma âncora segura, que seria sua educação na cidade de origem. Por isso, não é de se estranhar que a historiografia mais atual acerca da questão do estabelecimento de identidades no mundo antigo sempre esteja retornando aos processos de formação de cidadanias, pois desde os gregos e romanos tais premissas parecem realmente inseparáveis. Simon Goldhill, na introdução do livro Being Greek under Rome: cultural identity, the Second Sophistic and the development of Empire, por ele editado, afirma que o conceito “identidade cultural” tem se tornado cada vez mais familiar no campo dos estudos clássicos. Tanto cultura quanto identidade são palavras cada vez mais utilizadas pelos acadêmicos, o que tem gerado o surgimento de múltiplas definições e confusões argumentativas. Nos estudos culturais se interconectam formações ideológicas, práticas sociais, regras de conduta, comportamentos, protocolos, construções materiais. A análise cultural implica, desse modo, a clarificação de significados e valores implícitos e explícitos num determinado modo de vida. Os aspectos culturais têm integrado a formação de discursos de identidade. Este termo, identidade, tem servido como chave para interpretação em discussões filosóficas, psicoanalíticas, históricas e sociológicas sobre o ser, o sujeito e o indivíduo, em sua relação com os meios

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natural e social circundantes (GOLDHILL, 2006, p. 15-18). Richard Miles, em outra obra intitulada Constructing identities in Late Antiquity (1999), ressalta que, a partir dos anos setenta e oitenta, o estudo das identidades coletivas invadiu os estudos clássicos, refletindo os conflitos ideológicos, contestações e competições identitárias que marcaram essas décadas. O termo identidade foi usado para responder à fundamental questão: quem eu sou? Estudar identidades era também definir diferenças, pois a dinâmica das forças culturais criava imaginários e significados próprios. A obra de Miles foi produzida a partir de um seminário realizado na Open University, entre 28 de fevereiro e 1 de março de 1997, no qual se buscou repensar como uma certa identidade foi construída e representada no final da Antiguidade, partindo-se da premissa de que Late Antiquity é uma construção moderna. Identidades são criadas, estando constantemente em estado de fluxo e desenvolvimento, nas palavras de Miles. Devido a isso, o terceiro, quarto e quinto séculos deveriam ser repensados a partir de redefinições de evidências sociais, culturais e artísticas como símbolos de continuidade e/ou permanência. Essa se constitui, em linhas gerais, na proposta condutora dos artigos que compõem o livro de Miles. Os vários artigos demonstram como antigos paradigmas foram reapropriados em textos e imagens, em espaços diversos. A relação imaginário/realidade é descrita como fundamental para se repensar a recriação de identidades ocorrida no final do mundo romano. Ao viverem em comunidades imaginadas, os homens da Antiguidade Tardia teriam percebido profundas transformações ocorridas nas instituições políticas, burocráticas e religiosas, impulsionadas por mudanças carreadas pelos bárbaros e pelo Cristianismo, capazes de engendrar mudanças nas representações imperiais e nas ideologias. Formações e contestações identitárias dizem respeito fundamentalmente à constituição de poderes, principalmente ao poder de representar. Dessa maneira, como demonstra Peter Heather, no capítulo “The Barbarian in Late Antiquity: image, reality and transformation”, a romanitas no quarto século passa a ser definida pela relação com o outro; outro este caracterizado no modo de ser imaginado como bárbaro (HEATHER, 1999, p. 234). Identidades são, assim, produzidas, consumidas e reguladas a partir da cultura, entendida, no livro editado por Miles, como práticas e pensamentos realizados por grupos nos quais se efetiva um consenso. Cultura, desse modo, constitui-se em força articuladora, descritiva, comu-

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nicativa e representacional que se expressa por meio de textos e imagens. A cultura legitima, mas é sempre local de tensão entre tradição e inovação, abrindo campo para a reformulação identitária (MILES, 1999, p.1-13). Também fruto de um evento ocorrido em abril de 1995, no qual se discutiu identidade cultural como um tópico preeminente nos estudos desenvolvidos por arqueólogos e historiadores, o livro Cultural identity in the Roman Empire (2001), editado por Ray Laurence e Joanne Berry, revê conceitos, como o de romanização, enfatizando dicotomias traçadas entre os romanos e os nativos nos processos de aceitação e resistência efetivados ao longo dos contatos dos romanos com outras culturas na constituição do império territorial. Ray Laurence, na introdução da obra, enfatiza que a chave para a compreensão da identidade cultural no Império Romano é a clara concepção de como os romanos viam a si mesmos e de como eles se distinguiam como romanos. Para Laurence, faziase uma associação de identidade com cidadania e desta se partia para a definição de riquezas, status e antepassados diferenciados. Parte-se do pressuposto de que as identidades são negociadas e de que é impossível, nos estudos romanos, se generalizar sobre o desenvolvimento diferencial das cidades em resposta à conquista romana. Ao longo dos artigos, percebe-se a manipulação dos artefatos culturais para se criar imagens que associamos a etnicidades, identidades e culturas, demonstrando como a constituição de relações de poder é responsável por representar identidades, tornando identidade um conceito negociável (LAURENCE, 2001, p.1-9). Erich S. Gruen, em seu livro Culture and national identity in Republican Rome (1992), mostra-se interessado no domínio romano que se estabelece em outras terras durante a República. Gruen enfatiza o encontro dos romanos com o legado grego. Nesse encontro, ele identifica a constituição de valores nacionais compartilhados pelos romanos nos terceiro e segundo séculos antes de Cristo, que os distinguiriam dos gregos. Desse modo, em sua obra, o autor percebe a interseção da atividade cultural com os interesses de Estado, a manipulação do legado helenístico, a assimilação de alguns modelos de inspiração grega, bem como a instituição de uma tensão criativa que levou os romanos a gerarem valores próprios e a perceberem suas contribuições distintas que eles denominaram de mos maiorum. Portanto, para Gruen (1992, p.1-51), os romanos se definiram como tais, criando sua identidade a partir da relação com o outro, o grego, selecionando práticas e imagens para também integrarem as

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representações romanas, por exemplo, a introdução da lenda troiana na constituição do passado romano. Já na obra Athenian identity and civic ideology (1994), na qual os editores Alan L. Boegehold e Adele C. Scafuro reúnem artigos, frutos de conferências realizadas na Brown University em abril de 1990, nos quais se repensam a natureza e o significado da cidadania para os atenienses e a formação de uma ideologia cívica, mais uma vez, integra-se o estudo de identidade à análise da concessão da cidadania, relacionando-se os âmbitos políticos e culturais na área da expressão identitária. Para Adele C. Scafuro, no interior das prerrogativas cidadãs, interagiam diferenças de status que definiam esferas sociais e políticas diferenciadas, mas que se amalgamavam na formulação de uma ideologia cívica comum aos atenienses, que os agregava nas esferas pública e privada (SCAFURO, 1994, p.1-10). Essa ideologia comum legitimava seus procedimentos e garantia significado para suas ações coletivas. Clifford Ando, num livro intitulado Imperial ideology and provincial loyalty in the Roman Empire (2000), também repensa o conceito de romanização a partir de estudos identitários, nos quais a concessão da cidadania aos povos conquistados durante o período republicano apresenta grande relevo. A questão que perpassa a extensa obra é como os romanos conseguiram manter a estabilidade imperial por tanto tempo, induzindo a quietude e a obediência aos sujeitos conquistados. No livro, desenvolve-se o estudo da interação romana com os provinciais, permitindo-se a persistência de culturas locais, percebendo-se os vários mecanismos adotados para a criação de um consenso, capaz de garantir a ordem social mínima e o estabelecimento de uma cultura política normativa. Ando analisa as várias facetas da propaganda imperial, capaz de legitimar a conquista e auxiliar na internalização da ideologia imperial nas populações conquistadas, principalmente a partir da promoção das ideias de paz, segurança e prosperidade. Para Ando, mais do que a concessão da cidadania em si o que auxiliava na manutenção da tranquilidade era o compartilhamento de benefícios entre conquistadores e conquistados. O autor verifica a paulatina transformação das conquistas territoriais de um imperium, uma coleção de províncias conquistadas, numa pátria, um local onde sujeitos partilhavam uma lealdade patriótica baseada na construção de um consenso. Segundo Ando, a ideologia imperial emergia de uma complexa conversação entre centro e perife-

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ria. Ele não acredita na existência de uma cultura imperial unitária, mas defende que as ilusões sociais são frequentemente mais interessantes e potentes para os pesquisadores do que a realidade. E a manutenção desse consenso e a publicização da lealdade compartilhada em troca de benefícios redistribuídos é percebida por Ando principalmente na realização de cerimônias políticas comuns (ANDO, 2000, p. 11-13). De acordo com John R. Gillis, no artigo Memory and identity: the history of a relationship, que integra a obra por ele editada, intitulada Commemorations: the politics of national identity (1996), o estudo da identidade é inseparável da memória e das comemorações, num tripé analítico no qual toda identidade é constituída junto com uma memória, que, por sua vez, é mantida pela realização constante de comemorações. Para Gillis, identidade foi um termo popularizado por Erik Erickson ao final dos anos cinqüenta do século XX, em seus estudos sobre o sentido do individual e a constituição dos sujeitos e de suas autorrepresentações. Assim, a noção de identidade depende da ideia de memória e vice-versa, pois o senso de identidade é constituído por uma sensação de pertencimento a um tempo e a um espaço que são sempre relembrados. Como sabemos hoje, as memórias são revistas, as identidades são reconstruídas no mesmo processo em que relações de poder, gênero, classe, entre outras, são rememoradas e/ou esquecidas (GILLIS, 1996, p. 3-5). Mas, para o homem antigo, a memória era o porto seguro das experiências do passado, não sendo encarada como algo tão fluido como atualmente. Pela memória, o homem se aproximava dos deuses, ao escapar de sua característica mortalidade por intermédio do relembrar constante de suas ações. Portanto, identidade, cidade e cidadania são conceitos fundamentais para a formulação do saber histórico e para a compreensão das ações humanas no tempo e no espaço. Acreditamos que, desde as poleis gregas e a constituição do Império Romano como um Império de cidades, também se tornaram conceitos relevantes, expressivos e complementares para o desenvolvimento de pesquisas sobre as sociedades clássicas.

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Referências Documentação primária impressa LUCIANO. Elogio da Pátria. In: LUCIANO. Tradução de Andrés Espinosa Alarcón. Obras. Madrid: Gredos, 1996. v. 1.

Obras de apoio

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BURKE, P. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2003. CANCLINI, N. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 2005.

GILLIS, J. R. (Ed.). Commemorations: the politics of national identity. Princeton: University Press, 1996.

GOLDHILL, S. Introduction: setting na agenda: everything is greece to the wise. In: GOLDHILL, S. (Ed.). Being greek under Rome. Cambridge: University Press, 2006. p. 1-25. GRUEN, E. S. Culture and national identity in Republican Rome. Ithaca: Cornell University Press, 1992. HARTOG, F. Memória de Ulisses. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.

HEATHER, P. The barbarian in late antiquity: image, reality and transformation. In: MILES, R. (Ed.) Constructing identities in late antiquity. London: Routledge, 1999. p. 234-258. HUSKINSON, J. (Ed.). Experiencing Rome: culture, identity and power in the roman empire. London: Routledge, 2000.

LAURENCE, R. Introduction. In: LAURENCE, R.; BERRY, J. (Ed.). Cultural identity in the roman empire. London: Routledge, 2001. p. 1-9. MILES, R. (Ed.). Constructing identities in late antiquity. London: Routledge, 1999. MILES, R. Communicating culture, identity and power. In: HUSKINSON, J. (Ed.). Experiencing Rome: culture, identity and power in the roman empire. London: Routledge, 2000. p. 29-62. SAID, E. W. Culture and imperialism. London: Chatto & Windus, 1993.

SCAFURO, A. C.Introduction: bifurcations and intersectipons. In: BOEGEHOLD, A. L.; SCAFURO, A. C. (Ed.). Athenian identity and civic ideology. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1994. p. 1-20.

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Pompeia: cidade, quotidiano e poder à luz das discussões epistemológicas recentes Pedro Paulo Funari Andrés Zarankin

Introdução

H

á uma longa tradição no estudo das casas pompeianas. No

entanto, a maioria das perspectivas baseia-se no senso comum e na aceitação passiva de informações contidas nas fontes da tradição textual (STOREY, 1999). Este capítulo tem como propósito começar a discutir criticamente posições recentes que dominam as abordagens sobre as vivendas pompeianas, vertente esta considerada relevante para a compreensão da sociedade romana. Centramos nosso estudo precisamente na especificidade das informações arqueológicas e na possibilidade de análise que esta possa oferecer ao pesquisador interessado nos modos de vida da Antiguidade. Em função desse objetivo, não utilizamos como referência apenas a literatura clássica e moderna relativa ao tema, mas destacamos também a importância da teoria histórica, sociológica e, principalmente, da arqueológica, a fim de obter leituras alternativas do mundo antigo, especificamente para este caso, por meio da análise da arquitetura doméstica (FUNARI; ZARANKIN; STOVEL, 2005). Géza Alföldy (1986, p. 18), há alguns anos, ressaltava que “[...] in unserer Zeit Alte Geschichte ohne Archäologie nicht mehr denkbar ist”, não se pode mais pensar a História Antiga sem a Arqueologia. Nesse sentido, a Arqueologia continua sendo ponderada como uma disciplina que só pode

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ajudar o pesquisador se for considerada complementar às demais ciências (MUHLY, 1996, p. 434). A Arqueologia, concebida como ancilla ou serva da História, estaria, na opinião de alguns, muito distante de ser uma atividade autônoma, como propunha Meneses (1965, p. 22). Crítica em Austin (1990, p. 25 et passim), mais bibliografia em Funari (1997). Entretanto, nas últimas décadas, um número cada vez maior de arqueólogos defende ser analiticamente mais útil trabalhar separadamente as distintas fontes de informação – por exemplo, documentos escritos, cultura material, etc. –, aproveitando a heterogeneidade de leituras que cada uma delas oferece para, posteriormente, confrontá-las e, assim, obter um panorama mais rico e profundo. A autonomia da Arqueologia no estudo de uma sociedade histórica como a romana significa, também, que não é possível aceitar de maneira acrítica as informações de autores antigos ou, ainda pior, interpretar o registro arqueológico de forma a correspondê-lo às fontes escritas (WHITEHOUSE; WILKINS 1989, p. 102). Concordamos com Michael Shanks (1995, p. 34), quando afirma que “[...] la Arqueología no es simplemente una manera de descubrir el pasado, sino que al trabajar sobre sus vestigios, se convierte en un modo específico de producción del pasado”. No caso do estudo da Antiguidade Clássica, existem, ainda, outras limitações em algumas abordagens, como a tendência de afastar o mundo clássico de um contexto mais amplo (SHERRATT, 1995, p. 27). A partir desse novo marco de discussão, o estudo da cidade de Pompeia, sua organização espacial e sua arquitetura têm adquirido novo impulso. Em um nível mais específico, a análise e a interpretação de suas vivendas domésticas tem concentrado a atenção de inúmeras pesquisas. Devido às suas características especiais, Pompeia foi, e continua sendo, um dos sítios arqueológicos mais importantes e particulares do mundo. No entanto, os trabalhos sobre sua arquitetura tem sido produzidos, em geral, mais próximos de uma História da Arte, estabelecendo estilos, buscando relações com o mundo grego e priorizando o estudo das estruturas de “valor” estético e monumental acima do popular. O próprio Paul Zanker (1988, p. 4) reconhecia que “[...] seit Beginn der Ausgrbungen um 1740 haben neben äesthetischen vor allem positivistische Interessen die Untersuchungen bestimmt”. Desse modo, a concepção sobre a casa pompeiana esteve dominada pelas ideias propostas por Mau (1899) no final do século passado (Fig. 1).

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Fig. 1- Modelo de casa pompeiana proposto por Mau (1899, p. 247)

Partindo da premissa de que uma das funções da Arqueologia é gerar discursos críticos sobre o passado e sobre a maneira como este é construído e explicado pelos estudiosos, este trabalho busca discutir criticamente as abordagens arqueológicas mais importantes sobre a arquitetura de Pompeia. Interessa-nos analisar suas premissas de trabalho e a utilização das evidências documentais e arqueológicas. Finalmente, analisamos algumas correntes de pensamento para conhecer, por outra perspectiva, a sociedade romana.

Discussão de alguns casos paradigmáticos1

Um pesquisador que tem se interessado pelo estudo da arquitetura e da composição do espaço como uma fonte de informação sobre a história da cidade de Pompeia é Fausto Zevi (1996). A manipulação da paisagem e da arquitetura é entendida como estratégia de dominação e de resistência, na qual ficam expostas diferentes ideologias que disputam o poder. Ao analisar algumas das construções mais importantes da cidade – especialmente as de caráter público, como templos e teatros e algumas vivendas familiares –, conclui-se que a arquitetura pompeiana é a expressão da oposição entre dois mundos: o dos antigos habitantes da cidade e o dos novos colonos romanos estabelecidos com a expansão de

Por existir abundante bibliografia sobre o tema, realizamos um recorte baseado na antiguidade dos trabalhos – escolhemos os mais recentes – e no grau de difusão e aceitação que tiveram. Como segundo critério, selecionamos os casos que utilizam evidência arqueológica em seus modelos explicativos, ou seja, como informação complementar ou como eixo central da abordagem.

*

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seu império. Sua proposta tem pontos em comum aos de Paul Zanker (1988, p. 4), para quem

[...] es soll hier versucht werden, wenigstens für den Bereich der öffentlichen Gebäude drei historische Strukturen voreinaner abzuhaben: die hellenisierte samnitische Stadt des 2 Jrhs. V. Chr., die Veränderungen nach der Gründung des römischen Kolonie 80 v. Chr. und die neuen Stadbilder des frühen Kaiserzeit.

Zevi (1996, p. 126) interpreta esse estabelecimento romano como um fato fundamental e traumático da história de Pompeia: “[...] che la colonizzazione sillana rapresento um evento profundamente drammatico nella storia della societa pompeiana”. Como arqueólogo formado na tradição clássica italiana e alemã, Zevi vale-se de um quadro de trabalho que equipara ambas as documentações, escrita e a arqueológica, como documentação histórica. Em sua argumentação, utiliza uma ou outra e, inclusive, sobrepõe-nas para fundamentar sua explicação. Por sua vez, os trabalhos de Andrew Wallace-Hadrill sobre a casa pompeiana (1994) tem recebido muita aceitação dentro da comunidade acadêmica. Sua argumentação está basicamente assentada a partir do amplo conhecimento que esse autor possui sobre documentos escritos – incluindo arte pintura, iconografia, etc. – da cultura romana. A informação arqueológica em seus trabalhos é empregada como fonte auxiliar e complementária, ou seja, a fim de apoiar algumas de suas ideias com um correlato material. Conforme ressalta Penélope M. Allison (1995), o uso que subordina a Arqueologia aos dizeres de autores antigos acaba por desvirtuar os dados arqueológicos. Dessa forma, esses são ainda mais complexos do que permitiria supor o modelo neoweberiano da escola de Cambridge. Bettine Gralfs (1988, p. 115) demonstra, a partir dos materiais arqueológicos, como os dados providos por eles terminam por questionar os referidos modelos: “[...] die vorliegende Untersuchung zeigte aber dennoch, dass das pompejanische Metallhandwerk keineswegs bedeutunglos, ‘primitiv’oder ‘unqualifiziert’ war”. Além disso, estudos arqueológicos concretos mostram que a distribuição de artefatos no contexto doméstico em Pompeia não concorda com o que indicam as fontes literárias (BERRY, 1997, p. 185; FOSS, 1996, p. 352).

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De forma geral, em sua interpretação, Wallace Hadrill considera que a maneira de receber os visitantes apresentava um rol fundamental na vida pública romana e que, portanto, o espaço social da casa pompeiana estaria articulado em função das necessidades de suas classes altas e do mundo de relações com os demais. Desse modo, a casa era uma estrutura que regulava a relação com os visitantes. Assim, delineia-se um modelo (Gráfico 1) que relaciona o público e o privado com a profundidade dos ambientes da casa, afirmando que a distância permitida a um visitante de penetrar na vivenda estaria associada à proximidade e à relação que ele mantinha com o amo da casa e ou com sua própria hierarquia social. Essa ideia de Wallace Hadrill é bem sintetizada por Grahame (1997, p. 140): “This means that the house was differentiated according to increasing degrees of intimacy along an axis that ran from de ‘public’ space of exterior to ‘private’ interior space, in the manner of the defensible space paradigm.” Gráfico 1 - Eixos de diferenciação para a interpretação do espaço doméstico em uma casa pompeiana

Grand Public

Private Humble

Fonte: Wallace-Hadrill (1994, p. 11)

O trabalho de Wallace Hadrill é especialmente criticado por Grahame (1997, p. 140-141), que enfatiza a dificuldade de estabelecer a porta principal da vivenda – ponto fundamental no modelo de Wallace Hadrill – e a utilização da evidência arqueológica. Outro pesquisador que tem se destacado é o Prof. Whittaker (1991, p. 303) que, em um conhecido artigo sobre o romano pobre, utiliza evidência material relativa a um edifício pompeiano para desenvolver seu

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argumento sobre o tema: “Puede oírse la desaprobación moral de la pobreza en un grafito pompeyano: ‘odio a los pobres. Si alguien quiere algo por nada es que es tonto. Debería pagar por ello’ (CIL IV 9839b)”. Whittaker adota uma postura recorrente entre os estudiosos de Pompeia e do mundo antigo em geral, no sentido de que dedica pouca atenção à materialidade da evidência. Nesse caso, sua argumentação carece de sentido, se buscarmos o contexto arqueológico da inscrição. Em primeiro lugar, não se trata de um grafite, mas de uma inscrição pintada, titulus pictus, encomendada pelo dono do estabelecimento onde estava inscrita essa legenda. Se formos ao Corpus Inscriptionum Latinarum, onde está publicada a inscrição, poderemos saber que essa legenda estava em uma venda e que o proprietário advertia seus clientes que, sem pagar, não lhes poderia vender. Naturalmente, ele não gostava dos pobres porque, embora não pudessem pagar, não deixavam de pedir. Interessa-nos destacar que Whittaker não considera que uma inscrição seja também uma evidência material. Por isso termina gerando um argumento sem fundamento adequado, uma vez que, como outros estudiosos, desconsidera a evidência material em sua autonomia e especificidade. Próximo à História da Arte, Clive Knigths constrói um enfoque diferente. Esse arquiteto inglês considera que a casa pompeiana é constituída por componentes culturais romanos. Coincidindo com autores, como Parker Pearson e Richards (1994), distingue, em sua estruturação e organização espacial, uma relação com a concepção cosmológica existente na sociedade. Sua postura indica que a arquitetura contém e expressa certos “princípios” de ordem e de classificação que são básicos para o funcionamento da sociedade. Segundo o autor (KNIGTHS, 1994, p. 114): “Essentially, to discuss the house is to discuss, indirectly, the cosmos [...]”. Portanto, a vivenda pompeiana, de acordo com Knigths, estrutura-se a partir de noções relacionadas com a divindade e a espiritualidade. O movimento através delas pode ser caracterizado como de “participação” (participation) e de “passagem” (passage). Embora não exista um modelo único de casa, “no two houses are the same” (1994, p. 119), distingue-se uma série de princípios para além do formal, que se repete em todas elas. A casa em Pompeia é o lugar onde convivem pessoas e deuses (KNIGTHS 1994, p. 133). Esse autor critica as abordagens que separam a arquitetura das pin-

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turas em suas paredes, uma vez que as considera dois elementos intrinsecamente ligados e necessários para poder obter uma compreensão completa. Knigths organiza sua análise a partir do simbólico, das representações cosmológicas do mundo romano, das sensações e das mensagens transmitidas pela arquitetura pompeiana:

In this manner dining room, say, of Pompeian house is never merely a small room with four decorated walls and a door –it becomes a setting of immense richness, fueling and substantiating a participant’s situatedness in the imperial scheme of things, and thus in the cosmic order (1994, p. 137). To enter the room is like breathing in the vapour of meaning that fills it up [...] (1994, p. 140).

Finalmente, gostaríamos de nos referir a uma abordagem recente, notavelmente arqueológica, construída por Mark Grahame (1995, 1997, 1998). Esse arqueólogo da Universidade de Southampton desenvolve um modelo de análise das vivendas pompeianas por meio de um modelo linguístico estruturalista que lhe permite “ler” a casa. Utilizando postulados de Saussure, Barthes e Ricoeur, estabelece uma analogia entre “casa” e “texto”, buscando descobrir as regras subjacentes ao sistema que determina sua estrutura sintática. As construções são vistas como elementos ativos, produtos culturais que interagem dinamicamente com o homem. Em seu trabalho, Grahame (1995) propõe a abordagem da casa como um documento “físico” que pode ser lido. Sob tal perspectiva, o autor sugere um enfoque textual da cultura material, especialmente da arquitetura, propondo a elaboração de um modelo teórico para lê-la. Segundo Grahame, a arquitetura surte efeitos na subjetividade e na percepção dos indivíduos e, por conseguinte, estabelece uma determinada ordem social e torna-se mais fácil se acompanhada de uma ordem espacial. A ordem é reproduzida com maior frequência nas estruturas de caráter público do que nas privadas, propondo um princípio social que guie a construção arquitetônica a qual, entre outros aspectos, contribui para potencializar a diferenciação entre as pessoas.

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Também são importantes suas críticas às investigações sobre Pompeia, já que interpretam a evidência arqueológica a partir da informação escrita. Sua argumentação defende que a maioria dos textos apresenta um elevado grau de generalização e não se curva aos propósitos específicos da Arqueologia. Assim, destaca-se, entre suas críticas, a ausência de um padrão de casas em Pompeia que, apesar do que revelam os documentos, apresenta uma grande heterogeneidade de construções. O trabalho de Grahame evidencia sua condição de arqueólogo, não apenas pela forma com que aborda a evidência material, mas também pela maneira com que estrutura seu discurso científico. O autor utilizase de um raciocínio dedutivo, no qual caminha desde o geral ao particular, do teórico ao metodológico e deste ao factual. Em outras palavras, constitui um modelo bastante fundamentado, facilmente apreendido, buscando aplicá-lo às casas pompeianas. Essa forma de estruturar o trabalho – diferentemente do que costuma existir – permite ao leitor seguir a linha de raciocínio e, ao mesmo tempo, criticá-la.

Abordagens historicistas vs. abordagens arqueológicas

Utilizando uma análise prévia (SENATORE; ZARANKIN, 1996), efetuamos uma comparação entre os casos discutidos, dividindo-os em duas categorias conforme a natureza de sua abordagem: a) perspectivas historicistas; b) perspectivas arqueológicas. A perspectiva historicista abrange aquelas investigações que sustentam sua argumentação central na evidência documental. Os vestígios arqueológicos são adequados aos discursos produzidos a partir dos documentos, ou utilizados de forma passiva dentro dessas premissas.

Na perspectiva historicista, considera-se que as evidências arqueológicas e documentais estão relacionadas, sendo que cada uma depende da versão da outra (Leone y Potter 1988). Ou seja, como um corpus de dados homogêneos. No entanto, os problemas a serem investigados se definem numa escala histórica, determinados pela resolução da evidência documental. A análise das fontes é realizada a priori do trabalho arqueológico, proporcionando uma informação relevante sobre os pro-

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blemas definidos no projeto. Em um segundo momento, a Arqueologia é utilizada para complementar a informação originada pela história. De forma geral, a evidência arqueológica permite a evidência documental, sendo que os dados gerados a partir de sua análise não são significativos para os objetivos da pesquisa. Neste ponto de vista teórico, a Arqueologia funciona como complemento e sua contribuição ao conhecimento do passado é limitada e dependente da evidência histórica (SENATORE; ZARANKIN, 1996, p. 116).

Na perspectiva arqueológica, considera-se o documento histórico e a evidência arqueológica como um conjunto de dados independentes e com distintas informações. A partir dessa perspectiva, cada corpus possui relevância própria e, com uma integração adequada, é possível alcançar uma dimensão mais profunda e complexa dos problemas estudados.

As evidências documentais e arqueológicas são consideradas corpus de dados distintos, com estatutos epistemológicos independentes. Dessa forma, a qualidade da informação oferecida é determinada pela natureza de cada corpus. A grande diferença nestas pesquisas está numa escala de análise apurada pela resolução do registro arqueológico. As problemáticas de pesquisa deixam de ser os fatos para ser os processos e, como as hipóteses podem ser criadas a partir de fontes diversas, elas são trabalhadas sob a perspectiva da evidência material como base empírica. A informação histórica cumpre um papel muito específico neste tipo de pesquisa. Em primeiro lugar, é revista como parte dos antecedentes do tema a ser abordado. Isso permite reconhecer e definir o contexto histórico geral no qual se insere o problema arqueológico [...]. Nesse sentido, as escalas analíticas devem contemplar que os enunciados possam ser abordados arqueologicamente (SENATORE; ZARANKIN, 1996, p. 118).

É interessante observar que praticamente todos os autores trabalham a partir do primeiro enfoque, à exceção de Grahame, que desenvolve uma concepção notoriamente arqueológica. No entanto, segundo nossa compreensão, esse autor assume uma postura bastante restrita que acaba limitando o potencial da abordagem proposta.2

2 Apesar de considerar os aportes de Grahame como inovadores, uma leitura crítica de seu trabalho nos per-

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Outro ponto interessante de análise centra-se na concepção – explícita ou implícita – de cultural material empregada pelos trabalhos. Em geral, salvo Grahame e, em certa medida, Knigths, a cultura material é considerada – na especificidade desse caso, a arquitetura – um elemento passivo. Tal perspectiva pressupõe que o mundo material seja um reflexo de outros aspectos sociais – como se fosse um vestígio fossilizado (BINFORD, 1985) –, negando-lhe um papel ativo na produção de significados sociais (HODDER, 1982, 1987).

Linhas alternativas de trabalho

A arquitetura, como objeto de estudos arqueológicos, deixou de ser considerada apenas como um artifício para distinguir culturas, técnicas de construção ou para delimitar áreas de atividades diferenciais, entre outras, para ser um meio de estudo válido que alcance as dimensões sociais superestruturais, tais como seus níveis simbólicos e ideológicos. Nesse sentido, novos enfoques que aprofundam algumas das linhas traçadas por Grahame sobre Pompeia, mais desenvolvidos por autores que trabalham o campo da Arqueologia Histórica, podem ser aplicados com êxito,3 por exemplo: Glassie (1975), Deetz (1977), Leone (1977, 1984), McGuire e Paynter (1991), Johnson (1991, 1996), Blanton (1994), entre outros. O objetivo dessas novas abordagens sob perspectivas arqueoló-

mite chamar a atenção sobre alguns pontos da pesquisa que podem ser questionados. Em primeiro lugar, ele desenvolve uma abordagem estruturalista para analisar a vivenda pompeiana que dificulta a compreensão dos processos de mudança e de transformação, ou o trabalho com variáveis temporais e históricas. Além disso, utiliza um conceito de arquitetura bastante restrito, o qual se limita à arquitetura doméstica – e, a partir dela, aos aspectos funcionais –, deixando de lado uma análise mais profunda e abrangente da produção arquitetônica. Por exemplo, o leitor poderia se perguntar o que acontece às demais variáveis que também poderiam ser relevantes, as quais ele não aborda – sem justificativa – como: decoração, tamanhos dos cômodos, morfologias, materiais e tecnologias construtivas, entre outras. Tudo isso faz com que, por alguns momentos, sua explicação sobre a funcionalidade da arquitetura se torne mono causal e se restrinja a condicionar o encontro e a relação dos espaços do público e do privado. 3 Atualmente, existe uma discussão sobre a definição da própria Arqueologia Histórica. O termo surgiu nos Estados Unidos, na década de 60, a fim de designar os estudos que envolvessem o período posterior à chegada do europeu no século XVI. Na Europa, outros critérios são utilizados para referir-se à Arqueologia Histórica, principalmente nos estudos de diferentes civilizações (FUNARI, 1999). Consideramos neste artigo que a chamada Arqueologia Clássica (do mundo greco-romano) pode ser incluída como parte de uma Arqueologia Histórica (ANDRÉN, 1998).

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gicas é compreender os princípios constitutivos da paisagem humana e sua interação com a sociedade. Desse modo, partem do pressuposto de que os objetos produzidos e utilizados pelo homem são ativos, dinâmicos, portadores e produtores de significados. A arquitetura é considerada como parte fundamental dessa paisagem.

A arquitetura como tecnologia do poder: organização espacial e ideológica

Atualmente e, especialmente, nas correntes pós-processuais, a análise da arquitetura apresenta-se altamente produtiva no alcance de dimensões simbólicas e ideológicas (GLASSIE, 1875; LEONE, 1982; HODDER, 1984, 1994; SAMSON, 1990; PARKER PEARSON; RICHARDS, 1994; JOHNSON, 1996; ZARANKIN, 1999). � É notável que a organização do espaço e a arquitetura apresentam mais que um propósito “prático” ou “ideológico”, conforme Parker Pearson e Richards (1994). A construção do meio é resultado de um processo de dominação e de resistência. De dentro do poder são criadas políticas de construção e de manipulação da paisagem segundo seus próprios interesses (GIDDENS, 1979). Entretanto, as pessoas não são passivas e tampouco aceitam de forma submissa os desígnios impostos hierarquicamente. Pelo contrário, há resistências conscientes e inconscientes que geralmente estão integradas às práticas cotidianas. Conforme destaca De Certeau (1980), o “consumo” é sempre ativo e criativo e acaba gerando artimanhas que discutem a presença do poder. Além do mais, é necessário considerar que nunca se realiza uma substituição total da paisagem urbana concomitante às mudanças políticas ou ideológicas dominantes. Ao contrário, dentro de uma cidade, convivem variedades de construções que surgiram ao longo do tempo. A oposição entre novas e velhas formas cria tensões e dinâmicas contínuas, parcamente controladas por aqueles que fundam as paisagens (MILLER, 1984). Assim, cada elemento novo adentra em um diálogo que reinterpreta o passado em termos de um novo ideal. Por exemplo, em relação ao estudo das classes alijadas no passado, Stephen L. Dyson (1995), arqueólogo clássico americano, reconhece que a Arqueologia Clássica não se dedicou aos pobres. É interessante

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notar como os lugares dos escravos (slave quarters) podem praticamente desaparecer do registro arqueológico romano (GEORGE, 1997, p. 23). Conforme ressalta Ross Samson (1990, p. 178), “[…] archaeologists have long ignored the labour force”. Ou, como alega Annapaola Zaccaria Ruggiu (1995, p. 345), “[...] non c’`e piacere nello stare in casa del povero”, o que talvez possa explicar a pouca atenção ao humilde. No entanto, novas abordagens que estudam a criação da paisagem cultural como um processo complexo, do qual diferentes grupos participam, permitem adquirirmos leituras alternativas do passado. A arquitetura, como um dos componentes básicos da paisagem humana, pode ser entendida como uma “tecnologia do poder” (FOUCAULT, 1976; GRAHAME, 1995) destinada a gerenciar condutas pessoais que favoreçam o processo de crescimento e reprodução dos sistemas existentes (ECO, 1968; FOUCAULT, 1976; MARKUS, 1993).

Semiótica e sociossemiótica do espaço urbano

Vários pesquisadores defendem a ideia de que a cultura material tem um papel ativo na geração de significados e de mensagens ideológicas (MILLER, 1984; LEONE; POTTER, 1988; MCGUIRE; PAYNTER, 1991). Dentro dessa perspectiva, é importante o desenvolvimento de abordagens da cultura material, desde a linguística até a semiótica (GOTTDIENER, 1995; FUNARI, 1998; THOMAS, 1998). Nesse ínterim, Dominic Perring (1991, p. 286) ressalta que os estudos sobre Arqueologia do mundo moderno, conforme o embasamento de Leone, podem ser úteis para compreender a vivenda romana (SCHUYLER, 1970, p. 84).

La cultura material podría ser considerada como un sistema de señales en código, que constituye su propia lengua material ligada a producción y consumo...puede considerase a la cultura material como un discurso material estructurado y silencioso, ligado a prácticas sociales y estrategias de poder, interés e ideología (FUNARI, 1998, p. 169).

Lagopoulos (1985) discute profundamente tal relação ao colocar ênfase nos discursos expressos pela cidade. O autor divide os enfoques que trabalham o espaço urbano a partir da semiótica em dois principais

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grupos – conforme seu objeto epistemológico: a) estudos do espaço semiótico (que compreende o estudo dos discursos relacionados com a produção do espaço, o estudo da produção semiótica do espaço e o estudo do consumo semiótico do espaço); b) estudos do espaço material (neste caso, o objeto de estudo é o “material” e não a semiótica do espaço). Acreditamos que a chave esteja na conjugação dessas duas posições. Desse modo, o “material” pode ser visto como “signos-veículos”, pelos quais se comunicam mensagens relacionadas com as manobras e a circulação do poder. A arquitetura, sob essa perspectiva, pode ser analisada como portadora de significados “não verbais” (FLETCHER, 1989; MONKS, 1991; MARKUS, 1993), expressando a semiótica desses significados não verbais, produtos da manipulação da cultura material, em termos de frequências, intensidades, distâncias e estruturas físicas, não linearmente, como a gramática verbal (MILLER, 1984). Por meio de diferentes elementos, formais ou implícitos, um edifício pode ser “lido” (IGLESIA, 1991, p. 7). Na verdade, isso é algo que fazemos constantemente. Por exemplo, partindo de perspectiva funcional, podemos identificar e distinguir uma igreja, um hospital, uma casa ou um mercado. Existem, inclusive, outros indicativos – talvez não tão fáceis de observar – referentes a aspectos de caráter abstrato que outorgam sentido à estrutura. Portanto, corroborando o pensamento de Funari (1998), o desafio é descobrir o que está oculto, tanto no observável como no não observável.

Considerações finais

A cultura material pode ser usada para transmitir mensagens de forma mais ativa (AUSTIN; THOMAS, 1986). No entanto, ela não faz sentido por si só, adquirindo seu valor exclusivamente mediante um sistema cultural. Assim, a casa só pode ser compreendida e explicada dentro de seu contexto histórico. Consideramos que as correntes que trabalhem com abordagens arqueológicas e explorem essas novas ferramentas teóricas, a fim de discutir criticamente a relação entre as pessoas e seu meio físico, estejam em melhores condições para alcançar níveis mais profun-

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dos de conhecimento. Seguindo McGuire e Schiffer (1983), para compreender a arquitetura, é necessário considerar tanto os processos do projeto (design process) quanto os fatores causais (casual factors) inerentes a esses processos, ao passo em que juntos determinam o projeto. Esse potencial também está presente nas pesquisas que engendram dimensões linguísticas, como a sociossemiótica e as teorias da comunicação, em busca de mensagens “silenciosas” ou de apreender a arquitetura como um tipo de comunicação “não verbal” (FLETCHER, 1989; MONKS, 1991). Em termos gerais, a proposta de um discurso especificamente arqueológico ajuda a evitar os perigos de abordagens não adequadas no trabalho com cultura material. A materialidade da evidência arqueológica implica-nos a impossibilidade de tentar ingenuamente adequá-la às informações das fontes textuais antigas, pois estaríamos, assim, distorcendo dados materiais em prol de discursos surgidos de fontes escritas. Pelo contrário, a cultura material se constitui como um elemento central de ação no mundo. As vivendas pompeianas, com seus múltiplos significados e formas, permitem muito mais do que confirmar os dizeres de autores antigos ou, ainda, contrastar sua materialidade a partir de critérios explicitados nos documentos. Inúmeros pesquisadores ressaltam que a falta de diálogo entre arqueólogos e historiadores classicistas, dedicados apenas às fontes escritas, é prejudicial para uma compreensão maior da sociedade antiga (LAURENCE, 1998, p. 8-9; STOREY 1999). Resumindo, o desafio para os pesquisadores é desenvolver novas abordagens, a partir da evidência material, que permitam identificar, entender e explicar as estruturas ideológicas que regem a construção da paisagem cultural humana em Pompeia.

Agradecimentos

Agradecemos a David Austin, Mark Grahame, Ray Laurence, Mark Leone, Collin Richards, Michael Shanks, Glenn Storey. Um dos autores pôde, como professor convidado da Universidad de Barcelona, consultar obras e discutir aspectos aqui tratados com Antonio Aguilera, José Remesal e Victor Revilla. Uma versão deste texto foi apresentada em Araraquara, Brasil, na Reunião da Sociedade Brasileira de Estudos

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A região sul da Lusitânia: uma percepção arqueológica da mudança

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Norma Musco Mendes

radicionalmente, é datado do século III o período inicial da crise que resultou na destruição das elites, da cultura clássica e, consequentemente, da “decadência” do Império Romano. Em nossa tese de doutoramento (Mendes, 2002), buscamos matizar esse tipo de interpretação. Optamos pela aplicação dos axiomas gerais do modelo centro/periferia adaptados às condições específicas das sociedades antigas e do modelo de colapso de sociedades complexas, construído pelo arqueólogo J. Tainter, como recursos teórico-metodológicos. O modelo de centro/periferia1 foi utilizado com o objetivo de explicitar a criação de uma dinâmica de dependência econômica, social, política e cultural que caracterizou o funcionamento e a reprodução do sistema de domínio imperial. Por outro lado, o raciocínio lógico-modelar construído por J. Tainter nos possibilitou elaborar argumentos explicativos que acomodassem a interveniência de fatores que provocaram a queda do nível de complexidade social que sustentava o Império Romano do Ocidente. Deve ser ressaltado que o conceito de colapso operacionalizado por J. Tainter não significa uma catástrofe, mas um momento de ajustamento de inovações e permanências, possibilitando a formação de

1 As análises sobre a adaptação ds axiomas gerais do modelo de centro e periferia de I. Wallerstein para aplicação ao mundo antigo podem ser encontradas, principalmente, nas seguintes obras: EKHOLM, K; FRIEDMAN, J. “Capital” imperialism and exploitation in ancient world systems. In: FRANK, A. G.; GILLS,B. K. The world system: five hundred years or five thousand? Routledge: London, 1993. p. 59-80; ROWLANDS, M. Centre and periphery: a review of a concept. In: ROWLANDS, M. et al. Centre and periphery in the ancient world. Cambridge: University Press, 1987. Um resumo pode ser encontrado em MENDE, N. MUSCO. Centralização e integração na experiência imperialista romana: uma reflexão. Phoînix, Rio de Janeiro, v. 12, p. 321-338.

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um novo tipo de ordenamento social. O corpus documental da referida tese se limitou à documentação textual, cuja interpretação nos levou a observar, durante o Baixo Império, situações de “crise aguda” do sistema de domínio imperial romano. Pretendemos demonstrar que os principais agentes desse processo foram a dinâmica sociopolítica relacionada com o desequilíbrio entre os encargos políticos que pesavam sobre o governo e sua capacidade para manter a integração social. Ou seja, pelo aumento dos encargos sobre o governo e a redução de suas alternativas para fazer frente a eles, bem como por benefícios apreciáveis para a sociedade, o sistema imperial romano atingiu seus limites críticos, pois as formas tradicionais de gerência de conflitos, viabilizada por crescentes investimentos na ampliação do aparato político, administrativo e militar, não foram acompanhadas por um crescimento paralelo dos sistemas participacional e econômico, que se mostrasse compatível com a ampliação dos investimentos. Essa relação assimétrica entre os sistemas é comprovada pela observação da ausência de surgimento de novos mecanismos econômicos de produção que pudessem afastar o fenômeno da raridade e manter em funcionamento o sistema de economia de configuração internacional, o qual garantia as relações de interdependência entre o centro, as províncias e as periferias. Por outro lado, esgota-se a capacidade de manutenção dos níveis consideráveis de integração imperial, do tipo de relações sociopolíticas que nos aproximam do conceito de “negociação colonial”.2 Configurava-se, assim, a descaracterização das condições de funcionamento do centro hegemônico e da posição das periferias e das áreas externas, diante da dissolução das condições que reproduziam e estendiam a desigualdade social entre as partes que compunham o sistema intraimperial romano. Tais argumentos possibilitaram a validação das nossas hipóteses de trabalho e permitiriam afirmar que o Império Romano, por volta do século III, perdera a sua forma unitária e mundial, entrando numa situação de colapso, o qual significou para sempre o desligamento das duas partes que o compunham: o Ocidente e o Oriente e a formação dos reinos germânicos. A investigação histórica realizada para a elaboração da mencionada 2 O conceito pressupõe que “[...] se devem levar em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida; [para] que se forme certo equilíbrio de compromisso” (GRAMSCI, 1979, p. 33).

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tese de doutoramento nos levou a constatar que qualquer análise sobre o Império Romano deve considerar as condições específicas de cada uma das províncias. Logo, a fim de ampliar e aprofundar os nossos argumentos explicativos sobre o processo de desagregação do Império Romano, sentimos necessidade de ampliar o nosso corpus documental e limitar o campo de investigação para um estudo de caso regional. Nesse sentido, recorremos ao diálogo entre a História e a Arqueologia e elaboramos o subprojeto de pesquisa intitulado a “Descaracterização do sistema econômico imperial romano, um estudo de caso: o litoral sul da Lusitânia”. 3 Ressaltamos que entendemos o registro arqueológico como uma evidência da praxis dos processos de interação social entre a população nativa e os romanos. Ou melhor, permite-nos desvelar como os homens internalizaram o impacto da conquista e passaram a apreender as novas estruturas do mundo social (JONES, 1997). Dessa forma, a cultura material é operacionalizada como um produto da adaptação ecológica dos homens que interage com os sistemas culturais e as formas históricas das relações sociais. Portanto, o diálogo entre a História e a Arqueologia representa o cotejamento de dois tipos de discursos repletos de significados, possibilitando a construção de novas problemáticas e a reavaliação das tradicionais matrizes historiográficas. Essa atividade de pesquisa vem recebendo o auxílio do CNPq, por meio da concessão de bolsa de produtividade em pesquisa, e torna-se possível diante do intercâmbio mantido com os especialistas portugueses,4 principalmente da Universidade de Coimbra que integram o Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra, e Porto (CEAUCP) para o qual fomos recentemente convidado a ingressar, como membro colaborador. Seguimos a proposta pedagógica do Programa de Pós-Graduação em História Comparada e construímos um conjunto de problemas relacionados 3 Este subprojeto integra o projeto coletivo de pesquisa que vimos coordenando no LHIA/IFCS/UFRJ, intitulado “Império: teoria e prática imperialista romana”. A problemática central é observar a diversidade, a pluralidade e a singularidade dos processos ou práticas imperiais para se investigar como e por que os Impérios são construídos, se expandem, se legitimam, se consolidam e se desagregam. O nosso campo de configurações se limita ao Império Romano. Nosso objetivo é contribuir para o debate comparativo entre as similaridades e as diferenças das experiências imperialistas históricas, afastando-nos dos recortes espaciais e temporais tradicionais. 4 Cabe uma menção especial aos professores Dr. José d´Encarnação, Dra. Conceição Lopes (Universidade de Coimbra), Dr. João Pedro Bernardes (Universidade do Algarve), Dr. Carlos Fabião (Universidade de Lisboa) e Dr. Luís Fraga da Silva.

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com as variáveis específicas de formação, reprodução e colapso do Império Romano, os quais deram origem a vários subprojetos de pesquisa no nível de graduação e de pós-graduação. O diálogo comparativo entre a equipe de pesquisadores sobre as conclusões obtidas pela realização das pesquisas individuais tem sido apresentado em distintos eventos científicos e subsidiado a elaboração de artigos. Esse evento conta com a participação de duas mestrandas do Programa de Pós-Graduação em História Comparada que integram o referido projeto coletivo de pesquisa, a saber: “A construção da paisagem imperial em Agrigento” e “Uma cidade para o Império Romano: reflexões sobre o espaço urbano da colônia Augusta Emerita”, comunicações apresentadas, respectivamente, por Glauce de Souza Luz e Airan dos Santos Borges. Nesse texto, limitar-nos-emos às evidências que nos levaram a problematizar o comportamento da região do litoral algarvio, especificamente, do território da civitas de Ossonoba (Faro), durante os séculos III e IV, que indicam a permanência da vitalidade e prosperidade econômicas, contrariando as apreciações generalizadoras de crise do dominium mundi. Ossonoba foi a denominação de um centro populacional existente no atual litoral algarvio, desde a Pré-História, voltado para as atividades relacionadas com o circuito comercial do Golfo Gaditano. Estava localizada num território caracterizado por um ecossistema de múltiplos recursos econômicos: planície fértil e uma ria com abundante e ricas fauna e floras marinhas. A cidade cresce numa pequena península, rodeada pela ria, atualmente denominada de Ria Formosa, sempre bem protegida pelos bancos de areia da costa e pelo emaranhado do sapal que dificultava, mas não impedia o acesso ao mar. No início do domínio romano, era um oppidum estipendiarium 5 que ascendeu à condição de municipium iuris Latini 6com Vespasiano. O crescimento urbanístico ocorreu em direção à planície, ao longo dos séculos I ao IV, seguiu a tendência das outras cidades da Lusitânia e começou a ser revestida de monumentalidade: muralhas, fórum, cardo, 5 Pagavam a totalidade dos impostos diretos e permanentes (sobre pessoas – per capta, sobre a produção da terra – decumana ou vicesima; sobre a exploração das minas – metalla) e os indiretos (alfandegários – portoria). 6 Concessão da cidadania romana incompleta, quer dizer, direitos civis de habeas corpus, ou direitos civis àqueles que ocupassem as magistraturas locais: pertencer ao Senado local (comitia), ocupar as funções dos dois magistrados superiores colegiados (duumviri) e os correspondentes colégios sacerdotais (pontífices e flâmines). Estes formavam a decurionum ordo.

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decumanos, mosaicos, cetairas,7 necropólis e, possivelmente, terma e templo (vide planta de Ossonoba).8 Foi selecionada como capital de civitas, talvez devido à importância econômica representada pelo incremento da exploração dos recursos marinhos e da navegação. Essa afirmação é testemunhada pelo registro arqueológico que demonstra o desenvolvimento urbanístico dessa cidade, mas também pelo desenvolvimento de espaços de produção relacionados com a fabricação e o transporte dos preparados de peixe; pelos vestígios de importações e pelas séries monetárias, cuja iconografia representa a importância das atividades pesqueiras e da navegação. Durante todo o período romano, Ossonoba manteve a orientação econômica tradicional. Estava inserida na atividade comercial própria do litoral algarvio, caracterizada pela navegação de cabotagem e com a prática do transbordo de mercadorias para locais de trânsito, principalmente, os portos da Bética. Por meio desses portos, os produtos lusitanos (minérios e gêneros alimentícios) contribuíram para o abastecimento dos exércitos fronteiriços, assim como de outras regiões do Império Romano, por exemplo, a Itália (MANTAS, 1990, p. 200; MANTAS, 1993, p. 530; MANTAS, 1999, p. 153; REMESAL, 2002, p. 77). Constatamos, assim, o desenvolvimento do comércio local, regional e interprovincial. A inserção da Lusitânia no “sistema de economia imperial” (SCHIAVONE, 2005, p. 100 e ss.), 9 durante o Alto Império, foi marcada pela sua posição estratégica para o desenvolvimento do comércio marítimo, não apenas para as regiões banhadas pelo Mar Mediterrâneo, mas também em direção ao Oceano Atlântico, após as conquistas da Britânia e das Germânias (Mapa 1). 7 Grandes cubas revestidas com argamassa de cal hidráulica (mistura de cal, água e areia) impermeável, no interior das quais se misturavam sangue, víceras de peixes, sal e os próprios peixes para se obter o garum (condimento, molho). 8 Essa planta de reconstituição da forma urbana de Ossonoba foi elaborada pelo Dr. Luis Fraga, cujos valiosos estudos arqueológicos sobre o litoral sul da atual região do Algarve, durante o domínio romano, podem ser encontrados no site www.arqueotavira.com. A planta nos foi gentilmente enviada e cedida para ser publicada neste artigo. 9 Com esse conceito, o autor afirma que, ao lado de uma economia agrário-mercantil de base escravista que envolvia amplos circuitos comerciais pelas regiões mediterrâneas, sustentada por uma vigorosa circulação monetária e dependente da “configuração mundial” proporcionada pelo domínio romano, existia, mesmo nas regiões mais significativas, uma economia natural ou de “subsistência” voltada para o autoconsumo ou para o comércio local. Essa conformação se aproxima daquela descrita pelos teóricos como “economia dual”.

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Mapa 1 – Ossonoba romana

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Dessa forma, as evidências materiais da região do Algarve nos permitem validar os modelos teóricos em aplicação, no sentido de que a manutenção e reprodução do Império Romano dependiam da interdependência socioeconômica e política entre as regiões que compunham o sistema mundial sob a hegemonia de Roma. Por outro lado, os vestígios arqueológicos dessa região nos apontam as contradições do sistema de domínio imperial. Referimo-nos ao fato de que as investigações registram um período de crise na produção anfórica e de preparados de peixe na Lusitânia, datado nos séculos II e III. Possivelmente, essa situação estava interligada à invasão dos mauri e aos conflitos entre Sétimo Severo e seus opositores da província da Bética, gerando o enfraquecimento das atividades comerciais realizadas pela cidade de Cádis.10 De acordo com Kulikowski (2004) e Arce (2009), após a invasão dos francos, em 260, teve início, nas Hispanias, um século de paz e prosperidade, não havendo nada mais na documentação textual que permita dizer o contrário. Com Diocleciano, a Lusitânia passou a integrar a dioecesis hispaniarum que compreendia seis províncias, dentre as quais a Mauritânia Tingitana.

Inscrições datadas entre os anos de 340/360 atestam que, possivelmente, a Bética e a Lusitânia foram promovidas para a condição de províncias consulares. Essa época também é marcada pelo desenvolvimento econômico e cultural das cidades da Lusitânia, principalmente de Augusta Emerita que se tornou a residência do vicarius hispaniarum (ARCE, 2009, p. 51). 11

Existem indícios da inserção de Ossonoba nessa conjuntura. Carlos Fabião (1997a, p. 56) afirma que a reorganização administrativa do Baixo Império parece ter escolhido a África como o território para os abastecimentos institucionais, pois as ânforas africanas, transportando vários produtos, inclusive os preparados de peixe, tornaram-se dominantes no registro arqueológico de Roma e dos núcleos populacionais localizados nas fronteiras germânicas. Isso deve ter diminuído a procura

10 Durante o reinado de Marco Aurélio, tribos provenientes da Mauritânia atravessaram o Estreito de Gibraltar e se dirigiram para a Bética. Ao longo da guerra civil que sucedeu o assassinato de Cômodo, em 192, a região se uniu a Clódio Albino e, consequentemente, sofreu a vingança de Sétimo Severo. 11 Esse momento de promoção coincide com a vitória de Constancio II sobre Magnencio e com o seu posicionamento político em obter alianças com os membros da aristocracia pagã existentes nessas províncias.

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institucional pelos artigos peninsulares e, somado ao comprometimento dos circuitos comerciais que interligavam as áreas mediterrâneas, talvez tenha aberto novos horizontes para um comércio orientado para os mercados locais e regionais. Essa conjuntura pode ter possibilitado para Ossonoba o fim da tutela comercial exercida pela província da Bética, a criação de novas redes e a ampliação da interação comercial e cultural com o Norte da África. Ademais, diante do declínio iniciado no século II da cidade de Balsa (Tavira),12 Ossonoba tornou-se um centro estratégico de controle das rotas comerciais entre o Mar Mediterrâneo e o Atlântico Norte (SILVA, 2009, p. 21). As evidências arqueológicas sugerem que podemos inserir o recrudescimento das construções urbanas de Ossonoba nesse contexto. Dos séculos III e IV é datado o desenvolvimento de espaços produtivos urbanos e rurais, tais como: a remodelação de suntuosas villae romanas nos arredores da cidade (Milreu, Loulé Velho, Cerro da Vila e Marim Romano) e a multiplicação dos centros oleiros, cuja produção perdurou até o século V (Martinhal, São João da Venda, Torre d´ Aires, Quinta do Lago, na região de Loulé) (MORAIS; FABIÃO, 2005, p. 127). A ampliação dos centros oleiros mencionados estava relacionada com a produção de ânforas para os produtos piscícolas e para o acondicionamento do vinho e do azeite. Esse aumento da produção de ânforas parece, também, corresponder a uma liberação do comércio que permitiu a entrada direta, nos circuitos comerciais marítimos, de produtos que anteriormente eram consumidos no local ou canalizados pelos grandes armadores e diffusores, espécie de corretores entre os produtores e os comerciantes (MANTAS, 1997, p. 303; REMESAL, 2002, p. 77). Possivelmente, tais mudanças foram acompanhadas pela emancipação da produção algarvia de recursos marinhos da tutela da província da Bética e podem ser contextualizadas nos distúrbios causados pelas invasões dos mauri e conflitos da época de Sétimo Severo, acima mencionamos. A importância do comércio nos séculos III e IV é atestada pela decoração da schola da corporação profissional dos navicularii com o Mosaico do Oceano, datado de fins do século II e III d.C., que marca em Ossonoba o desenvolvimento do comércio de exportação do vinho, do azeite e,

12 Balsa foi uma cidade que apresentou grande desenvolvimento urbanístico e comercial no Algarve, ao longo do Alto Império. O seu declínio foi um processo complexo ligado à interveniência de uma pluralidade de fatores econômicos, políticos, fiscais, demográficos, cuja análise pode ser encontrada em: SILVA, L. F. da. Balsa, cidade perdida. Tavira, 2007.

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principalmente, do garum, além de propiciar uma maior interação com o Norte da África. O mosaico (Figura 1) apresenta um formato retangular nas seguintes proporções: 9,40m x 3,40m. O motivo da decoração é de origem africana e de exaltação das atividades econômicas relacionadas com o mar. Figura 1: A rota do mosaico romano: o sul da Hispânia (Andalucia e Algarve)

Fonte: A rota do mosaico romano. O sul da Hispânia (Andalucia e Algarve). Universidade do Algarve, 2008, p.77

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No centro do mosaico, encontra-se o medalhão com a representação do Oceano, figurado como um personagem com longas barbas e cabelos, brotando desses últimos patas de caranguejos. Esse painel central é enquadrado por quatro figuras, simbolizando os principais ventos. Somente estão conservados os ventos da parte superior do painel: à direita, a imagem identificada como Bóreas, o vento norte e, à esquerda, a imagem juvenil, com maxilar forte e rosto redondo é identificada com Zéfiro, cujo sopro vem do oeste, na primavera. O restante do mosaico é decorado com motivos vegetais bastante variados, nas cores ocre, rosa e negro.13 A localização do edifício a que pertenceu o mosaico nas proximidades do litoral e de um conjunto de cetárias afastado do centro monumental da cidade, que corresponde a uma área “industrial”, reforçam a hipótese de o edifício ter sido uma escola de armadores locais. A própria datação do mosaico coincide com a nova dinâmica dos portos lusitanos em direção não mais à Bética, mas ao Atlântico, Oriente e Norte da África (MENDES, 2006, p. 246). Foi ofertado à população da cidade por quatro magistri, conforme prova a inscrição inserida no próprio mosaico, cuja transcrição é a seguinte: “Caio Calpúrnio e Gaio Vibio Quintiliano e Lúcio Átio (?) e Marco Vérrio Gémino (mandaram fazer) e deram o solo e as tesselas” (ENCARNAÇÃO, 1984). Ossonoba, durante o IV século, converteu-se num importante mercado para as terras circundantes, como fica atestado pelo sítio arqueológico da Villa de Milreu. A 7 km do centro urbano de Ossonoba, encontra-se a Villa de Milreu, localizada próximo ao Rio Seco e a uma estrada que seguia em direção à Pax Julia (Beja), capital do conventus Pacensis. Os vestígios arqueológicos comprovam que o local foi ocupado desde o final da Idade do Bronze. As construções de tipo romano datam do início do século I d.C. e sofreram importantes reformas até o século IV, conforme provam a superposição de pavimentos de mosaicos e a ampliação da residência. Uma villa rústica era a unidade romana básica de exploração agro13 O texto de Lancha, J. La Mosaique d´Ocean découverte a Faro (Algarve). In: Conimbriga, 24, Universidade de Coimbra, 1985, p. 151-175 e A Rota do Mosaico Romano, o sul da Hispânia (Andaluzia e Algarve). Departamento de História, Arqueologia e Patrimônio da Universidade do Algarve, 2008, p. 75ss) apresentam uma pormenorizada descrição do mosaico.

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pastoril constituída por dois elementos indissociáveis: conjunto de edifícios habitacionais, de armazenamento, transformação e estábulos e uma propriedade fundiária contínua ou descontínua, sendo a evidência material mais significativa de um modo de exploração dos recursos agrícolas (LOPES, 2002, p. 138). As villae, conforme afirma Vasco Gil Mantas (1999, p. 145), estão particularmente bem representadas na costa algarvia. Localizam-se junto à costa ou muito perto dela. São denominadas como marítimas ou costeiras e nos reportam a um problema complexo de definição. Carlos Fabião (1994, p. 248 e 1997b, p. 340) sugere, como critério, selecionar os sítios nos quais foram encontrados vestígios de construções monumentais com características urbanas, localizados em áreas férteis para a agricultura. A Villa de Milreu se encaixa plenamente nessa definição, pois se pode afirmar, até o momento, que, em Milreu, foram descobertos os mais monumentais vestígios romanos do Algarve e testemunhos de atividades econômicas voltadas para a exportação de produtos agrícolas, conforme procuraremos demonstrar pela resumida análise de seu complexo arquitetônico e de sua decoração.14 Milreu, seguindo os parâmetros próprios de uma villa, é composta por uma pars urbana, pars rústica (fructuaria) e edifícios funerários. A planta da Villa de Milreu (Mapa 2) nos permite identificar que a parte urbana foi construída ao redor de um peristylum (2).15 Em formato retangular, o peristylum teve uma fase anterior ao século III e, no IV século, foi cercado por colunas de mármore e forrado com mosaicos de alta qualidade de fabricação e com decoração variada (painéis com decoração geométrica, franjas, semicírculos e representação de um ambiente aquático com 22 espécies de seres marinhos (3). Em direção ao lado leste, através de escadas, o peristylum dava acesso ao atrium16 (4), localizado no centro das dependências íntimas da casa: cubículos e refeitório (5, 6, 7). 14 Para uma análise mais detalhada, indicamos a obra Roteiros da arqueologia portuguesa. Milreu ruínas. Instituto Português do Patrimônio Arquitetônico e HAUSCHILD, T. Milreu, Estói (Faro). Villa Romana e Santuário. In: MINISTÉRIO DA CULTURA. 90 séculos entre a Serra e o Mar. Lisboa: Instituto Português do Patrimônio Arquitetônico, 1997. p. 407-414. 15 Pátio rodeado por pórtico constituindo o espaço social da casa. Foram feitas muitas obras até o século IV. 16 Um grande pátio com fonte que correspondia a uma parte íntima da habitação.

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Mapa 2 – Planta da Villa de Milreu

Do lado oposto, encontram-se um conjunto de cômodos que devem ter sido quartos de hóspedes (8 e 9), seguidos por uma grande sala que é

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identificada com o triclinium (10).17 Todos esses espaços foram decorados com mosaicos e estátuas. O peristylum dava acesso, a sudoeste, ao apodyterium 18 (11) e à área das termas (14): frigidarium, 19 decorado com mosaicos predominantemente com motivos marinhos (12 e 14); tepidarium,20 caldarium,21 com instalações de hypocaustum (13) e sistema de calefação e de esgoto (15). A parte rústica indica que a propriedade estava voltada para a produção do azeite e do vinho, conforme comprovam a existência das cellaria � (16), dos vestígios de contrapesos correspondentes a cinco prensas, de lagares e tanques para o armazenamento do vinho (17, 18, 19). Esses achados permitem afirmar que a produção do azeite e do vinho era para exportação. Na planta de Milreu, publicada por Estácio da Veiga, em 1877, consta uma série de pequenos compartimentos localizados próximos à parte urbana e dispostos de acordo com as casamatas dos soldados nos acampamentos militares romanos, os quais eram habitados pela familia rústica (escravos e colonos livres). Atualmente, estão cobertos pelo grande laranjal de propriedade privada existente nos fundos do sítio arqueológico de Milreu que impede a realização de novos projetos de escavação. Nesse mesmo laranjal, encontram-se os vestígios dos edifícios sepulcrais e as necrópoles. Próximo à entrada da Villa, está localizado o santuário das águas (20). Um templo construído no século IV, com elementos arquitetônicos típicos dos santuários romano-célticos da Germânia e da Britânia, em estilo ambulatório (um edifício de mais de dez metros de altura, rodeado de colunas de mármore com capitéis coríntios, formando uma cella elevada com abóbodas semicirculares, disposta sobre um podium). Junto ao templo, encontra-se um tanque forrado por mosaicos com decoração de motivo marinho. Todo esse complexo, também encontrado em outras villae do sul da Lusitânia e da Britânia, tinha como função o culto das águas ou das nin17 Sala para banquetes. Construída no século III. 18 Sala para vestiário com bancos e locais para se guardar a roupa, descansar, receber massagens com óleo. Apresenta proporções bem mais amplas do que o habitual. 19 Banheira destinada ao banho frio. 20 Banheira destinada ao banho morno. 21 Estrutura subterrânea formada por arcos e pilares. Eram caixas de ar aquecidas por uma fogueira, praefurnium, possibilitando o aquecimento das águas do tepidarium e do caldarium.

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fas. Frequentemente o culto das águas estava associado ao culto imperial. Além disso, fica evidenciada a vitalidade de um sistema de crenças e de formas de culto próprias das áreas céltico-romanas do Império. Dentro do recinto do templo, constata-se a existência, datada do século VI, de uma série de sepulturas e de uma pia batismal (21, 22). A continuidade do uso do templo atesta a permanência de ocupação na região durante o domínio visigótico, a qual também está registrada para o período islâmico. A monumentalidade da villa é ainda acrescida pela existência de estátuas imperiais: retrato de Agripina, busto de Adriano e de Galieno e uma cabeça de mulher, possivelmente uma domina, datada do período inicial do reinado de Adriano. Essas estátuas em mármores confirmam a posição social dos proprietários, pois correspondem a peças encontradas na Itália e, possivelmente, foram elaboradas nas oficinas de Roma. Infelizmente, não se possuem registros sobre os proprietários da Villa. No entanto, deveriam ter pertencido à ordem dos decuriões.22 Com as transformações administrativas ocorridas no Baixo Império,23 podese supor que o proprietário de Milreu se enquadraria no perfil dos exaltos dignitários oriundos da carreira militar que ascenderam à posição dos possessores 24 regionais (SILVA, 2009, p. 24) que gozavam de isenção fiscal e agiam como patronos em relação às outras camadas sociais. Isso nos leva a sugerir que, possivelmente, Ossonoba ocupou um papel importante na administração imperial. Essa ideia é fortalecida pelas informações de que o bispo de Ossonoba participou do Concílio de Elvira, primeiro a ser realizado na Península, possivelmente antes dos anos de 302 ou 303 (KULIKOWSKI, 2004, p. 39).

Conclusões

As evidências arqueológicas nos possibilitam a percepção das mudanças no urbanismo e nos espaços produtivos urbanos e rurais que

22 Cabe destacar a posição de Michael Kulikowski analisada na obra Late Roman Spain and its cities, capítulo 3 e 4, que defende a sobrevivência do poder das cúrias e de seus respectivos magistrados, durante os séculos III e IV na Hispânia. 23 Um bom resumo pode ser encontrado em ARCE, J. El ultimo siglo de la España Romana. Madrid: Alianza Editorial, 2009. 24 Proprietários territoriais.

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testemunham o processo de apropriação e ressignificação dos padrões característicos da Humanitas descrito, por exemplo, por Vitrúvio, Plínio, o Jovem e Columela e a sua sobrevivência durante o século IV. Tais evidências seriam impossíveis de acompanhar pela documentação textual, até o momento disponível. Logo, parece-nos possível traçar um paralelo com as afirmações de G. Woolf (2003, p. 247) referentes à internalização dos valores e padrões culturais romanos na Gália, a partir de fins do século. No entanto, é preciso considerar que tais padrões culturais não permaneceram congelados. Numa dinâmica dialética entre o global (cultura romana) e o local (diversidade cultural regional), marcada pela contaminação, pela mistura e pelo ajustamento, emergiu um sistema coerente de ideias e práticas capazes de condicionar os comportamentos. No âmbito desses processos, os quais denominamos de Romanização, foram construídas identidades plurais, fragmentadas e flexíveis que marcavam as relações de poder e atuavam como fator de desigualdade social. Interpretamos o santuário das águas existente na Villa de Milreu como um bom exemplo dessas afirmações. Consagra a importação de formas de culto e de crenças em estilo romano-céltico que nos levam a pensar na possibilidade de o dono da Villa de Milreu ter sido um militar proveniente da Britânia ou do norte da Gália (SILVA, 2009, p. 20). Portanto, esse tipo de manifestação religiosa pode ser interpretado como fruto do processo de diálogo entre os padrões culturais considerados romanos e a alteridade celta, constituindo-se num testemunho de “mestiçagem cultural”.25 Por outro lado, o templo de Milreu indica a permanência da vitalidade no âmbito privado das modalidades de culto e de crenças politeístas, numa época de ascensão do Cristianismo. Isso nos leva a questionar as interpretações que antecipam a importância local dos processos de cristianização. Da mesma forma, a percepção arqueológica da mudança nos espaços produtivos da cidade de Ossonoba e em seu entorno, durante os séculos III e IV, sugere o desenvolvimento da investigação histórica voltada para relativizar as afirmações generalizadoras sobre o abandono das cida25 S. Gruzinski (2001, p. 45) segue a hipótese de que os elementos opostos das culturas em contato tendem a se excluir mutuamente. Eles se enfrentam e se opõem uns aos outros; mas, ao mesmo tempo, tendem a se interpenetrar, a se conjugar e a se identificar. Esse enfrentamento permite a emergência de uma cultura nova, mestiça, nascida da interpenetração e da conjugação dos contrários.

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des, os processos de ruralização, de retração econômica e de “queda” do Império Romano. Diante do exposto, estaríamos mais próximos da análise de Santo Mazzarino (1991, cap. 10), no sentido de que se verifica, nas províncias, durante esses séculos, o despertar das “nacionalidades”. Referências ARCE, J. El ultimo siglo de la España Romana. Madrid: Alianza Editorial, 2009.

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A apropriação do território urbano pelos cristãos no fim do Império Romano Gilvan Ventura da Silva

Espaço, identidade e poder

N

a avaliação de Marc Augé (2002), a relação do homem contempo-

râneo com o seu mundo é pautada pela assim denominada “sobremodernidade”, com o triplo excesso que a constitui: excesso de tempo que, em virtude da aceleração, conduz à emergência desse novo domínio de conhecimento, em parte histórico, em parte sociológico, que é a História do Tempo Presente; excesso de indivíduo, a quem se atribui agora a capacidade de fundar por si mesmo um sentido tanto para a sua vida quanto para o mundo que o cerca, razão pela qual mesmo nas Ciências Humanas que se notabilizaram por uma aproximação, digamos, “coletivista” com o seu objeto de estudo, como é o caso da História, da Sociologia e da Antropologia, observamos um interesse crescente pelas trajetórias, gostos e desejos individuais, proliferando as análises que têm como pano de fundo as representações particulares dos atores, as idiossincrasias que lhes permitem “construir”, cada qual ao seu modo, a sua própria realidade, a exemplo daquelas inspiradas pelos pressupostos teóricos da Sociologia do Conhecimento; e, por último, mas não menos importante, o excesso de espaço, a sensação de que o mundo, de certa forma, encolheu, se tornou menor, como resultado dos rápidos avanços nas tecnologias de comunicação capazes de, num piscar de olhos, nos colocar em contato com as mais longínquas regiões do planeta, ao passo que se multiplicam os deslocamentos populacionais responsáveis por

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introduzir no nosso prosaico cotidiano um Outro que muitas vezes se imaginava distante e do qual apenas de quando em quando se ouvia falar. Transformações dessa envergadura repercutem seguramente na maneira como as sociedades lidam com a lógica da igualdade e da diferença, como representam umas as outras, dando margem a todas as inquietações que hoje experimentamos no que se refere à definição da nossa identidade em oposição a uma alteridade tornada, por assim dizer, excessivamente móvel e, por isso mesmo, ameaçadora ao romper, de modo imprevisível, com a familiaridade do lugar antropológico, o lugar do “em casa”, o lugar comum dos descendentes de uma mesma filiação ancestral, dos falantes de uma mesma língua ou dos adeptos de uma mesma crença, lugar esse que, sem consulta prévia aos autóctones, passa de um momento para o outro a ser compartilhado por elementos “estranhos”, “estrangeiros”, por “hóspedes” via de regra indesejáveis (AUGÉ, 1999, p. 134). Sem dúvida, não é por acaso que, nas últimas décadas, ouve-se falar com uma frequência, muitas vezes irritante, em “guetos”, “subúrbios”, “centro”, “periferia”, “refugiados”, “exilados”, “imigrantes ilegais”, “autoridades de imigração” (WILLIAMS, 1999, p. 211), denunciando a profusão do léxico voltado para a apreensão/compreensão da superabundância espacial, um cuidado excessivo – e, em algumas circunstâncias, obsessivo – com a delimitação de territórios, o patrulhamento das fronteiras, a fiscalização do trânsito ou, em outras palavras, com a proteção da comunidade, que se pretende à mercê de forças externas potencialmente destrutivas. Esses dilemas, é claro, não são apanágio da sobremodernidade. Evocando o princípio sobejamente conhecido segundo o qual a interpretação que fazemos do passado deriva, em boa parte, dos condicionantes do presente, os historiadores, especialmente aqueles que, como nós, fazem do estudo do Império Romano o seu ofício, têm dedicado uma atenção particular às reflexões sobre como as sociedades, ao longo do tempo, manipularam o espaço, como o marcaram, delimitaram, circunscreveram numa tentativa de imprimir, na paisagem, os símbolos por meio dos quais se afirmava uma identidade às expensas daquilo que se localizava nas margens, no exterior, na no man’s land habitada por bárbaros, outsiders, invasores, aos quais se recusava amiúde o estatuto de humanidade.1 Apreendido na sua dimensão geográfico-cultural,

1 A categoria espaço aqui empregada diz respeito a um território delimitado por vetores no interior do qual

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o espaço passa então a ser considerado sob um duplo viés, o de produto e o de produtor do social, assumindo a partir daí uma multiplicidade de funções: a de um amplo quadro no interior do qual os grupos sociais se organizam do ponto de vista da fixidez e da mobilidade e estabelecem as regras de convívio e de socialização; a de um suporte de obras materiais, muitas vezes eternizadas em pedra; a de um ambiente no qual práticas e representações encontram o seu ponto de convergência; a de um repositório de vestígios do passado imprescindíveis para a produção da memória coletiva, memória esta que preserva a lembrança daquilo que lhe é conveniente ao mesmo tempo em que devota ao esquecimento tudo o que lhe suscita repulsa ou estranhamento (BALANDIER, 1999, p. 62). Mediante essas funções, o espaço etéreo, aberto, indefinido é progressivamente domesticado, dando margem à emergência dos lugares, das zonas geográficas esquadrinhadas pelo intelecto, revestidas de um sentido, saturadas de representações, zonas fundadoras de identidades que permitem uma dupla atualização: a do encontro entre o presente e o passado e a da oposição entre o sagrado e o profano. 2 Essa simbolização/construção do espaço se realiza em diversos níveis que vão do privado ao público e vice-versa, envolvendo a divisão dos cômodos no interior das habitações, a disposição coletiva das residências, quer se trate de uma aldeia ou de uma urbs, a arquitetura dos edifícios públicos e dos monumentos, a distinção entre territórios sagrados e profanos (o que nos remete ao caso exemplar do pomerium etrusco-romano), a divisão espacial do trabalho e assim por diante. 3 Nesse sentido, como sugere

ocorre um cruzamento de móveis. O espaço, construído pelo deslocamento contínuo dos indivíduos, carece de univocidade e de estabilidade. É nele, no entanto, que afloram os lugares mediante o estabelecimento de contornos que dividem, separam e subtraem da apropriação coletiva determinados ambientes, que passam a ser controlados por grupos e comunidades específicos. O espaço poderia ser então descrito como a condição de possibilidade dos lugares, mas sem com eles se confundir na medida em que sua apropriação permanece sempre oscilante. 2 Um lugar, tal como o entendemos, é um território que, ordenado segundo determinadas regras, exprime uma relação de identidade na medida em que é revestido de todo um simbolismo pelos seus frequentadores. Conforme propõe Certeau (2008, p. 201), um lugar estabelece sempre uma inclusão diante de uma exclusão, uma definição de posições que se pretendem estáveis. O lugar, portanto, reclama a estabilidade e a mesmidade.  Cumpre notar, entretanto, que, ao lado dos lugares e como a própria condição de possibilidade destes, situam-se os não-lugares, os territórios de transição, de passagem, que carecem de memória e de sentido ou, antes, que se prestam à confusão de todas as memórias e todos os sentidos (AUGÉ, 2002). 3 O termo monumento é aqui evocado numa acepção proveniente do latim monumentum, qualificando assim uma obra de arquitetura ou uma peça de estatuária, a exemplo dos arcos do triunfo, colunas, obeliscos e pórticos. Um monumento cumpre a dupla função de celebrar uma identidade e de preservar uma memória (LE GOFF, 1994, p. 535), fazendo parte assim de um amplo processo de apropriação do espaço pelos habitantes, apropriação esta que obedece a um repertório de valores e a um sistema de crenças compartilhados. Erigidos

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Augé (1999, p. 137), “[...] se a tradição antropológica ligou a questão da alteridade (ou da identidade) à do espaço, é porque o processo de simbolização levado a efeito pelos grupos sociais devia compreender e dominar o espaço a fim de eles mesmos se compreenderem e se organizarem”. Do ponto de vista da relação entre identidade e espaço, a cidade é, tanto hoje como ontem, um locus privilegiado de análise em virtude, por um lado, da sua capacidade de aglutinar, num território relativamente restrito, um sem-número de categorias repartidas, por exemplo, entre os membros de uma mesma profissão ou os integrantes de uma mesma etnia e, por outro, da complexidade da apropriação espacial exigida pela cidade quando da sua instauração. De fato, a cidade é, de modo evidente, uma fabricação do intelecto e da práxis humanos na sua interação com o meio ambiente, uma maneira assaz peculiar de o homem tornar familiar o espaço no qual habita, transformando-o, segundo suas necessidades e desejos, num espaço simbolizado, adornado e revestido de cultura no qual a natureza, preservada nos parques, lagos e jardins, se encontra domesticada de acordo com os cânones da arquitetura cívica e, por isso mesmo, posta sob permanente controle dos seus usuários e das autoridades chamadas a zelar pela ordem pública que, em muitas ocasiões, se confunde com a manutenção da paz no perímetro urbano. 4 Esse domínio progressivo sobre o meio ambiente se manifesta desde o traçado original das ruas até as sociabilidades que têm lugar no cotidiano, uma vez que a cidade é suporte de representações e de memórias, é fato, mas também de atividades ordinárias (o comércio, o trânsito, a troca de informações) e extraordinárias (a festa, os campeonatos esportivos, o protesto político). Desse modo, os topônimos urbanos, dentre os quais a rua ocupa uma posição proeminente, cumprem uma tripla função: informativa, lúdica e simbólica. Nele, as pessoas aprendem, divertem-se e ao mesmo tempo obtêm a consciência de uma identidade partilhada que se exprime em

amiúde em materiais resistentes (pedra, metal, alvenaria), os monumentos representam uma das expressões mais características do poder, tornando-se epicentro de uma autoridade que se espraia pelas regiões adjacentes, organizando o espaço e as relações sociais que aí se estabelecem (LEFEBVRE, 2004, p. 32). Quanto a isso, não é por mero acaso que a alteração, na correlação de forças em favor do Cristianismo ao longo do século IV, foi acompanhada pela diluição progressiva da importância simbólica dos monumentos greco-romanos e judaicos, substituídos agora pelos monumentos cristãos. 4 Empregamos o vocábulo urbano no sentido do latim urbanus, referindo-se a tudo aquilo que é próprio da urbs, da cidade, em oposição àquilo que é rusticus, rural, campestre. A existência do fenômeno urbano na Antiguidade precede assim, de muitos séculos, o nascimento do urbanismo, ou seja, de um conjunto sistemático de reflexões sobre como organizar a cidade que emerge na segunda metade do século XIX (LACAZE, 1999, p. 36).

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isotopias, heterotopias e utopias (LEFEBVRE, 2004, p. 45). O procedimento isotópico é aquele que tem por objetivo fixar um lugar (um topos) e seus arredores imediatos, é o lugar da familiaridade, da vizinhança, o lugar do reconhecível e por isso mesmo seguro, onde o indivíduo pode ir e vir sem colocar em risco a sua integridade física, psicológica e/ou simbólica. No entanto, na medida em que a fixação de isotopias é uma operação relacional, ela reclama, em contrapartida, a existência dos seus opostos, as heterotopias, os lugares perigosos, profanos e contaminadores, que se subtraem, às vezes no próprio coração do urbano, ao controle e à vigilância e que por isso devem ser a todo custo evitados. Do jogo de oposições entre isotopias e heterotopias é que derivam as topofilias e topofobias, ou seja, a sensação agradável de “estar em casa” ou a sensação de desconforto que nutrimos ao frequentar determinados ambientes. Cumpre notar que as estratégias que tentam disciplinar os topoi urbanos – ou melhor, que tentam representá-los – são, ao fim e ao cabo, estratégias de poder que se enraízam no solo urbano, regulando os trânsitos, delimitando os confins e os limiares, sacralizando e dessacralizando os lugares, adestrando as sociabilidades, em suma, produzindo e reproduzindo, em termos geográficos, polarizações, contradições, analogias estabelecidas em nível ideológico, de modo que, no horizonte da paisagem urbana, as representações coletivas adquirem uma visibilidade por vezes majestosa, encarnada em monumentos arquitetônicos destinados a celebrar uma função/instituição, a ordenar um espaçamento, a proclamar uma identidade. Apreendida sob essa lógica, a cidade é incessantemente construída e reconstruída pelos grupos sociais em permanente interação, os citadinos que a coabitam e que “projetam”, cada qual ao seu modo, a cidade utópica, mas não no sentido de uma cidade inviável ao ser esvaziada de todos os conflitos, uma cidade pacífica ou pacificada ao gosto de Campanella ou uma cidade transcendente, celestial, como proposto por Agostinho. Pelo contrário, a utopia urbana se realiza um pouco à semelhança da comunidade imaginada de Benedict Anderson (2008), na condição de cidade representada por indivíduos e grupos que se entrechocam a todo o momento nas ruas, praças e avenidas, uma cidade que não corresponde stricto sensu à cidade geográfica, mas que tampouco é irreal e fictícia, na medida em que a imagem da cidade é poderosa o suficiente para orientar atitudes concretas rumo ao futuro. Dificilmente poder-se-ia admitir que a ideia de cidade, uma cidade modelada segundo

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propósitos, pressupostos, intenções particulares a cada grupo que se considera, por seu turno, detentor da primazia de ocupação do espaço urbano, seja uma mera ilusão, que essa ideia não desemboque em uma ação efetiva sobre o solo citadino visando a torná-lo mais adequado à vida em comunidade, a promover o bem comum – o que quer que isso signifique – mediante a ordenação de um território.

A “Revolução Edilícia” cristã

Tomando como ponto de partida essas reflexões preliminares sobre a relação entre cidade, representação e identidade e tendo como referência a cidade de Antioquia, pretendemos discutir, neste capítulo, a maneira pela qual, no final do século IV d.C., a assim denominada cristianização do Império Romano significou não apenas a adoção de uma nova crença e das práticas religiosas que lhe eram correspondentes por parcelas cada vez mais extensas da população, mas uma redefinição do ambiente construído pelos indivíduos, razão pela qual a ascensão do Cristianismo foi acompanhada por todo um movimento de reordenação espacial levado a cabo por clérigos, monges e fiéis com a finalidade de dotar o território do Império de epifanias cristãs, o que exigiu, em contrapartida, a supressão e/ou remodelação dos lugares e monumentos conectados com o patrimônio cultural judaico ou greco-romano, bem como das atividades lúdicas e religiosas que aí transcorriam. Uma transformação dessa magnitude não se deu, evidentemente, da noite para o dia. O seu início, no entanto, pode ser grosso modo situado em 312, quando a adesão de Constantino ao Cristianismo trouxe para uma corrente religiosa outrora proscrita sob a acusação de superstitio o patronato do poder imperial, fato inédito até então. 5 À parte a liberdade de culto outorgada aos cristãos pelo imperador logo após a sua vitória contra Maxêncio, o que se seguiu foi uma concessão progressiva de privilégios ao clero cristão que terminaram por acelerar a integração das inúmeras comunidades dispersas pelas províncias a leste e a oeste em uma instituição religiosa com vocação claramente universal. Com Constantino, o Cristianismo inicia assim a sua escalada visando a se tornar o sistema religioso dominante na bacia do Mediterrâneo, o que exigirá

5 Para uma definição de superstitio num contexto de afirmação do Cristianismo, consultar Bustamante (2006, p. 324 e ss.).

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a adoção de uma série de medidas, tanto de caráter doutrinário – como nos revelam as discussões travadas em Niceia – quanto de caráter disciplinar. Dentre as tarefas a ser cumpridas pelos cristãos com o propósito de consolidar a sua posição como credo dominante na bacia do Mediterrâneo, uma das mais importantes foi, sem dúvida, a conquista do espaço urbano. Nascido em um ambiente rural, como era a Galiléia ao tempo de Jesus, o Cristianismo cedo se desvencilhou de suas origens campestres para se estabelecer nas cidades da Síria-Palestina e da Ásia Menor, alcançando em seguida os Bálcãs e daí se expandindo para todo o Ocidente, como nos revela o itinerário das missões empreendidas por Pedro e Paulo (HORSLEY, 2004, p. 66). Ocorre, no entanto, que a presença do Cristianismo nos núcleos urbanos foi marcada, até o início do século IV, por uma discrição calculada a fim de evitar retaliações por parte da população local e das autoridades imperiais, razão pela qual os cristãos se mostravam deveras cautelosos em dar publicidade à sua crença por intermédio da multiplicação de edifícios, prevalecendo, em muitas localidades, o antigo costume de a assembleia se reunir em residências privadas ou nas necrópoles, fato que, segundo Macmullen (1984, p. 102), coincide com a escassez de uma epigrafia inequivocamente cristã anterior ao século IV. A partir de 312, no entanto, essa situação começa a se alterar drasticamente. Gozando da tolerância e, mais do que isso, do beneplácito imperial, o cristãos passam a ostentar abertamente um conjunto de símbolos que cumprem o papel de afirmar a superioridade da sua crença no confronto com os pagãos e os judeus.6 Dentre esses símbolos, um dos mais notáveis é decerto a igreja que, ao assumir com frequência o perfil majestoso da antiga basílica romana, passa a disputar lado a lado

6 O termo paganus, usualmente empregado na literatura para caracterizar as tradições religiosas do politeísmo greco-romano, foi sempre um termo eivado de um teor depreciativo, identificando primariamente um indivíduo de segunda categoria, um subalterno, como quando falamos de um praça em comparação a um oficial (BROWN, 2003, p. 74). Chuvin (1990, p. 15), por outro lado, assinala que paganus parecia se referir àquilo que era próprio do pagus, da zona rural, em oposição aos usos e costumes da cidade, considerados mais refinados do que a cultura camponesa. Seja como for, o fato é que, no século IV, o termo é manejado pelos cristãos para classificar aqueles que adoravam os antigos deuses. Não obstante o conteúdo pejorativo que, em ambas as acepções, o vocábulo encerra, optamos por manter o seu uso diante da ausência de uma forma que, em nossa opinião, se revelasse mais apropriada. Seguindo o exemplo de Juliano, poderíamos talvez nos referir aos adeptos dos cultos greco-romanos como “helenos”. Nesse caso, no entanto, a categoria “helenos” deixaria praticamente de lado a contribuição latina, o que não julgamos uma decisão muito acertada. Desse modo, o termo pagão será aqui utilizado para identificar os envolvidos com a manutenção das tradições greco-romanas e com os fundamentos da paideia clássica, os quais integravam um amplo e variado sistema religioso que costumamos designar como paganismo.

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com a arquitetura greco-romana e judaica o domínio sobre a paisagem local. 7 Por toda parte são erigidas igrejas, sinal da ascendência cristã sobre o território circundante. Constantino, ele mesmo, é o responsável por patrocinar a construção de alguns edifícios monumentais em honra à divindade cristã, a exemplo da Igreja do Santo Sepulcro, a Igreja da Natividade, a Igreja do Carvalho de Abraão e a Igreja Eleona, localizadas na Palestina, sem mencionar aquelas erguidas em Roma, como a Igreja de San Giovanni in Laterano e a Basílica de São Pedro, dentre outras (REZENDE, 2008, p. 41; CURRAN, 2002, p. 90 e ss.). O impulso à construção de igrejas sob o governo de Constantino revela-se tão intenso que Perrin (1995, p. 585) qualifica esse acontecimento nos termos de uma “revolução edilícia”, desejando com isso exprimir o quanto a irrupção, no espaço, das igrejas assinala o vigor da missão cristã, ainda que o desequilíbrio das informações arqueológicas não nos permita traçar com segurança um quadro detalhado para todas as regiões do Império. Para algumas delas, no entanto, o movimento se encontra bem atestado. Esse é o caso, por exemplo, da Palestina, onde constatamos a existência de nada menos do que 101 igrejas no período compreendido entre os séculos IV e VI (REZENDE, 2008, p. 48). Iniciada em 312, tal “revolução” tende a se acentuar após o governo de Juliano, quando então as autoridades eclesiásticas assumem uma postura claramente erística, beligerante, ao fazer valer os princípios da sua crença, não sendo por acaso que se verifica, nesse momento, o acirramento da intolerância contra os pagãos, hereges e judeus (DRAKE, 1996). Ao lado da construção acelerada de igrejas, assistiremos também à conversão dos túmulos dos mártires, denominados martyria, em epicentro de culto e peregrinação. Erigidos em regiões externas ao perímetro urbano, os martyria serão reputados como sagrados pelo fato de abrigarem as relíquias daqueles que pereceram em nome da fé que professavam. Considerando que, para os cristãos, a sacralidade era um atributo intrínseco aos restos mortais dos santos e mártires, restos estes que 7 A basílica romana foi uma construção típica do período imperial, consistindo de uma sala ampla em forma retangular, coberta e com colunadas que formavam corredores (naves) em seu interior. A basílica era sede não apenas de atividades comerciais, sendo igualmente utilizada para a audição de processos legais. Localizada, em geral, nas proximidades do fórum, a basílica constituiu, juntamente com a cúria, os dois principais edifícios urbanos para o funcionamento das atividades legais e administrativas das cidades romanas. Ao serem apropriadas pelos cristãos, as basílicas receberão uma nova função: a de sede dos ritos próprios do Cristianismo (REZENDE, 2008, p. 29).

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podiam ser desmembrados e transportados de um lugar para o outro, uma consequência espetacular foi a multiplicação das epifanias cristãs pelas províncias e cidades. De fato, onde quer que fossem depositadas, no todo ou em parte, as relíquias dos heróis cristãos, isso significava a sacralização do território circundante, esperando-se naturalmente que uma proteção especial fosse dispensada aos seus habitantes. Em pouco tempo, o culto às relíquias dos santos e mártires deixará de ser prestado exclusivamente nas ermidas e necrópoles situadas fora do perímetro urbano para encontrar abrigo nas igrejas erigidas no coração da própria cidade, o que representa uma etapa decisiva na conquista do espaço citadino pelos cristãos. Ao fazer isso, no entanto, o Cristianismo terá forçosamente de se haver com outras tradições religiosas que se encontravam enraizadas de longa data em solo urbano, de maneira que o domínio cristão sobre a cidade antiga exigiu um empenho considerável da elite episcopal no sentido de esvaziar os lugares e monumentos das suas antigas características greco-romanas e judaicas, mesmo que isso conduzisse, em determinadas circunstâncias, à manutenção de uma forma cultural às expensas da alteração do seu conteúdo/função, a exemplo da conversão de templos pagãos em igrejas, como vemos em Siracusa e Agrigento (REZENDE, 2008, p. 164). O processo de cristianização do Império Romano adquire desse modo uma inequívoca dimensão geográfica. Como bem observa Lane Fox (1998, p. 695), enquanto os ataques pagãos eram por via de regra dirigidos contra os theioi andrés cristãos, homens e mulheres excepcionais (monges, bispos, virgens) que, ao profetizarem e operarem maravilhas, ratificavam a suposta onipotência da sua divindade, o alvo principal dos cristãos eram os lugares, monumentos e objetos consagrados aos deuses, o que os levou a deflagrar uma ampla ofensiva visando a dessacralizar o perímetro da cidade antiga, que então poderia ser novamente sacralizado conforme os princípios cristãos. De fato, do ponto de vista da cultura greco-romana, a cidade era um espaço dedicado aos deuses mediante a execução de um rito ancestral que a convertia num recinto apartado do seu entorno, um recinto ordenado e posto ao abrigo da vastidão do exterior onde, supunha-se, grassariam forças potencialmente poluentes, profanadoras, nocivas ao território ordenado pela práxis humana e protegido pela intervenção divina. Cercada de muralhas e contendo portões destinados a regular o inter-

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câmbio com o mundo externo, a cidade antiga, como assinala Markus (1997, p. 145), constituía uma reprodução, sobre a terra, do templum, do quadrilátero celeste que os áugures costumavam fixar quando desejavam consultar os deuses sobre um ou outro assunto. Demarcado com o recurso a uma charrua ou a uma lança, o traçado que instituía o pomerium, o centro mágico de uma urbs, poderíamos dizer, era parte integrante do rito de fundação das cidades greco-romanas, encontrando-se ainda em vigor no século IV, como podemos constatar quando do lançamento do milion de Constantinopla por Constantino, em 328, cerimônia presidida pelo hierofante Pretextato e pelo filósofo neoplatônico Sôpatros (SILVA, 2005, p. 62). No período imperial, as cidades fundadas ou remodeladas conforme os cânones da tradição greco-romana apresentavam duas importantes características que serão completamente subvertidas à medida em que prossegue a cristianização. A primeira delas era a presença, no interior das muralhas, de uma profusão de loci sacros, instituídos como uma lembrança permanente de que a cidade constituía uma espécie de “oferenda geográfica” feita aos deuses. Em cada rua ou praça, erguiam-se monumentos que tinham por finalidade celebrar o orgulho cívico, é certo, mas também reiterar a benevolência divina da qual os seus habitantes julgavam ser merecedores. Como exemplo dessa arquitetura sagrada, poderíamos evocar naturalmente os templos com as suas cellae, nas quais a imagem da divindade era reverenciada pelos sacerdotes e devotos, mas igualmente o anfiteatro, o teatro, as termas, o circo e mesmo o palácio imperial. Como afirma Caseau (2001, p. 23), um visitante do mundo romano no final do século III teria seguramente se surpreendido com a abundâncias de altares, santuários, imagens de deuses engalanadas e perfumadas que se distribuíam por toda parte. Na opinião de Tertuliano, cada monumento clássico era um templo, no sentido de que todos se encontravam saturados da religiosidade greco-romana e, por isso mesmo, exibiam em pedra a “vilania” pagã (MARKUS, 1997, p. 145). Cidade dos deuses, a urbs era também uma cidade dos vivos, donde provém a segunda característica a qual gostaríamos de aludir: a rejeição à presença, no recinto urbano, de sepulturas e necrópoles. Na medida em que o solo citadino deveria ser preservado de toda e qualquer corrupção terrestre, a cidade não poderia compartilhar dessa degenerescência primaz que é o colapso do corpo físico (BUSTAMANTE, 2001, p. 337). O espaço cívico, na Antiguidade, apresentava-se assim como um local

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de coabitação entre deuses e homens, um ambiente de congraçamento humano/divino saturado de ser, de potência, como convém aos seres e coisas consagrados às divindades, ficando dele excluídos os mortos. O Cristianismo, ao inscrever na paisagem urbana as suas igrejas e martyria, se depara então com uma geografia do sagrado já bem estabelecida, para a qual terá que prover uma alternativa eficiente. Da mesma forma que os cristãos pretenderam, por intermédio da criação de um gênero próprio para narrar a sua aventura sobre a terra, a História Eclesiástica, nascida da lavra de Eusébio, colocar o tempo a serviço dos seus propósitos missionários, eles também se esmeraram em produzir uma nova topografia, em fixar um espaço organizado segundo os fundamentos da sua crença, o que exigia a produção simultânea de uma representação da cidade e de uma estratégia de intervenção sobre ela que garantisse a sua posse. Acerca desse assunto, Markus (1997, p. 146), num sugestivo ensaio sobre a cristianização do Mundo Antigo, sugere que “[...] como tantos colonos brancos na África, os cristãos tiveram que impor a sua própria topografia religiosa a um território que liam como uma superfície em branco, ignorando suas anteriores balizas e divisões”, afirmação com a qual não concordamos. No século IV, os cristãos, ao iniciarem o controle sobre o Império Romano – e, nesse caso, o perímetro urbano é a principal referência pelo fato de se constituir no foco primário do processo de cristianização –, não tiveram que anexar uma “superfície em branco, ignorando suas balizas e divisões”, como supõe o autor. Muito pelo contrário, o domínio do espaço cívico pelos cristãos implicou um enfrentamento aguerrido, não apenas com os pagãos, mas igualmente com os judeus, cujas tradições religiosas se encontravam firmemente enraizadas nas principais cidades do Império. Nesse enfrentamento, os cristãos foram levados naturalmente a instituir os seus próprios lugares de culto ou, dito em outros termos, a sacralizar ambientes e edifícios de modo a sustentar a sua posição, mas ao mesmo tempo, num esforço adicional, foram compelidos a dessacralizar os lugares e monumentos greco-romanos e judaicos, a despi-los da sua condição sagrada, o que implicava devolvê-los ao conjunto das coisas profanas. Por meio de uma operação intelectual que demonizava os lugares ocupados por judeus e pagãos e que se fazia de quando em quando acompanhar por uma ação depredatória, destrutiva, sobre os monumentos, os cristãos foram pouco a pouco redefinindo os contor-

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nos da cidade antiga. Nesse ínterim, as relíquias dos santos e mártires, outrora situadas extramuros, adentram a cidade e são entronizadas com toda a pompa e circunstância, o que significa uma reversão completa do imaginário em torno da morte cultivado por judeus e pagãos, para quem os cadáveres eram vetores de perigo e poluição (CASEAU, 2001, p. 37). Doravante, os mortos serão tidos como poderosos agentes de purificação, esforçando-se por vezes os citadinos para obter a restituição dos heróis cristãos que pereceram longe da terra pátria, o que dá origem a um amplo movimento de traslado das relíquias, prática bem atestada em finais do século IV. A dessacralização dos lugares e monumentos conectados com as culturas greco-romana e judaica foi o resultado de uma operação que não teve como único propósito convertê-los em ambientes insalubres, pecaminosos e diabólicos. Considerando-se que o templo, a sinagoga, o teatro, o circo, o anfiteatro, as termas eram o suporte de inúmeras atividades cívicas frequentadas por cristãos, pagãos e judeus, a dessacralização da cidade antiga produzida pelo Cristianismo tinha forçosamente como alvo as modalidades de culto e de entretenimento que ocorriam nesses espaços (MARKUS, 1997, p. 154). Daí resulta a constatação de que, ao intervir no sentido de redefinir a paisagem da cidade antiga, as elites eclesiásticas intervieram ao mesmo tempo nas relações de sociabilidade que se processavam no cotidiano, buscando assim não apenas mapear os territórios impróprios para o trânsito dos fiéis, como também traçar um perfil depreciativo dos seus frequentadores e das atividades que aí se desenvolviam. Ao lançar interditos sobre os lugares tidos como “poluentes” e “perigosos”, os cristãos conferiam à separação teológica entre as religiões cristã, judaica e greco-romana uma expressão física, geográfica, territorial, numa tentativa de disciplinar os fluxos, os intercâmbios, enfim, as sociabilidades que, pelas ruas das cidades imperiais, aproximavam os adeptos de credos religiosos distintos. Enquanto o processo de cristianização da cidade antiga não tiver sido completado, ou seja, enquanto subsistirem, no recinto urbano, lugares e monumentos controlados por pagãos e judeus, os cristãos devem adotar uma atitude de permanente vigilância, policiando a si mesmos e aos seus vizinhos para não adentrarem recintos suspeitos nem interagirem com hereges e idólatras.

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João Crisóstomo e a cristianização de Antioquia O processo de cristianização da cidade antiga, o movimento de apropriação da paisagem urbana pelos cristãos e a consequente espoliação cultural dos pagãos e judeus apresentam inúmeros dilemas, impasses e contradições difíceis de serem captados por meio de uma explicação global que dê conta tanto das especificidades locais quanto das variações ao longo do tempo, em boa parte devido à escassez de documentos, como salienta MacMullen (1984, p. 102). Em razão disso, impõe-se como necessária a adoção de um recorte que nos permita explorar com eficiência os testemunhos disponíveis. Em nosso caso, a opção recai sobre Antioquia, uma cidade para a qual dispomos do valioso testemunho de João Crisóstomo, que entre 386 e 397 atuou como o principal orador cristão da cidade, desenvolvendo uma intensa atividade pastoral. Podemos dizer que João concebe um ambicioso plano de reorganização do espaço cívico de Antioquia, um espaço ocupado, além dos cristãos, por pagãos e judeus. Em suas homilias, o presbítero delineia um plano de reforma da polis, de transformação da cidade antiga, o que implica a produção simultânea de isotopias e heterotopias, numa tentativa de disciplinar as relações de sociabilidade mantidas pela população antioquena. Ao fazer isso, João reforça os códigos que fazem da igreja muito mais do que um local de culto, que a convertem num monumento, ao mesmo tempo em que identifica a sinagoga, o teatro, o anfiteatro as termas, arquiteturas típicas dos estilos de vida judaico e pagão, respectivamente, como heterotopias, como lugares proibidos à visitação, lugares poluídos e poluentes, dessacralizados e habitados por entidades demoníacas. João advoga assim uma remodelação de Antioquia, pretendendo alterar por completo os elementos que assinalavam a adesão dos seus habitantes a um estilo de vida próprio da Antiguidade greco-romana em prol da cristianização da paisagem urbana. Para tanto, lançará mão de um eficaz recurso de oratória que, no século IV, se afirma como o principal instrumento pedagógico à disposição da hierarquia eclesiástica: as homilias. No manejo desse instrumento, João excedeu em habilidade a todos os pregadores do seu tempo, como se depreende do cognome “Crisóstomo” (“Boca de Ouro”, em grego) que recebeu após sua morte. Conforme mencionamos, Antioquia, a pátria de João Crisóstomo, era, na segunda metade do século IV, uma cidade que experimentava uma

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trajetória ascendente, não obstante os reveses que fustigavam o Império desde a Batalha de Adrianopla, em 378, que selou o destino não apenas de Valente, mas do exército de campanha do Oriente, dizimado pelos godos, acontecimentos que forçaram Graciano a nomear às pressas Teodósio com a incumbência de reorganizar as linhas de defesa das províncias orientais (WILLIAMS; FRIELL, 1995, p. 19). A bem da verdade, o florescimento de Antioquia sob o Império Romano se cumpre no decorrer de todo o século IV, a partir da atuação de Diocleciano, responsável por patrocinar um conjunto de reformas que tornaram a Capital da província da Síria a mais importante metrópole do Oriente após Constantinopla, a “Nova Roma”. Dentre essas reformas, podemos citar a inauguração de cinco termas, a restauração do templo de Apolo, em Dafne e a construção de um palácio a norte da cidade, na região insular formada pelo Orontes, além da reorganização dos Jogos Olímpicos, o que exigiu a manutenção de um imponente estádio destinado a sediar essas competições, o Olympiakon. Cerca de cinquenta anos mais tarde, sob Juliano, novos templos foram construídos ou restaurados. Na fase tardia do Império, Antioquia surge assim como uma cidade suntuosa, erigida conforme os padrões mais exigentes da arquitetura clássica. Nela, tem lugar um conjunto de atividades lúdicas que a população preserva com orgulho. Os mimos, encenados no teatro de Dioniso ou no de Zeus Olímpico, fazem jus a uma subvenção municipal, oriunda das taxas cobradas aos comerciantes que exercem a profissão nos pórticos da avenida central da cidade. Não obstante a proibição dos combates de gladiadores por Constantino em 325, o anfiteatro, situado nas proximidades do Portão do Querubim, continua a ser palco das venationes, dos combates entre homens e feras. No hipódromo, erguido nas imediações do palácio imperial, as corridas são acompanhadas por uma multidão, embora não se verifiquem aqui os choques entre torcedores de facções distintas, ao contrário do que ocorre em Roma e Constantinopla (LASSUS, 1977, p. 72). Igualmente notável é o sistema de abastecimento hidráulico da cidade. De fato, Antioquia conta com nada menos do que dezesseis banhos públicos, dentre aqueles mencionados pelas nossas fontes literárias ou trazidos à luz pelas escavações, sem contar os banhos privados (YEGÜL, 2001, p. 147). Antioquia é, assim, uma cidade que, do ponto de vista das tradições culturais greco-romanas, exibe, no século IV, uma dinâmica surpreendente, conclusão extensiva aos judeus.

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A presença judaica em Antioquia remontava à época de fundação da cidade, em maio de 300 a.C., por Seleuco I Nikátor, que teria concedido a veteranos judeus de seu exército parcelas de terra no recinto urbano. A cidade contava com um bairro judeu localizado no setor sudeste, na zona angular formada pelas muralhas de Seleuco I e as de Tibério. Já os mais ricos residiam nos subúrbios de Dafne, ao sul. Distribuída pela khóra, havia ainda uma quantidade indefinível de pequenos e médios proprietários ao lado de camponeses judeus empregados em regime de dependência (WILKEN, 1983, p. 36-37). Os judeus desempenharam, em Antioquia, múltiplas atividades profissionais, com destaque para o comércio, ramo no qual eram reputados como bastante prósperos, o artesanato (principalmente o de ouro e prata) e a agricultura, existindo inclusive uma elite judaica de grandes proprietários agrícolas cujos filhos recebiam uma educação grega (BROOTEN, 2001, p. 30). Sob o Império, Antioquia se torna, após Roma e Alexandria, a maior cidade do Mundo Antigo em população judia, sendo considerada pelos judeus da Palestina e da Babilônia como a grande referência da Diáspora, a despeito de Alexandria, que contou por muito tempo com uma população judaica superior (KRAELING, 1932, p. 132). Mediante o testemunho de João Crisóstomo, na sua primeira homilia, Adversus Iudaeos, temos conhecimento de que os judeus antioquenos estavam submetidos à autoridade do nasi e contavam com duas importantes sinagogas, uma no interior das muralhas originais, no bairro denominado Keraton, e outra, a sinagoga matriz, nos elegantes subúrbios de Dafne (Adv. Iud. 852). Kraeling (1932, p. 143) acrescenta a essas duas uma terceira, situada na região leste da cidade. No entanto, de acordo com uma projeção de Zetterholm (2003, p. 91), é possível que Antioquia contasse, já no século I, com cerca de vinte sinagogas. Em finais do século IV, a comunidade judaica local era bastante atuante, patrocinando solenidades e festivais que costumavam movimentar toda a cidade, atraindo inúmeros espectadores, dentre os quais os próprios cristãos, que não se furtavam em exibir certa predileção pelos usos e costumes judaicos, a despeito dos esforços empreendidos pelas autoridades eclesiásticas com a finalidade de evitar qualquer contato entre seus fiéis e os judeus. Embora fosse sede de uma das primeiras congregações cristãs das quais temos notícias, congregação esta que se orgulhava de ter tido dentre os seus líderes uma personagem da envergadura de Paulo de Tarso,

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Antioquia, assim como a esmagadora maioria das cidades do Império, não exibia ainda, no limiar do século IV, muitos indícios da presença cristã. Nesse caso, como em tantos outros, o turning point é constituído por Constantino, que em 327 inicia a construção da Igreja de Ouro, a Domus Aurea, um imponente edifício situado próximo ao palácio de Diocleciano. Antes, a cidade possuía apenas uma igreja propriamente dita, a Palaia, erguida na idade apostólica, a dar-se crédito à tradição. Doravante outras igrejas serão construídas, não obstante o fato de que as escavações lideradas pela Universidade de Princeton em 1932 não tenham revelado nenhuma delas. Em 350, o César Galo dedicou, em Dafne, um martyrium a Bábila, um eminente bispo da cidade, executado provavelmente sob Valeriano (LASSUS, 1977, p.73). Mais tarde, sob o bispado de Melécio, Bábila recebe uma igreja própria, erguida na ilha do Orontes. A despeito da escalada crescente de domínio territorial cristão sobre Antioquia, a cristianização da cidade em fins do século IV era um processo que ainda se encontrava longe do seu desfecho, apresentando entraves e dificuldades em virtude justamente da forte presença da cultura greco-romana e judaica no recinto urbano, como assinalamos. Os dilemas enfrentados pelas autoridades eclesiásticas para dessacralizar os espaços religiosos e lúdicos controlados por pagãos e judeus, para multiplicar, na paisagem, as epifanias cristãs e para disciplinar as relações de sociabilidade que tinham lugar no cotidiano ressaltam do corpus homilético de João Crisóstomo, um orador profundamente comprometido com o processo de cristianização da vida urbana. Nas palavras de Spanneut (2002, p. 114), João Crisóstomo poderia ser definido como um moralista. Para nós, ele é mais que isso: é um reformador da cidade antiga, uma vez que suas homilias são repletas de críticas à vida urbana e às suas diversas modalidades de entretenimento (competições esportivas, combates de gladiadores, representações teatrais, festivais, corridas no hipódromo), bem como à proximidade de contato entre cristãos, pagãos e judeus. Quando refletimos sobre a atuação pastoral de João Crisóstomo em Antioquia, compreendemos que o presbítero não se notabilizou nem por uma reflexão exaustiva em torno dos fundamentos da dogmática cristã nem por uma exegese inovadora das Escrituras, mas por ter colocado o seu talento literário a serviço de um empreendimento bastante ambicioso: a reforma da polis, a cristianização da cidade ou, dito de outro modo, a interferência direta nos princípios constitutivos da

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própria identidade do homem antigo, para quem o espaço cívico se revestia de um caráter ontológico, fundador da sua maneira de pensar e agir. Referências Documentação primária impressa ST. JOHN CHRYSOSTOM. Discourses against judaizing Christians. Translated by Paul W. Harkins. Washington: The Catholic University of America Press, 1999.

Obras de apoio

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Cidade, representação e poder no Império Romano: a historiografia sobre Antioquia de Orontes Érica Cristhyane Morais da Silva

N

o século IV d.C., de acordo com os autores antigos, Antioquia

de Orontes era uma cidade cuja dignidade superava em muitos aspectos outras cidades importantes do Império Romano, como Roma, Constantinopla e Alexandria. O sofista Libânio (Antiochikos, 270) a concebeu como uma cidade incomparável.1 O historiador antigo Amiano Marcelino (Rerum Gestarum, Livro XXII, 9, 14) a considerou como a “bela coroa do Oriente”.2 João Crisóstomo (De Statui, Hom. XVII, 10) proclamaria Antioquia como a cidade cristã por excelência. 3 Desse

1 Utilizamos as seguintes publicações da documentação: para as versões em inglês, a Oration 11: The Antiochikos – In Praise of Antioch, incluída na obra Antioch as a Centre of Hellenic Culture as Observed by Libanius de Albert Francis Norman e Libanius’ Oration in Praise of Antioch (Oration XI) de Glanville Downey, publicada nas Proceedings of the American Philosophical Society. Para a versão em grego, a obra Libanii Oratio XI está presente na obra Libanii Opera, v. I, fasc. II. de Richardus Foerster. Podemos perceber sensíveis diferenças no que diz respeito às traduções. A seguir, o excerto, retirado da versão em inglês, traduzida por Albert Francis Norman: “What city then brooks comparison with ours? She is more prosperous than the oldest states, while to rest she is superior either in size or origin or fertility of the land. Morever, if she be inferior to any in respect of her walls, she yet surpasses that town in her supply of water, the mild winters, the wit of her inhabitants, the pursuit of philosophy; and in the most noble feature of all, in Greek education and oratory, she rises superior to a city still greater”. Em comparação com a versão em inglês, traduzida por Glanville Downey, podemos observar algumas diferenças. A versão de Downey apresenta, em algumas passagens, uma generalização, enquanto o texto de Norman é mais específico. Um exemplo pode ser ilustrado. Enquanto Norman traduz “...supply of water...”, Downey optou por “... the abundance of its water...”. 2 A documentação de Amiano Marcelino se encontra disponível on‑line. Utilizamos a versão bilíngue disponível no site http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Ammian/home.html. A tradução em inglês e em latim é proveniente da edição da Loeb Classical Library de J. C. Rolfe, de 1940. Em seguida, o excerto em inglês: “...But hastening from there to visit Antioch, fair crown of the Orient…”. Em latim: “…At hinc videre properans Antiochiam, orientis apicem pulcrum...”. 3 Para a documentação de João Crisóstomo, há disponível a versão em espanhol presente na Coleccion Excelsa, v. 19 e 20 (cf. referência completa). Para o grego, há disponível a Homiliae XXI De Statui da coleção da Patrologia Graecae, v. 49, de Jacques‑Paul Migne, de 1862, e, na versão em inglês, The Homilies on the statues to people of

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modo, Antioquia de Orontes permanece resguardada na memória e, por vezes, na historiografia, como uma cidade única, destacada pela beleza de seu espaço urbano e grandiosidade de sua cidade. Antioquia de Orontes é conhecida e considerada uma cidade de importância ímpar na história do Império Romano. Na historiografia contemporânea, Antioquia é muito frequentemente apresentada como o “[...] centro da civilização greco‑romana” (DOWNEY, 1961, p. 41); ou como “[...] uma das cidades mais belas do mundo greco‑romano” (DOWNEY, 1963, p. 200); ou também como a “metrópole da Ásia” (WILL, 1997, p. 107 e 113); ou, ainda, como a “[...] maior cidade do Oriente romano, sede de um patriarca e de um governador que rege uma área vasta e estratégica” (FOSS, 1997, p. 190). De fato, essa cidade pode ser considerada singular. Essa distinção ocorre em razão de seu território,4 sua arquitetura,5 seus mosaicos,6 seus conflitos sociais e político‑religiosos,7 sua população,8 sua religião9 e, certamente, por causa também de seus corpora documentais10 que apresentam os vestígios e os sinais para a escrita da história da cidade. Os documentos que versam sobre Antioquia, que sobreviveram ao tempo, bem como sua historiografia são uma rica e interessante fonte de dados e informações sobre a administração, a sociedade, a cultura e a política da cidade, no particular, e do Império Romano, no geral. Na atualidade, dispomos de uma extensa documentação que se Antioch de, incluída na obra A select library of the Nicene and Pos‑Nicene Fathers of the Christian Church, v. IX, de P. SCHARFF, de 1996. Em grego, ver: PG, XVII, 176. Em inglês: “What then is after all the dignity of this city of ours? ‘It came to pass, that the disciples were first called Christians at Antioch (At. 11, 26)’. This dignity, none of the cities throughout the world possesses, not even the city of Romulus herself! For this it can look the whole world in the face; on account of that love towards Christ, that boldness an virtue”. 4 O território da cidade é considerado como estratégico em termos militares. Além disso, ainda podemos incluir a questão da fertilidade da terra que permitia favoravelmente o plantio de grãos. 5 A paisagem urbana, constituída de casas, teatros, palácio, termas, ruas, aquedutos são consideradas distintas e grandiosas. Em Antioquia, observa-se a existência de reservatórios e aquedutos que compõem um dos melhores sistemas de suprimento de água (DOWNEY, 1961, p. 30). 6 Antioquia também é famosa pelos mosaicos que foram encontrados nas escavações. 7 Antioquia foi palco de uma série de conflitos importantes em termos de sua amplitude e impacto dentro do Império Romano. 8 A distinção populacional, por vezes, pode ser referida em termos de quantidade, densidade e diversidade. Em muitos estudos, observa-se a preocupação no que se refere ao número populacional em Antioquia, em termos de ocupação, densidade demográfica bem como em pesquisa das relações de sociabilidade entre os grupos sociais de Antioquia (Cf. SILVA, 2007, p. 1‑15; DOWNEY, 1958, p. 84‑91) 9 Em Antioquia, a religião apresenta particularidades. 10 Para os antigos, Antioquia tinha uma posição privilegiada na hierarquia das cidades romanas antigas haja vista não somente a grande quantidade de documentos que nos dão relatos sobre a existência e configuração dessa cidade, mas também a qualidade, a significância e a importância dada à cidade nos testemunhos como uma evidência de sua singularidade.

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ampliou, sobretudo, a partir das campanhas de escavação11 do sítio arqueológico de Antioquia, localizado em áreas ao Norte da Síria, próximas ao Rio Orontes e junto à fronteira da Turquia, entre os anos de 1932 e 1939. Na época das escavações, William Alexander Campbell (1934, p. 201), realmente, havia afirmado que se sabia pouco sobre a história de Antioquia e as escavações, em última instância, esclareceriam muitos problemas importantes em termos históricos e artísticos.12 De acordo com Lawrence Becker e Christine Kondoleon (2005, p. 4), havia, há muito tempo, o interesse em escavar a região onde se localizava a cidade antiga de Antioquia, mas foi somente na época pós-I Guerra Mundial que as condições políticas e econômicas se tornaram favoráveis às escavações em Antioquia que se iniciariam em janeiro de 1931. As escavações contribuíram, certamente, para a ampliação do nosso conhecimento sobre a história de Antioquia que pode ser construída a partir das documentações escritas bem como de uma “cultura material”13 que inclui não somente, mas também os artefatos arqueológicos, a iconografia, a epigrafia.14 Nas escavações, foram encontradas ruínas de casas romanas, de vias e estradas, de muros, fragmentos de mosaicos, estátuas e estatuetas, moedas locais, inscrições, cerâmicas, ruínas do hipódromo, aquedutos, a estrutura completa da antiga ponte sobre o rio Orontes (DOWNEY, 1961, p. 24‑45). Na época e em anos posteriores, as escavações e as descobertas desses objetos promoveram uma explosão de novas pesquisas e estudos sobre Antioquia. A ampliação das fontes de conhecimento sobre Antioquia e a disponibilidade dessa cultura material continuam presentes na contemporaneidade,15 e a história dessa cidade antiga pode e precisa

11 As escavações foram empreendidas em nome do Committee for the Excavation of Antioch and its Vicinity e com o apoio institucional de Princenton University, do Musées Nationaux de France, do Baltimore Museum of Art e do Worcester Art Museum (CAMPBELL, 1934, p. 201; SLOANE, 1936, p. 175; LAWRENCE, 1942, p.185; METZGER, 1948, p.74; MOREY, 1935, p. 9). 12 N.T. (A tradução deste excerto para o português é nossa): “It is hardly necessary to point out that very little is known about Antioch, the great capital of Roman Asia, and that the excavation of the site will ultimately clarify many problems of historical and artistic importance”. 13 Nossa utilização aqui do conceito de cultura material segue o mesmo sentido oferecido pelo autor Pedro Paulo Abreu Funari (2003, p. 25). 14 Precisamos salientar que, em nossa presente pesquisa, não utilizaremos a fértil cultura material. Nossa documentação é composta, prioritariamente e sobretudo, de fontes escritas. Não obstante, achamos importante o conhecimento e a difusão das diferentes possibilidades documentais para o estudo e pesquisa da história de Antioquia e, consequentemente, da história do Império Romano. 15 O interesse por Antioquia e sua história não deixou de existir. Os estudos sobre os mosaicos parecem receber novos estímulos. Em 2000, a curadora em arte grega e romana da Wocester Art Museum, Christine

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ser escrita a partir da conjunção dos diferentes suportes documentais quando disponíveis. Não obstante, o objeto de nossa reflexão, no presente texto, recairá sobre a historiografia que se fundamentou não exclusivamente mas também nas documentações escritas. Buscaremos compreender a maneira como essa documentação em particular foi explorada e nós nos deteremos nas historiografias que versaram sobre o período romano, especificamente, a história do Império Romano, considerando o espaço específico da cidade de Antioquia. Para o período romano imperial da cidade, no decorrer do século IV d.C., dispomos de fontes escritas importantes: As Crônicas de João Malalas,16 o Misopogon do imperador Juliano,17 o conjunto das obras de Libânio de Antioquia18 e de João Crisóstomo.19 Dados os limites desse texto, consideraremos uma outra delimitação. A historiografia da qual trataremos aqui se constituirá de obras de referência quando o tema for a história da cidade de Antioquia de Orontes e, em particular, o tratamento dispensado às documentações de Libânio de Antioquia e João Crisóstomo nessas obras historiográficas.

Kondoleon, anunciava uma exposição intitulada Antioch: the Lost Ancient City na qual exibiria, pela primeira vez, todos juntos, os objetos descobertos nas escavações ocorridas entre os anos de 1932 e 1939. A exposição foi dividida em quatro grandes temas: “A cidade e as pessoas”; “A vida urbana: banhos e entretenimento”; “Jantando na Antioquia Romana” e “O culto na cidade”. 16 João Malalas nasceu em Antioquia por volta de 490 d.C. e é considerado, frequentemente, como um cronista bizantino. As Crônicas de Malalas representam uma importante documentação para a história e topografia de Antioquia (DOWNEY, 1937, p. 141). De acordo com Mary Whitby (2007, p. 286), estão organizadas em 18 livros que se dividem tematicamente em três partes: seis livros se ocupam do tema da história dos Hebreus e do Velho Testamento, outros seis livros se referem à Roma e o restante da obra diz respeito ao Império Romano, que essa autora classifica como “cristão desde Constantino”. 17 As obras do imperador Juliano, conhecido como Apóstata, por sua vez, também nos relatam dados significativos sobre as cidades, de modo geral, e, particularmente, sobre a cidade de Antioquia. O imperador Juliano concedeu um valor especial ao espaço urbano, a urbs, em termos de estimular e promover construções fornecendo subsídios em prol da restauração e fortificação das cidades do Império (CARVALHO, 1995, p. 65‑69; CARVALHO, 2005, p. 113‑23). Sobre a cidade de Antioquia, em particular, Juliano nos legou o Misopogon, classificado como uma sátira. Nessa obra, segundo Downey (1939, p. 305), Juliano pretendia satirizar ele mesmo e a barba do filósofo numa metáfora “[...] capaz de expurgar o desapontamento e sua amargura contra o povo de Antioquia”. Se, por um lado, o Misopogon parece oferecer dados sobre a personalidade do imperador, por outro, apresenta vestígios do contexto social da própria obra e do seu autor. Para Maud W. Gleason (1986, p. 107‑108), como o Misopogon foi escrito, provavelmente, em finais de janeiro e início de fevereiro de 363, durante as festividades das Calendas, essa sátira, que é vista geralmente como “um inexplicável lapso da dignidade imperial”, pode ser mais bem compreendida como uma resposta às insatisfações imperiais com relação ao povo, se colocada dentro do contexto da festa. Além disso, o Misopogon também pode oferecer elementos da relação daquele imperador com os antioquenos e seus canais de comunicação por meio dos quais estes fazem conhecer as suas demandas. 18 As obras de Libânio são numerosas e podem ser encontradas nas Coleções da Loeb Classical Library ou nas Coleções da Les Belles Lettres. 19 Documentação vasta que pode ser encontrada nas Coleções da Patrologia Graeca de Migne ou nas Coleções da Sources Chrétiennes.

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Fundamentados na documentação escrita desses dois autores, mas oferecendo um destaque especial para a documentação de Libânio, J. H. W. G. Liebeschuetz, Paul Petit e A. J. Festugière produziram obras monumentais que nos apresentam Antioquia. São referências sobre o estudo da vida administrativa, política, econômica e cultural dessa cidade. Na obra Antioch: city and imperial administration in the Later Roman Empire,20 J.H.W.G Liebeschuetz (1972, p. xiiii) afirma que, “[...]de todas as províncias, Antioquia é a mais conhecida e isto deve‑se à sobrevivência dos escritos do antioqueno Libânio”. Complementa ainda: “[...] as cartas e os discursos de Libânio têm sido de fácil acesso por causa das obras de uma sucessão de excelentes pesquisadores, notadamente, Reiske, Sievers, Seeck, Pack, Petit e Norman”. Libanius et la vie municipale a Antioche au IVe siècle après J.‑C., de Paul Petit (1955),21 é uma obra monumental que se tornou referência obrigatória quando o tema estiver relacionado com a província de Antioquia e com Libânio. A Antioche païenne et chrétienne de A. J. Festugière,22 conforme Robert Lamberton (2007, p. 1), “[...] forneceu um lugar proeminente a Libânio”. De fato, se observarmos, inicialmente, a proposta de Festugière, o livro, em sua maior parte, fundamenta-se na obra de Libânio de Antioquia. O autor versa, por exemplo, acerca dos alunos de Libânio. Argumenta, ainda, em favor desse autor antigo como um educador em Antioquia. Além disso, disponibiliza uma tradução francesa de Antiochikos, obra laudatória à cidade de Antioquia. Têm-se também as três obras de Glanville Downey: A history of Antioch in Syria: from Seleucus to the Arab conquest (1961),23 Ancient Antioch (1963)24 e Antioch in the age of Theodosius The Great (1962).25 Na primeira, Downey (1961, p. 9) diz que temos, por sorte, uma documentação excepcional sobre a vida social, econômica, cultural e administrativa de Antioquia no decorrer da metade final do século IV, da qual sabemos, por intermédio de um volumoso corpus de escritos de Libânio, “suplementados” por João Crisóstomo, o imperador Juliano e Amiano Marcelino. Downey (1961, p. 373) ainda afirma sobre o tema da vida 20 N.T. “Antioquia: a cidade e a administração imperial no Império Romano Tardio” (Tradução nossa). 21 N.T. “Libânio e a vida municipal em Antioquia no IV século d.C.” (Tradução nossa). 22 N.T. “Antioquia pagã e cristã” (Tradução nossa). 23 N.T. “A história de Antioquia na Síria: desde Seleuco à conquista árabe” (Tradução nossa). 24 N.T. “A Antioquia Antiga” (Tradução nossa). 25 N.T. “A Antioquia na época de Teodósio, o Grande” (Tradução nossa).

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municipal em Antioquia:

A vida administrativa de Antioquia durante a segunda metade do século é um dos temas da história da cidade do qual nós temos mais informações. Nosso material abundante sobre a vida social, política e econômica deste período é fornecido primariamente pela volumosa obra preservada de Libânio cujas orações, panfletos e cartas preenchem seis volumes das edições de Taubner. Evidências adicionais desse período podem ser extraídas das obras de João Crisóstomo, do imperador Juliano e de Amiano Marcelino mas Libânio constitui nossa documentação principal.

Esse conjunto de obras consideradas clássicas é valioso dentro da historiografia sobre a cidade. No entanto, se, por um lado, contribuiu significativamente para o nosso conhecimento da história de Antioquia, por outro, significou, de algum modo, uma maior valorização da documentação de Libânio como fonte de informações principais acerca da cidade antiga em detrimento de outras documentações, como a de Amiano Marcelino, do imperador Juliano e, principalmente, de João Crisóstomo, que são consideradas como “suplementares”. Na realidade, todas essas obras são igualmente importantes e valiosas. As documentações nos fornecem informações significativas embora de maneiras diferentes. No que se refere à nossa reflexão, em particular, a maior valorização com relação às orações de Libânio de Antioquia, em detrimento das homilias de João Crisóstomo, relaciona‑se, por um lado, com uma tradição e autoridade atribuída a Libânio e seus textos, inicialmente, pelos seus contemporâneos e, posteriormente, incorporada por uma historiografia particular. Por outro lado, a maior exploração dos testemunhos desse sofista também se vincula ao paradigma histórico voltado para o estudo de aspectos sociais. Para uma determinada historiografia, as obras de Libânio detinham mais dados de ordem social enquanto as obras de João Crisóstomo se restringiam a dados de caráter religioso, pastoral e teológico.26 Na verdade, podemos compreender e extrair das

26 De fato, João Crisóstomo, ao discutir trechos da Sagrada Escritura, enfatiza a doação de esmolas e a necessidade de assistência ao pobre. Provavelmente, a enfática insistência em discorrer sobre a riqueza, a pobreza e a caridade tenha contribuído para a quantidade de referências bibliográficas sobre esses temas, de representação numérica significativa na historiografia. O destaque ao assistencialismo presente em seus escritos é um sinal da própria tendência do Cristianismo a voltar-se para os segmentos mais marginalizados da sociedade

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obras de João Crisóstomo, como homilias, dados e informações constituintes de uma História considerada social bem como de uma História Política (cf. ALLEN, 1991, p. 1‑5; HUNTER, 1989, p. 117‑136). Paul Petit, Andre Festugière, Glanville Downey e J.H.W.G. Liebeschuetz são autores cujas obras contribuíram e contribuem significativamente para a compreensão da história da cidade de Antioquia. A importância das obras desses autores é inestimável. Não obstante, devemos considerar que essas obras são inscritas em um tempo e um espaço. Dessa maneira, ao manusearmos as obras, nesse caso particular, e a historiografia, de modo geral, a preocupação com o contexto no qual escreve o autor deve sempre ser considerada. Logo, a historiografia também deve ser concebida como um documento por meio do qual construiremos um objeto de pesquisa. Em nosso caso particular, compreender o lugar preeminente alcançado pela documentação de Libânio em detrimento da de João Crisóstomo. Referências

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romana imperial tardia. Pela forma recorrente com que estimula o socorro aos mais necessitados, o autor é estudado a partir de seu envolvimento com as questões sociais. A historiografia retrata sua imagem como a de um ser preocupado, principalmente, com questões de caráter social e de interesse pastoral, por exemplo, o assistencialismo. Mas essa característica da historiografia, se, por um lado, contribui para a compreensão da época em que viveu Crisóstomo, da história do Cristianismo e da sua biografia, por outro, destitui a personagem de sua dimensão política.

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Jerusalém, a cidade da paz: idealização e realidade Sergio Alberto Feldman

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cidade de Jerusalém alterna momentos de paz e de guerra em sua

longa história. Considerada sagrada pelas três religiões monoteístas do Ocidente, tem sua aura exaltada por fiéis através dos tempos e da memória coletiva. Por ser considerada sacra para três religiões, apresenta uma complexa rede de significados e símbolos que compõem sua identidade de cidade sagrada. Devemos definir de maneira sucinta o que seria a sacralidade. Faremos uso do conceito de hierofania. Eliade ([19-?], p. 25) diz que o sagrado se manifesta em meio ao profano, diferenciando-se dele. O sagrado pode se apresentar, no mundo natural, por meio de manifestações do sobrenatural, seja este apresentado na forma de mitos fundadores ou de outras manifestações: ora trata-se de cosmogonias ou teogonias, ora da Revelação Divina direta ou feita por meio de seus intermediários, enviados ou iluminados. O espaço dessas manifestações adquire uma aura mágica e impregna seu significado de múltiplos simbolismos e poderes ora taumatúrgicos, oferecendo curas mágicas e inexplicáveis pela razão humana, ora de salvação espiritual. O espaço sagrado por vezes é o local de diálogo entre o fiel, a divindade, a mística comunicação entre o mundo natural e o sobrenatural. Assim se definem os limites do sagrado e do profano, tanto no tempo, quanto no espaço. As manifestações passadas e presentes do divino e de seus representantes reais ou simbólicos definem espaços sacralizados, que, por vezes, extrapolam o sentido dos fatos ocorridos e adquirem, na memória coletiva e no imaginário, uma dimensão muitas vezes superior ao real.

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Como se criou a sacralidade hierosolomita? O ponto de partida se localiza em remotas eras, e em mitos antigos que se mesclaram à tradição judaico-cristã. A referência judaica tradicional é a localização do suposto local no qual Abraão teria levado seu filho Isaac para imolá-lo a pedido do Deus único. Nas palavras da narrativa bíblica: “[...] Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaac, a quem amas, e vai-te a terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto [...]” (GÊNESIS, c. 22, v. 2). A tradição aponta que esse local seria o mesmo onde posteriormente se ergueria o santuário do templo de Jerusalém, mandado construir pelo rei Salomão. Dois momentos de consolidação de um pacto de Deus com o Povo Eleito. Há evidências que apontam para a associação do local do santuário com o suposto local do “quase sacrifício” de Isaac, como uma maneira de sacralizar o espaço que, até a conquista da cidade jebusita (Cananeia) por David, era local de um santuário não judaico. David seria o protagonista de sua inserção na condição de capital de todas as tribos hebraicas ou os “filhos de Israel”. Como isso foi feito? A conquista da cidade por David se deu por meio de um estratagema. A cidade não era fácil de ser conquistada, visto estar em uma elevação, tendo dois vales a circundá-la ao leste e a oeste. David descobriu uma passagem subterrânea de água e enviou alguns soldados experientes para adentrar na cidade pelo canal de abastecimento secreto e abrir seus portões (SAMUEL II, c. 5). Num caso pouco comum, não se fala de massacre, apenas de ocupação da cidade. Após a tomada da cidade pelos hebreus, há uma reordenação do espaço e a institucionalização dos novos poderes. Estabelecem-se o palácio real e um local para alocar a Arca Sagrada, que guardava as Tábuas da Lei. Os escribas frisam com ênfase que David comprou o terreno no qual seria construído o santuário por seu filho e sucessor, Salomão, de um jebuseu denominado Aravna ou Arauna (SAMUEL II, c. 24, v. 24). A escolha foi divina e a compra foi efetivada nos termos da lei vigente, por meio do pagamento. Isso para determinar a absoluta legalidade da aquisição e, ao mesmo tempo, a sacralidade do espaço, de acordo a vontade divina. Deus não permite que David erija o Templo (SAMUEL II, c. 7) e designa seu filho e sucessor para fazê-lo. A tradição judaica afirma que isso se deu por David ter sido um rei que se envolveu em guerras e tinha “as

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mãos sujas de sangue”. A paz teria que ser associada à sacralidade. Esse conceito é novo e sua construção demandará um processo evolutivo, pois, até então, a luta sagrada era a referência da inserção dos hebreus no espaço cananeu. O conceito de luta em “nome de Deus” e para propósitos divinamente inspirados sobreviverá nas três religiões monoteístas. A incumbência de construção do santuário ficaria para seu filho e herdeiro, Salomão. Há minuciosos detalhes do processo de construção do Templo, no Primeiro Livro de Reis (c. 6). O Templo adquire a aura de ser a “casa do Deus de Israel”. O espaço se sacraliza para sempre. A partir desse momento, em nossa interpretação, configura-se um calendário histórico-agrícola de festas judaicas, nas quais se faziam peregrinações ao Templo Sagrado para celebrar oferendas em ação de graças pelas colheitas e, ao mesmo tempo, recordar os eventos “fundadores do pacto”: a libertação do povo da escravidão no Egito faraônico, o Êxodo e a conquista de Canaã que consuma o Pacto. Isso se faz com a determinação das datas de Pessach (Páscoa Judaica que recorda o Êxodo) na primavera, de Shavuot (Festa das Semanas ou da Entrega da Lei) no verão e de Sucot (Festa das Cabanas ou Tabernáculos, que recorda os 40 anos no deserto), no outono. Assim, consolida-se um calendário religioso de peregrinações que une os marcos históricoreligiosos com o calendário agrícola (estações do ano) e dá à cidade e ao Templo uma centralidade necessária para consolidar a unidade das tribos e da monarquia como representante terrena do Pacto do povo com Deus. O tempo começa a obter sacralidade desde que associado ao espaço sagrado. A centralidade da cidade se une ao simbolismo geográfico: situada no topo de uma cadeia de montanhas, na região da Judeia, na passagem entre o litoral e a depressão sírio-africana, que tem seu ponto mais “profundo” no Mar Morto (menos 397m, ou seja, abaixo do nível do mar Mediterrâneo). Assim sendo, chegar a Jerusalém adquire a perspectiva de “ascensão”, pois, de todos os lados se sobe para lá. Em hebraico, não se diz peregrinação, mas sim “subida a pé” (aliah baregel). Dirigir-se à cidade de Jerusalém seria uma ascensão ao topo do mundo. Mesmo estando a meros 800m acima do nível do mar, seria uma elevação espiritual, que se afigura ao fiel se aproximar do “monte sagrado”. Eliade (1956, p. 50) define o conceito de axis mundi ou eixo do mundo: seria a viga mestra do cosmos, de onde se eleva à divindade ou se preci-

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pita nos abismos. Outro conceito seria o da montanha cósmica, presente em várias crenças. No Oriente e no Ocidente, há diversos locais elevados que seriam uma espécie de centro do universo: “[...] Montanhas – míticas ou reais – situadas no Centro do Mundo [...]” (ELIADE, 1956, p. 51). Tal como outros lugares, a cidade de David adquire o papel de centro do universo, de umbigo do Mundo. Sua localização na Ásia Ocidental permite “enxergá-la” como a conexão dos três continentes: Europa, Ásia e África. O nome da cidade é outro fato controvertido: possui cerca de uma dezena de nomes. Como uma cidade jebuseia ou jebusita, teve como nome inicial Yevus. A seguir, adquire o nome de cidade de David ou, em hebraico, Ir David, homenageando seu conquistador e um dos criadores de sua aura (SAMUEL II, c. 5, v. 9), mas o nome que prevalece é Jerusalém. Não há concordância sobre o seu significado, mas deve ter sido cidade de Shalem: (Uru em sumério=cidade) de Shalem (algum personagem divino ou humano) (STAHL, 1995, p. 24). A tradição, simbolicamente, diz que se trata de seu destino inscrito na sua etimologia: Ierushalaim (Jerusalém em hebraico) seria Ir (cidade) Shalom (Paz). Há certa imprecisão na “adaptação” da tradução, um tanto quanto forçada, mas o que prevalece é a simbologia criada e perpetuada pela memória coletiva. E como a paz se associou a seu destino e à sua história? Não dedicaremos nossa reflexão aos invasores, às guerras e batalhas, que foram as mais diversas e trágicas, mas à convivência urbana, dentro dos muros da cidade. O símbolo e o mito transcendem a realidade dos fatos: uma cidade onde os conflitos ocorreram muitas vezes, os invasores se sucederam e a paz é um tênue simbolismo de uma era vindoura, um sonho milenarista. Com se deu o cotidiano de compartilhamento de espaços, de ideias, de conflitos entre etnias e religiões entre os elementos que compuseram sua História? Alguns milênios de História não caberiam neste texto. Faremos alguns recortes temáticos e optaremos por buscar momentos de crise e de alçamento de conflitos. Nossa escolha leva em conta o mundo antigo e o início do medieval.

O período do Primeiro Templo O primeiro momento seria no período dos Profetas, no final da época

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denominada “Primeira Comunidade” ou “Primeiro Templo”, entre os anos c. 1000 (conquista da cidade por David) e 586 a. E. C. (conquista da cidade pelos babilônios e destruição da cidade e do primeiro Templo por Nabucodonosor). Nesse período, aparentemente, há uma convivência pacífica entre os hebreus e os jebuseus, como já afirmamos. Narra a Bíblia que David não massacrou a população local, como era comum nas guerras do mundo antigo e nem a escravizou. Chegou a negociar com Arauna, um jebuseu, o terreno aonde seu filho Salomão viria a erigir o Templo sagrado, pagando seu valor pleno (Samuel II, c. 24). A lenda talmúdica afirma que o rei chegou a adquirir, a peso de ouro, a cidade, pagando a seus habitantes por sua posse (STAHL, 1995, p. 18-19). Isso deixa margem a dúvidas, mas seria um início pacífico à sua história. Não há notícias de conflitos entre hebreus e jebuseus. Os primeiros conflitos aparecem entre os profetas e a elite dominante do reino de Judá. Os profetas eram severos críticos do abandono do Pacto com o Deus único, tendo setores da população optado pela idolatria e por vezes pelo politeísmo, cultuando tanto a Deus quanto a Baal e/ou Astarte (ou Baalim e Astarot=pl. dos nomes desses deuses). A diplomacia e as alianças com reinos vizinhos (Egito e/ou Assíria e/ou Babilônia) traziam acertos e acomodações que geravam espaço a cultos estrangeiros e demonstravam a falta de confiança na proteção de Deus. Também eram criticadas pelos profetas. Por fim, a crise social e a miséria eram consideradas pelos setores abastados da população como um problema ao qual pouca preocupação os estamentos superiores devotavam (LODS, 1958, p. 111-128; 129-143). Os profetas são severos críticos dessa caótica situação pública e advertem para o pacto social embutido na partilha da terra por Deus, ao adentrarem Canaã: consideram a sociedade tradicional de pequenos proprietários livres produtores como um dos eixos do Pacto, sem o qual Deus abandonaria e castigaria o povo e a cidade (FELDMAN, 2008). Há aqui um confronto social e político que não pode ser desprezado, sob a ótica de um conflito apenas religioso: os profetas eram os defensores da fé no Deus único e do Pacto, mas também da pequena propriedade e da estabilidade social. A cidade deve ter sido palco de agitação e enfrentamento entre os “sem-terras” da época, liderados pelos profetas com os latifundiários e sacerdotes a eles associados. Primeiro round de um embate na Cidade Sagrada. No olhar dos escribas que relataram esse

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período, o cerco e a destruição da cidade pelos babilônios em c. 586 a. E. C. e o exílio e cativeiro de meio século na Babilônia foram o resultado dessas atitudes idolátricas e de desprezo à justiça social. Deus interviera no andamento dos fatos e castigara o seu povo por tal postura que contradizia a essência do Pacto.

O Período do Segundo Templo e o período romano-bizantino

A segunda época de conflito que selecionamos ocorreu no período do Segundo Templo. Há alguns conflitos interessantes. Selecionamos dois. O primeiro ocorreu na cidade que se helenizou após a conquista do Império Persa por Alexandre e a criação de reinos helenísticos por seus generais que estabelecem dinastias: os Ptolomeus e os Selêucidas se revezam no domínio da cidade, quando há um franco processo de helenização no seio dos setores médio e alto da população urbana. Ser “grego” ou helenizado era um sinal de civilização, de nível cultural mais elevado. Isso entrava em conflito com a maneira de ser dos judeus tradicionais: um exemplo seria o conceito ateniense de “ócio”. Além da política, inseriamse nesse conceito atitudes e práticas não adequadas ao Judaísmo, como exercitar-se nu. O culto do corpo do homem grego não se coadunava com a visão do corpo e de sua função, no Judaísmo Clássico. Era um escândalo aos judeus tradicionais ver jovens judeus helenizados praticando esportes em plena Cidade Sagrada. Tal conflito se estende a outras práticas. Ocorre um choque cultural entre a sociedade tradicional judaica e os elementos urbanizados e helenizados que adotam um estilo de vida “mais civilizado”. A revolta dos “Macabeus”, no séc. II a. E. C., dará uma solução momentânea ao conflito; os helenizados são derrotados e se estabelece uma dinastia de “reis-sacerdotes” que reinará por cerca de um século: a dinastia dos Hashmoneus. Uma festa é inserida no calendário histórico religioso que celebra a vitória dos “poucos” camponeses contra o poderoso império helenístico: a festa se denomina Chanucá (reinauguração do Templo), mas reflete, entre outras coisas, o conflito entre o Judaísmo e o Helenismo que se deu no contexto da Cidade Sagrada: o primeiro conflito entre duas concepções do mundo antagônicas, ocorrido no espaço da Cidade Sagrada. A tra-

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dição judaica afirma que o Templo foi profanado e que o culto foi dirigido a uma estátua de Zeus, e impregnado de gestos ofensivos ao Judaísmo: sacrifício de porcos, animal considerado impuro pelas normas judaicas. A reação foi a revolta acima citada e a expulsão dos Selêucidas. Em nosso entendimento, não paira dúvida de que há uma mescla de mitos e representações com a realidade e o contexto histórico. O Cristianismo surge no seio do Judaísmo e confere à cidade uma nova aura sacra. A cidade se torna o local do martírio e morte de Jesus. A sua tumba ou Santo Sepulcro e a via crucis ou Via Dolorosa se tornam o foco de peregrinações, construção de igrejas e mosteiros e alocação de novos espaços sagrados que aumentam o prestígio espiritual da cidade. O controle desses locais gerará conflitos posteriores que bem conhecemos. Não pretendemos analisar os conflitos entre judeus e cristãos neste contexto inicial, mas o faremos parcialmente adiante. O segundo conflito que selecionamos nesse período foi a revolta contra Roma. Houve mais de uma dezena de revoltas contra Roma, na Judeia. Pelo que podemos perceber, nenhum povo se revoltou mais vezes contra o poder imperial romano do que os judeus. Os motivos são multifacetados, mas, em geral, as concepções de mundo opostas no Judaísmo e na cultura romana se misturavam com o desejo judaico de liberdade que provinha da concepção de que Deus fizera um pacto com seu povo e o libertaria da dinastia davídica, tendo Jerusalém como capital. O messianismo judaico tem facetas universais e escatológicas, mas também traz em seu bojo uma dose razoável de concepções de independência e de liberdade do povo eleito, que hoje nós denominaríamos “nacionais”. Esse é um visível anacronismo que relutamos em rotular dessa maneira, mas compreendemos como motivador de um desejo de libertação que motivava as revoltas. A maior revolta contra Roma ocorreu entre os anos 66 e 70 d. E. C. O contexto inicial ou o disparador da revolta foi a maneira pela qual os procuradores romanos administravam a cidade santa, a região e desrespeitavam os costumes judaicos. Em 66, o procurador romano Floro se apropriou de donativos e bens que se destinavam ao santuário do Templo e à caridade pública. Isso exacerbou os ânimos e gerou conflitos armados. Os romanos foram expulsos da cidade e da maior parte da região. Os judeus venceram diversos exércitos romanos, até serem violentamente reprimidos e punidos. O trágico final se deu após o cerco da cidade pelos

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generais, depois imperadores, Vespasiano e Tito. A cidade foi tomada, saqueada e incendiada. O Templo ficou em ruínas e nunca mais voltou a ser erigido. No contexto dessa revolta, percebemos dissensões internas entre os judeus no seio da cidade cercada. Havia pelo menos dois grupos que ficaram sitiados e não podiam sair: a) elementos moderados e dotados da lógica dos fatos de que Roma se revelava imbatível e propunham um acordo e a rendição para poupar mortes, destruição e a inevitável derrota; b) elementos mais ou menos radicais que achavam que a luta deveria se manter e que Deus os ajudaria a vencer o inimigo mais poderoso (Roma), tal como o fizera contra os selêucidas. Neste segundo grupo, não havia homogeneidade e, na crise mais aguda, prevalecerá a facção dos zelotes, ultrarradical. E estes não podiam aceitar nenhum tipo de acordo. O grupo moderado foi considerado como traidor da causa, expulso da cidade ou chacinado. Prevalece na cidade a minoria radical dos zelotes, cujo nome se tornou adjetivo, tal a sua maneira de conceber e atuar no mundo. Muitas vezes esfaqueavam soldados romanos que agissem de maneira incauta nas vielas da cidade. Nos momentos finais da cidade, optaram por resistir até a morte e esperar pelo milagre que nunca veio: a cidade caiu e foi destruída. A história desse período pode servir de modelo da pouca aplicabilidade da radicalização na solução dos conflitos entre os grupos que participam do compartilhamento dos espaços da cidade (GRAYZEL, 1967, p. 134). Na sequência, Roma acaba impedindo o acesso dos judeus ao espaço e às ruínas dos recintos sagrados da cidade por muitas décadas. Todos os projetos de reconstrução do Templo são indeferidos e os judeus sofrem ao ver que a cidade judaica é substituída por uma urbs romana, denominada Aelia Capitolina. O espaço da cidade intramuralhas está até hoje marcado pelo conceito urbanístico romano: dois eixos centrais, um de norte a sul e outro de leste a oeste, que se interseccionam na parte central da cidade. Esse projeto se denomina “o cardo romano”. Foi descoberto após as escavações efetuadas no período posterior à reconquista da cidade velha por Israel, em 1967. O mapa arqueológico era semelhante ao mosaico encontrado em Madaba (atual Jordânia), que espelha o projeto urbanístico da urbs romana. Nessa cidade, os judeus só entrarão com permissões especiais e em momentos de celebração do luto pela perda da cidade (ou seja, no jejum de nove de Av, data da recordação da destruição dos dois Templos).

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Após a ascensão de Constantino, o Grande, nos sécs. IV e V, a cidade se torna uma cidade cristã. As restrições aos judeus se acumulam e até aumentam e, paralelamente, há um elevado nível de investimentos do Império Cristão no embelezamento das igrejas, em especial do Santo Sepulcro e da Via Dolorosa. Como dissemos, os súditos judeus do Império cristão sofrem restrições e controle estatal. A política imperial oprime duramente os judeus, a partir de Constantino (GRAYZEL, 1967, p. 153). O Código Teodosiano, editado no primeiro quartel do séc. V, ordenou e compilou essas leis imperiais restritivas aos judeus que haviam sido promulgadas durante o século anterior. Mesmo considerado ainda uma religião legalmente tolerada (religio licita), o Judaísmo estava sendo realocado como uma religião de párias (FELDMAN, 2001). O terceiro e último conflito desse período ocorreu nos sécs. VI e VII: o status judaico se tornou mais crítico, pois os judeus estavam submetidos a um rígido controle de ações e direitos após as intervenções do imperador Justiniano, francamente cesaropapista, que controlou não apenas a Igreja Católica no Império Romano Oriental (Bizantino), como também as sinagogas que estavam sob seu governo. As comunidades judaicas estavam em forte tensão, quando eclodiu a guerra entre o imperador bizantino Heráclio e rei persa Cosroes. O avanço persa para o leste foi avassalador: Cosroes atinge Antioquia em c. 612 e na década que se segue se assenhoreia de diversos espaços do Império Bizantino. Em c. 614 sitia Jerusalém. As crônicas cristãs desse evento acusam os judeus de facilitarem e até apoiar os persas na tomada da cidade. Cosroes acaba tomando a cidade e ocupando-a por cerca de uma década (ou quase uma década e meia, dependendo das fontes). Os judeus, ao que parece, celebraram o monarca persa como um libertador e, entusiasmados, apoiaram sua campanha. Certa dose de messianismo impregna o conflito: os judeus se veem salvos e protegidos sob os persas, e os cristãos veem um Anticristo profanando os Lugares Sagrados. A disputa e o domínio do espaço sagrado excitam a imaginação e exacerbam o confronto. Heráclio, vencido, promove uma espécie de “guerra santa” para recuperar seus territórios ocupados pelos persas. Para tal projeto se acentua o conflito religioso: os persas haviam destruído o Santo Sepulcro e sequestrado a Vera Cruz. Era dever da Cristandade apoiar a campanha para reavê-los. As narrativas ficam impregnadas de muita dramaticidade e de intensa polarização: os judeus são retratados como seres malignos.

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Jerusalém é o palco de sua maldade: violam recintos sagrados cristãos, atuam com violência contra os fiéis a Cristo e mostram que tudo o que fora feito pelos imperadores, antes de 614, era pouco. Heráclio readquire, de maneira sistemática e lenta, suas possessões, retomando por fim a Cidade Sagrada de Jerusalém em c. 629. Promove, então, uma violenta perseguição aos judeus e um processo de conversão forçada ou expulsão dos judeus. Essa ocorrência é apontada como um dos fatores que influenciaram as conversões forçadas de judeus no reino visigótico de Toledo, sob o monarca Sisebuto (c. 614).

O período do Islã: breve introdução

A era romano-bizantina se encerra na década seguinte com a conquista da Palestina e da Síria pelos califas muçulmanos. O Islã tolerante oferece aos hereges cristãos (nestorianos, monofisitas e outros) e aos judeus a tolerância e a proteção legal do estatuto de Dhimmis. Como essa guinada radical se deu? Os califas entendem que, sendo minoria e tendo conquistado um vasto território, deveriam adotar uma postura mais suave com as crenças existentes nos espaços tomados do Império Persa e do Império Bizantino. Tratava-se de duas civilizações antigas e profundamente enraizadas e de religiões tradicionais e praticadas por contingentes populacionais bastante significativos. Adotam uma norma corânica que define os povos iluminados por Alá, anteriormente a Maomé, como povos do Livro. Seriam os que seguem as doutrinas de Moisés e Jesus, antecessores do profeta muçulmano. Parcialmente iluminados e tendo o conceito monoteísta em sua crença, poderiam viver sob o Islã, desde que se submetessem aos poderes constituídos e pagassem impostos, uma regra de tolerância sui generis, que seria respeitada por alguns séculos. Judeus e cristãos seriam populações de segunda classe, mas teriam autonomia religiosa e jurídica interna e proteção do Estado muçulmano, desde que se submetessem ao Islã e aos poderes dos califas, emires e outros governantes. Cria-se o estatuto dos Dhimmis ou Povos do Livro, por meio de uma legislação conhecida como Pacto de Omar: aos Povos do Livro é oferecida a autonomia comunitária e jurídica em troca da submissão e respeito pelo Islã e pelos seus representantes político-religiosos. Uma era de boa

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convivência e relativamente pacífica se segue na região e, por conseqüência, dentro dos muros da Cidade Sagrada. Os muçulmanos definem Jerusalém como o “Lugar Remoto” da tradição corânica e denominam a cidade como “Al Kuds”. Torna-se a terceira cidade sagrada do Islã e objeto de reverência e peregrinação. Dentro de suas muralhas, são erigidas duas construções de caráter religioso: a mesquita de Al Aksa e o Domo da Rocha. Este último foi erroneamente denominado de mesquita de Omar. Ambos são construídos no monte Moriah, suposto local do templo de Salomão. Isso gerará conflitos que extrapolam nossa periodicidade, pois estão relacionados com o conflito árabe-israelense, pelo fato de o domo da Rocha ter sido construído no suposto local do altar de sacrifícios do 1º e 2º Templos. Reconstruir o Templo, na concepção messiânica judaica (ortodoxa), no Final dos Tempos, implicaria demolir uma ou as duas construções. À sacralidade da cidade adiciona-se o Islã. A sequência reservará ao período medieval um dos mais sangrentos períodos de conflito pela Cidade Sagrada. As Cruzadas ocorreram durante longo tempo, no qual cristãos envidaram esforços de tomada e manutenção da região em geral e dos Lugares Sagrados, em específico, a “ferro e fogo”, um radicalismo que se concretizou em massacres de fiéis judeus e muçulmanos pelos exércitos cristãos. A mortandade em nome da fé gerou reações em cadeia, mas sempre de maneira mais radical, entre os exércitos da Cristandade Ocidental. O maior exemplo foi a tomada de Jerusalém pelos exércitos da Primeira Cruzada, que precedeu ao massacre da população judaica e muçulmana, intramuros (GRAYZEL, 1967, p. 216). A pergunta que fica: quem teria exacerbado e estimulado o conceito de guerra santa, já existente nas três religiões monoteístas do Ocidente? As Cruzadas são um marco de reflexão para se entender e analisar Jihad, que ora nos atormenta e preocupa.

Conclusões parciais

Ir Shalom, ou cidade da paz, reflete mais um ideal do que uma realidade. A convivência na cidade não se deu de maneira simples e harmônica. Conflitos permearam a realidade do diálogo entre religiões, filosofias e etnias. A História, ao propor uma releitura dos fatos, almeja

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compreender a realidade, estudar sua complexidade e ajudar a oferecer novas facetas de um diálogo que poderia contribuir para a consecução do simbólico nome da Cidade Sagrada. Referências ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Lisboa: Livros do Brasil, 1956.

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LODS, Adolphe. Los profetas de Israel y los comienzos del Judaísmo. México: Uteha, 1958. STAHL, Abraham. Jerusalém nos vitrais do tempo. Jerusalém: Reches, 1995.

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Episcopados, hagiografia, cidade e relações de poder na Península Ibérica na Idade Média Central Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva

O

fenômeno da santidade no período medieval foi multifacetado,

vinculando-se a diversos aspectos da organização social, sejam representações práticas, sejam instituições. Neste texto, que apresenta conclusões parciais de uma pesquisa em curso, objetivamos traçar algumas considerações sobre a cidade medieval, as relações de poder e o fenômeno da santidade a partir de reflexões sobre a hagiografia elaborada em ambiente episcopal, produzida na Península Ibérica, nos séculos XI ao XIII, momento de maior expansão dos reinos cristãos em direção às áreas sob domínio muçulmano. Estudar as cidades medievais durante a Idade Média Central não é tarefa fácil, apesar do grande volume e variedade da documentação disponível. A questão é sintetizada por Le Goff (1992) que, em sua obra O apogeu da cidade medieval, sublinha como é árdua a tarefa de listar e definir as cidades medievais. Como explica o autor, os critérios que vem sendo levantados pelos estudiosos para identificar um espaço como cidade no medievo tem se mostrado insuficientes, como: a presença de muralhas, já que nem todas as cidades são fortificadas; a densidade demográfica, “[...] inaplicável à Idade Média, para a qual não dispomos de meios de avaliação satisfatória” (LE GOFF, 1992, p. 42); o estatuto jurídico, porque não foram criadas fórmulas jurídicas específicas para as cidades; e, por fim, as atividades econômicas, muitas das quais também eram desenvolvidas nas aldeias ( LE GOFF, 1992, p. 42-43). Além disso, os textos medievais não apresentam um vocabulário específico e geral para designar cidade (LE GOFF, 1997, p. 12) e a principal forma de dis-

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tinção dos espaços no medievo era o binômio povoado-ermo, ou seja, a divisão do espaço não era, como comumente hoje, entre áreas urbanas e rurais, mas entre as áreas ocupadas pelo homem e aquelas ainda não exploradas (ZUNTHOR, 1994, p. 14-18). Por fim, há que destacar a própria complexidade da urbanização medieval,1 sobretudo na Península Ibérica, região que vamos abordar neste capítulo, que se desenvolve de forma dinâmica, com avanços e recuos. Desse modo, optamos por nos concentrar nas cidades episcopais, onde estão as catedrais, pois, como destaca Duby (1988, p. 59), “A catedral é, por definição, a igreja do bispo. Desde os primórdios da cristianização, há um bispo em cada cidade. A catedral é, pois, uma igreja urbana”. O uso de textos hagiográficos medievais no estudo das cidades não é nenhuma novidade. Pirenne já o fez em sua obra clássica, As cidades na Idade Média, publicada em 1925. Contudo, o estudo de hagiografias para analisar as relações entre o fenômeno da santidade, o episcopado e a cidade na Península Ibérica medieval se desenvolveu especialmente na última década.2 Citamos, a seguir, alguns trabalhos. Com a preocupação de construir uma reflexão mais geral sobre a produção hagiográfica, destaca-se a obra de Pérez Embid Wamba, de 2004, que analisa textos castelhanos e leoneses elaborados do século XI ao XIII, relacionando-os com seus espaços sociais de produções. No capítulo 3, intitulado Hagiologia y sociedad en el medio episcopal, o autor estuda a produção hagiográfica das dioceses de Toledo, Osma, Santiago, Oviedo e León, dando destaque ao século XII. Dentre as abordagens mais específicas, destacamos alguns trabalhos. Bowman publicou, em 2002, um artigo sobre a vida de Ermengol, que foi bispo de Urgel no século XI, discutindo as relações de poder entre o episcopado, as famílias condais locais e os interesses dos habitantes das cidades. Nesse mesmo ano, José Luis Pérez López escreveu sobre a Vida de San Ildefonso do beneficiado de Úbeda, relacionando-a com a questão da primazia da Catedral de Toledo e do caráter arcebispal dessa

1 Adotamos a expressão utilizada por Le Goff, urbanização (1997, p. 16), já que esta rompe com a ideia de continuidade, como aponta esse autor, bem como, em nossa opinião, traduz as diversas formas de surgimento e/ou crescimento das cidades medievais. 2 Vilar (2007, p. 2) destaca que “In the 1980s and 1990s, a large number of studies were published in different national historiographies about bishops and the dominant groups of cathedral chapters in a range of dioceses in the late Middle Ages”. Verificamos, porém, que o estudo das relações entre cidade e episcopado, atento à produção hagiográfica episcopal, desenvolveu-se só a partir dos anos 2000.

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diocese, entre outros temas. Mas recentes são as publicações dos textos de Pedro Miguel Cordeiro da Costa Picoito, datados de 2005 e 2008, sobre a cidade de Lisboa e as polêmicas associadas ao traslado do corpo de S. Vicente no século XII. A organização eclesiástica da Península Ibérica em dioceses e províncias foi estabelecida no período visigodo. 3 Nos séculos VIII ao X, com a expansão islâmica, a organização da Marca Hispânica, área pertencente ao Império Carolíngio, e a organização dos reinos cristãos de AstúriasLeão e Pamplona-Navarra, a rede episcopal sofreu muitas transformações: algumas sedes foram trasladadas e outras foram desarticuladas. Como em certas áreas ao norte da península, a cristianização só se consolidou nesse período, novas dioceses foram criadas. Em certas localidades, houve continuidade da comunidade cristã, mas os bispos deixam de residir na catedral. Em outros casos, os bispos eleitos tinham origem monacal e, muitas vezes, continuaram vivendo em seus mosteiros de origem, unindo suas atividades de abade às de epíscopo. Ou seja, a antiga rede episcopal sofreu diversas alterações e os bispos tiveram seu prestígio religioso, econômico e político abalado, ausentando-se, em muitos casos, de suas cidades.4 Esse quadro começa a mudar com a desagregação do Império Carolíngio e a independência dos condados da Marca Hispânica; a organização e os conflitos entre os reinos cristãos nascentes; o avanço cristão em direção às terras sob controle muçulmano;5 os esforços para consolidar a presença cristã nas terras recém-conquistadas; a presença de religiosos provenientes de além-Pirineus, sobretudo cluniascenses e cistercienses, que vão assumir papéis de destaque na hierarquia episcopal,6 e a chamada Reforma Papal, que, dentre outros aspectos, busca fortalecer a figura dos bispos, subordiná-los a Roma e uniformizar a liturgia.7

3 Sobre o tema, ver Jorge (2002) e GOUVEIA, Mário de. Do Parochiale sueuum ao Prouinciale uisigothicum. I. Paróquias suévicas. Disponível em: e Do Parochiale sueuum ao Prouinciale uisigothicum. II. Dioceses visigóticas. Disponível em: . Acesso em: 30-10-2009. 4 Sobre as relações de poder estabelecidas com e pelos episcopados nesse período, ver Castellanos e Martın Viso(2002) e Martın Viso (1999). Este último texto trata somente de alguns bispados, Calahorra, Oca e Osma, mas o estudo dos casos particulares ajuda a iluminar a compreensão do quadro mais geral. 5 É importante destacar que a expansão cristã sofreu “reveses” devido às incursões de saque muçulmanas e, em especial, às expansões dos Almohadas e Almorávidas. 6 Alguns deles, como Geraldo de Braga, foram protagonistas de hagiografias episcopais. 7 Sobre esse tema, há um grande número de trabalhos, como o de López Alsina (2001). Um repertório bibliográfico no qual podem ser encontrados vários títulos sobre o tema foi publicado por Contreras Manjarrés, em 2001.

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Ainda encontramos uma grande influência da vida monástica no bispado e ex-monges continuaram a ascender ao episcopado, porém começam as notícias de bispos, nas cortes, exercendo funções de conselheiros, representantes reais, auxiliares no governo etc. Dessa forma, interessava aos reis o fortalecimento do poder episcopal. Assim, muitos bispados foram alvo de doações e privilégios por parte dos monarcas e a reorganização eclesiástica tornou-se, no século XI, uma meta dos reinos hispanocristãos.8 Outro elemento que interferiu diretamente na vida dos bispados hispanos durante a Idade Média Central foi a luta pela submissão de toda a Igreja sob a direção da Cúria papal a partir da segunda metade do século XI.9 Dentre outros pontos, objetivava-se: a subordinação de toda a hierarquia clerical ao bispo de Roma; a luta contra a intervenção laica nas questões eclesiais; a disciplinização do clero e a catolicalização da sociedade.10 Estas ações do papado não foram fruto de um plano meticulosamente preestabelecido, mas de um movimento que se constituiu em etapas, respondendo aos problemas internos e às demandas de vários grupos sociais. Assim, num momento de profundas transformações em todos os campos – social, econômico, político, intelectual etc. –, a Igreja, sob a liderança papal, organizou-se como instituição jurídico-canônica e redimensionou, dinamicamente, sua relação com o mundo social. Foram muitas as estratégias criadas pelo papado para instaurar a Reforma Eclesiástica. Além da ampliação e reformulação do Direito Canônico, ela regulamentou a escolha do papa pelo Colégio de Cardeais; passou a confirmar a eleição dos arcebispos; impôs o uso da liturgia romana para toda a Cristandade Ocidental; organizou a corte papal; instituiu e enviou legados como seus representantes diretos para introduzir a reforma em diversas regiões; passou a convocar concílios universais e a divulgar os decretos conciliares nas diversas províncias eclesiásticas etc.11 Nesse sentido, a partir, sobretudo, do século XI, muitas dioceses 8 Uma etapa fundamental dessa política real de reorganização da Igreja hispana foi a realização, em Coyanza, em 1055, de um concílio. Ainda que essa assembleia tenha sido convocada pelo rei castelhanoleonês Fernando I, a presença de diversos bispos, inclusive do reino de Pamplona-Navarra, demonstra o apoio dado à reforma. Esse concílio tratou de diferentes questões eclesiásticas. Dentre elas, destacamos a desobediência dos abades aos seus bispos (GARCIA GALLO, 1950). 9 Para uma explanação mais detalhada de nossa visão sobre a chamada Reforma Eclesiástica Papal, ver Silva (2009) e Rust e Silva (2009). 10 Cunhamos a expressão catolicalização da sociedade para designar as estratégias da Igreja Papal que visavam a impor a todos os fiéis, clérigos, religiosos ou leigos crenças e regras de conduta. 11 Sobre as relações entre Igreja Ibérica e Pontificado, ver a bibliografia selecionada por Diaz Ibáñez (2001).

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ganharam novo impulso, algumas foram “restauradas” e novas foram criadas. O senhorio de diversas cidades foi entregue aos bispos, que passaram a atuar como administradores locais. A rede de paróquias foi organizada, assim como a cobrança de dízimos. Ou seja, os bispos recuperam o seu prestígio religioso, político e econômico, mas não sem atritos. A nova organização política, caracterizada pela coexistência de diversos reinos cristãos, não correspondia à antiga divisão diocesana visigótica. Houve conflitos entre as sés devido aos limites entre as dioceses, sobre o senhorio de abadias e igrejas próprias, pela hierarquia entre elas — quais eram arcebispados e quais eram sufragâneas —, e com novos grupos religiosos que se instalaram nas cidades, como as comunidades de cônegos, no século XII, e depois os mendicantes, no XIII. Nesse período de transformações e conflitos, foram produzidas, nas catedrais episcopais, diversas hagiografias, com características e objetivos diversos. Para discutir os usos das hagiografias pelos episcopados, vamos utilizar os dados coletados pela equipe do projeto Hagiografia e história: um estudo comparativo da santidade, que coordenamos.12 O projeto tem como objetivo estudar as trajetórias e a produção hagiográfica da Península Ibérica e Itálica nos séculos XI ao XIII, a partir de alguns eixos: o caráter propagandístico das hagiografias; o crescimento da espiritualidade leiga; a organização da Igreja sob a liderança do Papado; a coexistência e os conflitos entre as crenças e práticas da religiosidade, ou seja, as não oficiais, e as impostas por Roma; os discursos de gênero; e os centros intelectuais. Ao iniciarmos a pesquisa, constatamos que ainda não havia sido feito um inventário da produção hagiográfica nem dos dados sobre as pessoas consideradas dignas de veneração nos recortes espacial e temporal analisados. Assim, começamos a montagem de bancos de dados, com informações sobre os textos hagiográficos e santos. A pesquisa ainda está em andamento, mas o banco de dados da hagiografia ibérica já está publicado e disponível. 13

12 Este projeto é desenvolvido no Programa de Estudos Medievais e no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ, com o envolvimento de pesquisadores em diversos níveis de formação e diferentes instituições. Está registrado no Sigma-UFRJ, sob o nº 5.013 e vinculado ao Grupo de Pesquisa Programa de Estudos Medievais, cadastrado no Diretório de Grupos do CNPq desde 2002. Mais informações sobre esse projeto podem ser encontradas em: . 13 O banco de dados sobre as hagiografias ibéricas já foi publicado e está disponível em: .

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Foram inventariadas 128 hagiografias. Os critérios empregados na seleção das obras privilegiaram: a transmissão, por manuscritos e/ou edições impressas; a composição por pessoas que nasceram ou viveram na região da Península Ibérica; e a elaboração ou a inserção de interpolações significativas entre os séculos XI e XIII. Para a coleta dos dados, utilizamos: edições críticas das hagiografias; trabalhos historiográficos; estudos filológicos e obras dos colecionadores dos séculos XVIII e XIX, como España Sagrada e Viage literario a las iglesias de España. Para a preparação deste trabalho, utilizamos unicamente os dados referentes às hagiografias ibéricas. Estamos ciente de que o material reunido não reproduz o conjunto da produção hagiográfica ibérica centro-medieval, pois várias obras se perderam ou sofreram alterações na sua transmissão; ainda há hipóteses diversas sobre a autoria, datação, processo de composição e local de redação de muitas obras e, em nosso trabalho, só foram coletados os dados que consideramos relevantes para a nossa pesquisa. Esses dados permitem, porém, traçar um quadro referencial sobre a produção hagiográfica episcopal do período. Do conjunto de obras inventariadas, 49 foram compostas em ambientes episcopais e, portanto, em cidades.14 Destas, duas ainda são objeto de muitos debates quanto à datação ou local social de composição;15 assim, não foram consideradas neste trabalho. Também é importante destacar que os cinco livros de temáticas diferentes que compõem a compilação conhecida como Liber Sancti Jacobi foram tratados separadamente.16 Dentre os muitos dados coletados, optamos por trabalhar, neste texto, com cinco aspectos: datação, diocese de composição, santo protagonista, forma literária das obras hagiográficas e temática central. Por fim, sublinhamos que a abordagem adotada para a elaboração deste trabalho foi quantitativa. Foram objeto de análise as hagiografias: 1. Acta ss. Martyrum Claudii, Luperci et Victorici;

14 Vale destacar que, a partir do século XII, foram constituindo-se outros centros de produção hagiográfica em ambientes urbanos: nas comunidades de cônegos, na corte real e em conventos mendicantes. 15 São elas: Legenda de Santa Casilda e Liber de miracuis S. Isidori. Em relação à primeira, discute-se a datação: se foi produzida no século XI ou no XV. Quanto à segunda, se foi elaborada na diocese de Tuy ou na Colegiada de S. Isidro de León. 16 Há múltiplas discussões sobre a autoria dos livros que compõem o Liber Sancti Jacobi. Independentemente da discussão sobre a autoria, incontestavelmente, a compilação relaciona-se com a diocese de Santiago de Compostela e com o governo de Diego Gelmirez. Sobre o tema, ver Silva (2008, p. 35-38).

108 2. 3. 4. 5. 6. 7.

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Breviarium ecclesiae catholicae; Conversio Beatae Afrae; Crônica de São Sebastião (interpolações); De revelatione b. Braulonis episc. Caesaraugustani; De translatione reliquiarum et miraculis S. Jacobi Apostoli; Epistola Berengarii Episcopi Gerundensis de Reliquiis Sancti Narcisi, Felicis et aliorum; 8. Incipiunt miracula sancti Vincentii martiris; 9. Inventário das relíquias de Oviedo; 10. Legenda Asturicense; 11. Legenda de SS. Laurentio, Valerio et Vincentio; 12. Legenda s. Barnabae; 13. Liber Sancti Iacobi I - Ofícios litúrgicos; 14. Liber Sancti Iacobi II- Liber miraculorum; 15. Liber Sancti Iacobi III - Trasladação de S. Tiago e suas festas; 16. Liber Sancti Iacobi IV - Historia Turpini; 17. Liber Sancti Iacobi V – Guia de peregrinação; 18. Liber Testamentorum Ecclesie Oventensis; 19. Martyris festum rutilat, beati Ecce Marcelle Populi venite; 20. Miracula Post Mortem servi dei autoritate Episcopi Tudensis D.AEgidi examinata; 21. Miracula s.Vicentii; 22. Officium in festa s. Odonis; 23. Passio Sancti Marcelli et Martiris Christi (interpolação); 24. Passio Sancti Vincentii Abbatis et martyris; 25. Passio S. Eulaliae Barcinonensis; 26. Passio Vincentii, Sabine et Cristete; 27. Relatio de translatione S. Vicentii martyris; 28. Reliquiae in celebri arca Ovitensi; 29. Sermo Olivae Episcopi in Natali Sancti Narcisi Episcopi, Confessoris & Martyris Christi; 30. Translatio beati Raymundi in sepulcrum lapideum; 31. Translatio brachii sanctii Eugenii Toletum; 32. Viagem de Trezenzónio ao Paraíso; 33. Vida de San Ildefonso; 34. Vita altera S. Joannis Gualberti; 35. Vita beati Olegarii;

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36. 37. 38. 39. 40. 41.

Vita beati Raymundi Episcopi Rotensis; Vita et miracula S. Odonis episc. Urgellensis; Vita posthuma S. Petri Oxomensis; Vita sancti Froylani episcopi legionensis; Vita sancti Geraldi; Vita S. Bernardi monachi, abatis monasterii S. Salvi Valliumbrosae; 42. Vita S. Ermengaudi episc. Urgellensis; 43. Vita S. Isidori do breviário de Braga; 44. Vita S. Isidori do breviário de Soeiro; 45. Vita S. Petri episc. Oxomensis; 46. Vita SS. Leandri, Isidori hispalensis, Fulgentii Astigatani et Braulionis Caesaraugustani; 47. Vita S. Valerii Caesaraugustensis ep. et Confessoris. Das 47 hagiografias que selecionamos para a construção de nosso quadro de referência, oito foram compostas no século XI, vinte e sete no XII, duas entre o fim do século XII e início do XIII, nove no XIII e uma em fins do século XIII ou primeiros anos do XIV. Ou seja, o século com maior produção hagiográfica episcopal, dentro de nosso recorte, foi o XII. Quanto à diocese de produção, vejamos o gráfico abaixo: Gráfico 1 – Diocese de Produção

Das 47 hagiografias selecionadas, quatro foram elaboradas em Pistoia, na Península Itálica, por um hispano que viveu no século XII, Atto, originário da região de Estremadura. Ele foi abade do Mosteiro de

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Vallombrosa, casa-mãe da ordem que leva o nome desse cenóbio, fundada por João Gualberto. Posteriormente, foi eleito bispo de Pistoia, cidade da Toscana. Manteve relações com Diego Gelmirez, recebendo, em 1145, relíquias do apóstolo Tiago (LÓPEZ LÓPEZ, 2004). Dentre todas as dioceses hispanas, encontramos 14 em que houve produção hagiográfica preservada. Na maioria desses episcopados, foi produzida mais de uma obra, como é possível verificar pelo gráfico. Essas dioceses, por sua localização geográfica, ficaram sob influências diversas, sofrendo, em maior ou menor grau, o impacto da presença islâmica ou caloríngia, ou em face à vinculação com os reinos cristãos hispanos em organização. A maioria dessas dioceses foi organizada entre os séculos VI e VII, mas muitas sofreram reordenações entre os séculos VIII e XII. Ausona-Vic,17 Barcelona e Urgel já estavam constituídas no período visigótico e não tiveram a sucessão episcopal interrompida. Gerona,18 Braga,19 Osma,20 Toledo,21 Tuy,22 Lisboa23 e Saragoça,24 ainda que estabelecidas nos séculos iniciais do medievo, ficaram, por razões diversas, com a sede vacante por algum tempo ou seus bispos residiram em outras cidades. Foram restauradas a partir do século VIII. Há, dentre os episcopados produtores de hagiografias, três casos de fundação nova: duas no século IX, Oviedo e Leão, que foram capitais do reino de Astúrias-Leão; e a terceira, Roda, foi fundada no século X, restaurada no século XI, unida a Barbastro e, posteriormente, trasladada à Lérida, no século XII. Por fim, há mais um caso de trasladação: a sede episcopal fundada no período visigodo, Iria Flavia, foi transferida oficialmente para Santiago de Compostela em fins do século XI. Cruzando os dados geográficos com a datação, verificamos que a 17 O nome Ausona-Vic explica-se pelo fato de a diocese ter sido conhecida pelo nome da região no período visigodo (Asona) e, posteriormente, pela cidade mais importante da província, Vic. 18 Gerona ficou vacante por poucas décadas, sendo restaurada já no século VIII. 19 Durante o domínio muçulmano, os bispos de Braga residiram em Lugo. A diocese bracarense foi restaurada em fins do século XI. 20 A diocese de Osma foi restaurada no início do século XI. 21 A diocese de Toledo foi restaurada no século XI, após a conquista da cidade por Afonso VI. 22 Os bispos da diocese de Tuy, com o domínio muçulmano, passaram a residir em Iria Flavia. Tuy diocese foi restaurada duas vezes: a primeira no século X, após ser retomada dos muçulmanos, e a segunda no século XI, após a cidade ter sido controlada pelos normandos. 23 A diocese de Lisboa ficou vacante até ser restaurada no século XII. 24 Durante o domínio muçulmano, houve alguns bispos em Saragoça. Alguns residiram em Oviedo. A restauração da diocese ocorreu no século XII.

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produção hagiográfica acompanhou o processo de reorganização das dioceses. Quanto às formas literárias dos textos hagiográficos, encontramos diversas modalidades: epístola (1); inquérito (1); guia de peregrinação (1); listagem de relíquias (1); ata notarial (1); sermões (2); materiais litúrgicos, como hinos, ofícios, breviários (7); e narrativas diversas que abordam a vida do santo e/ou seu martírio e/ou a inventatio de suas relíquias e/ou a trasladação de seus corpos e/ou seus milagres (33). No que concerne às temáticas centrais,25 vejamos o gráfico: Gráfico 2 – Temáticas centrais

A grande maioria dos relatos dedica-se a apresentar a trajetória dos considerados dignos de veneração, valorizando não só a sua morte, o que aponta para os diferentes critérios de santidade do período, que não se limitavam mais ao sofrimento e à morte por Cristo, mas também uma vida seguindo os valores cristãos. As narrativas que têm como temática central as relíquias vem em segundo lugar, certamente porque funcionavam como um atrativo para peregrinos e estímulo às ofertas. Quanto aos santos, 16 obras têm como protagonistas mártires,26 um deles foi um abade suevo;27 cinco tratam de bispos do período 25 Em muitos relatos sobre as relíquias e/ou a vida de um santo, são também incluídas narrativas de milagres. Consideramos, como temática de uma obra, Milagres quando narra fundamentalmente tais episódios. 26 São eles: Cláudio, Lupércio, Vitório, Afra, Narciso, Felices, Marcelo, Eulália de Mérida, Eulália de Barcelona, Valério, Lourenço,Vicente, Sabina e Cristeta. 27 Trata-se de Vicente, abade do mosteiro de São Cláudio, que, segundo a tradição, foi martirizado por um rei suevo ariano no século VI.

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visigótico;28 oito hagiografias apresentam personagens bíblicos;29 três tratam de santos diversos, de vários períodos; em duas, sobre os santos mencionados, não há identificação histórica;� e 13 narram a trajetória de santos contemporâneos.� Alguns dos santos para os quais são dedicadas obras durante a Idade Média Central já eram cultuados no período visigodo pelos moçárabes, como S. Vicente e Eulália de Barcelona. Outros tiveram a sua vinculação com uma diocese ibérica estabelecida tardiamente, como a de Leão, com o mártir centurião Marcelo. Em alguns casos, buscou-se realçar as origens visigodas dos episcopados, resgatando a memória dos bispos, como Isidoro e Ildefonso. Em outros, o culto sofreu interferências externas, como a veneração a Eugênio, cultuado pelos cluniacenses. Por fim, há que se destacar o interesse pelos santos contemporâneos, em sua grande maioria bispos hispanos, bem como os que receberam a atenção de Atto de Pistóia, vinculados à Ordem Vallombrosa. A eles foram dedicadas o maior número de hagiografias redigidas no século XII, como é possível verificar no gráfico a seguir: Gráfico 3 – Hagiografias redigidas no século XII

A partir dos dados levantados e aqui apresentados, é possível traçar algumas reflexões que visam à construção de um quadro de refe-

28 Os bispos Isidoro de Sevilha, Ildefonso de Toledo, Bráulio de Saragoça, Leandro de Sevilha e Fulgêncio de Écija. 29 Tiago, Barnabé e os diversos personagens bíblicos da obra Breviarium Ecclesiae Catholicae. Vale destacar que os cinco livros que compõem a compilação Liber Sancti Jacobi têm o mesmo santo como figura central, Tiago.

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rência sobre a produção hagiográfica episcopal ibérica do século XI ao XIII. Como já destacado, a grande maioria das obras foi composta no século XII, momento da consolidação de muitas dioceses recém-restauradas. Dentre as principais formas literárias empregadas, destacam-se as narrativas, que têm como temáticas centrais a biografia dos considerados dignos de veneração, seguidas pelas que relatam o encontro e/ou a trasladação de relíquias. Quanto aos personagens centrais, os textos tratam de mártires, vinculando-os, sobretudo, às relíquias. Em segundo lugar, destacam-se os bispos, tanto contemporâneos ao recorte estudado quanto os visigóticos. A eles foi dedicado o maior número de hagiografias redigidas no século XII. A partir desses dados, podemos levantar algumas impressões, delinear, mais que apresentar, conclusões, ainda que parciais. A produção hagiográfica episcopal acompanhou o avanço da expansão cristã e a reorganização das dioceses. Assim, as elaboradas no século XI se concentraram na área da Antiga Marca Hispânica ou dos primeiros núcleos de reestruturação monárquica cristã. O século XII é o que apresenta o maior número de textos hagiográficos, pois foi nesse momento que a disciplina eclesiástica, por iniciativa real ou sob a influência de Roma, começou a ser introduzida de forma efetiva na região. Houve, em muitas dioceses, a passagem do clero de origem franca para o local, ampliaram-se as disputas por fronteiras diocesanas, por isenção e reconhecimento ou restauração de arcebispados. O maior número de santos contemporâneos, como protagonistas das hagiografias no século XII, pode relacionar-se com as lutas dos bispados com outros grupos eclesiásticos locais, em especial, as comunidades de cônegos e, posteriormente, mendicantes, que se estabeleceram nas cidades, e com os mosteiros, dos quais os bispos se tronavam cada vez mais independentes. Além disso, esse dado também pode apontar uma necessidade de reforçar o poder episcopal perante os senhores locais e a população da cidade. O menor número de hagiografias produzidas no século XIII, em face ao período anterior, pode ser explicado pela consolidação de muitas dioceses e/ou uma acomodação nas lutas entre os episcopados recém-criados, restaurados ou de fundação mais antiga, como Compostela, Oviedo, Urgel, Braga etc. Além disso, sobretudo a partir de fins do século XII, as cidades passaram a ser palco de outros centros de produção hagio-

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gráfica, como as comunidades de cônegos, as cortes reais e as ordens mendicantes. A presença de um inquérito no século XIII, visando a reunir material para a instituição de um processo para a canonização de um santo, é uma evidência de que a Igreja Ibérica já seguia as diretrizes papais. O papel de capital de reinos ocupados por algumas dessas cidades – Oviedo, Leão e Lisboa – aponta o uso político de algumas dessas hagiografias que promoveram, além dos bispos, os próprios reis. Esse é o caso, por exemplo, das hagiografias relacionadas com a trasladação e milagres de S. Vicente e com o texto notarial que apresenta a ata de abertura da arca com as relíquias da catedral de Oviedo, feita sob a direção do rei Afonso VI.30 A presença, no conjunto de hagiografias, de quatro delas elaboradas por Atto de Pistóia indica não só a presença hispânica fora da Península, refletindo sobre temas diversos, bem como as relações de dioceses ibéricas com outras regiões, como a obra De translatione reliquiarum et miraculis S. Jacobi Apostoli atesta. Quanto à escolha dos patronos, a despeito da reforma proposta por Roma e da influência cluniascense, muitos santos cultuados na Igreja visigoda e moçárabe continuaram sendo celebrados e retomados. Uma análise qualitativa permitirá verificar se essa retomada significou uma resistência em face às influências cluniascenses, cistercienses e romanas ou uma ressignificação de tais figuras. Em algumas dioceses, a escolha por um ou outro patrono associase às lutas com outros episcopados ou eram internas às cidades. Leão, por exemplo, devido à presença da Colegiada de S. Isidro, em que havia uma comunidade de cônegos cujo patrono era o bispo visigodo, acaba por vincular a catedral e promover os mártires S. Marcelo e seus filhos. A Sé de Santiago de Compostela legitima todos os seus embates com as diferentes dioceses, em especial as metropolitanas Braga e Toledo, na posse do corpo do apóstolo Tiago. As temáticas preferenciais — relatos de vida, inventatio e traslados de relíquias — permitem levantar a hipótese de que os principais usos das hagiografias pelos episcopados hispanos, nos séculos XI ao XIII, objetivavam consolidar a memória e propagar o culto dos santos locais; fortalecer a autoridade do bispo mediante a vinculação do episcopado 30 Trata-se da obra Reliquiae in celebri arca Ovitensi.

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ao período neotestamentário, a um mártir, aos prelados do período visigodo ou do passado recente da diocese, perante a população urbana local, as colegiadas, as comunidades de religiosas e os demais bispados, e atrair peregrinos. Tais hagiografias também apontam para as relações muitas vezes pacíficas entre os bispados, como as cartas e os sermões proferidos por bispos em igrejas catedrais vizinhas. Referências

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Parte II A cidade e os dilemas da vida cotidiana

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Os pecados capitais e as normas de convívio urbano Lana Lage da Gama Lima Dois autores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. (Sto. Agostinho, A cidade de Deus)

A partir da reinterpretação da obra de Santo Agostinho A cidade de Deus e da recuperação dos modelos bíblicos de Babilônia e Jerusalém, forjou-se na Alta Idade Média um imaginário urbano de cunho religioso que permanecerá com plena vitalidade no século XII, embora sofrendo a concorrência da ideologia escolástica da cité, construída, sobretudo, na Universidade de Paris. Obviamente, essas representações urbanas nascidas no âmbito eclesiástico sempre conviveram com outras de origem leiga, seja a antiga ideia aristocrática de cidade como presa, destinada à conquista e ao saque, seja as representações vinculadas à historiografia legendária, ao patriotismo urbano ou ao folclore urbanizado, surgidas na Baixa Idade Média, como aponta Le Goff (1992, p. 217-222). Aqui nos interessa refletir sobre esse imaginário de cunho religioso e suas relações com as transformações urbanas verificadas na Europa Ocidental, entre os séculos XII e XVI. O século XII é o século das cidades e também, como aponta Le Goff (1973, p. 7), dos intelectuais medievais, que nascem com elas. Com efeito,

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as cidades no século XII opunham-se ao mundo rural por oferecerem a seus habitantes condições de vida efetivamente novas, tanto do ponto de vista econômico-social quanto do político, condições de vida que permitiram a construção de uma consciência urbana instrumentalizada na luta contra os privilégios feudais. À força, ou por meio de negociações e compromissos, os cidadãos afirmavam-se como homens livres, conscientes da originalidade de seu modo de vida, uma originalidade nascida, sobretudo, dos ofícios que exerciam. Nesse sentido, a vinculação profissional era um dado essencial à construção da consciência de si para esses homens desenraizados, por isso a cidade se organiza em corporações de ofícios, também chamadas universitas. É nas cidades do século XII que surgem também as universidades, seguindo o modelo das corporações (VERGER, 1990, p. 26-28). Ora, pensadores “por ofício”, os intelectuais das universidades medievais vão refletir também, como não podia deixar de ser, sobre sua condição urbana. Tomemos o exemplo de Paris. Favorecida pelo crescente prestígio dos Capetos, Paris se tornava o mais importante centro intelectual da Europa do século XII. Como descreve Le Goff (1973, p. 27-28):

Mestres e estudantes comprimem-se, quer na Cité e na respectiva escola central quer, cada vez mais numerosos, na margem esquerda, onde gozam de uma maior independência. À volta de Saint-Julien-lePauvre, entre a Rua de la Boncherie e a Rua de Garlande; mais a Leste, à volta da escola dos cônegos de Saint-Victor; ao sul, escalando o monte que coroa, com a outra grande escola, o Mosteiro de Sainte-Geneviéve. Ao lado dos professores regulares do capítulo de Notre-Dame, cônegos de Saint-Victor e de Sainte-Geneviéve, mestres mais independentes, os professores agregados, que receberam do inspetor, em nome do Bispo, a licentia docendi, o direito de ensinar, atraem alunos e estudantes em número crescente para as suas casas particulares ou para os claustros de Saint-Victor e Sainte-Geneviéve, que se lhes conservam abertos.

O estabelecimento da corporação universitária parisiense, diz Pierre Verger, realizou-se entre os anos de 1180 e 1210 marcado por uma dupla tendência, repleta de contradições: de um lado, a afirmação do caráter eclesiástico da universidade e, efetivamente, entre fins do século XII e princípios do XIII, tanto os papas como os reis outorgaram aos estudan-

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tes os privilégios clericais; de outro, a tendência laicizante que marcara seu nascimento e que deu origem a várias querelas com as autoridades eclesiásticas. Mas, a especificidade de seu ofício, as disputas com os burgueses e os conflitos com a Justiça real acabaram por fazer com que mestres e alunos aceitassem a dependência da Igreja admitida plenamente desde 1200, o que, se, por um lado, lhes trazia vários benefícios, por outro, era fator de cerceamento de sua liberdade intelectual. Não podemos esquecer que, durante todo o século XIII, a Santa Sé reservou para a faculdade de Teologia de Paris uma espécie de monopólio em questões de fé (VERGER, 1990, p. 32-37) e, se a proteção à universidade refletia o reconhecimento das necessidades intelectuais da época e da excelência de sua reflexão teológica, não deixava de ter seus interesses, sobretudo o de manter sob seu controle o ensino superior. Afinal, na medida em que todos os mestres e estudantes se beneficiavam dos privilégios eclesiásticos, não podemos, como observa Verger, nos referir a leigos, no sentido estrito, quando falamos dos universitários medievais. Além disso, muitos deles permaneciam celibatários e recebiam ordens, maiores ou menores. Para o papado, as universidades, além de fornecer pessoal qualificado para as funções eclesiásticas, deviam funcionar como centros irradiadores de ortodoxia religiosa, estribada numa teologia que se constrói como um discurso sistematizado com estatuto de scientia (obviamente uma ciência conforme o conceito aristotélico) metafísica, o que lhes permitia refutar com maior competência as interpretações heréticas da doutrina. Nesse quadro é fácil compreender que acabassem por se introduzir nelas clérigos diretamente vinculados à Santa Sé: até o século XII, os monges de Cluny e depois de Cister; a partir desse século, as ordens mendicantes (VERGER, 1990, p. 95). Dentro desse quadro, é fácil compreender que a ideologia escolástica da cidade deva tanto, como diz Le Goff, à Universidade de Paris. Tendo Aristóteles e Santo Agostinho como matrizes, os intelectuais reunidos nas cidades refletem sobre a vida urbana. Guillaume d’Auvergne, bispo de Paris e doutor em teologia, usa metáforas urbanas em sua Summa, referindo-se à oposição entre a cidade e a floresta, o civilizado e o silvestre. Tomás de Aquino e seus discípulos, Gilles de Roma – que foi geral dos agostinianos e arcebispo de Bourges – e Pierre d’Auvergne – bispo de Clermont e reitor em Paris – tiveram papel fundamental na constru-

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ção dessa ideologia urbana de cunho religioso. A fórmula aristotélica do homem como zoom politicon é traduzida como homem animal da cidade, entendida como um todo – universitas –, mas composta de elementos específicos que devem concorrer para o bem comum. Para Gilles de Roma, viver como homem é viver na cidade, e Pierre d’Auvergne coloca a felicitas política de todos como superior à felicitas contemplativa individual. Ora, essa ideologia, observa Le Goff (1992, p. 217-222), tanto serve para alimentar o ideal monárquico francês como para inspirar os chefes das cidades-Estado da Itália. Mas não se pense que todos no mundo eclesiástico eram favoráveis às transformações urbanas. Contra esse otimismo levanta-se São Bernardo. Abade de Cister, senhor feudal e militar, São Bernardo não vê com bons olhos a nova intelligentsia urbana (LE GOFF, 1973, p. 51). Não só condena Abelardo – que, instalado em Sainte-Geneviéve, deslocara da Ile-de-la-Cité para a margem à esquerda do Sena o centro da cultura parisiense – mas condena também a própria cidade, exortando todos, mestres e estudantes, a deixarem Paris: Fugi do meio de Babilônia, fugi e salvai as vossas almas. Voai juntos para as cidades de refúgio, onde podereis arrepender-vos do passado, viver na praça do tempo presente e esperar com confiança o futuro. Encontrareis muito mais nas florestas do que nos livros. As madeiras e as pedras ensinar-te-ão muito mais do que qualquer mestre (LE GOFF, 1973, p. 28).

Assim, a velha imagem bíblica de Babilônia como símbolo da perdição permanece operante em pleno século XII, bem como a de seu oposto, Jerusalém, a cidade de Deus. Respondendo às diatribes contra a vida urbana, dirá o abade Philippe de Harvengt (LE GOFF, 1973, p. 31):

Levado pelo amor da ciência, eis-te em Paris, e encontraste essa Jerusalém que tantos desejam. [...] Uma tal afluência, uma tal multidão de clérigos aí se amontoa, que estão em vias de ultrapassar a numerosa população de leigos. Feliz cidade onde os santos livros são lidos com tanto zelo, onde os seus complicados mistérios vão sendo resolvidos graças aos dons do Espírito Santo, e onde há tantos professores eminentes, onde existe uma tal ciência teológica que a poderíamos chamar cidade das Letras!

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Afinal, qual das duas correntes teria razão? Colocando melhor a questão, seria possível a cidade se moldar à utopia hierosolimitana ou o desenvolvimento e o progressivo aburguesamento da vida cotidiana se mostrariam incompatíveis com o modelo de uma verdadeira “Cristianópolis”, cidade-refúgio, onde os cristãos estariam a salvo das contradições das culturas urbanas anteriores? (MUMFORD, 1982, p. 344). Não restam dúvidas de que as cidades esboçaram questões novas e complicadas à doutrina cristã, a começar pela disseminação de uma prática veementemente condenada pela Igreja medieval: a usura. No século XIII, tanto os exempla quanto os Manuais de Confissão continuarão condenando o usuário, mas a gênese do purgatório, em fins do século XII, indica que inexoravelmente uma mudança se operava, abrindo para o burguês, comerciante e financista, a possibilidade da salvação.1 A Alta Idade Média condenara, desprezando-as, inúmeras profissões, associadas a antigos tabus, como os que pesavam sobre o sangue (que incidia sobre açougueiros, médicos, etc.), a impureza (incidindo sobre lavadeiras, tintureiros) e o dinheiro (mercenários, prostitutas, usurários). Um outro critério, esse efetivamente medieval, ligava-se aos sete pecados capitais: taberneiros, jograis que davam ocasião à luxúria; mercadores e juízes propícios à avareza; cozinheiro à gula, etc. Profissões que eram, por conseguinte, proibidas aos clérigos. Mas a escolástica do século XIII e a prática pastoral dos mendicantes vão pouco a pouco achando um jeito de reabilitar essas atividades (LE GOFF, 1989, p. 47-48) multiplicadas rapidamente com o desenvolvimento da vida urbana. Analisando as origens do espírito burguês na França, Bernard Groethuysen (1997, p. 20-39) observa que, embora se mantendo vinculada à Igreja, a burguesia conservaria seu caráter profano, como se tivesse consciência de que a religião não era seu negócio. Na verdade, a religiosidade burguesa constituir-se-á não só com a da eliminação de certos artigos doutrinários, mas sobretudo pela modificação da própria maneira de crer. Os burgueses afastam-se dos mistérios e fazem do Evangelho um simples livro de moral. “São pessoas que raciocinam e querem examinar antes de crer” dirá Groethuysen (1997, p. 8). São instruídos, sabem ler e escrever e tratam o cura como um igual. Não é à toa que o laicismo e o anticlericalismo são também fenômenos urbanos. 1 Ver LE GOFG, A bolsa e a vida e La naissance du purgatoire.

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Para que a burguesia não lhe escape, a Igreja precisa conciliar sua forma de vida com as normas cristãs. Ora, tal atitude estará presente tanto na casuística jesuítica da Contra Reforma exposta nos manuais de confissão tridentinos quanto nas inovações teológicas protestantes, pois, afinal, as duas Reformas gestaram-se nas mudanças que se operaram no mundo ocidental a partir do século XI, como vertentes de um mesmo movimento de renovação do Cristianismo indubitavelmente vinculado ao renascimento urbano e comercial. Assim, ao invés do fim do mundo, a virada do milênio trouxera para a Europa uma época de crescimento econômico e demográfico, possibilitado pelo cessar das invasões que marcaram os séculos IX e X. O aumento da produção agrícola devido à ampliação das áreas de cultivo e à melhoria e difusão das técnicas abriu espaço para a comercialização dos produtos. As feiras multiplicaram-se, a atividade manufatureira foi estimulada, e a vida urbana ressurgiu. Não é por acaso que, justamente no século XII, Abelardo, Santo Anselmo e Hugo de São Victor começam a chamar a atenção para os aspectos subjetivos da penitência, ressaltando a importância da confissão e levantando a questão da intenção e do arrependimento, numa atitude que refletia a profunda mudança ocorrida na vida religiosa do Ocidente europeu entre os séculos XI e XII, que deu origem à Devotio moderna (DELUMEAU, 1983, p. 220). Não é por acaso também que, em 1215, o IV Concílio de Latrão tornava obrigatória para todos os cristãos a confissão anual por ocasião da quaresma. Estava aberta a porta por onde penetraria a futura casuística confessional jesuítica que espelharia com nitidez a fórmula encontrada pela Igreja cristã – aqui em seu ramo católico – para se relacionar com as novas e numerosas Babilônias, sem desistir de apontar para o modelo de uma Jerusalém utópica. O ramo protestante apelaria para a doutrina de predestinação, acolhendo o progresso material burguês como sinal da graça divina, pois, como aponta Mumford (1983, p. 8), se, na Alta Idade Média, até os negócios se revestiam de moldes religiosos, na Baixa Idade Média, mesmo as matérias piedosas assumiam uma coloração mundana. Diz Mumford (1982, p. 343): No século XIII, a riqueza, o luxo e o poder terreno, corporificados nas principais cidades medievais, haviam solapado os postulados radicais da Cristandade: a pobreza, a castidade, a não-resistência, a humildade,

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a obediência ao imperativo divino, que transcende a todas as considerações da segurança do corpo ou da satisfação material.

Estava claro que a vida urbana se organizava, como diria Agostinho (1970, Livro XIV, cap. XXVIII), cada vez mais em busca da honra e da glória do próprio homem e não para a glória de Deus. Essa tendência se consolida irremediavelmente a partir do século XV. À noção de commoditas – que fazia com que as corporações se distribuíssem em ruas especializadas nas cidades medievais – os arquitetos renascentistas, como Alberti e Francesco di Giorgio, acrescentaram a de voluptas. A cidade não devia ser apenas prática, ela devia ser bela, encantar os sentidos (DELUMEAU, 1984, p. 266). A própria Igreja sucumbira a essa imposição, afinal não é o século XV a época dos excessos do gótico flamejante? E, se a velha utopia da construção de uma cidade verdadeiramente cristã ainda persistia – sobretudo no imaginário de muitos grupos acusados de heresia –, a Igreja precisava lidar com a realidade urbana e, mais que isso, explicar para si mesma as razões do fracasso da construção de uma nova Jerusalém e da multiplicação de tantas Babilônias. Dirá Mumford (1982, p. 348):

Para esse descaminhamento da cidade medieval, a teologia cristã tinha uma resposta: a doutrina do pecado original. Essa doutrina pressupõe uma falha radical na constituição do homem, decorrente da desobediência de Adão, que transformou seu pecado original numa moléstia hereditária: uma tendência perversa pôs de lado as finalidades de Deus, colocando em primeiro lugar sua própria natureza egoística.

O pecado tornara-se, pois, não somente como observa Mumford (1982, p. 348), “[...] a principal renda mundana da Igreja”, mas a própria moeda corrente com que esta negociava com a cidade. Isso porque, para além das indulgências, missas e doações pias que ajudavam a salvação e enriqueciam os cofres eclesiásticos, a dialética entre o pecado e o perdão reafirmava uma submissão a princípios morais que, embora não fossem integralmente cumpridos na prática, permaneciam como modelos ideais, apesar de os caminhos dessa submissão serem progressivamente relativizados pelas sucessivas concessões dos casuístas aos filhos do século. Mesmo as regras mais incontestáveis da moral cristã serão pro-

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blematizadas (GROETHUYSEN, 1997, p. 143) e a teologia moral se destaca como corpus teológico específico. A decisão do Concílio Tridentino de reiterar a importância da confissão como instrumento da salvação e, consequentemente, promover a difusão de sua prática é acompanhada pelo incontestável sucesso das teses probabilistas que, defendidas pelos jesuítas, dominam o ensino da teologia moral e a prática confessional em fins do século XVI e na primeira metade do XVII. E se a reação rigorista – capitaneada pelos jansenistas – se faz sentir entre 1640 e 1700, em meados do século XVIII, Santo Afonso de Liguori retornava às posições dos jesuítas mais moderados, sem cair, no entanto, nos excessos laxistas (DELUMEAU, 1990, p. 136-153). Apesar de os burgueses católicos muitas vezes se alinharem ao lado dos jansenistas – que lhes oferecem princípios rígidos de vida que marcam sua diferença diante de uma nobreza mergulhada no luxo e no excesso – é com os jesuítas que discutem os detalhes de seu cotidiano (GROETHUYSEN, 1997, p. 198-199); é pela casuística gerada nos confessionários que constroem sua própria moral dentro do Cristianismo. Tomemos, como exemplo, o Manual de confessores e penitentes, do qual são conhecidas três edições em português e doze em espanhol, publicadas entre 1549 e 1570 (PALAU Y DULCET, 1948, p. 609-610). Embora apareça, como seu autor, o jesuíta Martin de Azpilcueta Navarro, na verdade, ele revisou a obra original do franciscano Rodrigo Porto, refundindo-a e ampliando-a depois. Azpilcueta foi um renomado canonista, sucessivamente professor em Cahors, Toulouse, Salamanca e Coimbra. Exerceu, ainda, papel ativo na “Pénitencerie” romana, entre 1567 e 1586, e foi conselheiro de três papas, sendo reconhecido como grande autoridade em matéria de confissão. Seu manual foi também impresso em latim, em Anvers, no ano de 1753, alcançando 15 reedições. Na verdade, o caso não é excepcional, pois os manuais de confissão que, a partir do século XIII, começam a substituir os velhos penitenciais, tiveram uma espécie de essor após o Concílio tridentino, que reitera a importância da confissão, defendendo-a dos ataques luteranos. Guias práticos, esses manuais orientavam o diálogo entre confessores e penitentes por meio de modelos de interrogatórios que serviam para dirigir o diálogo do penitente consigo mesmo durante o exame de consciência que deveria preceder a confissão, pois cabia aos confessores escutar primeiro o relato espontâneo dos pecados para, só então, complementá-lo com perguntas que os

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ajudassem a melhor classificar as faltas cometidas e impor as penitências adequadas. Nessa avaliação, eram considerados não apenas os atos, mas também as intenções que os haviam presidido e as circunstâncias em que tinham sido cometidos. Assim, pecava-se por pensamentos, palavras e obras e a determinação da culpa e do perdão passava pela consideração do grau e da natureza do arrependimento. A classificação dos pecados tornara-se, pois, matéria complexa e subjetiva e a utilização dos dois eixos fundamentais – Dez Mandamentos e Sete Pecados Capitais – para ordená-los não dava conta por si sós da variegada gama dos casos concretos. Sinal dessa dificuldade é o fato de Azpilcueta Navarro (1570) ter publicado um capítulo – o vigésimo oitavo – adicional ao seu manual, que é, certamente, um dos mais minuciosos, para dirimir dúvidas que surgiram quando da aplicação das regras à realidade dos confessionários.2 Mas, de qualquer modo, os Dez Mandamentos bíblicos e o septenário de pecados – fixado no século XII, após um longo processo de construção doutrinária iniciado no século V – terão papel fundamental na complicada tarefa de classificar e hierarquizar as culpas. E se, como aponta Le Goff, o Cristianismo medieval confundira duas categorias que os antigos haviam distinguido cuidadosamente: o pecatum (um ato) e o vicium (uma disposição para o mal), elaborando na verdade, uma lista de vícios, eles se manifestam por atos, condenados por ferirem uma harmonia social idealizada para a Cristandade (LE GOFF, 1987, p. 277). Tomemos alguns exemplos, pois, tirados do citado manual de Martin de Azpilcueta Navarro. Na rubrica do sétimo mandamento – não furtarás – o autor trata do salário dos criados: pecam os que não querem pagar ao seu criado o que lhe deve segundo acordo tácito ou expresso. Dirá Azpilcueta Navarro (1552, p. 263) que pecam os [...] mestres das artes mecânicas, como são alfaiates, sapateiros, carpinteiros que tomam criados que chamam aprendizes, para lhes ensinar suas artes, e por isso não lhe dão soldada alguma ou pouca: e às vezes recebem alguma coisa pelo comer que lhes dão. E os estudantes de Salamanca e Coimbra que tomam criados com pacto expresso ou tácito, de lhes dar um certo tempo para estudar, e pão e certa quantidade para conduto e calçado cada mês e depois os ocupam contra

2 Capitulo veynte y ocho de las addiciones del Manual de confessores, Valladolid.

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sua vontade, tanto que não pode aprender os tais ofícios, nem estudar, pecam, e são obrigados a restituir o dano que lhes vem, por lhes haver tirado tal tempo de aprender e estudar.

Também pecam, segundo o autor, os que empregam “moços” sem lhes dar tempo para estudar e pagam-lhes o mesmo que recebem os que têm tempo para isso. Azpilcueta marca a diferença entre essas situações urbanas e os antigos costumes medievais afirmando: os senhores que criam pajens e dão-lhes o que é de costume não precisam dar-lhes mais nada (NAVARRO, 1552, p. 264). Ainda discorrendo sobre o sétimo mandamento, Azpilcueta nos fala da prostituição, fenômeno estritamente ligado à vida urbana, deixando claro que a Igreja considera o pagamento das mulheres públicas justo, apesar de não concordar com seu estado, defendendo que o que lhes for prometido em troca de seus serviços deve ser cumprido (NAVARRO, 1552, p. 229). Os falsários também são contemplados no sétimo mandamento. Pecam os que afinam as moedas e devem restituir o que tiraram, a não ser aqueles que as diminuem “[...] as que saíram melhores do que deveriam” (NAVARRO, 1552, p. 292). A falsificação de pesos, balanças e medidas também é pecado, bem como os que os usam sabendo que não estão certos (NAVARRO, 1552, p. 293). Os direitos da cidade são reconhecidos em diversas partes: quem achar tesouro em lugar público deve metade ao fisco ou à cidade. Mas os direitos da Igreja também devem ser respeitados: se o tesouro estiver em lugar sagrado, metade pertence ao prelado. A propriedade privada também é garantida: se o tesouro estiver em casa ou terra que tenha sido comprada, fica integralmente para o novo proprietário, ainda que este soubesse de sua existência e aquele que vendera a casa ou terra ignorasse (aqui Azpilcueta explica que segue Santo Tomás, embora Sto. Agostinho tivesse outra opinião) (NAVARRO, 1552, p. 295). A usura, definida como “[...] ganho expresso, estimável por dinheiro, que principalmente por razão de empréstimo se toma” merece longa reflexão e diversos atenuantes: se alguém empresta algo esperando ter algum ganho, não peca se estivesse disposto a emprestá-lo ainda que não esperasse nada. Também não peca “[...] quem não emprestou principalmente por ganho, recebendo do que tomou emprestado alguma coisa, com boa fé” (NAVARRO, 1552, p. 296).3 Na verdade, cabe ao confessor decidir a caracterização ou não do

3 Vale notar que a complexidade do tema da usura levou o autor a publicar uma obra dedicada especialmente a essa

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pecado da usura, avaliar a qualidade do que se dá, a pobreza ou escassez do que tomou emprestado e o proveito que disso recebeu, considerando ainda a virtude da gratidão para verificar se o que foi dado a mais foi por constrangimento ou livre vontade. Outra argumentação atenuante digna de nota é a que isenta do pecado aquele que recebe uma garantia maior do que a emprestada “[...] pelo trabalho que toma em contar muita quantidade de dinheiro miúdo, por si ou por seus criados: porque não a recebe por emprestar, mas pelo trabalho de o contar”. Gostaria de terminar lançando mais uma questão, entre as tantas que aqui aponto e que demonstram a amplitude e a complexidade da história urbana, bem como o imenso universo documental que lhe é pertinente. Eis a questão: em que época, efetivamente, a Igreja Católica conseguirá adequar sua doutrina e prática pastoral ao novo mundo forjado pelo capitalismo e pela urbanização? Pois me parece que, apesar de seu empenho e criatividade, a Companhia de Jesus conseguiu apenas justapor duas ordens que ainda permanecerão por muito tempo separadas em suas motivações mais profundas, contrapondo Jerusalém e Babilônia. Referências Documentação primária impressa NAVARRO, Martin de Azpilcueta. Capitulo veynte y ocho de las addiciones del Manual de confessores. Valladolid: Adrian Ghemart, 1570.

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História e historiografia da alimentação no Brasil (séculos XVI-XIX)1 Leila Mezan Algranti

Introdução As cidades, suas instituições e habitantes sempre despertaram minha atenção como historiadora e foram objeto de estudos que desenvolvi sobre a vida social e cultural na América portuguesa. Sem me afastar da vida urbana, tenho me dedicado, nos últimos anos, ao estudo da alimentação na América Portuguesa — tema deste ensaio. A alimentação desperta meu intertesse em dois níveis: empiricamente na investigação de práticas alimentares dos colonos e, nesse sentido, elegi alguns segmentos para estudar mais detidamente, como a doçaria, as bebidas e os temperos, todos esses envolvendo produtos coloniais. O segundo nível de interesse é pensar a alimentação como uma categoria de análise da sociedade e da cultura da época, isto é, a alimentação como uma forma de aproximação para compreender as relações culturais no Império Português. Em termos mais explícitos, interessame refletir sobre as trocas culturais, apropriações e ressignificações de elementos e práticas culturais que ocorreram entre os habitantes de diferentes regiões do Império, provocando ou instigando um fantástico intercâmbio cultural. Neste movimento de ir e vir de produtos, pessoas, saberes e receitas, Lisboa ocupou um lugar importante, quer como sede do império e local de onde emanava o poder e o domínio desse vasto império (implementando políticas, permitindo ou restringindo o que

1 A pesquisa realizada para este ensaio contou com o apoio do CNPq.

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importar, aclimatar, exportar), quer como cidade e porto onde ocorreram trocas de vários tipos. As cidades, portanto, adquirem, na pesquisa atual, um significado especial, não só porque, por meio da alimentação, é possível conhecer e reconstituir vários aspectos da vida urbana (como a produção, o abastecimento, o consumo) mas também as representações de poder presentes na vida pública e doméstica, como os rituais e as festas nos quais a alimentação era parte constitutiva. Não é à toa que um tipo de fonte muito comum nos estudos dedicados à história da alimentação no Brasil colonial sejam as atas das câmaras, pois estas nos informam sobre várias questões ligadas ao comer. Isto é, sobre um dos domínios da História que Fernand Braudel (1997, v. 1, p.11-14) denominou, juntamente com o morar e o vestir, de “as estruturas do cotidiano”. Gostaria de tratar, neste texto, da alimentação e das práticas culinárias como objetos de estudo e de reflexão para melhor compreender a sociedade e a cultura na América portuguesa entre o século XVI e o início do XIX, suas particularidades, mas também as continuidades e transformações em relação à metrópole. Para tanto, organizei a exposição dos assuntos a partir de quatro questões e, consequentemente, quatro partes: a) a relação entre história e alimentação; b) as diferentes abordagens sobre a alimentação na historiografia colonial; c) a importância da alimentação para compreendermos a colonização; d) e, por último, um exemplo retirado da minha própria pesquisa para mostrar empiricamente como, por meio das receitas de doces, podemos apreender algumas práticas alimentares na colônia e, ao mesmo tempo, pensar as relações culturais no interior do Império Português.

História e alimentação “A alimentação, pelo seu próprio sentido de dar continuidade à vida, sempre foi objeto de atenção, mas também de conhecimento”, conforme observou Ulpiano Bezerra de Meneses em estudo conjunto com Henrique Carneiro, intitulado A História da alimentação: balizas historiográficas. A partir de cinco categorias estabelecidas pelos autores para empreenderem sua análise (os enfoques biológico, econômico, social, cultural e filo-

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sófico), fica claro que “[...] segundo tais enfoques, muda a própria natureza do objeto de atenção” (MENESES; CARNEIRO, 1997, p. 10-11). Como lembrou Mary Douglas (2001, p. 204), “[...] a comida não é simples sustento”. Ela é muito mais do que nutrientes que se encontram nos produtos naturais e fazem parte do meio ambiente. Estes, por sua vez, só podem ser ingeridos e incorporados na forma de alimentos, isto é, “[...] de produtos naturais culturalmente construídos e valorizados, respeitando-se um protocolo de uso fortemente socializado”, como definiu Jean Pierre Poulain (2004, p. 19). Assim, diz o mesmo autor:

[...] se a cozinha e as maneiras à mesa são atividades sociais que se desenvolvem a partir de condicionantes materiais, ecológicos, tecnológicos e biológicos, a forma como os homens e as mulheres concebem a satisfação de suas necessidades alimentares não poderia reduzir-se a lógicas utilitárias ou tecnológicas estritas.

Portanto, “[...] a alimentação tem uma função estruturante na organização social de um grupo humano, quer se trate de atividades de produção, de distribuição, de preparação, de consumo” (POULAIN, 2004, p. 19). Evidencia-se, dessa forma, a importância que a alimentação assumiu nas Ciências Humanas, em especial, na Antropologia e na Sociologia, desde o surgimento dessas disciplinas, mas também na História, embora com menor grau de interesse. Se o tema foi objeto de atenção dos cientistas sociais e suas preocupações foram se delineando e muitas vezes mudando de configuração e abordagens a partir das grandes correntes do pensamento social – como procurou mostrar Jack Goody –2 nos anos 1970, a alimentação deixou de ser “[...] um lugar de leitura e indexação de outros fenômenos sociais para se tornar um objeto crucial do saber socioantroplógico”, nos dizeres de Poulain (2004, p. 19). No domínio da História, o que se observa é um movimento semelhante àquele trilhado nas demais Ciências Humanas, e é nesse sentido que a obra de Braudel (1997) adquire um significado historiográfico importante, podendo ser considerada um dos marcos na institucionalização da História da Alimentação, como apontaram Meneses e Carneiro

2 Para uma análise sobre o tipo de atenção que os antropólogos dedicaram à alimentação, ver Jack Goody (1995), especialmente o capítulo 2, intitulado “Panorama geral”.

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(1997, p. 26-34). Ou seja, segundo os autores, se, antes dos anos 1960-70, a alimentação era um tema complementar nos estudos históricos, passou, a partir de então, a receber atenção específica por parte dos historiadores, constituindo-se em um campo ou área do conhecimento histórico. cabe perguntar: por que a alimentação é um objeto da História? Basicamente, porque a alimentação oferece uma chave essencial para descrever e explicar a vida cotidiana de uma comunidade. Ela aborda todos os aspectos da vida social, estendendo-se até a espiritualidade e ao poder, passando pela sexualidade e pelas diferenças de gênero, como destacaram Martin Bruegel e Bruno Laurioux (2002, p. 10-11). Entre 1961 – quando Braudel (1961, p. 421-424) lançou nos Annales o que foi considerado por Murice Aymard de “o apelo”, mas que poderíamos chamar de “manifesto” da História da Alimentação e da vida material – e 1975 — quando se encerrou o debate proposto, com um dossiê na mesma revista, intitulado Histoire de la Consommation — foram numerosas as contribuições dos pesquisadores (AYMARD, 1975, p .431).3 Nesse primeiro momento da nova historiografia sobre a alimentação (1961-1975), eram os níveis econômicos de vida que interessavam especialmente aos historiadores. Comer era entendido basicamente como um aspecto da vida material. Porém, o interesse pela História da Alimentação não se encerrou em 1975, ao contrário, continuou marcante, como sugere o mercado editorial internacional. O que se observa, contudo, é que a ênfase foi mudando em função dos próprios caminhos da Nova História e de seu contato mais intenso com a Antropologia, com a Linguística, com a Sociologia. Dos estudos mais centrados no comércio, no consumo e na relação com o biológico, foram privilegiadas outros tipos de relações e intercâmbios, por exemplo, aqueles resultantes dos encontros culturais entre povos distintos. Os historiadores começaram a se debruçar mais intensamente sobre os significados simbólicos dos alimentos e dos rituais de comensalidade, assim como sobre as representações presentes nos alimentos e nas formas de consumi-los. O interesse sobre a transmissão de técnicas e saberes relacionados com o comer também se intensificou numa valorização da tradição e do tempo longo. A alimentação revelava, assim, sua

3 No mesmo número da Revista Annales de 1961, o artigo de Robert Philippe, intitulado Commençons par l’histoire de l’alimentation, iniciava o debate sobre a vida material, imprimindo-lhe uma direção entre tantas questões possíveis: a comida. Para uma análise detalhada da enquete proposta por Braudel, sua interrupção e o debate de 1975, ver: Meneses e Carneiro (1997, p. 28-32).

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dimensão imaterial também para os historiadores. Mas é interessante perceber que a dimensão imaterial da abordagem histórica sobre a alimentação já se encontrava presente, ou pelo menos insinuada, no segundo capítulo dedicado à alimentação no livro de Braudel (1997), “Comidas e bebidas”, no qual ele introduziu, ainda que de forma breve, a questão do luxo, as hierarquias sociais presentes à mesa, a importância simbólica dos gestos, do gosto. Estava já ali, portanto, em 1967, o viés “culturalista” da História da Alimentação – como foi chamado tempos depois – e que predominaria atualmente. Se a materialidade da alimentação continuou a ser estudada, todo um amplo campo de temáticas e abordagens se intensificou nos estudos históricos sobre a alimentação. Especial atenção foi dada ao que Michel de Certeau (1966, p. 41) chamou de conjunto de operações cotidianas, isto é, as práticas ou maneiras de fazer, “[...] as quais formam a contrapartida do lado dos consumidores, dos processos mudos que organizam a ordenação sociopolítica”. Não há como negar que a História da Alimentação atual é profundamente “braudeliana” em seus temas da cultura material e nas fontes que utiliza. Inevitavelmente, porém, acompanhou o movimento historiográfico, ampliando os horizontes da corrente que a originou e consolidou como objeto de estudos históricos.

A Historiografia sobre a alimentação na América portuguesa Com relação à historiografia brasileira, o que se observa é a pouca atenção dada à alimentação e à culinária, em termos de objetos de estudo específicos, até os anos 1990. Por outro lado, apesar de ser um tema presente em diversas obras sobre o período colonial, sua importância, bem como os caminhos percorridos pelos historiadores variaram bastante.4 Nossos primeiros historiadores, preocupados com a construção da memória nacional, passaram praticamente ao largo da questão.

4 Esse tema foi desenvolvido com maiores detalhes no ensaio História e Cultura da Alimentação na América Portuguesa, tradição e mudanças (uma análise historiográfica), que apresentei no I Colóquio de História da Alimentação e Cultura – Saber e Sabor: história, comida e identidade, realizado na UFPR, em agosto de 2007. A pedido dos organizadores, o texto foi enviado para publicação nos Anais do Colóquio.

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Capistrano de Abreu, no entanto, com uma concepção de história que o distanciava de sua geração, foi uma exceção. No ensaio intitulado Três séculos depois, introduziu o tema da vida social e cultural no âmbito dos estudos sobre a América portuguesa. Nessa abordagem histórica pioneira, Capistrano chamou a atenção para as formas de consumo e as preferências gustativas dos colonos a partir de cinco regiões geográficas distintas (ABREU, 1976, p.189-213). Os estudos clássicos da historiografia colonial produzidos por Gilberto Freyre (1973, p. 40-44 e 454-461), Caio Parado Junior (1972, p. 159-163) e Sergio Buarque de Holanda (1976, p. 111-113 e 1994, p. 156-185), por sua vez, embora com ênfases diferentes na temática da alimentação, consolidaram algumas ideias que marcaram profundamente as visões sobre os hábitos alimentares e a vida material na Colônia, tais como: a) a importância das influências indígena e africana na dieta cotidiana dos conquistadores e na forma de processar os alimentos; b) a adaptação dos portugueses a um novo regime alimentar, condicionado aos produtos locais; c) bem como as imagens da má alimentação, da carestia e até mesmo da fome devido ao predomínio da monocultura na economia colonial. A historiografia do quarto centenário de São Paulo, nos anos 1950, reforçou, no âmbito regional, a ideia da falta de víveres e de uma dieta parca à base de mandioca ou milho, devido à pobreza generalizada dos paulistas nos dois primeiros séculos da colonização. Entre tais autores, cabe lembrar Ernani Silva Bruno (1984). Nos anos 1960 e 1970, seguindo a vereda aberta por Caio Prado, uma das correntes mais expressivas da historiografia colonial do período voltou-se para a questão do modo de produção colonial e suas relações com o desenvolvimento do capitalismo. O centro de atenção dos debates continuou sendo a economia exportadora e não contemplou, prioritariamente, o setor da produção de gêneros alimentícios na Colônia. Os produtos coloniais foram estudados em função do seu consumo na Europa. Em termos da produção e comércio interno de gêneros de subsistência, as atividades dos tropeiros e o abastecimento das Minas receberam alguma atenção, como nos estudos de Mafalda Zemella (1951). Maria Beatriz Nizza da Silva e Evaldo Cabral de Mello, no entanto, distanciaram-se da tendência mais geral que privilegiava as análises econômicas da vida na Colônia dedicando atenção à questão, respecti-

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vamente, nas obras Cultura e sociedade no Rio de Janeiro e Olinda restaurada. Ao analisar as práticas culturais e suas transformações na sede da corte joanina no Brasil, Nizza da Silva contemplou os hábitos alimentares, destacando dois eixos fundamentais na intricada rede de relações presentes na cozinha de sociedades mais complexas: a estratificação social, que promovia diferentes hábitos entre os vários grupos sociais, e a “coexistência de culturas e mesmo subculturas”. Essa ideia, que se opõe fortemente à noção de uma cozinha única no período colonial, foi amplamente exemplificada com depoimentos de portugueses e de outros estrangeiros, os quais, no início do século XIX, preferiram manter suas dietas originais a comer o prato trivial da terra: feijão, farinha e carneseca (SILVA,1978, p. 3-20). Os intercâmbios culturais não teriam, assim, impedido a permanência do gosto e de estruturas alimentares europeias. Evaldo Cabral de Mello, por sua vez, ao procurar compreender as guerras holandesas no Nordeste, dedicou um capítulo de seu livro à “munição de boca” dos soldados. Um fator de extrema importância para a manutenção de uma guerra longa. Além das dificuldades de abastecimento ressaltadas, o que chama a atenção nesse capítulo é a crítica à ideia de Gilberto Freyre sobre a aclimatabilidade do português aos trópicos. Segundo o autor, sempre que possível, os colonos dos primeiros séculos procuraram permanecer fiéis aos hábitos alimentares do Reino. Os anos de guerra e a consequente desorganização da produção teriam afetado o abastecimento de produtos vindos da Metrópole, transformando a dieta dos colonos e das tropas. Os argumentos do autor são fundamentais para pensarmos a constituição dos regimes alimentares na Colônia, ao destacar o significado cultural dos alimentos. Entre as décadas de 1960 e 1970, portanto, o tema da alimentação praticamente retirou-se da pauta dos historiadores da Colônia, embora permanecesse no foco de atenção dos folcloristas e sociólogos. A História da alimentação no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, data de 1968, e não há, ainda hoje, obra equivalente na nossa historiografia. Porém, a visão de uma cozinha miscigenada, resultado de conhecimentos e saberes indígenas, africanos e portugueses, predomina ao longo da obra, notando-se, na maior parte das vezes, a imposição ou o triunfo de um elemento sobre o outro (CASCUDO, 2004), uma postura que marcou os estudos sobre a alimentação e a identidade de diferentes pratos das cozinhas regionais brasileiras. Nos anos 1980, os estudos de José Roberto do Amaral Lapa (1982)

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e de Maria Yedda Linhares (1981) sobre o comércio interno e a agricultura voltada para o abastecimento de alimentos abriram uma vertente de reflexão sobre a diversidade da economia colonial que seria ampliada posteriormente nas décadas seguintes, especialmente em estudos relativos à Região Sudeste. Tais trabalhos, embora não tenham se dedicado à alimentação, forneceram e continuam fornecendo subsídios para se compreender as práticas alimentares dos colonos, evidenciando os produtos, as necessidades e os seus gostos alimentares. Nessa mesma década e na seguinte, na esteira da temática da colonização e suas especificidades, que marcaram o debate sobre a sociedade colonial, o tema da escravidão recebeu novo impulso. As menções à alimentação de cativos e libertos, porém, são esporádicas, mas Julita Scarano (1994) fez importantes considerações sobre a dieta dos escravos, contestando definitivamente a imagem que Gilberto Freyre (1973, p. 40-61) consagrara da melhor alimentação dos cativos em comparação com a do homem branco. Ao tratar da agricultura paulista em seu livro sobre a escravidão indígena, John Monteiro (1994, p. 113-127) também proporcionou informações sobre a mesa colonial. Da mesma forma que a historiografia da escravidão, nos domínios da Nova História Colonial que se impôs nas décadas de 1980 e 1990, muitos novos objetos entraram para a agenda dos historiadores, mas a alimentação foi abordada de forma apenas complementar e em algumas obras. É o caso, por exemplo, dos trabalhos dedicados à religiosidade, à família ou às práticas curativas. Nesse sentido, temas tradicionais das ciências humanas referentes à alimentação, como os jejuns e penitências, os feitiços e envenenamentos por alimentos, a dieta dos doentes, ou os significados da carestia e da fome entre os menos favorecidos, foram contemplados.5 Essa tendência de tema adjacente somente foi rompida a partir dos anos 1990, sob o impacto da publicação de duas obras dedicadas à vida cotidiana europeia: a coleção História da vida privada, de Ariès e Duby (1991), e o livro editado por Flandrin e Montanari, História da alimentação (1998), ambos traduzidos rapidamente para o português. Alguns anos depois, o volume da História da vida privada no Brasil, relativo à América portuguesa, também considerou alguns aspectos da alimentação dos colonos nas estradas e caminhos (SOUZA, 1997, p. 41-82), bem 5 De forma indireta, a alimentação aparece ocasionalmente, em alguns estudos, por exemplo: Souza (1986), Figueiredo (1997), Vainfas (1995), Ribeiro (1997, p. 47-65); Marques (1999, p. 37-96).

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como no interior dos domicílios (ALGRANTI, 1997, p. 119-129). No mesmo ano, a análise historiográfica de Ulpiano Bezerra de Meneses e Henrique Carneiro (1997) e o artigo de Carlos Roberto Antunes dos Santos (1997), Por uma história da alimentação, chamaram a atenção para os poucos estudos na historiografia brasileira centrados na alimentação. Esses dois balanços historiográficos representam um sinal evidente do interesse dos historiadores pelo tema e um convite à reflexão e à pesquisa. Observa-se, a partir dos anos 2000, que as respostas começaram a despontar. Aos poucos, a História da Alimentação no período colonial foi deixando de ser apenas cessória para se constituir em objeto de estudo. Certamente, os capítulos em obras mais abrangentes continuam a ter destaque, como no livro de Glória Kok (2005, p. 76) sobre as expedições paulistas ao interior, ou as menções sobre a alimentação na Colônia em situações de combates, reforçando a importância da farinha de mandioca, como se depreende em algumas passagens de A guerra dos bárbaros, de Pedro Puntoni (1998, p. 210-223). Mas os ensaios específicos publicados em periódicos e anais de congressos, bem como em monografias e dissertações acadêmicas já concluídas ou em desenvolvimento começam a se destacar na Historiografia da América portuguesa.6 Esses trabalhos contemplam um determinado produto, por exemplo, a mandioca, a aguardente ou o milho, ou então segmentos específicos da cozinha colonial, como a doçaria e as bebidas, e mesmo a ideia de um tripé alimentar no Brasil colonial, como no caso do livro de Paula Pinto e Silva (2005); ou, ainda, as práticas alimentares em uma instituição peculiar, como na dissertação de Sonia Magalhães (2001). Além da reconstituição das práticas alimentares, os estudos procuram refletir sobre a transmissão de conhecimentos e de técnicas de cozinha por meio dos livros de receitas, mas, de uma forma ou de outra, não deixam de atentar para a questão das identidades culturais, quer regionais e locais, quer coloniais (ALGRANTI, 2004, p. 127-143). O artigo de Mônica Chaves Abdala sobre as origens e a composição da cozinha mineira no século XVII e XVIII (2006, p. 119-129), o de José Newton Meneses sobre a Comarca do Serro (1998), além do de Maria Beatriz Nizza da Silva publicado na Revista Oceanos (2000) ou o de Maria Eunice Maciel intitulado Uma cozinha brasileira (2004, p. 25-49) caminham, de certa forma, nessa 6 Ver, por exemplo: Antunes (2005), Venâncio e Carneiro ( 2005), Ribas (2006), Panegassi (2010), Venancio e Figueiredo (2005).

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direção. Nem todos os estudos recentes são de historiadores, mas procuram, por meio da alimentação, compreender a dinâmica da vida social e cultural na Colônia.7 Ao ato de comer, porém, precede sempre um conjunto de gestos repetidos, os quais acionam compartimentos repletos de memória. Trata-se do “fazer a cozinha”, como disse Michel de Certeau (1996, p. 41-43), atividade tanto mental quanto manual. Alimentação e cozinha são práticas associadas sem as quais não há alimentação humana e sem essas não seria possível levar avante o projeto português de colonização.

Alimentação e colonização na época moderna O fim do Quatrocentos significou uma nova era para a História da Alimentação, seja na Europa, seja na América, seja na África, seja na Ásia (REBORA, 1998, p.VII). A descoberta da América, em conjunto com a abertura do caminho para as Índias, contribuiu para a mudança dos hábitos alimentares. No início do século XVI, os mecanismos de controle dos espaços alimentares se alargaram em escala mundial com a afirmação do espaço europeu em outros continentes (MONTANARI, 2004, p. 30). Os conquistadores usaram, como espaço de produção de alimentos, os novos territórios, exportando além-mar todos os produtos importantes e fundamentais da dieta europeia (MONTANARI, 2004, p. 30-31). Por outro lado, diversos gêneros alimentícios da América “viajaram” para a Europa. Os mercadores, contudo, não trocavam apenas mercadorias e dinheiro, mas também ideias e, sobretudo, modos, usos e costumes referentes às formas de cozinhar, como bem lembrou Rebora (1998, p. XI). Os historiadores admitiram, portanto, que esse intercâmbio alimentar definiu o consumo a partir de Colombo, provocando uma verdadeira “revolução alimentar”. No entanto, o tema é muito mais complexo, uma vez que o choque entre o Velho e o Novo Mundo não teve as mesmas consequências alimentares para as suas sociedades. As transferências de produtos e hábitos operaram sobre bases culturais diversas e a temporalidade foi distinta (ARANDA, 2005, p. 43-44). Na América, como enfatizou Antônio Garrido Aranda, o impacto foi mais rápido e afetou de maneira desigual

7 Ver, por exemplo: Lorimer (2001), Couto (2007), Takasu (2000).

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os corpos sociais configurados pelo sistema colonial (2005, p. 44). A necessidade de prover os habitantes com alimentos semelhantes aos de seus países de origem levou à tentativa de reproduzir, no Novo Mundo, a alimentação tradicional e a linguagem mesma da alimentação. Assim, tudo quanto fosse transportável em termos de comida foi introduzido no Novo Mundo (ORNELLAS, 2003, p. 203-204). 8 Quanto à incorporação dos produtos das Conquistas na dieta europeia, essa só se tornou importante após longo período de contato. A batata e o milho, no século XVIII, são bons exemplos. Outros produtos, no entanto, foram aceitos mais precocemente, como os feijões e o açúcar. Ou seja, se a aclimatação de plantas e animais da América foi rápida na Europa, seu processo de substituição e incorporação aos produtos locais na cozinha foi, de certa forma, mais lento. Considero importante lembrar que, embora a dita “revolução alimentar” tenha chamado a atenção dos estudiosos e produzido uma vasta literatura sobre seus efeitos na Europa, há outro lado desse movimento que interessa particularmente aos historiadores da América portuguesa e diz respeito às soluções encontradas pelos europeus para sobreviverem nos territórios conquistados, aspecto que não escapou aos cronistas portugueses e espanhóis. De Gonçalo Fernandes de Oviedo a Pero de Magalhães Gandavo, ou os padres José de Acosta e Fernão Cardim, todos dedicaram grande espaço, em suas narrativas do Novo Continente, à descrição da natureza. Um dos muitos aspectos que lhes interessava destacar em frente à diversidade do mundo americano era a disponibilidade de alimentos e o modo de consumi-los dos povos locais.9 Resulta, contudo, que, para os europeus sobreviverem nas terras conquistadas, os conhecimentos da natureza ou dos saberes indígenas tampouco eram suficientes, pois, assim como a língua falada e a religião, eles transportaram para o Novo Continente seus sistemas alimentares, os quais, baseados na tradição, representavam uma forma de autorrepresentação e de identidade cultural. Era como se trouxessem para além-mar parte do seu território de origem e da sua memória. A comida é talvez uma das primeiras formas de se entrar em contato com culturas diferentes, de apreender o outro, mas também e espe8 Um inventário detalhado do intercâmbio de produtos americanos, africanos e europeus encontra-se em Ornellas (2003, p. 204-205 e 234-235). 9 As obras dos cronistas consultadas são edições comentadas e recentes.

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cialmente a si próprio. “A alimentação, entre seus múltiplos aspectos, é um instrumento pelo qual se forma e se exprime o sentimento de pertencimento a um grupo e lhe permite reivindicar um status original no mundo” (BRUEGEL; LAURIOUX, 2002, p. 11). Um veículo de comunicação, portanto, o qual, desde o início da colonização se estabeleceu entre conquistadores e conquistados. Da parte desses últimos, o impacto não foi menos intenso, sendo preciso decodificar, numa espécie de “tradução”, todo um conjunto de significados a partir das novas experiências vivenciadas. É preciso frisar que as trocas culturais de ambos os lados não se operaram simplesmente por meio dos produtos. Basta lembrar a técnica de conservação da carne utilizada pelos índios, próxima à defumação (o moquém) e o processo de salgá-la dos portugueses para compreender o movimento contínuo de cruzamento de fronteiras que se operou entre os vários sistemas alimentares na América. É possível ler, nos mesmos relatos dos cronistas e viajantes, os hábitos indígenas de alimentação e, posteriormente, dos africanos. Sabemos como eles cozinhavam, quais eram os produtos básicos e as plantas que domesticavam e também o que aprenderam a comer com os portugueses. Estes, por sua vez, aderiram à mandioca, ao milho e à carne de diversos animais que não conheciam. Tais registros revelam um fantástico encontro cultural. Nesse espaço, como destacou Paula Montero (2006, p. 31), “[...] o jogo de mediações foi permanentemente feito e refeito”. Uma situação de interculturalidade que se materializou através de redes de relações perceptíveis no espaço das refeições, no uso dos artefatos de cozinha, nas técnicas de processamento dos alimentos, nas receitas, enfim, no “fazer a cozinha” na América portuguesa.10 As relações entre alimentação e colonização se estendem, portanto, muito além do patamar da sobrevivência dos agentes da colonização. Se entender a colonização da América é no fundo captar as formas de comunicação entre conquistadores e conquistados, de ação, integração e modificação entre o mundo europeu e o Novo Mundo, entre a Metrópole e a Colônia, o estudo das práticas alimentares na América portuguesa é um dos caminhos possíveis para o historiador refletir não apenas sobre os resultados desse intercâmbio cultural, mas, especialmente, sobre os

10 A proposta de uma teoria da mediação cultural de Paula Montero foi particularmente inspiradora para refletirmos sobre o intercâmbio cultural entre índios e portugueses no domínio da alimentação, nos primeiros tempos da colonização portuguesa na América. Para mais esclarecimentos, ver: Montero (2006, p. 31-65). Ver também da mesma autora a Introdução ao livro (p. 9-29).

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meios e as formas assumidas ao longo do processo. Talvez por isso a idria de uma cozinha colonial mestiça, híbrida e sincrética, como definida por Gilberto Freyre ou Câmara Cascudo, não satisfaça totalmente. Primeiramente, porque não basta apenas apreender o produto final desse intercâmbio. Em segundo lugar, porque as relações sociais e culturais no Brasil sempre foram assimétricas, sujeitas ao sistema de dominação portuguesa, ao escravismo e às hierarquias sociais. Mas, principalmente, porque não houve, ao longo da colonização, um sistema único alimentar, mas sim convivência e justaposição de regimes distintos. As noções de identidade e troca ou intercâmbio são frequentemente postas em causa quando se trata de cultura alimentar. Mas, na verdade, como lembrou Montanari (2004, p. 154), “[...] aparecem quase que inversamente, isto é no confronto de identidades diversas, seja como salvaguarda da identidade, do patrimônio cultural que cada sociedade reconhece no passado”. Se ocorreram substituições, como no caso da mandioca pelo pão de trigo, sinal de incorporação de hábitos e técnicas, também houve resistência. Afinal, os europeus e seus descendentes, sempre que possível, preferiram o trigo à mandioca; o vinho do reino à aguardente; a comida com sal aos alimentos insossos. Mas, nesse longo processo de constituição das cozinhas coloniais, ocorreram ainda transformações e reinterpretações. Isto é, uma capacidade de mudar, mas também de reafirmar. A partir do estudo da doçaria luso-brasileira – um dos objetos da minha pesquisa sobre a alimentação na América portuguesa, a qual supõe interrelações de sistemas simbólicos alimentares diferentes – é possível apreender nas receitas de doces algumas práticas alimentares dos colonos.11 Práticas estas que se constituíram também em formas de expressão e de comunicação de valores na sociedade colonial, entre os séculos XVI e início do XIX. Afinal, as receitas, mesmo que inspiradas em livros e registros anteriores, revelam as práticas de seu tempo. Cozinha é também repetição e implica recomeçar a cada dia, baseado em um capital acumulado, conforme chamou a atenção Luce Girard (2005, p. 268-269). Por outro lado, permite inventar, improvisar, calcular, ou seja, leva a variações e a reinterpretações também perceptíveis nos sistemas alimentares da Colônia. Os modos de fazer as cozinhas expressam, portanto, a criatividade e as especificidades do viver em colônias, revelado11 Pensar a alimentação como um sistema de comunicação simbólico surgiu a partir da leitura de trabalhos de alguns antropólogos, como Paula Montero (2006) e Mary Douglas (1975) .

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ras das relações políticas, econômicas, sociais e culturais entre Colônia e Metrópole, pois “[...] a comida é um poderoso instrumento para expressar e moldar as relações humanas” (POTTIER, 1998, p. 238).

A doçaria e as relações culturais entre Colônia e Metrópole: um exemplo de interpretação histórica A doçaria luso-brasileira participou do amplo complexo de intercâmbio entre os portugueses e os demais povos e localidades de seu vasto império colonial, o qual se expressou não apenas por meio da circulação dos produtos utilizados, mas também das técnicas e saberes transmitidos sobre a arte de fazer doces, a partir de um sistema de comunicação integrado entre a palavra escrita e a falada.12 Assim, qualquer que seja o segmento da alimentação na América portuguesa a ser estudado, é preciso articulá-lo ao processo de constituição do império atlântico português. Isto é, pensar a alimentação na sua dimensão imperial, uma vez que a colonização da América é apenas uma das partes de um empreendimento maior: a expansão marítima portuguesa. Além disso, a fabricação e consumo de doces na América portuguesa contemplou um setor considerado tradicional da cozinha metropolitana, desde o século XVII. Como destacou João Pedro Ferro (1996, p. 55), a doçaria é a tradição mais original da cozinha portuguesa, algo perceptível nos livros de culinária dos séculos XVII e XVIII, nos quais quase metade das receitas era de doces. Por outro lado, os doces produzidos na Colônia eram feitos com açúcar, um produto colonial com múltiplos usos e funções, o qual revolucionou a alimentação a partir da sua produção em larga escala nos séculos XVI e XVII (MINTZ, 1997, p. 359). Substituiu o mel como condimento, medicina e conservante. Um produto, portanto, inicialmente considerado de luxo e que passou a ser visto como necessário, inclusive entre as classes mais baixas da sociedade. Assim, a escolha

12 Realizei uma análise mais extensa e detalhada sobre a doçaria luso-brasileira em um estudo que serviu de base para este item, intitulado: Os doces na culinária luso-brasileira: da cozinha dos conventos à cozinha da casa brasileira - séculos XVII a XIX, In: Anais de História de Além-Mar. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2005. v. VI, p. 139-158.

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da doçaria, como objeto de estudo, não envolve um segmento secundário da alimentação na América portuguesa, como aparentemente pode sugerir. Ao contrário, trata-se da mais importante produção colonial, a qual alterou profundamente os hábitos alimentares e de nutrição na Idade Moderna (MINTZ, 1997, p. 359-360). Todas as fontes localizadas sobre a alimentação em Portugal e no Brasil reforçam uma evidência: a doçaria sempre foi um elemento participante e importante da alimentação luso-brasileira. Mas, segundo Oliveira Marques (1964, p.15), em Portugal, “[...] só a partir do Renascimento e, mais particularmente, dos séculos XVII e XVIII se desenvolveu a afamada indústria doceira nacional”. Por outro lado, os cronistas da América portuguesa registraram o hábito do consumo de doces confeccionados com açúcar desde o século XVI. Gabriel Soares de Sousa (1971, p. 190), por exemplo, comentou em 1587: Das abóboras... fazem-se muitas conservas, [...] das castanhas de caju... as mulheres fazem todas as conservas doces que costumam fazer com as amêndoas, o que tem graça na suavidade do sabor. Ao amendoim, promovido a fruta, fazem as mulheres portuguesas todas as cousas doces, que fazem das amêndoas, e cortados os fazem coberto de açúcar de mistura com os confeitos.

Nota-se, no comentário do cronista, a necessidade dos primeiros colonos de aproveitar os produtos locais a fim de incrementar sua alimentação diária, procurando, na diferença dos ingredientes, elaborar pratos semelhantes aos que costumavam consumir em sua terra natal. Nessa cozinha transformada em laboratório de experiências, há uma intenção de busca de formas e consistências conhecidas, reveladora da permanência das estruturas alimentares e do modo de cozinhar lusitanos. O fato é confirmado por Pero de Magalhães Gandavo (1964, p.51), ao observar que as castanhas eram tão boas ou melhores do que as de Portugal, as quais eram comidas assadas, ou “[...] cruas e deitadas em água como amêndoas piladas com as quais se faz maçapães e bocados doces [...]”. Mas também havia a preocupação de identificar as características dos produtos disponíveis e desconhecidos, visando ao cuidado com o corpo. O registro permite-nos perceber, além de semelhanças na prepa-

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ração dos doces de frutas (ponto do açúcar, ovos e canela), sua presença à mesa dos colonos, ou à cabeceira dos doentes, da mesma forma como eram consumidos no Reino. A necessidade de ingerir doces, que se instaurou desde o início da colonização, alastrou-se pelos séculos seguintes e invadiu as casas dos indivíduos dos mais diferentes segmentos da sociedade. Já no início do século XIX, referindo-se a uma casa de família de pequenas posses, no Rio de Janeiro, Debret (1940, p. 129) comentou que um moleque se apresentou prontamente com um copo d’água, “[...] bebida freqüentemente solicitada durante o dia para acalmar a sede que o abuso dos alimentos apimentados ou das compotas açucaradas provoca”. Consumiam-se doces à sobremesa das refeições mais consistentes, bem como nos lanches, nas ceias frugais e até nas merendas de viagens, além de ser presença obrigatória em celebrações de todo tipo. É certo que, entre os séculos XVI e XIX, a culinária na América portuguesa foi sendo constituída e transformada permanentemente, uma vez que se trata de uma arte combinatória e de inter-relações, mais do que de invenções, cujos processos se desencadeiam sob o signo da variação mais do que da criação pura. A história da alimentação, como observou Piero Camporesi (1995, p. XXXIX), é fundamentalmente a história da morfologia dos pratos e da comida, os quais apresentam elementos variáveis e constantes. Assim, ao longo da colonização portuguesa na América, devido à chegada ininterrupta de reinóis, mas também de escravos e indivíduos de outras origens ao novo território, a doçaria – assim como a cozinha em geral – foi sendo enriquecida e transformada. Dessa forma, o vínculo entre a doçaria portuguesa e aquela produzida na Colônia foi sendo sempre renovado, permanecendo estreito durante vários séculos. Esta relação evidencia-se tanto na adaptação de certos doces, quanto na criação de novos pratos elaborados com açúcar. Para observar como os doces eram produzidos, selecionei, nos registros de cronistas e viajantes, referências a alguns doces, os quais foram reunidos em três grupos, de forma a proporcionar uma análise comparativa com as antigas receitas portuguesas impressas ou manuscritas dos séculos XVII e XVIII.13 Cabe observar que esses exemplos não esgotam a multiplicidade e a variedade do inventário de doces portugueses ou locais, contudo permitem avaliar a doçaria como prática social e ilustram trocas culturais mais amplas. 13 Os livros portugueses de culinária consultados foram: Rodrigues (1987) e Rigaud (1999).

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O primeiro grupo selecionado compõe-se de doces cuja diferença em relação ao doce de origem portuguesa é, simplesmente, a substituição do produto básico (um fruto geralmente) isto é, geleias, compotas e frutos cristalizados que podiam ser guardados por muito tempo. No Novo Mundo, com a abundância dos frutos tropicais, além daqueles aclimatados e trazidos pelos colonizadores, faziam-se compotas e conservas das mais variadas frutas em todas as localidades, desde o século XVI. Esses doces possuíam sabores diferentes daqueles consumidos no Reino, mas lembravam de perto as conservas preparadas na metrópole e podem ser considerados os descendentes diretos dos doces portugueses feitos à base de frutas e açúcar. Os colonos e conquistadores cozinhavam basicamente para o dia a dia e não podiam ficar restritos a certos ingredientes específicos. Eles dispunham da abundância do açúcar, dos produtos existentes no pomar e na natureza e de um “modo conhecido” de aproveitar os frutos, isto é, possuíam um modelo de referência que foi conservado. Procedimento semelhante foi utilizado, durante séculos, pelos europeus na fabricação do pão. A combinação de produtos novos às técnicas culinárias portuguesas, no entanto, deu origem a doces diferentes daqueles que encontramos nos registros portugueses antigos. A canjica com açúcar ou a rapadura são exemplos interessantes de novos doces e fazem parte do segundo grupo de doces selecionados. Esses, aparentemente, não encontram similares na doçaria portuguesa. Eram pratos doces muito populares na América por serem consumidos por indivíduos de todos os segmentos da sociedade. Segundo John Luccock (1975, p. 278), no início do século XIX, a canjica podia ser considerada um “prato nacional”. De acordo com SaintHilaire (1975, p. 96-97), que visitou o Sudeste do País no mesmo período, “[...] canjica era o nome do milho cozido descascado e cozido em água”. Mas também podia ser feito com leite e, no Nordeste, chamava-se angu de milho. “O acepipe – diz um outro viajante – lembra uma espessa sopa de ervilhas, e é longe de ser desagradável quando adicionam açúcar ou melaço” (KOSTER, 1936, p. 462). Esse prato, no qual se observa a incorporação de um produto local na dieta dos colonos, apresenta uma consistência semelhante às famosas sopas e papas, muito próprias da cozinha europeia medieval.14

14 Câmara Cascudo (1968, p. 102) informa que “mingau” era uma “[...] papa rala de goma de mandioca, ou carimã, milho, cevada, leite de gado, gema de ovo e açúcar, destinado aos convalecentes e crianças”. Também o pirão (caldo no qual foi cozido o peixe, engrossado com farinha de mandioca) é uma papa, a qual Cascudo (1968, p.104) se referiu como “[...] uma técnica portuguesa com material brasileiro, uma obra-prima nacional”.

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A rapadura, por sua vez, embora pareça ser um doce bem original no repertório alimentar luso-brasileiro, foi confeccionada em outras zonas produtoras de açúcar e era também uma espécie de adoçante. Os doces comentados nesse grupo – a canjica especialmente – apresentam características de pratos doces ou salgados consumidos no Reino, quer fosse na forma de prepará-los, quer na consistência. Isso nos leva a perceber que a técnica de confecção não seria o único elemento responsável pela identidade de um doce, como tampouco o seria o produto específico utilizado (os frutos tropicais, por exemplo). O que se pode pensar é que havia algumas “receitas de base”, como definiu Jack Goody (1988, p. 57), as quais, adaptadas, podiam resultar em novas comidas. Em outras palavras, nota-se que havia estruturas fundamentais de cozinha, reproduzidas há muito tempo no Velho Continente, que foram aplicadas, integralmente ou modificadas, conforme as necessidades dos habitantes da América. As receitas de pão-de-ló e arroz-doce, por sua vez, são frequentes nos receituários portugueses antigos. Entretanto, também esses tradicionais doces portugueses apresentam algumas variações nos ingredientes e no modo de preparo ao longo do tempo na Colônia. O pão-de-ló, por exemplo, podia levar as claras em neve ou não; conter mais ou menos ovos, amêndoas e até prescindir da farinha de trigo. Porém, mesmo que o resultado e a forma de preparar fossem diferentes, o nome não era alterado (RODRIGUES, 1987, p. 321; RIGAUD, 1999, p. 226). É interessante observar que a continuidade da palavra marcava uma mudança importante de conteúdo: ou seja, uma palavra antiga servia para designar um produto novo (MATTHAIOU, 2002, p. 224). Quanto ao arroz-doce ou “arroz de leite”, tão tradicional nas mesas portuguesas, recebeu aditivos locais, ao se transportar para a América, assim como o leite de coco (CASCUDO, 1968, p. 191-182 e 467-468). No entanto, a receita tradicional é permanente: arroz, leite, açúcar e canela. Os doces pertencentes a esse conjunto perpetuaram-se na América com os mesmos nomes (mesmo contendo diferenças nas receitas) e foram registrados nos livros e cadernos de receitas, a partir de meados do século XIX. Observa-se, nesse sentido, um certo tradicionalismo na forma de nomear os doces que passava de geração em geração. “Os livros e cadernos de receitas, certamente, alargam o âmbito da cozinha própria de uma sociedade, mas o aprendizado oral e participativo contribuiu fortemente na transmissão das receitas” na América portuguesa

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(GOODY, 1988, p. 157). As mudanças que ocorreram em muitas delas devem estar ligadas à transmissão oral e à liberdade de execução. Como salientou Fernando Bouza (2002, p. 108-110), mais de um século e meio após Gutemberg, a capacidade de criar memória não se reduzia à escrita, “[...] um potencial idêntico era atribuído tanto às imagens quanto às palavras faladas”. A oralidade continuava sendo uma forma de comunicação e de conhecimento importante.

Conclusão Procurei primeiramente refletir sobre o lugar da alimentação na História e esclarecer por que a “comida” é considerada uma forma de expressão cultural, a fim de, a partir das práticas alimentares dos colonos, compreender as relações culturais no Império Português. Procurei mostrar que a alimentação e a culinária não são apenas realidades materiais; o sistema alimentar contém e transporta a cultura de quem a pratica, como observou Montanari (2004, p. 153). Nesse sentido, a alimentação interligou as partes do Império Português em termos de produtos, de conhecimentos e modos de fazer e consumir a comida, agindo como um fator de articulação cultural e de estreitamento dos vínculos entre a Colônia e a Metrópole. Destacam-se dessa premissa duas questões que têm preocupado os historiadores da Colônia e que o estudo da alimentação pode ajudar a compreender: a) de um lado, o processo decorrente do encontro de culturas distintas e não apenas seus resultados. Aspecto que os historiadores buscam equacionar com o apoio de conceitos da Antropologia, mas centrados nas práticas socioculturais em espaços e tempos definidos; b) de outro, a questão da comunicação no Império Português, algo que me parece central no processo de colonização. Esses dois aspectos foram analisados a partir de um estudo de caso — a doçaria luso-brasileira — entendida como parte importante da culinária e da alimentação na América portuguesa. As fontes citadas apontaram momentos diferentes da colonização, numa análise na qual predominou o tempo longo, a fim de elucidar o que foi se constituindo como particular e o que poderia ser comum à cul-

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tura dos conquistadores: a cozinha da diferença, mas também aquela das mudanças ou das apropriações alimentares.15 Talvez por isso não seja possível pensar apenas em uma doçaria ou cozinha colonial única – híbrida ou mestiça – indicativa do final de um percurso, mas sim em convivência de cozinhas (no plural) e de práticas alimentares. Essas práticas apresentavam semelhanças e continuidades em relação à cozinha da Metrópole, mas foram também alteradas e renovadas constantemente na América, ao longo dos séculos XVI ao XIX. Como previu Fernão Cardim (1939), na esperança de que a Colônia pudesse superar a Metrópole devido às suas potencialidades e “[...] pelas comodidades que de lá lhe vêm: Este Brasil é já outro Portugal!” E poderíamos acrescentar: bem mais complexo ele se tornaria sob o jugo da escravidão e da exploração colonial. Referências ABDALA, Mônica Chaves. Sabores da tradição. Revista do Arquivo Público Mineiro, ano XLII, n. 2, p. 119-129, jul./dez. 2006. ABREU, Capistrano de. Três séculos depois. In: ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1976. p. 189-213.

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As corporações urbanas inglesas às vésperas da reforma de 1835: instituições do antigo regime confrontadas com a emergência de novos usos urbanos 1 Frédéric Moret Quando os representantes da Comissão de Investigação sobre as Corporações Municipais Inglesas e Galesas visitaram, em 1833, o burgo real de Ipswich, no Suffolk, e organizaram uma audiência pública para investigar sobre essa cidade, que possuía então mais de 20 000 habitantes, uma das reclamações mais frequentes dos habitantes dizia respeito às dificuldades de fornecimento de água na localidade. O relatório da comissão, redigido por John Buckle, cita o caso de habitantes que foram privados de água durante vários dias, até mesmo um mês, ou que foram obrigados a montar guarda para seus senhores, a fim de estarem presentes no momento em que – dia ou noite – a água estivesse disponível. O coletor de impostos teria respondido a um comerciante que reclamava dessa penúria, “[...] que havia imóveis demais a fornecer e que essa falha não poderia ser reparada”, conforme registro do First Report of the Commissioners appointed to inquire into the Municipal Corporations in England and Wales (1835, p. 2321). Essa situação não traz, em si, nada de excepcional – um problema de adaptação das infraestruturas ao crescimento urbano, algo que se encontra em todos os lugares e em todas as épocas. No entanto, a água era abundante em Ipswich e estava conectada a fontes bastante férteis. O problema central residia no fato de que a rede de fornecimento estava perpetuamente em reformas e, frequentemente, fora de condições de

1 Capítulo traduzido por Ingrid Bueno Peruchi e Diego Fonseca dos Santos.

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uso. A razão desse problema era clara: o gestor empregava uma multidão de habitantes, dentre aqueles que pertenciam à corporação, os chamados freemen, para a manutenção das canalizações. Entretanto, esses operários não eram de forma alguma qualificados; tratava-se de habitantes pobres, dos quais se esperava, em contrapartida à oportunidade de trabalho e de renda que lhes era dada, votos aos candidatos apoiados pela corporação. Um homem de negócios, que possuía terras ricas em fontes de água, tentou, para amenizar o problema, instituir uma companhia concorrente em uma parte da cidade, iniciativa prontamente saudada pela população. A água tornou-se mais abundante, menos cara e as instalações comprovaram sua eficácia, quando, no momento de um incêndio, a água da corporação vinha a faltar. Porém, a corporação ordenou a esse homem de negócios a interrupção da atividade, alegando um monopólio municipal sobre a perfuração dos solos e ameaçando processá-lo, caso continuasse a querer instalar canalizações nos solos da cidade. Se esse episódio não fosse por si só deplorável, o relatório explica ainda que a concessão municipal de água, que antes era atribuída por concurso público, havia se tornado, a partir de 1832, arrendada, de forma amigável, a dois membros da corporação, um dos quais pertencia à câmara municipal... Todos os elementos da denúncia clássica de abuso do sistema corporativo parecem reunidos nessas descrições: corrupção, compra de votos e monopólios unem-se a uma incapacidade de administrar corretamente a cidade. Torna-se claro que a simpatia do relator recai sobre os opositores da corporação e, em particular, sobre as tentativas de promover na cidade a racionalidade econômica e social, tal como atestou o empreendimento do proprietário de terras. Esse exemplo proveniente de Ipswich, entre muitos outros, ilustra as tensões que se exprimem, no início dos anos 1830, no interior das comunidades urbanas britânicas. A “Idade das Reformas”, iniciada pelo Reform Act de 1832, foi apresentada por uma vasta parte da historiografia, inspirada no liberalismo, como forma de adaptação do sistema político e social britânico à modernidade. A mudança das regras eleitorais permitiu aos burgos reais a conservação de uma grande influência parlamentar. Para além das circunscrições eleitorais territoriais formadas pelos condados, um número ainda significativo de deputados era eleito pelos burgos reais, pois esses haviam recebido do rei uma carta-patente que os beneficiava.

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A comissão de investigação sobre as corporações municipais Como consequência da reforma liberal de 1832, o governo whig decide reformar essas localidades, tanto por razões eleitoreiras – pois frequentemente elas representavam fortalezas do torysmo – quanto para melhorar a gestão. No espírito da “legislação científica”, que caracterizava a época, a decisão de criação de uma vasta comissão de investigação é tomada no verão de 1833, tendo por objetivo estabelecer um balanço da situação e do funcionamento das corporações municipais. Essas comissões, cuja ação evoluiu ao longo do século XVIII, tornaram-se um instrumento quase sistemático da legislação britânica no século XIX. Contrariamente ao Select Committee, composto de parlamentares, a Comissão Real era constituída de especialistas, a quem era confiada uma missão que poderia ser de longa duração. Essas duas instâncias estavam enraizadas no sistema político britânico e obtiveram um desenvolvimento importante a partir do início do século XIX.2 Com suas especificidades, as duas ilustram o desenvolvimento de formas de reflexão e de prefiguração da legislação, próprias ao funcionamento do aparelho administrativo e estatal britânico. A “Revolução Administrativa” no governo britânico deu-se amplamente pelo papel das comissões, desde o final do século XVIII, principalmente por meio das comissões de exame das contas públicas. Inventou-se, com elas, um novo modelo, em que o poder central exigia dos comissários tanto a investigação de campo quanto a recomendação de mudanças legislativas (TORRANCE, 1978). A gravidade das questões sociais — os efeitos do que se convencionou chamar de Revolução Industrial — encontrava-se evidentemente no cerne da inquietação dos dirigentes, o que motivou essa busca de informações. Ocorre assim, portanto, uma coincidência entre o impulso da economia liberal (e suas justificativas teóricas) e o desejo de conhecer os efeitos sociais das mudanças em curso. A amplitude e a complexidade dos problemas, somadas às especificidades regionais e até mesmo locais, impõem um trabalho aprofundado e prévio à legislação a fim de analisar e expor a situação vigente (COLLINGE, 1984).3

2 Elas existem claramente desde antes da era das reformas whigs, mesmo se são frequentemente mal compreendidas (desde J. Toulmin Smith) como criações liberais. Cf. CLOKIE, H. M.; ROBINSON, J. W. Royal commissions of inquiry: the significance of investigations in British politics. Stanford: Stanford University Press, 1937. 3 Um inventário científico das comissões reais permite medir a importância e a diversidade dos assuntos

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A maior parte das grandes questões políticas, econômicas ou sociais do tempo são, assim, estudadas por uma ou várias comissões. Os relatórios dessas comissões, que eram sistematicamente publicados, constituem há tempos uma clássica fonte aos trabalhos dos historiadores. As investigações sobre as Poor Laws (1832-1834), ou sobre a salubridade das cidades (1843-1848) (Report from His Majesty’s commissioners for inquiring into the administration and practical operation of the Poor Laws, 1834), por exemplo, por meio das quais Edwin Chadwick se tornou ilustre, foram largamente utilizadas. É também o caso, evidentemente, do relatório sobre as Corporações Municipais, que fornece aos historiadores das diferentes cidades ou do sistema urbano britânico como um todo informações preciosas. A ideia de que é necessário estabelecer, antes de legiferar, um quadro completo da situação sob uma base de cientificidade está inscrita nas concepções intelectuais daquele tempo, tornandose comum a uma boa parte do mundo político e administrativo, para além dos círculos “bentamianos”.4 As comissões de investigação subordinavam-se à autoridade real, e não ao Parlamento;5 elas só dependiam do Parlamento na medida em que esse votava o seu orçamento. Essa situação, que havia sido fonte de tensões em momentos anteriores, torna-se muito pouco problemática numa época em que o Governo de Gabinete se encontra condicionado ao apoio do Parlamento e, sobretudo, da Câmara dos Comuns. O caráter puramente executivo da comissão, sem sanção parlamentar, fornecerá, no entanto – é o que veremos –, argumentos aos oponentes à investigação. O secretariado do Home Office detinha a autoridade sobre as nomeações, o que alimentava frequentemente sentimentos de favoritismo. O objetivo da reforma municipal encontra-se em si mesmo estabelecido, e não se pede aos especialistas que tomem decisões sobre sua relevância, nem mesmo sua filosofia geral. Isso explica talvez por que essa reforma é tão específica, sobretudo se a compararmos, como fizeram os Webb, 6 com a reforma da comissão de investigação sobre as Poor Laws. tratados. 4 Para uma visão que se tornou clássica (e é hoje largamente relativizada) da influência “bentamiana” sobre as reformas, cf. HALÉVY, E. Histoire du peuple anglais au XIXe Siècle: du lendemain de Waterloo à l’avènement de Sir Robert Peel 1815-1841. Éd. corrigée. Paris: Hachette Littérature, 1973. 5 Até 1842, todas elas eram criadas por cartas patentes reais (Letters patent under the Great Seal). 6 WEBB, S.; WEBB, B. English local government from the Revolution to the Municipal Corporations Act. London: Longmans, 1908. p. 713-714.

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Ao invés de se utilizar um pequeno número de personalidades eminentes, benevolentes, encarregadas de fazer a síntese do trabalho de campo dos numerosos colaboradores e de propor os termos da reforma, a escolha, realizada em 1833, foi a de recrutar – pagando salários – vinte pessoas, que viajariam pelo país a fim de estabelecer um balanço da atividade dos burgos. Segundo Bryan Keith-Lucas (1952),7 a seleção desses comissários 8 foi feita por Lord Brougham, em meio a juristas conhecidos por ele pessoalmente ou por reputação, que eram, na imensa maioria, próximos dos reformadores e pertenciam a igrejas dissidentes. Tal situação forneceu um argumento aos oponentes à reforma, principalmente na ocasião do debate na Câmara dos Lordes.9 Profissionalmente, os comissários eram todos barristers; 10 a comissão inscrevia-se naturalmente nos códigos dos procedimentos jurídicos e funcionava como um dos numerosos tribunais de Justiça que, de forma mais ou menos concorrente, desempenhava um papel importante na vida administrativa e política do Reino Unido. Contrariamente aos investigadores sociais que, na mesma época ou posteriormente, lançaram na França as bases da investigação moderna,11 os comissários britânicos não precisaram inventar ou impor seus métodos de investigação; bastava-lhes seguir os procedimentos jurídicos tradicionais, tomando o juramento das testemunhas interrogadas em sessões públicas. A formação que possuíam era, portanto, largamente comum, mesmo se seus centros de interesse e seus cursos pudessem diferir. Isso explica, provavelmente, a impressionante unidade de tom e de conteúdo desses relatórios, que os comissários redigiram em dupla ou individualmente.12 A composição da comissão obedecia, evidentemente, a motivações políticas claras: buscava-se preparar uma reforma das cor-

7 Os Webb, por sua vez, atribuem a composição a Lord Grey. 8 Termo original, em inglês: commissioner. 9 Cf. em particular o discurso de Lorde Lyndhurst do dia 3 de agosto de 1835 em réplica a Lorde Brougham. Hansard’s Parliamentary Debates. London: Hansard, 1835. v. XXIX, col. 1390-1. 10 No direito anglo-saxônico (common law), o termo barrister designa um advogado (called to the bar) especializado nas defesas e nos processos mais importantes. Em geral, ele não está em contato direto com os autores dos processos, que se dirigem a um sollicitor que, posteriormente, apela ao barrister para defender oralmente a causa. 11 Sobre as investigações operárias, cf. PERROT, M.: Enquêtes sur la condition ouvrière en France au XIXe siècle. Paris: Hachette, 1972; LÉCLERC, G. L’observation de l’homme: une histoire des enquêtes sociales. Paris  : Le Seuil, 1989; DÉMIER, F. Le tableau de Villermé et les enquêtes ouvrières du premier XIXe siècle. Prefácio à reedição do Tableau de l’état physique et moral des ouvriers. Paris: EDI, 1989, assim como LESPINET-MORET, I. L’office du travail, la République et la réforme sociale, 1891-1914. Rennes: PUR, 2007. 12 À luz das entradas do Dictionary of National Biography ou de outros dados esparsos, algumas nuances das quais se encontram ecos nos relatórios podem ser elencadas.

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porações municipais, dando prosseguimento ao Reform Act, tanto para modernizar a vida política britânica quanto para assentar a dominação do partido whig, num momento em que as corporações municipais eram vistas como verdadeiras fortalezas tories. A comissão inglesa e galesa mobilizava uma máquina administrativa pesada, complexa e dispendiosa, a fim de informar o Estado central sobre as situações locais. Tal situação é instrumentalizada pelos oponentes à reforma, que a descrevem – e provavelmente a percebem – como o desenvolvimento de um aparelho de Estado coercivo e inquisitorial, sintoma de um reforço do centralismo, que lhes parece contrário a todas as tradições britânicas e às “liberdades inglesas”. Toulmin Smith, em 1849, ataca, aliás muito violentamente, essas práticas, que conferiam um poder exorbitante a juristas que dependiam unicamente do poder central quanto a seus salários e à continuidade de sua carreira (SMITH, 1849).

Um projeto de “legislação científica” O contexto intelectual no qual se inscreve a ação das comissões de investigação e, de forma mais ampla, a dinâmica das reformas dos anos de 1830, é central em numerosos trabalhos históricos que se inscrevem na linha da obra de Elie Halévy (1901), publicada no início do século XX. A Idade das Reformas vê a promoção de uma nova concepção das relações entre os cidadãos e os poderes, tirando lições tanto dos arroubos revolucionários continentais quanto das reflexões filosóficas do século XVIII. Desse ponto de vista, a comissão de investigação sobre as corporações municipais exprime uma experiência intelectual hoje bem conhecida, comum a uma geração de legisladores e de juristas para quem a reforma deve gerar uma gestão dos negócios públicos caracterizada pela racionalidade e por uma aplicação uniforme no território nacional. 13 “A aspiração à reforma”, sinal do tempo, deixou sua marca no comportamento dos contemporâneos, bem além do círculo estreito dos fiéis de Bentham e dos radicais mais afirmados. Lorde Brougham, lorde chan-

13 Para uma síntese dos debates e uma apaixonante perspectiva, cf. BURNS, A.; INNES, J. (Ed.). Rethinking the Age of Reform: Britain 1780-1850. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, particularmente a introdução e o primeiro capítulo consagrado por Joanna Innes à “Reform in English public life: the fortunes of a word”.

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celer e principal inspirador da comissão, conviveu ele próprio com Bentham, tendo o cuidado de não fazer suas as teorias mais democráticas do jurista (LOBBAN, 2004). Dentre os comissários, somente dois (Charles Austin 14 e Peregrine Bingham 15) podem ser definidos como membros do grupo bentaminiano, mas eles não detinham um papel decisivo na elaboração do relatório definitivo. Por outro lado, o secretário da comissão, Joseph Parkes,16 teve um papel central na organização da comissão assim como na elaboração e na redação do relatório (que realizou em grande parte com o presidente da comissão, John Blackburne, sobre o qual as informações disponíveis são infelizmente muito raras). Parkes foi uma figura importante do movimento reformador; agente eleitoral,17 possuía um bom conhecimento do sistema político local e pôs à disposição do partido whig suas competências organizacionais e jurídicas. Ele encarnou um novo tipo de agente político, à sombra dos eleitos, pois nunca teve meios econômicos de elegerse deputado em total independência. Ideologicamente próximo dos radicais (e sobretudo de Francis Place), aceitou, entretanto, colocar-se, sem segundas intenções, a serviço dos governos whig. Sua nomeação para a comissão representou tanto uma recompensa por seus leais serviços de combate no tempo do Reform Act (em particular por ter estabelecido uma ligação entre os dirigentes whigs e a Birmingham Political Union) quanto o reconhecimento de uma real competência jurídica e política sobre o assunto. Parkes ficou de fato conhecido por seus ataques e críticas em relação ao funcionamento das corporações municipais. A exemplo de outros juristas reformadores em diversas localidades, empreendeu uma ação judicial contra as práticas da corporação de Warwick, sua cidade natal. Obteve o reconhecimento de que a corporação agia na ilegalidade em relação à sua carta-patente e levou à modificação de suas práticas. Essa ação na Justiça permitiu-lhe a oportunidade de uma publicação (PARKES,

14 RUMBLE, W. E. “Austin, Charles (1799–1874)”. In: Oxford Dictionary of National Biography. Oxford: Oxford University Press, 2004. Disponível em: < http://www.oxforddnb.com/view/article/2413 > . Acesso em: 16 abr. 2007. 15 CONWAY, S. “Bingham, Peregrine (1788-1864)”. In: Oxford Dictionary of National Biography. Oxford, Oxford University Press, 2004. Disponível em: < http://www.oxforddnb.com/view/article/2413 > . Acesso em: 16 abr. 2007. 16 SALMON, P. J. “Parkes, Joseph (1796-1865)”, op. cit.; BUCKLEY, J. K. Joseph Parkes of Birmingham and the Part which he played in Radical Reform Movements from 1825 to 1845, Etc. [With a Portrait]. London: Methuen & Co., 1926. NANCY, LoPatin-Lummis. “‘With all my oldest and native friends’. Joseph Parkes: Warwickshire Solicitor and Electoral Agent in the Age of Reform”. Parliamentary History, v. 27, n 1, p. 96-108, 2008; THOMAS, W. The Philosophic radicals: nine studies in theory and practice, 1817-1841. Oxford: Clarendon Press, 1979. Em particular o capítulo 6, “Joseph Parkes and Party”, p. 244-304. 17 Ele exerceu particularmente em favor dos Stafford-by-Warwick, Leicester, nos condados de Worcester e de Warwick.

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1827), por meio da qual ele enunciou, em 1827, um vibrante discurso em favor de uma reforma municipal a partir de uma análise histórica da carta-patente de Warwick. Próximo de Bentham, com quem conviveu de 1817 até sua morte, Parkes edificou sua denúncia do sistema existente de corporações municipais a partir de uma leitura que se pode qualificar de bentamiana. O relatório geral, cuja autoria principal lhe cabe, lamenta assim o caráter aleatório e não científico da constituição das corporações municipais, assim como a ausência de uma estrutura uniforme em todo o reino, e indica indiretamente o modelo desejado de organização dos poderes municipais ao fim da reforma: “Nós descobrimos que não há o mínimo princípio geral nas origens da constituição dos burgos; do mesmo modo, nenhum sistema político ou de lei comum prevaleceu, em nenhum período”.18 Apoiando-se em uma leitura jurídica e histórica do sistema corporativo, a iniciativa busca, na verdade, uma legislação fundada em uma base científica, aplicada de forma homogênea na totalidade do território. Mais adiante, o relatório destaca que o maior defeito do sistema existente é que a corporação funciona de forma autônoma e distinta em relação à comunidade urbana. O interesse dos habitantes não é, de forma alguma, levado em consideração pela estrutura jurídica corporativa; isso se torna evidente nas corporações reduzidas a um pequeno número de membros, mas o problema também aparece nas corporações que possuem muitos freemen. Quando uma corporação se submete aos interesses dos freemen não residentes na localidade como é, às vezes, o caso, ela torna-se um obstáculo ao desenvolvimento de uma sociedade urbana equilibrada. Os burgos não reformados, por sua estrutura e natureza, são o oposto do que deveriam ser instituições que visam “à maior felicidade do maior número”.19 Entretanto, esse substrato ideológico encontra rapidamente seus limites, e as contingências táticas e políticas, em particular no âmbito do debate parlamentar de 1835, acabaram se tornando decisivas nas configurações precisas que tomou a reforma municipal. Mesmo no que tange ao relatório em si, seria abusivo (e muito pro18 Report…on Municipal Corporations, 1835, v. XXIII-XXVI, p. 16: “We have not discovered that there was any general principle in the mode of forming the constituency of the boroughs, nor can we assume that any one system of policy or common law right prevailed at any period throughout the realm”. 19 Ibid, p. 32 : “[…] the corporate bodies exist independtly of the communities among which they are found. The Corporations look upon themselves, and are considered by the inhabitants, as separate and exclusive bodies ; they have powers and privileges within the town and cities from which they are named, but in most places all identity of interest between the Corporation and the inhabitants has disappeared”.

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vavelmente pouco produtivo...) fazer uma leitura do texto por um único prisma utilitarista.20 Pelas descrições feitas das situações locais, os diferentes comissários deixaram por vezes transparecer centros de interesse particulares e exibiram suas concepções do que devia ser uma cidade racional, por suas funções e instituições. Se, por um lado, os relatórios adotam uma neutralidade na forma, eles evidenciam, por outro, uma mensagem claramente identificável do ponto de vista político, social e cultural. Como lhes pedia a carta de missão (Reports..., 1835), a maior parte dos comissários acaba seus relatórios por uma rápida evocação da prosperidade da cidade. Sem grande surpresa, encontram-se ali concepções econômicas e sociais que relacionam o desenvolvimento urbano ao dinamismo econômico e à qualidade da inserção nas redes comerciais. Essas concepções econômicas e sociais, bastante ortodoxas, não diferem das abordagens que se podem, no mesmo momento, encontrar em outras investigações próximas, em particular sobre a lei dos pobres (Report from His Majesty’s Commissioners for inquiring into the administration and practical operation of the Poor Laws, 1834). Em especial, o maior ou o menor custo das taxas dos pobres e suas variações são instituídos como critério de prosperidade e de boa gestão. Chipping Norton foi, assim, atacado por suas fortes despesas em favor dos pobres, enquanto Buckingham havia conseguido estabilizá-las (Report..., 1834). Acusa-se, segundo uma lógica próxima, a inércia econômica de Appleby às pesadas taxas indiretas, que freavam a construção imobiliária e o comércio.21 Peregrine Bingham, bentaminiano convicto, foi um dos que sustentaram da forma mais sistemática esse tipo de discurso. Para defender a ideia da necessidade de uma reforma, elaborou uma imagem muito coerente dos burgos que visitou, dos quais a existência da corporação seria um obstáculo à melhoria das condições econômicas e sociais. Em Wootton Bassett, elaborou um painel da situação, no qual ele reúne, num mesmo raciocínio, a economia, a política e a moral dos habitantes. A conclusão geral do relatório, denominada General State, é severa: 20 Os Webb (WEBB, S.; WEBB, B. English local government from the Revolution to the Municipal Corporations Act, 1908, p. 716) destacam igualmente o papel representado por Fletcher, assistant-secretary, definido como “a clever young Benthamite”. Fletcher foi o inventor do tão útil e completo índex publicado em 1839, que permite uma utilização muito eficaz do relatório de 1835 (FLETCHER, J. Analytical index to the Reports of the commissioners appointed to inquire into the Municipal Corporations (England and Wales). London: H.M.S.O., Parliamentary Papers, 1839. v. XVIII). 21 Ibid, p. 1428: “The State and Prospects of the town are said not to be improving. There is no increase of buildings, and the trade is languishing. This is attributed greatly to the tolls”.

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O estado geral do lugar está longe de florescer; a taxa dos pobres está em contínuo crescimento e a instituição municipal do burgo tende de forma evidente a agravar a situação. Antes do burgo ser colocado na categoria A, o direito de voto era dado aos habitantes que pagavam os scot and lot, e seria agora inútil descrever as circunstâncias que levaram essa localidade ao primeiro lugar dos burgos mais corruptos. Mas as relíquias dessas instituições viciosas são ainda o maior obtáculo no caminho em direção ao desenvolvimento. Sendo a localidade pequena, os magistrados do burgo são na maior parte escolhidos numa classe de pessoas incompetentes para exercer as funções de Juiz de Paz. Um deles, atualmente, é um fazendeiro aposentado, um outro é costureiro. Como era de se esperar, essa situação traz como consequência um agravamento ainda maior dos efeitos da gestão defeituosa das Poor Laws. A ajuda é atribuída, gradativamente, a quase todos aqueles que a pedem, não há workhouse. Em tais circunstâncias, não há mais nenhuma motivação em favor da indústria e da previsão, e uma população desfeita, que antes era mantida em certa medida pelos patrões que exigiam seus votos, torna-se agora, de forma irrecuperável, sustentada pelos párocos proprietários. 22

A pequena localidade de Wiltshire, que se destacou no final do século XVIII pela violência e pela corrupção de seus eleitores, fez parte dos burgos que perderam sua representatividade parlamentar com o Reform Act de 1832. Tratava-se de uma circunscrição conservadora. A imagem que Bingham trasmite dela impressiona pelo cuidado em estabelecer uma coerência lógica entre todos os elementos da vida local. Ele funde o

22 Ibid, p. 148: “The General State of the place is far from flourishing; the poor-rate is continually on the increase; and the municipal institution of the borough has an obvious tendency to render its condition worse. Before the borough was placed in Schedule (A.) the right of voting was in settled inhabitants paying scot and lot, and it would now be useless to describe the circumstances which gave the place a pre-eminent among the worst of the rotten boroughs. But the relics of its vicious institutions are still the chief obstacle in the way of its improvement. The place being small, the borough magistrates are for the most part taken unavoidably from a class of persons incompetent to discharge the functions of the Justice of the Peace. One of them, at present, is a retired farmer, another a tailor. The consequences, as might be expected, are an aggravation of all the evils arising from a defective administration of the Poor Laws. Relief is granted, according to a regular scale, to almost all who apply; and there is no workhouse. Under such circumstances, there remains no inducement for habits of industry and forethought, and a dissolute population, formerly supported in some degree by the patrons who claimed their votes, is now thrown irretrievably on the owners of property in the parish”.

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fraco dinamismo econômico, a gestão da pobreza e o funcionamento da corporação. O direito de voto, antes de 1832, estava aberto a todos os habitantes do burgo que eram contribuintes, mesmo os mais modestos; as práticas de corrupção – como a compra de votos – eram frequentes, e o controle da corporação permitia conceder ajudas. Do mesmo modo, o sistema de ajuda aos pobres, controlado pela corporação, é descrito – assim como a comissão sobre a lei dos pobres poderia igualmente fazer – como totalmente ineficiente, visto que a assistência é concedida vastamente e que não há uma estrutrura coerciva, como o workhouse, que leva os indigentes a preferir empenhar-se por seus próprios meios a submeter-se ao regime quase penitenciário que reina nele. Também o pequeno tamanho da comunidade (aproximadamente 1500 habitantes) e a incompetência dos magistrados, relacionada com seu estatuto social, são igualmente atacados como fatores de ineficácia e de desordem. As estruturas e os comportamentos influem, portanto, na moral dos habitantes e, finalmente, no desenvolvimento da cidade. Para além da simples eficácia administrativa e dos acertos de conta políticos, a reforma municipal e a reforma das Poor Laws aparecem, assim, como uma verdadeira necessidade, se se deseja moralizar e civilizar a sociedade britânica. Bingham tira, aliás, as mesmas conclusões da visita a Malmesbury, no mesmo condado. Ele destaca que as instituições municipais desencorajam as pessoas respeitáveis a instalarem-se na cidade, enquanto o modo de nomeação do conselho, os privilégios atribuídos aos freemen (em particular as terras) contribuem na “[...] perturbação dos hábitos industriais e na depravação da moralidade da localidade”. 23

“Poderes de natureza inquisitória” 24 Desde o século XVII, a questão da regularidade das comissões é fre-

23 Ibid, p. 80: “But the defective state of its municipal institutions is said to deter respectable persons from resorting to the town, while the singular distribution of the town lands, the share assigned to the select body of the corporation, and the mode in which the select body is perpetuated, seem to have a striking tendency to unsettle industrious habits, and deprave the morals of the place”. 24 Hansard’s Parliamentary Debates (1835), p. 310, extraído de uma intervenção de Lord Ellenborough: “powers of an inquisitorial nature”.

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quentemente colocada, e certas corporações apoiam-se sobre pareceres jurídicos por vezes antigos para recusar responder às questões. Essas recusas são em geral motivo de discussão no conselho municipal, que se apoia em premissas jurídicas. Na origem desse debate, há a ideia de que as comissões violam as regras da common law, em particular, na medida em que são nomeados oficiais que têm poder de ação em todo o País, sem que os habitantes possam se beneficiar da proteção da Justiça local representada por suas cortes e pela “lei do País”. A comissão real, por conceder um poder exorbitante aos investigadores que exercem sem contrapoder, parece transgredir todos os princípios que fundam o sistema político e jurídico britânico.25 A intervenção do Poder Executivo é sentida como uma intrusão, uma violação das liberdades inglesas. O jurista e deputado tory James Scarlett exprimiu claramente essa posição. Ele destacou que “[...] é um princípio da common law, que é sempre favorável à liberdade, que o Rei não possa administrar a justiça, exceto nas Courts e através de seus juízes devidamente nomeados”.26 Em nome, portanto, da liberdade individual, defendeu que “[...] é certo que, segundo a common law, que exprime o direito do sujeito, ninguém pode ser obrigado a divulgar nenhuma informação que possa lhe colocar em perigo, exceto diante de uma corte de justiça regular”.27 Mesmo quando suscitada ou homologada pela Câmara dos Comuns, a comissão, criação real, não pode impor às corporações e a seus representantes que eles testemunhem. Essa concepção vai totalmente contra o texto da comissão real, tal como reproduzido no preâmbulo do relatório de 1835, que dá autoridade aos comissários para convocar quem quer que eles julguem necessário e para tomar depoimentos sob juramento, além de lhes dar igualmente a autoridade para exigir todos os documentos que julguem necessários (First Report...., 1835). 25 Para uma análise desse debate, cf. CLOKIE, H. M.; ROBINSON, J. W. Royal Commissions of Inquiry: the significance of investigations in British Politics, 1937, particularmente o capítulo 4 “Royal Commissions and politics”. 26 “Corporation Commission. Copy of the query, and opinions of counsel upon the subject of the Municipal Corporation Commission. Sir James Scarlett’s answer”, The Derby Mercury, 27 novembre 1833. Esse artigo é retomado de uma publicação londrina (cf. The Corporation Commission and the Municipal Companies of London: letters of civis on the opinions of Sir James Scarlett, Mr. Follett, and Mr. Rennall, Reprinted from the Morning Chronicle. London: Ridgway, 1834). Sobre James Scarlett, sua evolução política e sua carreira posterior, cf. BARKER, G. F. R. Scarlett, James, first Baron Abinger (1769_1844). Dictionary of National Biography. London: Smithn, Elder & Co, 1897. v. L, p. 399-402. 27 Ibid.

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Uma organização centralizada por um calendário estreito A fim de organizar as visitas dos comissários, nove circuitos 28 foram definidos, segundo critérios geográficos; um décimo circuito (o Home circuit) compreendia as corporações próximas de Londres.29 Cada um dos circuitos era designado a dois comissários, que foram aos locais e redigiram os relatórios. Os burgos do segundo distrito, os mais próximos de Londres, foram visitados pelos comissários mais rápidos. Ainda que essa regra geral tenha tido algumas exceções, 30 a programação foi respeitada de forma perfeita. O trabalho foi organizado e coordenado a partir do escritório londrino de Parkes, que instaurou um sistema de correspondência muito regular e formalizado com os investigadores, permitindo-lhes centralizar a informação ao longo do processo. O trabalho em si obedecia a um protocolo preciso, detalhado nas instruções transmitidas aos comissários ( Journal of the House of Lords, 1835). As corporações deviam preparar-se para responder aos questionamentos e informar a população sobre a iminência da investigação, aberta a todos. O modelo dessa carta, reproduzido na abertura do relatório geral, permite a apreensão das grandes questões abordadas no momento das audiências e nos relatórios posteriores (First report of the Commissioners appointed to inquire into the Municipal Corporations in England and Wales, 1835). A comissão desejava esclarecimentos sobre a definição legal da corporação (limites, título, carta-patente, nomes e funções dos diferentes oficiais), sobre sua composição (obtenção de franquia, residência), sobre seu funcionamento, suas atividades policiais, judiciais e penitenciárias e sobre a gestão das propriedades e das finanças da corporação, assim como o estado geral da localidade. Esse rigor na definição dos assuntos abordados constitui um dos elementos principais de interesse dos relatórios como fonte de pesquisa ao historiador, já que cada capítulo da investigação se encontra quase sistematicamente no conjunto dos relatórios. É, portanto, na maior parte dos 28 Esses circuitos não parecem corresponder perfeitamente aos circuitos judiciários. 29 Lembremos que Londres foi posteriormente objeto de um relatório específico e que a Capital não foi considerada pela reforma de 1835. 30 Bingham (afetado no Midland Circuit) visitou também, sozinho, sete burgos do Kent e do Sussex; Rushton (South Western Circuit) fez os relatórios para Basingstoke e Romsey (Hampshire). Hogg (cf. supra) visitou, além do circuito do Noroeste, várias localidades do circuito oriental.

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casos, possível dispor de uma quantidade de informações relativamente homogênea, independentemente do relator em questão. O enorme trabalho que representa a coleta e a apresentação dessas informações suscitou, em particular desde os Webb, a admiração dos comentaristas, quase unânimes quanto aos interesses e a pertinência desses relatórios. 31 Eles destacam em particular – o que transparece nos relatórios – a qualidade do trabalho de cada comissário e a excelente preparação das investigações, graças às regras claras impostas por Parkes, que já havia, por sua vez, adquirido experiência por meio de seu trabalho anterior sobre Warwick e pela assiduidade com que frequentava a biblioteca reunida por Francis Place acerca da questão. A escolha das localidades visitadas foi problemática, na medida em que não se definiu uma lista das corporações municipais;32 em particular, numerosos grupos religiosos, comerciais, educativos tinham recebido, em diferentes épocas, privilégios de corporação, sem que suas atividades tivessem uma relação com o governo municipal. Finalmente, um total de 283 localidades tornou-se objeto de investigação. Não é surpreendende constatar que a densidade mais importante se encontrou nos condados do Sul e do Oeste da Grã-Bretanha. As audiências dirigidas pelos comissários tomaram a dimensão de “cortes públicas de investigação”;33 na maior parte dos casos, elas ocorriam na prefeitura, quando havia uma, ou em uma hospedaria. As audiências eram públicas e contraditórias. Os procedimentos nos são conhecidos graças a certo número de publicações que relatam a dinâmica das investigações em certas cidades.34 Os comissários interrogavam diferentes testemunhas depois de ter-lhes feito prestar juramento; eles começavam sistematicamente por uma longa série de questões dirigidas a um representante da corporação, frequentemente a um town-clerk. Em essência, as questões retomavam as categorias anunciadas na circular. Os comissários autorizavam frequentemente outras pessoas a intervir, tanto para questionar as testemunhas quanto para testemunhar; eles exerciam, ao mesmo tempo, uma posição

31 WEBB, S.; WEBB, B.(1908, p. 716): “Never, we imagine, has an investigating Commission more successfully accomplished the task entrusted to it”. 32 Uma lista havia de fato sido estabelecida em 1796, de acordo com os Webb, mas ela não foi realmente utilizada (Ibid, p. 263). 33 “Public courts of enquiry”. 34 Pudemos consultar, assim, os relatórios concernentes a Nottingham, Hull, Warwick, Norwich, Liverpool. Na ausência de um relatório, a obra sobre a investigação de Great Yarmouth é particularmente preciosa.

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de árbitro, que divide o tempo entre as facções opostas, e de procurador, que interroga as testemunhas. Nos relatórios, com frequência, eles congratulam a boa vontade demonstrada pela corporação, sobretudo se ela é whig, e o bom desenvolvimento do debate.

Diversidade dos modelos corporativos É muito difícil dar, a partir da investigação da comissão, uma definição única das corporações. A grande maioria reivindica uma origem muito antiga; algumas corporações podem apresentar cartas-patentes reais medievais, outras reivindicam serem burgos “por prescrição aquisitiva” e possuir, portanto, suas liberdades e privilégios de direitos muito antigos, que remetem à “liberdade dos ingleses” e se inscrevem nas liberdades fundamentais dos direitos dos súditos britânicos. Algumas dessas localidades são muito pequenas, por vezes possuindo somente algumas dezenas de pessoas, enquanto numerosas grandes metrópoles industriais, como Manchester, Sheffield ou Birmingham, não tem esse estatuto. A função desses organismos corporativos é também uma questão que provoca discussão. Alguns foram inicialmente criados para um fim preciso, como a manutenção de certa ponte ou a gestão de tal mercado. A situação, na véspera da reforma, era, portanto, muito diversificada e contrastava com as concepções normalizadoras dos legisladores. Sem entrar em detalhes, é impressionante constatar que, de uma cidade a outra, as funções municipais podiam, em maior ou menor escala, tornarse responsabilidade das corporações. Certas cidades, como Liverpool, eram gerenciadas de forma completa por uma corporação municipal, que agia segundo um autorrecrutamento, de forma a tornar-se uma facção política que excluía, assim, uma vasta parte da população, mesmo aquela pertencente às classes mais favorecidas. Outras cidades possuíam corporações sem nenhuma função municipal, cujas atividades se concentravam na gestão de bens, frequentemente de terras agrícolas, em proveito, por vezes exclusivo, dos membros da corporação. Em numerosos casos, a única função exercida pela corporação, antes da reforma de 1832, consistia em eleger os membros do Parlamento.

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Assim, o interesse dos notáveis do local, particularmente dos “grandes aristocratas” que “apadrinhavam” essas localidades, voltava-se para a manutenção de um corpo cívico que fosse ou muito restrito ou composto de dependentes. A reforma eleitoral, ao permitir o sufrágio à parte mais abastada da população, suprimiu os privilégios dos freemen; no caso das localidades de pequeno tamanho, que perderam sua representação parlamentar, a corporação municipal cessou suas atividades. Fator agravante, a complexificação das necessidades sociais e urbanísticas, ligada ao desenvolvimento urbano que conhecia a Grã-Bretanha, impôs com frequência uma necessária adaptação das estruturas administrativas e políticas. Assim, se algumas corporações municipais se tornaram responsáveis – diretamente ou por controle indireto – de novas funções, financiando, por meio de seus rendimentos, a manutenção das redes viárias, a iluminação das ruas ou a segurança pública, outras ficaram totalmente ausentes da renovação urbana. Num mesmo espaço, coexistiam, portanto, diferentes instâncias especializadas, muito ou pouco concorrentes, que prestavam serviços à população. A paróquia – até a instauração da nova lei dos pobres (1834) – era responsável pela ajuda aos indigentes, mantida pelo recolhimento de uma taxa. Conforme requisição dos habitantes, era frequente, desde o século XVIII, que o Parlamento votasse um local act, lei local que criava um serviço de manutenção das vias públicas, de iluminação ou de polícia na localidade. A gestão desses serviços era então confiada a uma comissão, composta de habitantes – normalmente os que pagavam mais impostos – que desempenhavam, portanto, um papel importante na vida cotidiana da comunidade. A superposição de competências de diferentes instâncias era, evidentemente, fonte de numerosos conflitos, que se agravavam ainda mais quando as corporações detinham competências jurídicas, o que era o caso de muitas delas. Houve, então, situações em que, em uma mesma localidade, a paróquia concedia ajudas a indigentes por vezes já ajudados pela corporação, que administrava as rendas das fundações de caridade ou do hospital local; um board of commissioners, implantado por um local act, era encarregado de iluminar e pavimentar as ruas, enquanto outro era incumbido de estabelecer a ordem, colocando eventuais delinquentes à disposição da Justiça local ou numa prisão gerenciada pela corporação. Porém, podia ainda haver casos em que a corporação – mesmo quando

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muito fechada, reservada aos partidários do deputado conservador, todos anglicanos – exercia um controle direto ou indireto sobre todas essas instâncias. Os conflitos tornavam-se particularmente frequentes quando a corporação ulilizava seus recursos para comprar os votos dos mais pobres e para excluir da vida municipal uma parcela importante das classes abastadas, marginalizadas em função de suas convicções políticas, de seu partidarismo religioso dissidente ou, simplesmente, quando a corporação agia a fim de reservar a uma minoria os seus benefícios.

A reforma de 1835 Ao final de um debate apaixonado, em que a oposição se concentrava na Câmara dos Lordes, a lei municipal de 1835 colocou um fim ao funcionamento das corporações municipais na maior parte das localidades. Uma câmara municipal, eleita pelos habitantes que podiam justificar o pagamento de impostos – excluindo-se, assim, os mais pobres – recupera o essencial das funções municipais, assim como as rendas (mas também as dívidas) das antigas corporações. Essa lei, que institui o princípio do self-governement na common law, é frequentemente entendida como a concessão de uma autonomia local às instituições municipais. Se a lei permitiu o acesso de toda a classe média urbana à vida cívica, indepententemente de suas convicções políticas ou religiosas, ela teve como efeito paradoxal, em certas localidades, a diminuição do número de eleitores, visto que certos freemen, sendo muito pobres, acabavam excluídos da atividade política. Encarregada, portanto, da gestão cotidiana das cidades reformadas, a Câmara Municipal viu-se dotada de poderes importantes. Porém, foram-lhes retiradas as funções judiciais que pertenciam, em numerosos casos, às antigas corporações. Essa decisão é fruto de um compromisso estabelecido entre o governo liberal e a oposição da Câmara dos Lordes, ávida por ver a Justiça local passar às mãos das novas maiorias. Paradoxalmente, a passagem da autoridade judicial para uma administração autônoma, gerida pelas autoridades nacionais ou por seus representantes locais, em detrimento das instituições municipais, é, portanto, fruto de uma transação feita com os Lordes, aqueles mesmos que se

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colocavam como defensores das liberdades locais. Da mesma forma que a reforma da lei dos pobres em 1834 gerou um sistema homogêneo e centralizado, a lei da reforma municipal participou da constituição de um aparelho político-administrativo unificado em todo o reino. Ainda que cada uma das corporações reformadas tivesse a reputação de ser autônoma, suas competências eram definidas nacionalmente, de forma uniforme. A integração na modernidade urbana das novas cidades industriais passou, aliás, pela concessão do estatuto de burgo real realizada pelo monarca, o que permitiu a essas cidades a entrada no direito comum. As novas câmaras municipais, privadas de atribuições judiciais, foram obrigadas a desenvolver suas atividades sob o controle de um Poder Judiciário que emanava doravante do governo central. Por outro lado, se a lei previa que as novas câmaras substituíssem os diferentes órgãos que geriam, juntamente com as corporações, a pavimentação, a iluminação e a vigilância das ruas, ela não definia, no entanto, as formas de transição das gestões, o que provocou situações diversas, por vezes conflituosas, dependendo dos casos. A manutenção de eleições regulares a fim de renovar as câmaras – novidade inscrita na lei – favoreceu a politização dos votos municipais, mesmo se considerando que elas não tinham relação com as eleições parlamentares. O modelo tão exaltado pela historiografia liberal britânica do selfgovernment é, como vimos, fruto de sucessivas evoluções, ocorridas frequentemente em favor de compromissos políticos. As investigações sobre as corporações municipais indicaram, indiretamente, pela denúncia dos defeitos do corporativismo de Antigo Regime, os contornos do que deveria ser, no espírito dos juristas liberais, marcados pela ideologia utilitarista, a organização dos poderes urbanos. A cidade que emerge da reforma de 1835 é gerida por notáveis, que dispõem de meios de ação locais importantes – rendas de propriedades ou de fundações, possibilidade de instaurar taxas, de promulgar regras urbanísticas que, posteriormente, permitiram às municipalidades o desenvolvimento de verdadeiras políticas. A novidade do século XIX reside na legitimação desses poderes, pelo seu caráter obrigatório, por uma autoridade nacional – aqui, parlamentar – que fixa seus contornos e suas condições. Revolução administrativa – ou, até mesmo, centralizadora – e promoção do self-gouvernement obedecem, portanto, de forma paradoxal, a um mesmo movimento e a uma mesma lógica.

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Verso e reverso: a condição da mulher na comarca de Vitória a partir dos autos criminais (1845 –1865) Sebastião Pimentel Franco

Introdução Este trabalho procura evidenciar aspectos do cotidiano da vida da população de Vitória, província do Espírito Santo, entre 1845 e 1865. Buscamos, em especial, evidenciar cenas de sociabilidades e a violência a que estavam submetidas as mulheres dessa época. Para tanto, escolhemos como fonte de pesquisa os autos criminais existentes no Arquivo Público Estadual do Espírito Santo. A escolha do recorte está colocada, assim como fizeram Mergár (2006) e Souza (2007), na criação do Código Criminal do Império de 1830, no Código de Processo do Império 1832 e na Lei nº 261, de 1841, que reformou a Polícia Civil da Corte e das Províncias, época em que foram criados os cargos de Delegado e Subdelegado e Inspetor de Quarteirão e, por fim, na Lei nº 2.033, de 1871, que estabeleceu o inquérito policial, pois, a partir dessa data, os juízes e desembargadores deixaram de acumular as funções de polícia judiciária. Como queremos vislumbrar a questão da violência impetrada entre as mulheres, escolhemos apenas Autos Criminais em que o gênero feminino aparece como vítima. Encontramos um total de 51 autos criminais no período abarcado pela pesquisa. Desses autos utilizamos 30, que se referem aos seguintes delitos: agressão física, injúria, estupro, furto e assassinato. Nos autos aparecem homens e mulheres na condição de réus, vítimas e testemunhas.

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Além de réus, testemunhas e vítimas, identificamos ainda os informantes que, em geral, eram menores de idade, escravos e parentes. Encontramos, entretanto, menores de idade que foram chamados a depor na categoria de testemunhas. Convém destacar, como aponta Adriana Pereira Campos (2005), que os escravos não podiam depor na condição de testemunhas, mas eram aceitos como sujeito de direito e, dessa forma, havia a possibilidade de serem apresentados como informantes nas averiguações policiais. Como um mesmo auto pode ter mais de um réu ou vítima, o número deles é maior que o número de autos examinados. Quanto ao número de testemunhas, em geral era sempre elevado, nunca menos do que três. Em alguns casos os autos chegavam a ter até 13 testemunhas. Além de caracterizar a vida da Comarca de Vitória, capital da Província do Espírito Santo, conhecer melhor seu cotidiano e identificar os personagens, buscamos extrair outras informações sobre eles, como: sexo, estatuto social, idade, cor, estado civil, grau de instrução, ocupação profissional, além, é claro, de procurar visualizar a criminalidade e os delitos cometidos. Por fim, desejamos ainda dar visibilidade ao gênero feminino, resgatando suas histórias, e fazendo com que esses personagens saíssem do anonimato. Assim como Maria Odila Leite da Silva Dias vislumbrou, em sua pesquisa sobre São Paulo (1983), na província do Espírito Santo, o número da população feminina era extremamente significativo, entretanto poucas mulheres aparecem na história da região. Essas mulheres, diferentemente do que se possa imaginar, estavam presentes nas cenas do cotidiano da vida dos centros mais urbanizados e mesmo das áreas rurais: “Circulavam pelas fontes públicas, lavadouros, ruas [...] praças”(DIAS, 1983, p. 31). Nesse cenário, desenvolviam suas atividades econômicas no espaço público, onde garantiam a sua sobrevivência. Ora, se dissemos que poucas mulheres ficaram registradas pela História, como torná-las um sujeito ativo, um ator histórico, como diz Perrot (1999). Novamente recorremos a Maria Odila Leite da Silva Dias (1981) para visualizar algumas possibilidades de enxergarmos essas mulheres. Para essa pesquisadora, a documentação oficial das Câmaras, as correspondências entre as diversas autoridades do poder, embora apresentem informações casuais e esparsas, são frequentes. Entretanto, escolhemos, para a visualização da presença das mulheres na sociedade do Espírito Santo, os autos criminais. E o que desejamos verificar e explicitar com a documentação especificada? Desejamos, tal como preceituam

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Dias (1981) e Perrot (1999), romper com o silêncio das mulheres, torná-las visíveis, reconstruir a historicidade dos papéis femininos, mostrá-las como

[...] seres sociais, que integram sistemas de poder, rede de dominação e laços de vizinhança. O processo propriamente histórico de suas vidas em sociedade tem bem mais a ver com um contínuo improvisar de papéis informais, mudança, vir a ser, do que com mitos e normas culturais. É preciso estudar os espaços femininos conquistados e não os prescritos, por isso em grande parte calados ou omitidos nos documentos escritos. Os papéis propriamente históricos das mulheres podem ser captados de preferência nas tensões sociais, mediações, intermediações: nas relações propriamente sociais, que integram mulheres, história, processo social e que os historiadores podem resgatar nas entrelinhas, das fissuras e do implícito nos documentos escritos [...], mesmo que este documento formal não tivesse a natureza formal de explicitá-lo (DIAS, 1981, p. 41).

É exatamente isso que a fonte que ora estamos trabalhando permite-nos visualizar. Nos autos criminais, podemos enxergar a condição social da mulher daquela época, os valores morais, éticos, religiosos daquela sociedade, a vida econômica, a frequência da violência que atingia as mulheres, a percepção de valores e representações sociais. Mesmo sabendo que essa documentação apresenta juízos de valores e referências genéricas às mulheres, pode-se dizer que é possível partir dessa fonte para estudar a história das mulheres, para “[...] alargamos uma visão histórica estreita [e assim] combatermos os limites de nossa memória relativos ao passado” (POMMATA; GIANNE, 1995, p. 29). Por meio da documentação analisada, tentamos enxergar, nas entrelinhas, o testemunho do outro e, assim, tal como fez Maria Helena P. T. Machado, explicar que “[...] apesar de marginalizadas do discurso institucional, as mulheres aparecem na documentação de maneira sutil, mas indubitável” (198, p. 22). Mais uma vez recorremos a Machado para dizer que os autos criminais nos quais as mulheres aparecem como vítimas possibilitam-nos recuperar aspectos da vida cotidiana “[...] uma vez que interessada a justiça em reconstruir o evento criminoso, penetra no dia-a-dia dos implicados, desvenda suas vidas íntimas, investiga seus laços familiares e afetivos registrando o corriqueiro de suas existências”(1987, p.23).

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Conhecer o corriqueiro da existência dessas mulheres, diferentemente do que se possa imaginar, não é pouco significativo, pois esses momentos permitem-nos enxergar as relações de amizade e inimizade, de parentesco, de vizinhança, os padrões familiares, a organização do trabalho pela sobrevivência, as confissões e as tensões sociais e, como diz Beatriz Kushinir (1996), dessa forma, é possível obter uma melhor interpretação do passado. Regina Celia Caleiro (2002) também esclarece que apesar de os autos criminais possibilitar o conhecimento apenas de “fragmentos de histórias” cada documento possibilita-nos conhecer histórias únicas, perceber como as mulheres se portavam perante sua condição de pobreza, solidão, violência diante de seus parceiros (senhores, vizinhos ou conhecidos). Embora tenhamos trabalhado com autos criminais nos quais as mulheres são vítimas, não foi nossa intenção elevá-las à condição de heroínas. Buscamos evidenciar tão somente a posição adotada por elas para fazer valer aquilo que consideravam como um direito seu. Nesse sentido, portanto, pudemos visualizar que, se, por um lado, o homem entendia que a violência praticada por eles em relação às mulheres não passava de um corretivo, de uma punição justa e desejável, por outro lado, evidenciamos que algumas mulheres não aceitavam passivamente essa violência e os levavam às barras da Justiça para coibir ou eliminar o sofrimento a que eram submetidas. Apesar de se saber que a utilização da documentação judiciária como qualquer outro tipo de fonte tem os seus percalços, como já dissemos, segundo Caleiro(2002, p. 29), o tema “criminalidade”, que [...] até pouco tempo atrás interessava somente ao Direito tornou-se objeto de estudos também da Sociologia, Antropologia e História. A compreensão das tensões, relações e padrões sociais percebidos por meio da transgressão das normas desejadas e impostas em diversas épocas e sociedades despertou o interesse para o assunto sob um prisma instigante (2002, p. 29).

Pela documentação podemos conhecer as várias modalidades de crimes, caracterizar as atividades econômicas desenvolvidas pelas personagens presentes nos autos, conhecer o perfil desses personagens, como idade, estado civil, grau de instrução, local de habitação etc. A documentação pesquisada permitiu, ainda, como diz Franco

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(1976), visualizar que a violência era uma constante na vida das pessoas do século XIX. Vizinhos, parentes, amigos, todos conviviam em relação amistosas e inamistosas, sobretudo por ter sido essa sociedade gestada num modelo autoritário de poder que teve sua gênese no modelo de colonização implementado no Brasil dos anos seiscentos.( SAMARA, 1992), quando a violência era o padrão de comportamento adotado. Falemos agora um pouco da questão da violência a qual as mulheres eram submetidas na sociedade daquela época. Para nos reportar a esse tema, é necessário que conheçamos a condição da mulher na sociedade brasileira do período estudado.

A condição da mulher na sociedade brasileira Quando falamos da condição da mulher na sociedade brasileira não significa que desejamos uniformizar seu comportamento, afirmar que não houve diferenças entre as mulheres de acordo com o estrato social ou região. De forma geral, o que prevaleceu foi a preponderância da superioridade masculina sobre o gênero feminino e a hegemonia das relações patriarcais. A sociedade brasileira criou uma imagem idealizada de mulher, definindo seu papel na sociedade. Dentro dessa lógica, o lugar principal dela deveria ser o mundo privado, cuidando das tarefas domésticas, da família (filho e marido) e, quando elas estivessem no meio público, deveriam ser recatadas, simples, virtuosas, dóceis, humildes (TRIGO, 1994). Embora no cotidiano existisse a possibilidade de a mulher se insurgir contra a violência praticada pelos homens contra as mulheres e de um bom número de mulheres terem se insurgido em relação a essa situação partindo para o revide (FRANCO, 2009; SOUZA, 2007), fato encontrado nos autos criminais do século XIX, no Espírito Santo, certamente a maioria das mulheres locais eram dominadas, aceitavam passíveis o papel de inferior e voltavam-se para a obdiência. Certamente o perdão estabelecido, em que se idealizavam papéis sociais para as mulheres ligados ao recatamento, à mansidão, à submissão, numa intenção clara de controle social, como diz Mergár (2006, p.112), “[...] em comportamentos calcados, a ponto de desencorajarem os comportamentos desviantes”. O fato é que, desde o período colonial, instalou-se no imaginário

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da sociedade a ideia de submissão da mulher. A história registra, no entanto, tentativas das mulheres de enfrentamento da situação adversa que lhes era imposta. Esse enfrentamento permaneceu, durante séculos, na obscuridade. Hahner (1981) aponta, como consequência do fenômeno, o fato de que os homens, como transmissores tradicionais de cultura na sociedade, incluindo os registros históricos, veicularam aqueles que julgavam importantes. Na medida em que as atividades das mulheres se diferenciavam consideravelmente daquelas exercidas pelos homens, foram consideradas sem significação e até indignas de menção. A desigualdade social entre gêneros foi um fato universal nas sociedades. A mulher foi gradativamente empurrada para cuidar da casa, dos filhos e do marido, enquanto ao homem restava o espaço público (ISMÉRIO, 1995); cabia-lhe a reclusão e a organização econômica doméstica entendida como uma atividade não pública, em que a mulher trabalhava “individualmente” (ROSALDO, 1979). O produto desse trabalho, porém, era usufruído por toda a família. No caso brasileiro, a sociedade se caracterizou, desde os tempos coloniais, pela superioridade do gênero masculino e pela imposição de uma suposta inferioridade da mulher. Segundo Del Priore (1993, p. 17), o sentimento de superioridade do gênero masculino sobre o feminino é reflexo do conceito de poder masculino, presente na sociedade colonial cristã, em função da qual cabia “[...] delimitar o papel das mulheres, normatizar seus corpos e almas, escravizá-las de qualquer saber ou poder ameaçador, domesticá-las dentro da família. Objetivos que se adequavam perfeitamente aos fundamentos da colonização do império colonial português”. Belloti (1987, p. 68) acrescenta que, no contexto da sociedade brasileira, a mulher percebia no passado, e percebe ainda hoje, desde pequena, a superioridade social do homem. [...] não é difícil para uma menina deduzir, pela autoridade que o pai exerce em casa, pela consideração com que sua figura é cercada pela mãe como pelos familiares, pelo trabalho que o pai exerce fora de casa, pela dependência em que os familiares são mantidos em face dele e que subsiste mesmo quando a mulher ganha tanto ou mais que ele, que os homens são os mais importantes.

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A mulher, em nossa sociedade, sempre foi discriminada e foi na família que esse exercício ideológico se firmou e se firma ainda hoje. Desde os tempos coloniais, era vista como um ser subalterno e submisso, medroso e silencioso. Entende-se, porém, que não só a família contribuía para isso, associados a ela, havia a escola, a sociedade, a religião, a política, o trabalho (CARDOSO, 1980). Bordieu (1999) já apontava que o domínio masculino sobre as mulheres é resultado de um processo histórico longo, que vai sendo apreendido e incorporado por meninas e meninos desde a tenra idade, por meio da família e de instituições, levando-os a fortalecer os esquemas de dominação que os envolve. A mulher entendia que a situação moral e social era diferente da do homem. Isso, segundo Beauvoir, porque a civilização patriarcal impôs à mulher a castidade; reconhecia-se mais ou menos abertamente ao homem o direito de satisfazer seus desejos sexuais, ao passo que a mulher era confinada ao casamento: “[...] para ela o ato carnal, em não sendo santificado pelo código, pelo sacramento, é falta, queda, derrota, fraqueza; ela tem o dever de defender sua virtude, sua honra, se ‘cede’, se ‘cai’, suscita o desprezo; ao passo que até a censura que se inflige ao seu vencedor há admiração” (BEAUVOIR, 1980, p. 112). No Brasil, através dos tempos, foi-se constituindo o preconceito da inferioridade da mulher em relação ao homem, cristalizado em papéis estereotipados. O estabelecimento de uma estrutura agrária, latifundiária e escravocata fortaleceu o regime paternalista. A falta de uma centralização administrativa, a constituição de grandes latifúndios e a dispersão populacional contribuíram para que a sociedade brasileira do nordeste açucareiro litorâneo – principal região de ocupação do País na época – se caracterizasse pelo patriarcalismo, no qual as relações de caráter pessoal assumiram vital importância (SAMARA, 1989). A família possuía um chefe do clã ou do grupo de parentes. Cabia ao homem cuidar dos negócios, preservar a linhagem e a honra da família. Tinha e exercia a autoridade sobre todos que estivessem sob seu raio de influência (mulher, filhos, dependentes). O pai tinha todos os direitos, que eram inquestionáveis. Todos dependiam dele, que exercia funções militares, empresariais e afetivas. Administrava tudo e todos com mão de ferro, da propriedade à família. Sua autoridade era incontestável sobre sua mulher, a prole, os escravos e também sobre os agregados. Segundo Sodré (1944, p. 103), “[...] compete-lhe em todos os assuntos o voto decisivo”.

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O chefe tinha autoridade absoluta, cabendo à esposa um papel restrito. Antes do casamento, ela estava sob a autoridade do pai; depois, do marido, devendo cuidar dos filhos e da casa .Era condicionada “[...] a assumir o papel da esposa e mãe colocando-o à frente de seus interesses” (SAMARA, 1989, p. 46). Havia uma convicção do direito natural e até sobrenatural – pregado pela Igreja – de o pai mandar e ser obedecido, cabendo aos demais obedecer, o que levou ao afastamento emocional do homem do resto da família e vice-versa. A distância e a inacessibilidade davam-lhe mais autoridade. “A ele competia determinar o grau de instrução, a profissão, a escolha afetiva e sexual de seus dependentes” (COSTA, 1987, p. 98). Costa (1989, p. 95) ainda afirma: “[...] o pai representava o princípio da unidade, da propriedade, da moral, da autoridade, da hierarquia, enfim, de todos os valores que mantinham a tradição e o status quo da família”. Com isso, eliminavam-se as vontades individuais. Nessa sociedade, não havia possibilidade de aspirações particulares; o único interesse era o do grupo e da propriedade, expresso pelo pai. Falando sobre a mulher, Arceniaga, em 1724, dizia “[...] seu principal cuidado deve ser instruir e educar os filhos, cuidar com diligência da casa, não sair dela sem necessidade, nem sem permissão de seu marido, cujo amor deve ser superior a todos, depois de Deus” (apud DEL PRIORE, 1989, p. 19). Ao se estabelecer que as funções femininas deveriam estar restritas ao lar e as masculinas associadas com a rua – o mundo público - estabeleceu-se, em verdade, uma profunda desigualdade entre essas funções. Culturamente, passaram-se a valorizar as funções masculinas em detrimento das funções femininas. Ser mãe, esposa, dona de casa, portanto, era a maior virtude da mulher. Esse ideal era pregado pela Igreja, ensinando pelos médicos e juristas, legitimado pelo Estado (MALUF, 1998). A Igreja Católica foi o veículo que mais contribuiu para a interdição da mulher, adestrando sua sexualidade. Usou a hipocrisia de um sistema normativo, no sentido de criar uma mulher ideal para implantar com sucesso a família e a fé católica no Brasil. O discurso da Igreja, em relação ao uso dos corpos, era, na verdade, diferente na prática. Condenava as prostituas, mas as usava para criar no Brasil Colonial o ideal de valorização do seu oposto. Pregava e valorizava a mulher casta, pura, identificada com a Virgem Maria. Se, por um

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lado, as prostitutas eram transgressoras, por outro, estavam a serviço da ordem socioespiritual da época. “Pacificadoras da violência sexual contra as donzelas [...] e do desejo que pusesse em risco a fidelidade às esposas, as prostitutas, aos olhos da Igreja, eram a salvaguarda do casamento moderno”(DEL PRIORE, 1989, p. 22). A partir da Reforma Protestante e da Contrarreforma Católica, com os costumes assumindo ares mais austeros, a mulher passou a ser o alvo predileto dos discursos que a colocavam como fonte de todos os males. A brecha para a mulher fugir aos castigos celestiais que eram vislumbrados era enquadrar-se ao casamento. Para tal, deveria sujeitar-se ao marido, obedecendo-lhe e sendo grata quando fosse corrigida. Soihet (1999, p.363) diz que a sociedade, apoiada no discurso da Medicina Social, fez com que se enxergassem as características femininas associando “[...] a fragilidade, o recato, o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais, a subordinação da sexualidade à vocação maternal, em oposição o homem conjugava à sua força física em natureza autoritária, empreendedora, racional e uma sexualidade sem freios “ Apesar de existir uma ideologia interditando a mulher, muitas delas acabaram rebelando-se contra o papel que lhes era imposto. Muitos conflitos existiram por causa de casamentos indesejados, por não aceitarem a violência física e simbólica a que eram submetidas, por não concordarem com uma vida em que o esposo não as realizava como esposas ou como mulheres, ou por se sentirem desrespeitadas. Existe farta documentação evidenciando a insubordinação de mulheres que reclamaram na Justiça, fazendo valer seu direito, pleiteando, por exemplo, o divórcio. Com a invasão francesa a Portugal e a fuga da Família Real Portuguesa para o Brasil, esse cenário começou lentamente a se alterar. A sociedade tornou-se mais aberta, os costumes-influências da nobreza portuguesa aqui instalada começaram a se modificar, adaptando-se a um modelo português, que era mais metropolitano. A mulher começou a tirar vantagens dessa nova situação. O chefe da família abriu suas portas para a realização de festas e saraus. Da habilidade feminina passou a depender o sucesso de uma recepção. A maneira como as mulheres se comportavam, recebiam, hospedavam ou se insinuavam entre personagens prestigiadas decidia, às vezes, o bom encaminhamento da carreira política ou econômica do homem (FRANCO, 1999). Embora a vinda da Família Real tenha alterado hábitos sociais,

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abrindo perspectivas de participação social da mulher, durante todo o transcorrer do século XIX, a mulher brasileira encontrou enormes dificuldades para reverter o papel secundário que desempenhava na sociedade. Mas, de qualquer forma, já nessa época, começou a aumentar consideravelmente a presença feminina como força de trabalho e até mesmo como participante de manifestações, escrevendo nos meios de comunicação, expondo suas ideias e aspirações.

Perfil dos personagens Quanto ao status social, a maioria dos réus, rés, testemunhas eram livres, verificando-se apenas, dois réus, uma ré e uma vítima feminina escrava. O total de réus livres e de vítimas é 30. O total de testemunhas é 143 livres. Em relação ao estado civil, nem sempre, nos autos, aparece tipificado se as vítimas ou testemunhas eram solteiras, casadas, viúvas ou concubinadas. Quanto ao réus, entre homens e mulheres, a maioria deles eram solteiros. Em menor número aparecem os réus, vítimas e testemunhas viúvos. Embora não apareçam claramente personagens na condição de concubinadas, é certo que elas deveriam viver nessa condição. Pelos autos, é possível caracterizar a vida da região da Província do Espírito Santo, conhecer melhor seu cotidiano e ainda caracterizar as personagens que desfilam pelos autos criminais. Foi nossa opção trabalhar apenas com mulheres vítimas. Mesmo quando aparecerem mulheres rés, elas foram estudadas em razão de suas vítimas terem sido mulheres. Todo os autos criminais do período existentes no Arquivo Público Estadual, em um total de 30 autos, abarcam os seguintes tipos de delitos: agressão física, injúria, estupro, furto, assassinato . Vejamos agora o perfil dos personagens constantes nos processos (Tabela 1). Em um primeiro momento, é possível dizer que os dados levantados nessa tabela preconizam o que apontam Eni Mesquita de Samara (1986) e Maria Beatriz Nizza da Silva (1984), em relação ao estatuto social de população brasileira, em que a grande maioria eram solteiros ou concubinados, e o casamento arranjado era quase uma exclusividade das camadas sociais mais privilegiadas economicamente. Vimos que o

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Tabela 1- Estado civil dos personagens constantes nos processos

Fonte: Autos Criminais do Arquivo Público Estadual do Espírito Santo

número de casados aqui no Espírito Santo era significativo, mesmo entre as pessoas de menor poder aquisitivo, como é o caso da grande maioria das personagens presentes nos autos criminais pesquisados. Com referência ao estado civil, para um significativo número de réus, vítimas e de testemunhas, não aparece a tipificação quanto ao estado civil, mas é interessante que, para todos os informantes, essa tipificação está posta. No gênero feminino foi onde se encontrou uma maior número de não tipificação. A maioria dos réus eram casados. Entre as vítimas femininas, a maioria era solteira, mas, se levarmos em consideração o grande número de mulheres que não tiveram tipificado o estado civil, o que pode ser um indício de que elas não eram casadas, esse número tenderia a ser bem maior. Entre os homens que aparecem como testemunhas, o número de solteiros é maior que o número de casados, embora a diferença numérica fosse pequena. Se somarmos os casados com os viúvos (que em algum momento foram casados) e os solteiros com o grupo em que não aparece a condição civil, ainda assim os solteiros seriam maioria. Entre as mulheres, a grande maioria era solteira, o número de casados e viúvos era menor que o de solteiras. Por que afirmamos que a maioria das personagens pertencem a estratos sociais menos privilegiados economicamente? Vejamos as atividades desenvolvidas pelos personagens dos autos. Elencamos uma multiplicidade de atividades exercidas por homens e mulheres da Província no século XIX: lavrador, negociante, prestador de serviços domésticos, costureira,

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militar, pescador. Essas foram as profissões mais apontadas (Tabela 2). Como podemos perceber, a maioria da população vivia pobremente, cuidando dos seus afazeres para garantir o seu sustento cotidiano. Das profissões listadas, sobresai, tanto entre homens como entre mulheres, a atividade da lavoura, o que, de certa forma, evidencia uma característica da região, que vivia basicamente da atividade agrícola nas propriedades. A maioria das personagens presentes nos autos deveria, portanto, como diz Enaile Flauzina Carvalho (2008), viver da produção de algodão, alimentos em suas pequenas propriedades, contando com o trabalho de todos os membros da família e dos escravos. Além disso produziam mandioca, frutas, açúcar e também criavam animais. O café começava a despontar como o principal produto agrícola. Em relação ao nível de escolaridade dos personagens, encontramos algumas discrepâncias que merecem ser destacadas. As mulheres, em sua maioria, não sabiam ler nem escrever, enquanto entre os homens, o número de analfabetos, embora seja maior, é próximo do número dos alfabetizados (Tabela 3). Tabela 3 - Grau de instrução dos personagens presentes nos autos criminais

Fonte: Auto Criminais do Arquivo Público do Espírito Santo

É fácil entender por que o número de mulheres sem saber escrever era tão elevado. A primeira escola feminina a funcionar no Espírito Santo, segundo Cleonara Schwartz (2006), só iniciou suas atividades em 1845, embora tivesse sido criada por lei em 1835. É bem verdade que a maioria da população que tinha acesso à instrução, de acordo com Maria Celi Chaves Vasconcelos (2005), acabava estudando dentro de suas próprias casas, mas o fato de inexistir ou exis-

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Tabela 2 - Atividades profissionais exercidas pelas personagens dos autos

Fonte: Autos Criminais do Arquivo Público Estadual do Espírito Santo

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tir um pequeno número de escolas era importante para tão diminuto número de mulheres alfabetizadas. Em visita ao Espírito Santo em 1860, segundo Franco (2000), D.Pedro II, ao visitar escolas para meninas, ficou impressionado com a péssima qualidade do ensino na Província. Aliás, não só de ensino para meninas, como também o ensino oferecido para os meninos. Embora, já a partir da segunda metade do século XIX, já estivesse solidificado o discurso de que a solução dos problemas do Brasil e sua saída do atraso e da incivilidade dar-se-iam pela disseminação da instrução, em 1884, segundo o vice-presidente da Província do Espírito Santo, Miguel Bernardo Vieira Amorim, para um total aproximado de habitantes, somente 1.648 estavam matriculados, destes 488 eram do sexo feminino, o que não significa que todos estavam regularmente frequentando as escolas.1 A idade dos réus, das vítimas e das testemunhas variou bastante. A grande maioria dos presentes nos autos situavam-se entre 20 e 49 anos de idade. O maior percentual, entretanto, era entre 20 e 39 anos, o que evidencia a baixa expectativa de vida da população local no período por nós estudado (Tabela 4). Soihet ( 1986, p. 206) , fala-nos:

“[...] que a violência do século XIX sobre os segmentos populares (e também sobre as mulheres), foi uma constante. A violência em relação as mulheres eram diversas e era a arma utilizada para colocá-las numa posição inferior dentro da estrutura social. A repressão, a obediência a dupla jornada de trabalho, a obrigação de determinadas tarefas incluíam-se entre as formas de garantir a superioridade do masculino sobre o feminino (1986, p. 206).

Como diz Bastos (2009, p. 117), “As discórdias e desordens ligavamse muito mais a questões ordinárias do dia-a-dia, que se resolviam por meio de discussões e pequenas bulhas”. Para muitos essas pequenas bulhas menor e sem importância não mereciam, em verdade, ser levadas às barras da Justiça. No que concerne à tipologia dos crimes, os mais encontrados foram: agressão física, injúria, assassinato, defloramento e furto. O número de

1 O fato de o ensino até não ser obrigatório, o medo dos pais de que, ao instruírem suas filhas, elas pudessem ler livros proibidos ou manter correspondências amorosas, a ideia de que a costura e os trabalhados domésticos eram funções precípuas para as mulheres eram outros fatores inibidoras do acesso delas à escolarização e à instrução.

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Tabela 4 - Idade dos personagens dos autos presentes nos autos criminais

Fonte: Autos criminais do Arquivo Público Estadual do Espírito Santo

crimes de agressão física foi maior que todos os outros tipos de crime em conjunto. Há de se perguntar por que esse tipo de crime ocorria em tal elevado número. Acreditamos que, entre outras razões, é possível destacar: a. a violência na sociedade brasileira do período por nós estudado era uma realidade, conforme já anunciamos; b. a violência contra as mulheres não era vista como tal, mas como natural e necessária, ou seja, os homens, quando a praticavam, estariam, em verdade, somente corrigindo as mulheres.

Em relação ao número de personagens presentes nos autos, o gênero masculino apresenta-se com 146 representantes, e o gênero feminino com um total de 75 representantes. Sabe-se, como aponta Perrot (2000), que a presença de mulheres na criminalidade sempre foi menor do que a dos homens, porque essa sociedade via a reprimenda, a opressão dos homens sobre as mulheres com algo natural e até mesmo necessária. Condutas criminosas praticadas por mulheres causavam na sociedade da época maior reprovação e repercussão. Por fim, não era de bom alvitre que mulheres aparecessem em um tribunal ou fossem à casa do chefe de Polícia para prestar depoimentos, mesmo na condição de testemunhas.

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Sabendo-se a naturalidade dos personagens presentes nos autos, podemos evidenciar a existência ou não de mobilidade da população local. Embora tenhamos verificado a presença de homens e mulheres de nacionalidade estrangeira, de outras regiões do País e do Espírito Santo, a grande maioria dos personagens eram naturais da região onde o crime ocorreu, o que nos possibilita asseverar que a mobilidade não era muito comum. Do total dos personagens presentes no autos, entre réus, rés, vítimas, testemunhas e informantes, encontramos 126 pessoas que eram naturais da região onde o fato aconteceu, 41 eram de outra região do Espírito Santo, 11 naturais de outras regiões do País, 17 naturais de outros países e em 26 não aparece a informação quanto à sua naturalidade. Vejamos alguns casos narrados nos autos que corroboram as afirmativas que fizemos. Para tanto, recomendamos não só a fala das vítimas e dos réus, mas também a fala das testemunhas e dos informantes. As falas das personagens não são transcritas como aparecem nos autos. A grafia do século XIX foi desprezada e adotamos a grafia atual. Apesar de estarmos falando de violência de homens contra mulheres, isso não significa somente que as mulheres eram vítimas. Mulheres também praticavam violência contra homens, crianças e contra outras mulheres.

Fragmentos de histórias: bulha entre as mulheres e sua pouca significância Como já dissemos, pequenas bulhas, sobretudo entre as mulheres, deveriam ser consideradas sem importância e as partes decidiriam entre si. A briga entre duas escravas da cidade de Vitória pode nos esclarecer bem essa afirmativa. Albertina, 40 anos de idade, é acusada de ter esmurrado a menor de 16 anos, Gertrudes. A testemunha, o militar Joaquim José da Silva, diz que viu as duas se esmurrando e teria gritado para ambas a fim de que se separassem, chegando a dizer que, se não o fizessem, iria meter o chicote em ambas. Uma outra testemunha arrolada, D. Ana das Chagas, demonstra sua insatisfação em ter sido convocada para depor. Primeiramente, diz que

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não sabia da briga e quem eram as escravas. Diz que tomou conhecimento do fato quando estava dentro de sua casa cuidando dos seus haveres, quando o curador da vítima Joaquim Alves Pinto bateu em sua porta perguntando se ela poderia testemunhar o fato ocorrido. Em seu depoimento, diz não entender por que foi chamada para depor por algo tão corriqueiro e sem importância, uma asneira sem consequência e diz julgar que, por briga tão pequena, não deveria ser chamada a juízo para falar disso ( Auto1, cx 650, ano 1857).

Homens e o assédio sexual sobre as mulheres Parece-nos que, para os homens da Província do Espírito Santo, no períodopor nós enfocado, o fato de as mulheres andarem nas ruas sozinhas levava a considerá-las, mulheres disponíveis e à disposição de seus assédios. Ao andarem sozinhas, não importa a razão pela qual tal fato acontecia, as mulheres eram colocadas na condição de desonradas, e por isso prontas ao chamamento dos apelos sexuais masculinos. Foi o caso de Luiz Ferreira dos Santos que, ao ver a menor Beatriz, às 5 horas da manhã, que estava indo buscar água na fonte para abastecer a casa, interpelou-a, fazendo gracejos. Ao ser reprimido por Beatriz e pela sua mãe Francisca que veio em seu socorro, Luiz Ferreira dos Santos fala para Francisca que se ela não desejava que sua filha fosse notada, não devia deixá-la andar sozinha pela rua, pois quem o assim o fazia era prostituta. Fato semelhante aconteceu em uma contenda entre João Martins de Azambuja Meireles e Manuela Maria dos Prazeres. João também, certa noite, ao ver Manuela na rua, dirige-lhe gracejos e palavras que ela considera injuriosas e que repeliu. Por essa razão, ele deu-lhe bofetões na cabeça e no rosto. Mesmo homens casado achavam-se no direito de assediar mulheres solteiras ou não. É o caso de Felix da Costa Santos, soldado da Companhia Fixa de Caçadores que foi visto por várias testemunhas tentando estuprar a alienada Francisca. Ao ser reconhecido Félix foge, pulando sobre um muro, porém, mais tarde, foi visto novamente demonstrando, como diz uma testemunha, prosseguir em seus intentos. Uma outra testemunha

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afirma ainda ter ouvido Francisca dizer que desejava ir embora, e Francisco pedia que ela não fosse, pois desejava dormir com ela (Auto nº 01, cx 654, ano 1865). Certamente, embora fosse casado, Fêlix entendia que, para o gênero masculino, os prazeres deveriam estar sempre disponíveis. Situação mais grave ainda é o caso de um outro homem casado que estupra sua cunhada menor de idade que vivia em sua casa. Francisca Maria do Rosário afirma que, certo dia, ao sair ao quintal para buscar uns limões, José Pinto da Terra a agarrou e tapou-lhe a boca, subjulgando-a, impedindo que gritasse e acabou sujeitando-se a tudo quanto ele quis. Diz ainda que não o denunciou por temor do seu cunhado, afinal, ela, como era órfã, dependia da casa dele para morar e viver. O assédio e os estupros continuaram para além de uma só vez e ao ver que tal fato não tinha fim, Francisca Maria conta o ocorrido a seu irmão. A irmã de Francisca, ao saber do fato, expulsa-a de sua casa, fazendo-a morar com o tio. Aqui, ao invés de a esposa culpar o marido, ela prefere acusar e expulsar a irmã. Se em um primeiro momento, José Pinto nega o acontecido, posteriormente diz que o fato era verdadeiro, entretanto o fez com o consentimento de Francisca Maria. Testemunhas depõem dizendo que viram José Pinto assediar Francisca Maria e que ele a proibia de receber visitas, assim como a proibia que saísse de casa, só podendo fazê-lo para ir buscar água para abastecer a casa. Fica evidente que José Pinto usava a força, a autoridade, a violência, por meio de ameaças e por maus tratos, com o intento de intimidar Francisca Maria e obrigá-la a ceder aos seus desejos sexuais, aliás, conclusão a que chegou o júri que decidiu pela condenação de José Pinto a doze anos de prisão(Auto 11. Cx 653, 1859).

Direito “natural” dos homens em corrigir as mulheres

Por considerarem certas atitudes e comportamentos indesejados, os homens da época presentes nos autos por nós pesquisados agiam de forma violenta, com o intento de corrigir as mulheres e mostrar, enfim, quem mandava nessa sociedade, e mais ainda mostrar a elas qual o seu lugar nesse grupo social. Portanto, repreendê-las, castigá-las fisicamente

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era tido como natural e necessário. Coriolano de Almeida Wanmyl, em 1859, deu uns bofetões em sua cunhada de 14 anos de idade, Thereza Maria Ferraz, por ela ter-lhe xingado de desgraçado, ladrão safado e outros nomes. Para fazer valer sua autoridade, age como se esperava que agisse qualquer homem dessa época, usando a força, a violência para mostrar sua autoridade. Floriana Maria Victória, por ter xingado nomes considerados desonrosos, foi espancada por Bernardo Gomes de Oliveira (Auto 8, cx 649, 1857). Por sua vez, João Antonio de Almeida agride Maria Ortiz de Assunção, entrando pela porta adentro da casa da vítima, porque ela estava, segundo ele, tendo atitudes inconvenientes. Entende como natural essa correção e não se preocupa de divulgar entre vizinhos que tinha ido à casa de Maria Ortiz e a havia machucado a pontapé e chicote como um corretivo(Auto1, cx 651, 1858). Companheiros entendiam que poderiam aplicar corretivos na esposa. É o caso de Johan Miguel Schaeffer, acusado de ter levado sua companheira, Eva Catarina, a óbito, após ela ter feito um aborto. Para os vizinhos, tal aborto aconteceu em consequência de um espancamento. Os vizinhos, testemunhas arroladas no auto, afirmaram ainda que ele espancava também a filha menor de sua companheira, Amália. Johan diz, em seu depoimento, que espancava Eva Catarina e sua filha, mas que, ultimamente, não o fazia por sua companheira se encontrar gravemente doente, precisando de seu socorro, que era o que ele ultimamente vinha fazendo. Diz que, apesar de espancar Eva Catarina, vivia com ela em harmonia e que os espancamentos só ocorriam quando eram merecidos, quando elas cometiam falhas, e ele os fazia para correção dela e dos filhos a quem estimava muito(Auto nº10, Cx 654, 1860). Também para corrigir uma menor e para se contrapor e mostrar autoridade sobre uma mãe que foi em defesa de um filho agredido, Luciano José de Andrade Gomes esbofeteou Angélica Maria da Conceição Leão e seu filho menor. O fato aconteceu quando o menor, Ignácio, foi à venda de Luciano comprar alguns gêneros alimentícios para sua mãe. Lá, ele desarmou uma pipa de aguardente dando enormes prejuízos ao vendeiro (Auto 16, cx 650 , 1858). Foi entendendo ter agido numa atitude corretiva que Verissimo Ramiro da Costa Leite, que era casado, mas vivia amancebado com Maria Jacintha, agride-a das nove da manhã até as duas da tarde, fazendo-lhe

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contusões pelo corpo e a acorrentando. Segundo Verissimo, tudo acontece quando ele coloca um cordão de ouro em casa e, ao ver Maria Jacintha com a joia sem sua ordem, não gostou. Além disso, ele afirma que ela teria mentido dizendo que havia comprado o cordão de ouro que estava usando. Por não gostar da atitude dela, arrancou-o à força do seu pescoço, e disse que, se ela desejava o cordão que lhe pedisse. Como Maria Jacinta não gostou da atitude dele, castigou-a como deve fazer, segundo ele, todo homem nessas ocasiões, ou seja, dando-lhe alguns socos com as mãos (Auto 17, cx 648, 1856).

Defendendo a honra de sua família

A honra da família significava a honra do pai, do homem. Joaquim da Rosa é acusado de agredir fisicamente Maria da Hora de Jesus por ter, segundo ele, recomendado-a a não falar de sua mulher. Tendo recebido o recado e, como diz o acusado, continuado a dizer palavras injuriosas contra sua esposa, pois ele ouviu Maria da Hora na casa de Manoel Rodrigues descompondo a ele e sua mulher, então age dizendo que ela não tinha juízo e, por não se calar, aprenderia com o corretivo que iria aplicá-la, dando-lhe socos e pontapés. Membros da comunidade em que moravam certamente viram a atitude de Joaquim como correta, afinal estava defendendo sua família e sua honra e corrigindo quem precisava de correção, pois 24 pessoas do sexo masculino assinaram um abaixo-assinado em seu favor, que foi encaminhado a Justiça (Auto nº 7, Cx 653, 1859).

Considerações finais

Embora os autos criminais do século XIX por nós analisado tenham caráter e estruturas oficiais, eles são significativos por possibilitarem evidenciar e transparecer aspectos da vida cotidiana não só da população envolvida, mas também da sociedade como um todo. Além disso, em particular, permite-nos entender o papel desempenhado pelo gênero feminino e deduzir, ainda, o ideal de mulher projetado pela sociedade da Comarca de Vitória no oitocentos. A escolha pelo estudo das relações de gênero, opção feita por nós,

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objetivava estabelecer o conhecimento sobre diferenças entre masculino e feminino. Permitir, enfim, conhecer os valores dominantes da sociedade, que eram diferenciados para o homem e para a mulher. A análise dos autos possibilita-nos auferir conclusões para que possamos caracterizar a Comarca de Vitória e sua população. A sociedade local, assim como, em geral, a do Brasil da época pesquisada, desejava uma mulher dócil, submissa, recatada, padrão este que certamente a maioria das mulheres acabavam incorporando. Entretanto, foi possível vislumbrar um representativo número de mulheres que se rebelavam contra essa idealização, ao partirem para agressões e contestações quando a situação não lhes convinha. Se a violência contra a mulher era tida como “natural”, inclusive sofrendo corretivo que os homens tinham o direito e o dever de estabelecer, não era incomum as mulheres praticarem essa mesma violência contra homens, outras mulheres e até contra crianças. Apesar de a dominação masculina ser uma ação “normal”, havia brechas para o rompimento dessa situação, colocando à prova o direito líquido e certo de o homem mandar e as mulheres obedecerem. Como a economia da região era baseada principalmente nas atividades da lavoura, a maioria da população se dedicava às atividades econômicas menos prestigiadas, que exigiam o trabalho cotidiano para garantir a sobrevivência. O cotidiano, na vida da maioria da mulheres e também dos homens, era o da labuta, da faina diária, da luta pela sobrevivência, num mundo onde reinava a desordem, a confusão, o mandonismo. Para minorar sua pobreza, a população se ocupava com trabalhos que pudessem garantir sua vida precária e miserável, exercendo atividades como lavradoras, costureiras, sapateiros, pescadores, carpinteiros, prostitutas, proprietários de pequenos negócios, ou ainda vivia de suas economia, ou do trabalho de escravo. A maioria da população era analfabeta, embora o número de mulheres nessa condição fosse superior ao número de homens.

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Auto 01, Caixa 650, Ano 1857 APE/ES Auto 08, Caixa649, Ano1857 APE/ES

Auto 01, Caixa 651, Ano 1858 APE/ES

Auto 16, Caixa 650, Ano 1858 APE/ES Auto 11, Caixa 653, Ano 1859 APE/ES Auto 07, Caixa 653, Ano 1859 APE/ES

Auto 10, Caixa 654, Ano 1860 APE/ES

Auto 01, Caixa 654, Ano 1865 APE/ES

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A luta cotidiana pelo fornecimento de água potável em Jerusalém (1850-1950): entre conflitos de poder e conflitos de memórias 2 Vincent Lemire

Minha tese doutoral sobre as redes de adução hidráulica em Jerusalém, da metade do século XIX à metade do século XX, situa-se de fato no cruzamento dos três eixos do congresso “Cidades, Cotidianos, Poderes”, que nos reúne hoje na universidade de Vitória e do qual estou muito feliz em participar. “Cidades”, primeiramente, pois acredito que é necessário, mais do que nunca, considerar hoje Jerusalém como uma cidade, como uma realidade urbana, e não mais somente como um agregado de lugares santos ou como um campo de batalha. “Cotidiano”, em seguida, pois torna-se urgente trazer a historiografia de Jerusalém para a realidade da vida cotidiana de seus habitantes, para que se rompam as abordagens geopolíticas e geoestratégicas que são ultradominantes na historiografia da cidade santa. Para tanto, a questão hidráulica (adução e distribuição de água potável) é um bom instrumento de trabalho. “Poderes”, enfim, pois as redes técnicas são igualmente redes de poder, que mobilizam as instituições locais (governança otomana seguida da britânica, municipalidades, consulados europeus, comunidades religiosas...), permitindo que umas se afirmem em relação às outras. Acrescento a esses três eixos o termo “memórias”, pois, em Jerusalém, mais que em outros lugares, conflitos de poderes e conflitos de memórias estão fortemente ligados pela instrumentalização da toponímia, da cartografia, da arqueologia, por meio das quais as heranças múltiplas são ressaltadas em maior ou menor escala. O conjunto formado por esses eixos submete-se à problemática dos conflitos e das conflituosidades, de forte ou de baixa intensi-

2 Texto traduzido por Ingrid Bueno Peruchi e Diego Fonseca dos Santos

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dade, que envolve os atores de um território urbano disputado. Hoje, vou apresentar um breve resumo de minha tese doutoral, enfatizando, inicialmente, os aspectos metodológicos que podem interessar aos pesquisadores pouco familiarizados com o Oriente Médio, insistindo, ainda, nas especificidades do que poderíamos chamar de método de “hidro-história” em história urbana, ou seja, não mais a história da água em si, mas a história pela água (a água como laboratório para os atores, a água como observatório para o historiador). Essa metodologia, que enfatiza o prisma hidráulico na história dos conflitos e dos poderes urbanos, apresenta, ao mesmo tempo, uma riqueza de ensinamentos e dificuldades próprias. Num segundo momento, apresentarei as três grandes lógicas presentes na minha tese e os três grandes tipos de conflituosidades surgidos sucessivamente no período: conflitos de memória, primeiramente, entre diferentes tradições religiosas ou textuais, que geram conflitos de apropriação de ordem patrimonial; conflitos de poderes, em seguida, entre as diferentes administrações de gestão urbana de Jerusalém; conflitos territoriais, finalmente, que, durante o mandato britânico (anos 1920 e 1930), levaram a polarização nacionalista da cidade a uma polarização nacionalista da gestão hidráulica.

A hidro-história, princípios metodológicos

A história contemporânea de Jerusalém, independentemente de sua abordagem, confronta-se com a profundeza cronológica característica da cidade três vezes santa. Para escrever uma história hidráulica da cidade, a dificuldade é dupla: o “tempo da água”, para citar a expressão de André Guillerme (1983), vai bem além do tempo dos homens; ele é testemunha de uma história diluída, dilatada, como mostraram os pioneiros da eco-história e da história do meio ambiente, como Robert Delort, François Walter (2001) e, obviamente, Emmanuel Le Roy Ladurie (1967). A hidro-história de uma cidade tal como Jerusalém deve, assim, forjar suas próprias ferramentas cronológicas.

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Como fazer a história de um recurso natural? A água potável e os poderes De um ponto de vista cronológico, a hidro-história confronta-se primeiramente com o questionamento recorrente da história dos recursos naturais: um recurso natural dependeria tanto da natureza quanto da cultura e, consequentemente, tanto das ciências naturais como das ciências humanas. Além do problema do domínio dos dados técnicos, o historiador deve, então, antes de começar a trabalhar, inventar a historicidade de seu objeto. Evidentemente, ele encontrará essa historicidade dentro da problemática do controle que os poderes procuram exercer sobre os recursos naturais e sobre as necessidades especiais das populações urbanas. É nesse ponto que encontro plenamente as problemáticas desse colóquio. Que se trate do sal, da floresta, da água ou dos minerais, os poderes políticos sempre tentaram, pelo fisco principalmente, afirmar a sua soberania sobre os elementos naturais (HOCQUET, 1985). Essa gestão política dos recursos naturais, em particular no contexto urbano, promove o surgimento da história, ou seja, dos eventos, das crises e dos conflitos. A água, no entanto, parece escapar, em parte, às estratégias de controle político. A água da chuva é um “dom do céu”, como lembram, aliás, os discursos religiosos que evocam sua dimensão sagrada e “imprivatizável”. A água corrente (do córrego, rio ou afluente) escapa por definição a toda tentativa de apropriação. Além disso, o uso cotidiano da água permite tornar menos problemática a historicidade do “objeto água” e leva o historiador a ter que empregar princípios metodológicos da antropologia histórica (DURAND, 1969). Esse problema se coloca também na ecohistória de modo geral: na história dos climas, tão cara a Le Roy Ladurie, assim como na história das paisagens e de suas percepções, tão cara a Alain Corbin, o “tempo dos meios” não é o dos homens. As restrições cronológicas que Jacques Le Goff denomina de “vasto território de uma história dilatada” são, portanto, bem singulares. Em suma, para concluir essa ideia, podemos dizer que a hidro-história deve recorrer aos instrumentos da história dos recursos, mas também aos princípios da “história das coisas banais”, desenvolvida pelo professor catedrático Daniel Roche (1997), tomando o cuidado para não confundir “recurso natural” com “produto manufaturado”. A histó-

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ria dos recursos (como a madeira, a água ou o sal) deve, de fato, se distinguir da história dos produtos (café, açúcar, borracha, tela, papel). A água, durante muito tempo, permanece como uma “produção” que não provém da mão do homem. Mesmo se, hoje, o recurso hídrico torna-se cada vez mais um produto industrializado (com o tratamento, a filtragem e o condicionamento), podemos considerar que, até a metade do século XX, a água continuava um elemento natural no qual a intervenção humana é bem limitada. O desafio colocado aos engenheiros hidráulicos de Jerusalém (e também aos de outros lugares), entre 1840 e 1940, pode ser resumido em quatro ações: captar, transportar, estocar e distribuir a água. Ao longo desse processo, é menos o conteúdo (a água) que os continentes (bacias, aquedutos, reservatórios, poços, fontes, canalizações) que se torna objeto de todos os investimentos técnicos, científicos e financeiros. Eis por que é a figura da rede que deve estar no centro de uma reflexão histórica sobre as políticas da água (BASIS, 1993).

Os limites cronológicos do estudo: 1840 e 1940

No meio do século XIX, Jerusalém é uma pequena cidade do Império Otomano, cuja superfície intramuros é de aproximadamente 800 metros por um quilômetro, ou seja, menos de 1km² (a título de exemplo, sua área é inferior à da antiga cidade medieval de Carcassonne). Habitada por aproximadamente 15.000 pessoas, seu peso demográfico não corresponde em nada ao seu lustre simbólico. Os consulados europeus começam a se instalar na cidade santa (o consulado britânico em 1838, o francês em 1843), e as primeiras casas construídas extramuros aparecem: a década de 1860 marca, assim, o ínicio de um crescimento demográfico que se prologará até a guerra de 1948. Nesse período, surge também a primeira organização em municipalidade (em torno de 1863-1867), e o início da conscientização internacional quanto ao problema da água potável em Jerusalém, com a fundação em Londres, em 1864, da Jerusalém Water Relief Society. Na metade do século XX, no outro extremo, portanto, do arco cronológico estabelecido, os anos 1940 marcam as rupturas e a divisão da cidade em duas entidades urbanas distintas e antagonistas. Jerusalém não é mais, nesse momento, uma cidade stricto sensu, mas se transformou num campo de batalha de

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nacionalismos concorrentes (sionistas e árabe-palestinos) e de estratégias geopolíticas que vão além dela. Assim, o período de 1840-1940 permite delimitar a eclosão, o desenvolvimento e o declínio de um sistema urbano singular, que adota características da figura tradicional da “cidade mediterrânea” (cosmopolitismo, autonomia municipal regulada, sociedade intersticial...), mas que se distingue por uma entrada precoce nas problemáticas dos nacionalismos contemporâneos. Quais são as consequências desse panorama no que diz respeito à hidro-história? Jerusalém possui 15.000 habitantes na metade do século XIX, ou seja, 15.000 consumidores de água; um século depois, às vésperas da proclamação do Estado de Israel e da divisão territorial, somamse mais de 160.000 citadinos em Jerusalém, igualmente consumidores de água, cujas necessidades individuais foram, além de ampliadas, diversificadas. Além disso, o centro de gravidade da cidade transferiu-se para as colinas do Noroeste, localizadas a mais de 800 metros de altitude, o que acrescenta a gravidade como uma dificuldade específica na distribuição de água. Em 1840, a fraca demanda permitia a garantia de um consumo baseado nas redes de distribuição tradicionais e nas capacidades bem estruturadas de estocagem doméstica e comunitária. O aumento brutal da população e, sobretudo, as mudanças de hábito dos consumidores (imigrantes europeus na sua maioria) romperam rapidamente esse frágil equilíbrio: até à instalação de uma rede de adução moderna e comercial em 1936, os recursos hídricos eram continuamente inferiores à demanda, apesar das obras hidraúlicas permanentes. Essa defasagem constante nos permite falar, em relação a esse período secular, de um tipo de “transição hidráulica” duradoura (do mesmo modo que falamos de “transição demográfica”) que vai da escassez controlada dos anos 1840 à abundância comercializada dos anos 1940. Foi, aliás, essa longa transição hidráulica que permitiu a elaboração de minha tese, pois a penúria cria conflito, fabrica arquivo e revela, no seu decorrer, um número importante de figuras sociais e de estratégias políticas inesperadas. Acrescento uma última palavra acerca do arco cronológico do estudo: esse espaço de tempo secular mostra igualmente a especificidade das redes de adução de água, que, diferentemente das outras redes técnicas urbanas, como a eletricidade ou o telefone, são amplamente herdadas de períodos anteriores. O caráter antigo das redes hidráulicas, em Jerusalém ou em outros lugares, torna seu processo de modernização particular-

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mente lento e complexo. O que Jean-Pierre Goubert (1995) denominou de A Conquista da Água é, assim, uma longa demanda do Graal hidráulico, que ele próprio situa, no contexto francês, entre 1830 e 1940. A modernização de uma rede hidráulica, em Jerusalém como em outros lugares, tem como primeira etapa uma análise quase arqueológica das canalizações já instaladas, sua reabilitação provisória, seguida de bricolagens sucessivas com o objetivo de aumentar a capacidade, antes que verdadeiros projetos de infraestrutura moderna se concretizem. Uma vez concretizados, esses projetos passam por uma perícia e uma contraperícia, antes de serem enfim realizados de acordo com os ritmos e os bloqueios do investimento privado e dos processos decisórios administrativos.

A distinção entre a cronologia do objeto e a cronologia das fontes documentais

O historiador corre sempre o risco de confundir a cronologia das fontes documentais das quais dispõe com a cronologia de seu objeto de estudo. Esse reflexo é o reverso da exigência metodológica de uma história pelas fontes, o que gera dois problemas distintos: Primeiramente, o historiador tende a confundir “fonte” com “fontes disponíveis”, o que significa que ele aparenta ignorar os processos complexos de transmissão das fontes e do arquivo. No caso particular de Jerusalém, assim como nas cidades que foram palco de guerras, de destruições e pilhagens, esse desconhecimento pode se revelar catastrófico: a ausência de fonte documental sobre a questão hidráulica, durante um ou outro período, não é obrigatoriamente um sinal de desaparecimento do problema hidráulico em si! O segundo problema é mais sutil, porém igualmente grave: o historiador, por sua obsessão pelas fontes, ignora muito frequentemente a história silenciosa, anônima, que não deixa rastros atrás de si. Essa “história invisível”, como já sabemos, é a da cultura oral, é também a dos vencidos. Mas, em nosso caso mais específico, ela é a história dos “anos dourados”, ou seja, das estações abundantes, dos trens que chegam na hora, dos dias tranquilos, o que equivale a dizer dos dias “sem história”: esse tipo de história escapa à vigilância do pesquisador de “história-crises” ou de “história-conflitos”. De fato, a história hidráulica de Jerusalém confronta-se incessan-

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temente com esse tipo de paradoxo: como interpretar, por exemplo, o silêncio das fontes sobre nosso objeto de estudo durante toda a década de 1880? Enquanto os anos 1860 e 1870 transbordam de publicações, leituras públicas e artigos de imprensa e as décadas de 1890 e 1900 submergem o historiador com dezenas de relatórios, memorandos e despachos, os anos 1880 permanecem absolutamente silenciosos sobre a questão hidráulica. Nenhum documento, mesmo de menor importância, vem saciar a fome do pesquisador, nem mesmo nos arquivos municipais, nos arquivos da província, nos arquivos centrais otomanos de Istambul, nas instituições arqueológicas europeias, nos arquivos consulares ou nos arquivos sionistas. Esse silêncio angustia o historiador, que poderia, então, supor o desaparecimento de seu objeto de estudo. No caso particular da década de 1880 em Jerusalém, devemos evitar qualquer interpretação excessiva. De fato, as medidas pluviométricas dos anos 1880 (1879-1887) são constantemente excedentes: chove mais do que a média (que é de 640mm) durante oito anos seguidos, sem interrupção, o que é um fato raro em Jerusalém. Entre 1879 e 1887, a água cai do céu com generosidade; as cisternas domésticas e as bacias públicas abastecem-se regularmente. As bombas e os sifões não se interrompem... a abundância adia, portanto, o problema, atenua os conflitos e cala o arquivo. Em Jerusalém, como em outros lugares, é a escassez que gera as crises e os conflitos, é o conflito que produz arquivo e é, portanto, paradoxalmente a chuva que apaga a história hidráulica.

O encaixe das cronologias

Finalmente, podemos dizer que toda a dificuldade e todo o interesse da hidro-história reside nos encaixes das diferentes cronologias que compõem o objeto de estudo: cronologia política, cronologia administrativa, história das técnicas, medições pluviométricas, ritmos das estações, crescimento demográfico, evolução econômica, memória religiosa... todas essas temporalidades divergentes contribuem na conjugação de um tempo da água complexo e plural. Podemos citar alguns exemplos. Primeiramente, a cronologia da história política (no centro da temática do congresso): em Jerusalém, como em outros lugares, é evidente que o processo de municipalização dos poderes urbanos segue a moderniza-

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ção das redes: a água é uma das áreas reservadas da autoridade municipal. Durante o período de 1890-1914, a municipalização e os projetos de modernização hidráulica parecem estar estreitamente ligados. Mas o poder imperial otomano continua presente: a dimensão simbólica das fontes da cidade santa motiva a capital imperial (Istambul) a não abandonar totalmente a responsabilidade da gestão hidráulica às autoridades locais. Com isso, em 1901, quando o engenheiro grego Franghia Bey conserta o aqueduco destinado a trazer a água das bacias de Salomão até as cisternas subterrâneas do Haram al-Sharif, as obras são aceleradas para poder inaugurar em grande pompa essa nova canalização no dia do aniversário do Sultão, 27 de novembro de 1901. Nesse caso específico, foi a biografia pessoal do Sultão otomano que impôs o calendário dessa modernização hidráulica. Segunda trama cronológica inevitável na história hidráulica: a história das técnicas que combinam o ritmo das descobertas científicas e de suas aplicações industriais. Sem entrar em nenhum detalhe técnico, que faria da técnica o verdadeiro ímpeto da História, devem-se considerar as etapas que aos poucos permitiram ultrapassar as dificuldades técnicas. Bertrand Gille (1978) destacou a utilidade para o historiador da noção de “sistema técnico”: permite apreender a “possibilidade técnica” inerente a cada época, ou seja, permite fazer um levantamento das possíveis políticas de modernização. No caso específico de Jerusalém, essa única noção de obstáculo técnico permite entender por que um projeto de desvio de uma fonte de água rural localizada a uns 600 metros em declive da cidade não pode ter sido realizado no final do século XIX mas somente no início do século XX. Seria, então, ingênuo propor uma interpretação dos sucessos ou dos fracassos sem levar em consideração, por exemplo, o aumento da potência das bombas hidráulicas de elevação, a melhoria dos materiais de canalização na resistência à pressão ou a generalização da utilização do asfalto impermeável. Terceira trama cronológica: a pluviometria, ou seja, a medição da quantidade de água que caiu num período ou numa estação específica. Alguns enigmas são colocados ao historiador, como a aceleração súbita de um projeto hidráulico ou, ao contrário, seu abandono inesperado, que só podem ser resolvidos tendo em conta o regime pluviométrico bem particular de Jerusalém, que é, ao mesmo tempo, estruturalmente desfavorável e conjunturalmente irregular. Deve-se destacar que Jerusalém

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tem uma média pluviométrica anual de 650mm, que pode, em alguns anos, atingir até 1000mm de água como também, em outros anos, mal chegar a 300mm de chuva. Essas crises pluviométricas são decisivas, a exemplo do conflito violentíssimo que opôs, no verão de 1870, o convento francês de Notre Dame de Sion à municipalidade de Jerusalém, em função da disputa pela posse de uma fonte de água subterrânea. Essa situação foi claramente motivada pela extrema aridez da estação anterior, pois, de fato, durante o inverno de 1869-1870, somente 300mm de chuva caíram em Jerusalém. A fraca vazão dessa fonte subterrânea não invalida de forma alguma essa hipótese, já que, naquele verão, o clima de pânico gerado pela ideia de uma penúria de água levou as autoridades locais a recorrer a operações espetaculares de desapropriação de recursos hídricos, com o objetivo de cristalizar a exasperação da população em alguns bodes expiatórios estrangeiros. Quarta trama cronológica: a que diz respeito aos consumidores de água potável. Esse segundo momento do processo de distribuição de água, posterior às redes, é, sem dúvida, muito mais difícil de documentar. Ao contrário das decisões políticas e técnicas sobre uma barragem ou um pipeline, que produzem para a posteridade uma grande quantidade de arquivos administrativos e de relatórios de engenheiros, o consumo na torneira doméstica não deixa rastro nenhum nos arquivos, a não ser quando se está numa fase de mercantilização completa dos recursos (que aparece bem mais tarde, raramente antes do século XX). Em Jerusalém, essa fase aparece a partir do período mandatário, ou seja, a partir dos anos 1920, com a instalação de uma verdadeira rede comercial de distribuição de água. Dispõe-se, portanto, em relação ao período de 1921 a 1940, de uma série de relatórios anuais conservados no centro dos arquivos municipais da cidade. O Water Engineer da municipalidade fornece, a cada ano com mais detalhes, os dados numéricos do consumo e relata com precisão a ocidentalização da rede. Essas fontes documentais são testemunhas, de certo modo, da profunda alteração dos hábitos de consumo e das normas de higiene em Jerusalém: os recursos hídricos, anteriormente comunitários e dirigidos para práticas de higiene coletiva (como o banho turco) são posteriormente privatizados em benefício de práticas estritamentes individuais e domésticas. De modo geral, a partilha dos recursos hídricos que, no passado, era fundamental na tessitura das relações sociais e intercomunitárias, constrói-se doravante segundo normas comerciais e contratuais.

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Uma cronologia dos atores: três tipos de conflitualidade hidráulica na cidade Apesar dessa complexidade dos encaixes cronológicos, é preciso elaborar uma narrativa. Para tanto, é necessário periodizar essa história das relações entre a água e os poderes urbanos. Mesmo se a história das redes de adução da água releva mais das continuidades que das rupturas, mesmo se os processos de modernização hidráulica são antes de tudo cumulativos, é preciso conjugar as diferentes temporalidades, concordantes ou discordantes, para elaborar uma história “imbricada”, isto é, que não seja constituída de períodos estanques, mas de temporalidades mais ou menos justapostas. Para articular essa hidro-história de Jerusalém, vale relembrar que a história é uma ciência do homem e, consequentemente, é preciso identificar seus atores com prioridade, tentando revelar sua proximidade respectiva com o “objeto água”. Só, então, é possível definir uma cronologia, ritmada pelos momentos em que esses atores se aproximam ou se distanciam do problema. Mas, afinal, quem são esses atores? Para os peregrinos ocidentais, a água foi um meio localização dentro de uma cidade que se tornou ilegível e incompreensível, ou, ainda, o instrumento para a reatualização concreta dos gestos rituais e das tradições religiosas; para os arqueólogos, as canalizações herdadas eram a chave para a interpretação de um espaço bíblico reinventado e o melhor meio de ter acesso aos vestígios antigos; para os filantropos europeus, os projetos de restauração do fornecimento de água potável eram a base de uma ambição tanto missionária quanto milenar; para as autoridades otomanas, o waqf de Soliman era o instrumento privilegiado para afirmar a soberania política na Cidade Santa; para a nova municipalidade, a modernização da adução hidráulica era o suporte que permitia fortalecer uma identidade citadina instável; para os primeiros deputados otomanos, a água era o meio de mobilizar uma opinião pública em plena expansão; para os responsáveis do movimento sionista, a água era o vetor para a tomada do controle econômico e simbólico do território de Jerusalém e da Palestina; para os interessados em obter concessões, a água era um trampolim para inserir-se na economia local; para os militares britânicos, a água era a vitrine da eficácia colonial e da ruptura de 1917; para os nacionalistas palestinos, a água era um meio de afirmar a recusa da espoliação e da colonização, assim como de consolidar uma

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aliança estratégica entre as elites urbanas e a massa rural. Em um século, dos anos 1840 aos anos 1940, a água potável de Jerusalém revelou-se um meio privilegiado, para os atores da história, de buscar, de fabricar ou de rearranjar lembranças, saberes, técnicas metodológicas, legitimidade, soberania, mercados, territórios... Em suma, a água revelou-se um extraordinário laboratório para os atores da história da Cidade Santa. Na totalidade do período, todos esses atores estiveram presentes... mas nem sempre com a mesma intensidade, com a mesma força de investimento. Deve-se, então, procurar os dominantes, reagrupar esses atores por “grupo de afinidades”, e tentar estabelecer um “período” de atividade privilegiada. Encontramos, aliás, aqui a questão da ligação entre a cronologia do objeto e a cronologia das fontes: a apreensão das “dominantes arquivísticas” manifestas nos diferentes períodos pode ajudar a distiguir o ator dominante em cada uma das fases da narração. Desse ponto de vista, o tempo que transcorre é nítido, desde os arqueólogos e os filantropos europeus (1840-1880), passando pelos engenheiros e edis otomanos (1860-1910), até chegar ao tempo dos militares e dos militantes nacionalistas (1900-1940): para as ciências humanas, os tempos da água são os tempos de seus atores. A fim de concluir essa intervenção, podemos tentar caracterizar, em grandes linhas, cada uma dessas três fases da hidro-história de Jerusalém.

A memória da água: entre arqueologia e filantropia europeia (1840 - 1880)

Durante essa fase, são, antes de tudo, os conflitos de memória que mobilizam os atores. De fato, a questão do abastecimento de Jerusalém com água potável é primeiramente colocada pelos arqueólogos e pelos filantropos europeus, segundo uma lógica de peregrinação e de filantropia, a fim de “re-conhecer” e “re-encontrar” a Jerusalém bíblica. A questão nunca é pensada em termos estritamente contemporâneos, mas sempre em referência à suposta abundância hídrica dos tempos salomônicos: os europeus relembram as façanhas técnicas do rei Salomão para melhor denunciar o que eles denominam de um culposo abandono das infraestruturas otomanas e para melhor sobrepor-se à memória das obras hidráulicas do sultão Soliman.

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O início de uma longa série de publicações cabe a John Irwine Whitty, que publicou, em 1864, Water Supply of Jerusalém, Ancient and Modern. No mesmo ano, funda-se, em Londres, a Jerusalém Water Relief Society, que propõe às elites britanicas participar financeiramente da restauração das redes hidráulicas. Em 1865, o Palestine Exploration Fund é fundado pela Coroa britânica, a fim de criar os meios científicos e arqueológicos para essa ambição. Os ingleses não são os únicos a tentar assim “voltar às origens” para reencontrar e modernizar, com a Bíblia na mão, as canalizações bíblicas ou supostamente tais: em 1867, Hery Dunant, o futuro fundador da Cruz Vermelha, publica, por sua vez, um projeto faraônico de restauração das infraestruturas hidráulicas de Jerusalém. Depois dele, numerosos europeus, arqueólogos ou filantropos, tentam transformar os textos bíblicos em verdadeiras varinhas de bruxo. Os instrumentos dessa primeira fase de apreensão da questão hídrica em Jerusalém são os da arqueologia e da erudição bíblica; os indícios são topográficos e toponímicos; os resultados “concretos”. Em termo de modernização urbana, são evidentemente limitados.

A administração da água: entre o waqf, a municipalidade e o poder central otomano (1860 - 1910)

Durante essa fase, os conflitos ligados à água potável são conflitos dos poderes, no sentido em que eles colocam em questão as diferentes administrações otomanas. Esse segundo tempo da água é o tempo da reapropriação da questão hidráulica pelas autoridades otomanas. É um tempo que podemos qualificar de administrativo, ritmado pelas fases de dinamismo e de bloqueios do reformismo otomano, mas também pelo peso patrimonial do aqueduto meridional da cidade, que foi, na metade do século XVI, instituído em waqf imperial por Soliman, o Magnífico. A administração otomana da água em Jerusalém divide-se, então, entre três instituições: a administração dos waqfs, o governador otomano e a municipalidade local. Os responsáveis pelos waqf, encarregados da matutenção cotidiana das infraestruturas hidráulicas, estão particularmente interessados na questão da partilha da água pública, na questão dos abusos e dos confli-

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tos que surgem cada vez mais entre camponeses e citadinos, entre consumidores e vendedores de água ou, ainda, entre militares, religiosos e laicos. O governador, representante direto do poder imperial otomano, preocupa-se sobretudo em defender a soberania hidráulica da Cidade Santa contra as tentativas de colonização dos recursos pelas potências ocidentais. A municipalidade de Jerusalém, enfim, fundada na metade dos anos 1860, consagra-se de forma mais intensa às dimensões prospectiva e técnica do problema, segundo uma lógica de modernização urbana. Podemos, aliás, inferir, pelo investimento constante da municipalidade nessa questão, uma vontade de afirmar sua autoridade e reforçar seu controle sobre um território urbano que possui doravante uma extensão maior, em frente aos responsáveis das fundações religiosas (os waqfs) e em frente ao governador imperial. Evidentemente, mesmo durante esse período, as tentativas dos europeus de tomar o controle das redes de adução de água não cessaram. Porém, elas passam doravante pela ação dos cônsules, que tentam instrumentalizar um ou outro engenheiro otomano: os arqueólogos, submergidos pelo novo desafio técnico que representa uma cidade moderna e cada vez mais povoada, encontram-se, a partir de então, fora da jogada.

A guerra da água: entre colonialismo britânico, projeto sionista e nacionalismo palestino (1900 - 1940)

Somente alguns anos depois do congresso de Bâle (1897), torna-se evidente que a questão hidráulica está plenamente integrada à doutrina sionista, em particular pelos adeptos de um “sionismo prático”, mais atentos às realizações concretas que às utopias longínquas. Desde o início do século, a questão da água torna-se uma verdadeira estratégia geopolítica, no âmago das estratégias de apropriação e das concorrências nacionalistas que opõem os executivos sionistas ao movimento nacional palestino ainda em gestação. Durante essa última fase, é de fato a guerra que impõe seu ritmo e dita seu calendário: a Primeira Guerra Mundial interrompe inicialmente os trabalhos iniciados depois de uma Convenção assinada em fevereiro de 1914. Quando as tropas britânicas entram na cidade santa em dezembro de 1917, o general Allenby confia às tropas de engenharia a tarefa de

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consertar as canalizações. Em curto prazo, essa militarização da água parece acelerar o progresso da situação hidráulica de Jerusalém: no dia 18 de junho de 1918, um novo conduto é inaugurado e os jornais britânicos comemoram os méritos de seu glorioso exército da Coroa, capaz, em poucos meses, de realizar o que o poder otomano não teria conseguido em quatro séculos. Evidentemente, o entusiamo é de curta duração, pois, a partir da estação seguinte, a engenharia militar entra em conflito com os dados estruturais do terreno e com uma recorrente penúria de água. A inauguração, em fevereiro de 1936, da rede de Ras-al-Aïn, que extrai água de Jerusalém até a planície costeira de Tel Aviv-Jaffa, parece fechar – ao menos do ponto de vista técnico – a questão: a partir dessa data, no plano estritamente quantitativo, Jerusalém não está mais sujeita à falta d’água. Mas a cidade de Jerusalém, suas instituições e seus habitantes começam, então, a se dilacerar, e a polarização comunitária acelera-se continuamente. Poderíamos dizer que o recurso hídrico “nacionalizase”, ou seja, que a gestão hidráulica não ocorre mais em função de políticas de modernização urbana, mas em função de interesses nacionalistas concorrentes: não se administra mais a água na escala da cidade, mas na escala de uma nação vindoura, como demonstram as negociações sobre o Plano de Partilha de 1947 da ONU, que integram a estação de bombeamento de Ras-al-Aïn no traçado das futuras fronteiras. Esse rápido panorama permite, muito provavelmente, prever a possibilidade do surgimento de uma área historiográfica promissora, a da hidro-história, no âmbito particular dos estudos urbanos e, especificamente, nos terrenos historiográficos conflituosos, abarrotados, dificeis de desbravar. Não somente a história das redes hidráulicas em si, dos progressos da higiene por si próprios, não uma história de água potável, mas uma história pela água. Não uma abordagem descritiva, mas dedutiva. Ao fim desta pesquisa, a água aparece, efetivamente, como um formidável elo: a água atravessa os limites topográficos, as fronteiras políticas, as barreiras disciplinares. Ainda hoje, o tema da água impõese, como uma problemática universal, no âmbito dos questionamentos geopolíticos e, particularmente, ecológicos. Porém, o historiador pode e deve defender a singularidade de sua abordagem: o que funda e justifica a hidro-história é o cuidado com o controle do recurso hidráulico em longo prazo e a atenção aos atores envolvidos nesse processo.

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Le Roy Ladurie, E. Histoire du climat depuis l’an Mil. Paris: Flammarion, 1967. Roche, D. Histoire des choses banales. Paris: Fayard, 1997.

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Morte na cidade ou morte da cidade? Quando um traficante ri Robert Moses Pechman

Introdução Fala-se na atualidade de uma nova conflitualidade urbana. Não se trata mais de uma luta pela cidade, mas uma luta na cidade. A ideia de luta não tem mais o sentido figurado de conflito político, de disputa por formas de cidadania e urbanidade que remetam a imaginários díspares do ponto de vista de uma concepção civilizatória. Contemporaneamente, a noção de luta é literal: é a luta da ordem contra a desordem, dos homens perigosos contra os homens virtuosos, dos bandidos violentos contra a sociedade pacífica. Trata-se, então, da configuração da violência e da segurança pública como o novo tema da cidade. Nesse sentido, a própria cidade (a vida pública) é o grande inimigo a ser combatido. De um lado, os violentos com seus marcantes apelidos; de outro lado, os “homens de bem” com seus nomes e sobrenomes. Cada qual conta uma historia diferente do sentido que a cidade tem para os seus. Cada qual com sua linguagem, com sua narrativa, procura legitimar a cidade que tem a seus pés. Entre a cidade vigiada e protegida e a cidade de armas em punho, a cidade... apenas a cidade, o lugar de uma possível coexistência entre os diferentes. Este texto trata de homens e seus apelidos, melhor ainda, trata da cidade e da cultura que existe por trás desses homens e de seus apelidos. Venho trabalhando com a perda de sentido que a cidade contemporânea tem experimentado nas últimas duas décadas. Trata-se do enfraque-

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cimento da experiência pública que induz a que a cidade seja percebida não mais como lugar da vida coletiva, mas como arena de oportunidades para bons negócios. Nesse sentido, vamos analisar os novos comportamentos urbanos, principalmente aqueles fundados na violência e na incivilidade, e como eles abrem caminho para se pensar numa cidade sem pacto, sem público, sem alteridade. Mata-Rindo!!! Mata-Rindo é um dos chefes do tráfico no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro. Seu nome se encolheu diante da potência de seu apelido. Mata-Rindo! Mais um apelido como aqueles muitos que brotam das ruas e enchem as páginas policiais de nossa imprensa e de nosso imaginário, como Escadinha, Uê, Marcinho VP, Zé Pequeno. Apenas um apelido? Segundo o dicionário, apelidar é designar, convocar, convidar... . A que festa convida aquele que responde ao chamado de Mata-Rindo? Apelido, essa coisa que toma o lugar do nome “natural” e impõe um nome “real”, essa tatuagem na personalidade, esculpida pela sensibilidade popular, que tão precisamente renomeia o mundo formal e racional e reinventa a sociedade. Apelido, marca registrada da individualidade, essa tentativa de construir uma personalidade que vá muito além da impotência e fragilidade dos nomes. O apelido tem o poder de recolocar a pessoa no mundo, de dar-lhe um novo lugar nesse mundo. Na terra do Piranhão, do Sambódromo, do Frescão, do Orelhão, na cidade dos apelidos, o de Mata-Rindo desfaz o nome de batismo, seja João, seja Mané, para pespegar-se como nome de guerra, sua nova identidade urbana. Mata-Rindo, apenas mais um apelido? Que cultura estaria se escondendo por trás de tal alcunha? Assim como o nome/apelido das ruas até o século XIX revela a vivacidade social da cidade, ainda infensa ao processo de urbanização e que ainda não se “desinfetou” por completo da contaminação da sociabilidade que lhe vai ao redor – assim, a Rua dos Piolhos, a Rua do Amor, a Rua Feliz Lembrança, a Rua Aprazível, a Travessa Sem-Vergonha, o Beco da Música – assim também os apelidos, nascidos de certa época, de certa sociabilidade, revelariam algo da experiência urbana. A cidade conta algo de sua história em tudo sobre o qual doa significados. O que pode nos contar, então, uma cidade que doa esse apodo a alguém? Uma cidade que vomita os Mata-Rindo, Fabiano Urubu, Pãocom-Ovo, Tchutuco, Pardal, Cebolinha tem algo a nos dizer sobre seus filhos e sobre como os nomeou para melhor precisar sua “humanidade”. Que cidade é essa capaz de parir Matas-Rindos, Elias Malucos,

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Pitbulls, mas que já gerou em suas entranhas Cartolas, Chicos, Violas, Pagodinhos, Cavaquinhos? Estaríamos diante da perda de sentido da cidade ou da transformação do seu significado? A cidade estaria deixando de ser referência a certas formas de sociabilidade, deixando de ser um mundo comum, abrindo mão de sua autoridade pública e de seu poder pedagógico de fazer da experiência individual, psicológica, afetiva, subjetiva algo que remetera sempre para um amor-múndi e no limite para alguma ética da coexistência? Desconfio fortemente de que a cidade vem perdendo celeremente sua capacidade de produzir cidadania, tornando-se incapaz de exercer sua tarefa pedagógica contra o desacordo citadino. Tentando pensar a tarefa pedagógica da cidade e seus efeitos sobre a cidadania, Eduardo Portella (1995, p. 109) sugere que não basta ensinar na cidade, mas é preciso ensinar a cidade. Correndo risco de perder a paixão, a cidade não pode ser pensada só como um sistema de produção e consumo, mas deve ser considerada também – segundo Portella – como um lugar de trocas subjetivas, carente de investimentos afetivos. É preciso, então, aprender que a cidade tem que conciliar as relações de produção com a produção de relações, abrindo espaço para que todos, absolutamente todos, possam trabalhar e desejar. Mas estamos muito longe disso. Entre nós, nem todos podem trabalhar, nem todos podem desejar. Entre nós, mesmo os que trabalham pouco podem desejar. Entre nós, no entanto, mesmo que não possam, todos continuam a desejar. O que fazer, então, num país em que, como a mais-valia, o desejo vai parar no colo de alguns poucos? No país da maisvalia dos desejos e dos gozos, o que um dia fora pacto estilhaçou-se diante do argumento de que desejos e gozos agora são privativos e há que se pagar um preço por isso, assim como pagamos seguro-saúde e escola particular. Estaríamos, então, vivendo numa espécie de après-ville, onde o pacto urbano definhou e só nos restaria flexibilizar — assim como a economia faz com a mão de obra — o convívio e a tolerância? Por isso me parece que podemos supor que Mata-Rindo seja o prenúncio de uma nova era, o anúncio de novas formas de convívio, a morte da ética na cidade. Nesse sentido, Mata-Rindo não é apenas mais um apelido, ele é a evocação da morte urbana e da morte humana, ele é o codinome da dor. Mata-Rindo, o nome diz a que veio: o prazer de matar, toda e qualquer interdição, toda e qualquer percepção do outro cancelada. Mais do que

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isso, o corpo anulado do outro, vivido, não mais como um banquete para os sentidos, não mais como parque de diversões para uma erótica, muito menos como inspiração para uma poética. O corpo vivo do outro, não mais como parceria na pequena morte, não mais como sujeito nas interações sociais, afetivas, mas como objeto, que faz Mata-Rindo rir quando mata. Quando Mata-Rindo mata e ri, é a sociedade inteira que se desfaz, a cidade que desmorona, pois o socius e o urbanus desaparecem por dentro do buraco do seu umbigo. Meu problema, no entanto, não é com o bandido. Nem sei, na verdade quem é Mata-Rindo. Li que ele é acusado de várias mortes, que chefia uma quadrilha de 25 ladrões de carros e otras cositas más. Ele, provavelmente, é mais um dos que querem conquistar a cidade em busca de... de tênis, televisão de plasma, celular com música e câmera fotográfica, restaurantes caros... e de mulher, de fama... e de se inscrever no grande livro dos consumidores da sociedade de consumo, cartilha que reza que a existência é conferida apenas àqueles que consomem. Tal meliante, como quer a polícia, não quer se inscrever na cidade, não busca a imortalidade, como nos fala Hannah Arendt sobre os gregos da pólis, nem quer perpetuar o seu nome, como fazem os grafiteiros nos muros da urbe. O bandido quer exatamente o que toda a sociedade quer: gozar! Não se trata mais de ser da cidade, mas de ter a cidade, possuí-la, se apoderar dela, tomá-la, tirar algo dela para se sentir alguém. E, no entanto, ninguém conquista mais sua identidade na cidade, mas pela cidade. A cidade não é mais referência identitária; ela é apenas trampolim. Salta-se do trampolim e... Ops!!!, mergulha-se no mar do consumo e quem era ninguém torna-se alguém pelas marcas do que consome. Consome-se marca, o consumo é a marca de uma nova forma de identidade. Na pólis, quando o cidadão/guerreiro morria, ele, antes de ir para sua última morada, tinha direito a uma oração fúnebre, que recordava que ele foi cidadão de Atenas e que partia para sua morada eterna, não como indivíduo, mas como um ser daquela cidade, que o honrava e a qual ele deveria honrar. Ou seja, ali, o que predominava era o lado público do cidadão, aquilo que lhe dava direito a ser da cidade. E nós, quando morremos, que herança deixamos além do sobrenome que nos individualiza e nos dá direito ao butim herdado? Como será lembrado o morador das nossas cidades? Cidadão ou herdeiro? Então, Mata-Rindo não é nenhuma excrescência. Embora visto como

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excremento social, ele é muito parecido conosco. Mata-Rindo, Pão-comOvo, Pitbull querem o que nós queremos: extrair da cidade aquilo que parece ser a sua essência, que não está mais no socius, mas no economicus. Não somos mais cidadãos, mas agentes econômicos; não estamos mais abertos ao inesperado dos acontecimentos, às surpresas de cada esquina, mas às oportunidades do mercado, às flutuações dos índices. Nossa cidadania oscila diante do cálculo, nossa urbanidade não reconhece mais no outro um par social, mas um concorrente, um adversário, até mesmo um inimigo, enquanto nossas cidades vão perdendo o sentido como forma coletiva de viver. Mais do que isso, elas vão deixando de doar sentido à cidadania, pois as novas formas de adesão a si e a desinscrição no coletivo, em busca de uma autenticidade (GAUCHET, 2002, p. 247) do eu, leva a um declínio surpreendente da dimensão do público e, consequentemente, das formas de civilidade. Diante da emergência de um novo modelo de condutas, uma nova inscrição psíquica se impõe: o narcisismo. O indivíduo deixa de se constituir pela norma coletiva e o vínculo social deixa de ser vivido como um efeito global de agregação de ações. Aderido a si, cada indivíduo não vê mais que suas vantagens e interesses. Ser você mesmo, experimentar a autenticidade na sua radicalidade se legitima a partir do ideário de que ninguém pode ser contido na apreensão das oportunidades que se apresentam de fora, sob o risco de se tornar um... inoportuno. Ou seja, a experiência narcísica, como não comporta o outro, abole qualquer acontecimento, logo ignora toda relação e, no limite toda sociabilidade, qualquer cidade. Sendo assim, o homem narciso não se inscreve no tempo da história, no tempo da experiência. Substitui a oportunidade pelo acontecimento. Se no acontecimento ele está sujeito às modulações do social, na oportunidade, qual caçador, ele está sozinho à espera de algo que mereça ser caçado, pois a oportunidade é da ordem da caça. Na toca, sozinho, vigilante, o narcisista espera sua presa/oportunidade. Ele nunca sai da sua toca para se encontrar e se defrontar com o mundo, só para predar. Deixando para trás uma cultura em que o vínculo social não se coloca como decorrente da ação dos indivíduos, mas decorrente de um modelo que precede o indivíduo, as sociedades narcisistas constroem/reformam cidades que vão deixando de dar sentido à ideia de social, de sociedade, de sociabilidade, de laço social, de vínculo, de relação e, por fim, a ideia mesma de urbanidade e civilidade. Ora, a civilité, como quer Gauchet, é a

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forma pela qual admitimos que o social nos preexiste, ela é o consentimento dessa anterioridade, que torna possível um espaço organizado de coexistência, que se expressa fisicamente no espaço público e socialmente na esfera pública. Nessas circunstâncias, a cidade é um lugar de produção de sentidos para toda uma mecânica social, a única possibilidade da urbanidade. A incapacidade de reconhecimento da norma coletiva tem, então, como contrapartida, a generalização de novas patologias, doenças da identidade, segundo Marcel Gauchet. Assim, a proximidade dá lugar ao evitamento, a relação cede à conexão, o pleno do laço social deixa entrever o vazio do individualismo, o vínculo perde para a solidão. Esse é o berço esplêndido onde muitos apelidos irão germinar, onde desejos e gozos querem se impor a todo custo. A cidade fez Mata-Rindo, Mata-Rindo desfaz/refaz a cidade, ou melhor, remete-nos para outra cidade, onde é possível matar, rindo. Quando Mata-Rindo perde seu nome e ganha esse portentoso apelido, é a cidadania que é interpelada sobre a desmobilização da cidade como lócus da negociação política. É soada a hora de se repensar o outro, do outro lado do nosso umbigo. Mesmo porque, se os ouvidos se fizerem moucos à negociação de um novo contrato urbano, a risada estertorante de Mata, enquanto mata, há de ribombar pelos vales e montanhas da cidade, não nos deixando esquecer nunca a dor de se portar um apelido como esse.

Ricos, intolerantes e criminosos

Semanas após haver terminado essas reflexões, ao passar em revista as manchetes dos jornais expostos na banca da esquina, dei de cara de novo com Mata-Rindo. A manchete do jornal que balouçava ao vento gritava em letras garrafais na primeira pagina: “Mata Rindo é baleado no Alemão e chora”. Na parte interna, a matéria, num tom completamente sensacionalista, estampava em letras maiores ainda título mais que inusitado: “Mata Rindo toma um balaço e não ri mais” e que informava que “Bandidão que executou PM em Oswaldo Cruz foi ferido na megaoperação da polícia” ao que juntava a notícia que “Pitbull foi baleado nas duas pernas” e que “outros mortos na ação seriam Miro, Garrinchinha e Guinha” (MEIA HORA DE NOTÍCIAS, 30-6-2007). “Fez-se a justiça!” seria a nossa primeira reação. Fez-se a justiça?

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Fui aos meus recortes de jornal, que coleciono aleatoriamente quando se trata de comportamento na cidade, e dei uma espiada nas matérias. De novo um sonoro apelido ribombeia em meus ouvidos: Trovão! Embora, desta vez (Ufa!) venha com sinal trocado. É que Trovão é o apelido do inspetor de polícia Torres, peça de destaque nas operações da polícia no complexo do Alemão. Trovão foi matéria de capa, com direito à enorme foto onde ele sorve deliciosamente seu charuto para comemorar a batalha contra os bandidos do Alemão. Incensado pela matéria como protetor da cidade, Trovão revelou que, após as batalhas, fumava seu havana para relaxar e, mais ainda, revelou também que seu sonho dourado era ir lutar em Gaza ou em Bagdá, pois ele é um guerreiro por natureza. Sorte nossa, pensei com meus botões, que Trovão está do nosso lado. É uma questão mesmo de sorte, ou do acaso, pois, na ética belicosa do inspetor, suponho, tanto se dá estar de um lado ou de outro, pois seu negócio é guerrear, lutar, matar. Trovão é o nosso Rambo, ele nos salva no nosso humilde Vietnã. Trovão! Apenas mais um apelido? Que cidade estaria dando suporte a tal alcunha? Continuo remexendo os recortes de jornal. À propósito de uma noticia saída em jornal chinês de que o Partido Comunista Chinês havia lançado campanha para melhorar os hábitos da população (de olho nas Olimpíadas de Pequim de 2008), criando um Comitê de Orientação Espiritual Civilizatória que deveria estabelecer formas de comportamento público, o jornal O Globo estampou foto dos coqueiros da praia de Copacabana onde cinco mijões, ao mesmo tempo, irrigam, cada qual uma árvore, os pobres coqueiros. Comentando a matéria sobre o comportamento dos chineses, o título da notícia carioca era: “Enquanto isso no Rio...” e a seguir assinalava: Há os que jogam lixo pelas janelas dos veículos, os que cospem nas ruas, os que assoam o nariz sem lenço... e os que fazem xixi em postes e moitas. Por esses e outros o especialista em Antropologia Urbana... afirma que seria bem-vinda no Brasil uma campanha nos moldes da lançada na China. [E conclui] Civilidade nunca é demais.

Continuo mexendo nos jornais. “Crueldade sem justificativa(?). Cinco jovens de classe média da Barra espancam doméstica pensando tratarse de prostitutas”. Rapazes que moram nos caros condomínios da Barra

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da Tijuca, “sem explicações”(?) espancaram a vítima violentamente. Recorte da Folha de São Paulo em matéria do colunista Marcelo Coelho, a propósito do espancamento da doméstica no Rio, discute a questão da intolerância na cidade. Aborda fundamentalmente a ideia de “tolerar” os pobres:

Havia uma comunidade no Orkut (devem ser contadas às centenas...) chamada ‘Odeio pobre’. O idealizador dessa pequena organização dava seus motivos: eles falam alto, o carro deles, no fim de semana, encrenca na estrada e atrapalha nossa vida, eles se vestem mal, usam aqueles guarda-chuvas que não funcionam, não entendem o que a gente diz [...] (COELHO, Folha de São Paulo, 4-7-2007).

Pergunta-se o colunista se esses jovens teriam se acostumado à cultura da impunidade que predomina no País, para concluir que isso não explica tudo em relação ao espancamento gratuito da doméstica. E o jornalista acrescenta que “Poderiam drogar-se sozinhos, dedicar-se a pichações, depredar caixas eletrônicos na calada da noite. Só que seria pouco[...]”. Eles precisavam mais, concluo eu. Gozados todos os gozos legais que o corpo da cidade oferece e a sociedade de consumo estimula, eles partiram para um outro corpo, um corpo de outra classe (aquele que espera nos pontos de ônibus resignadamente), um corpo que no uivo da dor lhes restabelecesse a vitalidade do prazer, já amortecida de tantos gozos permitidos. Eles precisavam, na verdade, de um corpo para estuprar como que para materializar o estupro da cidade, com a ruptura que faziam da lei urbana. Essa aproximação que faço entre corpo humano e corpo urbano não é aleatória. Segundo Olivier Mongin, em seu livro La condicion urbana, a experiência urbana é primeiramente corporal, pois o corpo precisa de um lugar para habitar. No ato de habitar, o corpo experimenta a proximidade da vizinhança e, uma vez estabelecida essa base, ele se lança para a cidade à procura de todo tipo de contato, todo tipo de relação. Da mesma maneira, conclui Richard Sennet (1997, p. 44), em seu Carne e pedra: “[...] o ginásio ateniense (onde os jovens se exercitavam) ensinava que o corpo era parte de uma coletividade maior, a polis, e que pertencia à cidade [...]. Os atenienses pensavam que a sexualidade era um aspecto básico positivo da cidadania”. Segundo Sennet, Péricles conclamou os cidadãos de Atenas à “enamo-

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rarem-se” da cidade, empregando para isso o termo erótico que designava amantes, “erastai”. Para Sennet, era no ginásio que se ensinava aos rapazes que o compromisso erótico de quase servidão com a cidade era idêntico ao que poderia existir entre eles – um amor ativo e perfeito. Enamorar-se da cidade equivalia a enamorar-se do amante, o que levava a que se nutrisse pela cidade um vínculo da ordem do erótico. A mesma coisa se dava na morte do cidadão. Este, quando morria, tinha direito a uma Oração Fúnebre, que, mais que exaltar o corpo do morto, exaltava o corpo da cidade. Ora, para aqueles jovens predadores de corpos e de cidades que, para espanto da revista Isto É, “são ricos, intolerantes e criminosos” e “têm tudo de que precisam” (ISTO É, 4-7-2007), assim como para os MataRindo, Pitbull e Trovão, a cidade, com suas leis, o corpo com sua ética, ou seja, a cidadania e a urbanidade nada significam. Como operar, então, para que esse social perdido, esse urbano desprezado possa se fazer valer? A indignação que nos toma nos faz bradar por ordem. Mas, exatamente, que espécie de ordem? Aquela que produz a paz dos cemitérios? Aquela que cancela o conflito e inibe a negociação? Em suma, penso que a discussão da ordem na cidade esconde, esvazia mesmo a dimensão política da experiência da convivibilidade, donde podemos concluir que o fundamento da vida em cidade é a coabitação cidadã e que a cidade é o lugar da experiência, diferença, onde o diferente não é apenas tolerado, mas deve ser percebido como um absolutamente igual. Se, além disso, concluirmos que a ideia de cidade não é possível sem a noção de civilidade, iremos entender por que, etimologicamente, Política deriva de Pólis e mais ainda, por que Polícia também deriva dessa forma elementar de constituição da primeira experiência de convívio entre homens, que escapou aos laços de sangue e aos vínculos familiares, que foi a pólis. A cidade contemporânea, no entanto, tornou-se o pasto de formas de subjetivação (ORTEGA, 2000, p. 28) que abolem o outro e só reconhecem o mesmo,1 limitando a experiência e o acontecimento. Essa limitação da função da cidade que é o locus da coabitação cidadã 1 Segundo Ortega (2000, p. 51-52), “[...] toda lógica da identidade estaria dominada por uma violência que anula a diferença, a singularidade, a particularidade e reduz o outro ao mesmo. É preciso, portanto, desconstruir essas formas de subjetivação que impedem que toda identidade seja percebida como uma abertura para a alteridade”. Ao desconstruirmos as formas pelas quais excluímos e suprimimos a singularidade e a alteridade, estamos nos abrindo para o outro e renovando os vínculos que estruturam o convívio urbano, fazendo da Amizade um fator decisivo na recuperação da esfera pública, desde que ela supere a familialização e se inscreva na cidade como uma política.

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e da hospitalidade está levando ao seu desencantamento pelo empobrecimento do imaginário urbano, que reduz a cidade a uma topografia e a um simples espaço funcional de moradia, trabalho e consumo. Transcender essa percepção da cidade como espaço unidimensional, apenas aberto às estrepolias da acumulação do capital, é reconhecer que a urbe pode ser, sobretudo, lugar de acolhimento das representações cidadãs e também dos desejos, afetos e utopias (SILVA, 2001, p. 67). Recuperar a dimensão política da experiência do convívio urbano passaria, pois, pela desconstrução daquele imaginário hegemônico e pela sua renovação a partir da atualização dos contratos sociais/urbanos que outorguem à cidade sua identidade, forjada agora na recuperação do diálogo urbano. Estamos, portanto, diante de uma escolha: cidade ou cidadela. Que apelido dar a uma cidade que está se transformando em cidadela? Referências FOLHA DE SÃO PAULO 4-07-2007.

GAUCHET, Marcel. La democratie contre elle-même. Paris: Gallimard, 2002. MEIA HORA DE NOTICIAS, 30-06-2007.

MONGIN, Olivier. La condicion urbana. Buenos Aires: Paidos, 2006

ORTEGA, Francisco. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. ORTEGA, Francisco. Genealogias da amizade. São Paulo: Iluminuras, 2002.

PORTELLA, Eduardo.  Educação pela cidade. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 120, jan./mar. 1995. REVISTA ISTO É, São Paulo, jul. 2000.

SENNET, Richard. Carne e pedra. Rio de Janeiro: Record, 1994.

Parte III

Cidade, cidadania e pensamento político

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A natureza do poder popular durante a revolução francesa: o caso de Jacques-René Hébert Josemar Machado de Oliveira Durante o processo revolucionário de 1789, correntes políticas as mais diversas tiveram a oportunidade de medir forças. Vieram à tona correntes que tanto queriam retomar o status quo anterior ao 14 de julho quanto subvertê-lo completamente, sem mencionar aquelas que tinham uma pretensão política de juste milieu.1 Portanto, houve um profundo debate sobre questões do tipo natureza do poder político – nessa discussão o embate entre Monarquia e República foi central – sua relação com o exercício da cidadania e a extensão desta. Nesse contexto, os hebertistas,2 como porta-vozes da sans-culotterie,3 veicularam a maneira como esta última respondeu a essas questões, afirmando que a soberania reside no povo e, portanto, deve ser exercida diretamente. Soberania não divisível em poderes, já que, como afirmava Albert Soboul (1968, p. 106), “[...] nas concepções populares da sobera-

1 Justo meio. Expressão que Benjamim Constant tornou célebre e que significava a ideia de um governo moderado. Esse tipo de governo teria seu ensaio durante o Diretório (1795-99). Nesse período da Revolução, houve a tentativa de implementar um regime que fugisse dos excessos radicais da época do Terror, afastando-se assim de uma aliança com os grupos populares, assim como também afastando-se de uma volta ao Antigo Regime. Em seu texto Da força do governo atual da França e da necessidade de apoiá-lo, Benjamim Constant (2001) justamente defendeu o Diretório e sua natureza de juste milieu. 2 São assim chamados os militantes revolucionários, como Ronsin e Vincent, que se agrupavam à volta de Jacques-René Hébert, subprocurador da comuna (prefeitura) parisiense, entre 1792-94, e cuja notoriedade e importância política residia principalmente na sua condição de criador do panfleto-periódico “Père Duchesne”. Esse panfleto constitui fonte essencial para o conhecimento desse grupo, o qual também era conhecido como o “grupo cordelier”, já que seus membros integravam o Clube dos Cordeliers. Cf. Oliveira (2001, p. 139-174). Ver também: Richet (1989, p. 379-385). 3 Para uma visão sintética da noção de sans-culotterie, ver: Mazauric (2005, p. 957-964).

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nia, não poderia haver separação dos poderes”. Mesmo assim, Soboul dividiu, por força de análise, a prática democrática dos sans-culottes em três partes. Estas se compunham nos poderes: o povo em armas, o povo soberano juiz e o povo soberano legislador. Também Jacques Guilhaumou (1981, p. 111) se utilizou dessa mesma divisão, dando a essas mesmas partes o nome de “temas sans-culottes” que, segundo ele, atualizavam “[…] a idéia de democracia direta […]”. Esses eram os três domínios básicos em que se decompunha a soberania popular e, por meio dos quais a sansculotterie construía sua visão eminentemente prática e ativa desta última. Nas próximas páginas iremos nos concentrar em apenas um desses domínios básicos. Trataremos daquele “tema sans-culotte” que centralizava a visão de poder dessa camada popular.

Hébert e o “povo soberano legislador”

“Neste polemista encarniçado […] o aspecto político prima[va] sobre o aspecto social”. É assim que Pierre Nicolle (1947, p. 32) caracterizava o tom combatente do discurso político do Père Duchesne. Porém, esse predomínio do aspecto político no panfleto de Hébert não significava que esse panfleto descesse a digressões políticas profundas. Aí, política quer dizer, mais do que qualquer outra coisa, o cotidiano político da Revolução, ou seja, a luta de facções, o destino do monarca, entre outras coisas. Dessa maneira, não é difícil perceber que os conteúdos básicos da democracia revolucionária, vontade geral, soberania e representação, nunca apareceram explícita e teoricamente fundamentados. No panfleto de Hébert, vemos apenas as formas difusas desses conteúdos. Seria um erro imaginar que, num discurso combatente como o de Hébért, encontraríamos concatenados logicamente esses conteúdos, como apareciam nos discursos de outros personagens da Revolução, sobretudo aqueles que exerceram cargos nas assembleias e puderam discutir as implicações práticas desses conteúdos com o vagar costumeiro dessas instituições. As questões que aparecem no panfleto de Hébert estavam submetidas à dinâmica da Revolução, era au jour le jour que elas apareciam e eram tematizadas. De qualquer maneira, existia uma presença clara dos temas democráticos sans-culottes no Père Duchesne. Se o tema da democracia sansculotte, “o povo como soberano legislador”, ou o princípio de dar a si pró-

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prio as leis, aparecia menos nos textos do Père Duchesne, por outro lado, as modalidades práticas pelas quais o próprio movimento secionário tentou implementar esse princípio, a revogabilidade dos mandatos e a sanção das leis pelas assembleias primárias, aí eram recorrentes. Dessa forma, Hébert era legatário, como a sans-culotterie em geral, daquilo que Roger Barny (1974, p. 59-98) chama de “ideologia rousseauísta”. Antes de iniciarmos a análise do Père Duchesne, uma palavra rápida sobre as fases do panfleto. As duas primeiras fases do Père Duchesne se caracterizaram pela construção do processo de transformação da Monarquia para a República (1790-92) e, durante a instalação desta, a disputa aberta contra os girondinos e a luta pela expulsão destes (179293). Nessas fases, Hébert se utilizou dos elementos do “discurso de oposição”, comum aos patriotas desde a instalação dos Estados Gerais em 1789. Em outras palavras, a “ideologia rousseauísta” estava presente recorrentemente nos números dos Père Duchesne lançados particularmente entre o 10 de Agosto de 1792 e o 31 de Maio – 2 de Junho de 1793. Hébert fez, dessa forma, da defesa da soberania popular a pedra angular de seu discurso político no momento em que se iniciavam os ataques à Monarquia e depois na oposição aos girondinos e mesmo mais além. As expressões povo soberano se repetiam com frequência ao longo do ano I e do ano II. Com efeito, no nº 170, ele afirmava que era “[...] preciso que os representantes do povo se conformassem assim à vontade soberana do povo […]” (HÉBERT, 1969, p. 7). E voltava à carga no nº 287, quando escreve “[...] pois [o povo] é soberano, é mestre” (1969, p. 7-8). E o contrário da soberania popular não poderia ser outra coisa senão a servidão, ideia que Hébert trabalha no nº 211. Assim, uma das acusações recorrentes aos contrarrevolucionários era que eles desejavam reduzir o cidadão sans-culotte à condição de antes da Revolução, a servidão. Foi essa acusação que, nesse número, o Père Duchesne lançava aos rolandins, brissotins que se esforçam “[...] por mergulhar [o povo soberano] na servidão” (1969, p. 2). Sobre um dos “[...] temas sans-culottes que atualizam a idéia de democracia direta”, que Jacques Guilhaumou (1981, p. 81-116) afirmava não ter encontrado referência no recorte documental do Père Duchesne por ele pesquisado, o “povo como soberano legislador”, ele estava na base da oposição aos girondinos mantida pelo panfleto de Hébert. O panfletário, como todos os jacobinos, desenvolveu até o dia 31 de maio – 2 de junho de 1793 uma crítica à Convenção girondina baseada na ideia da usurpação

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por esta da soberania popular e, por conseguinte, do direito que cabia ao povo de fazer as leis. Esse “tema sans-culotte” é o conteúdo do que Lucien Jaume chama de “discurso de oposição” dos jacobinos.4 Podemos dizer que é perfeitamente pertinente estendê-lo também ao conjunto dos integrantes do bloco jacobino/sans-culotte formado às vésperas do 10 de Agosto e que assume o poder justamente com a insurreição do 31 de Maio – 2 de Junho. Assim, pelo menos até essa data, ao Père Duchesne não se pode contestar sua adesão a esse tema sans-culotte. Nos números desse panfleto, entre o dia 10 de agosto de 1792 e o dia 31 de maio de 1793, o tema “povo como soberano legislador” aparece com frequência: “[...] a lei, porra, deve nos governar somente, mas a lei feita pelo povo” (1969, p. 5). Esse fragmento do discurso é do nº 210 do Père Duchesne, de janeiro de 1793, às vésperas da execução do monarca e no meio da já exacerbada disputa com a Gironda. Podemos retornar alguns meses antes dessa data e vamos ver Hébert se utilizando do mesmo conteúdo. Na preparação para a insurreição do 10 de Agosto, era clara a posição do Père Duchesne. No momento em que o bloco formado pelos sans-culottes e os jacobinos buscava derrubar as estruturas políticas estabelecidas pela Constituinte, as manifestações de Hébert visavam a afirmar a vontade soberana do povo. Seus ataques à Monarquia não deixavam dúvida. Logo após o 10 de Agosto, ei-lo no nº 167 do seu panfleto definindo o papel do povo: “[…] povo soberano, você reentrou em todos os teus direitos, você pode de uma só palavra fazer e desfazer tudo o que você quiser” (1969, p. 1.). Esse número sai na segunda quinzena de agosto de 1792, no momento em que a insurreição contra a Monarquia já estava consolidada e o confronto com os girondinos ainda não tinha adquirido a dimensão de vida ou morte que viria a ter posteriormente. Em decorrência disso, vemos que o “discurso de oposição” à Monarquia que estava presente no texto do Père Duchesne, por um momento, tentava se transformar em um “discurso do poder”, pretendendo que o formato das novas instituições republicanas se submetesse às exigências da agenda democrática radical. Depois, malograda a possibilidade de engendrar essas novas ins-

4 Em seus trabalhos, Lucien Jaume estabeleceu uma divisão no discurso jacobino. Conforme esse autor, a evolução do discurso democrático jacobino possui dois momentos: num primeiro momento, esse discurso evoluiu na oposição sucessiva aos grupos que, nos primeiros anos, dominaram a cena revolucionária; num segundo momento, ajustava-se ao poder, agora sob seu controle. Assim, haveria, por trás do discurso jacobino sobre a democracia, um discurso da oposição e um discurso do poder (JAUME, 1989, cap. II).

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tituições, haja vista o domínio girondino da Convenção, os conteúdos do panfleto de Hébert voltaram a ser constituídos novamente por um claro “discurso de oposição”. Esse “discurso de oposição” do panfleto de Hébert se manifestava de forma mais clara ainda a partir do momento em que o confronto com o governo da Gironda se tornou irremediável. Foi representativo desse momento o número 181. Nesse número, o ataque aos brissotistas 5 apoiou-se na defesa da soberania popular. Diante de uma Convenção na qual prevalecia a influência dos girondinos, Hébert (1969, p. 2) afirmava que seria necessário tempo para que “[…] o povo soberano faça sem ajuda a lei e não a receba de ninguém”, já que “[…] o pobre povo é um velho enfermo que sua gota e reumatismos colocaram na dependência de lacaios insolentes [girondinos] […]” que dizem “bom homem você não é mestre em sua casa quando nós aí estamos” (1969, p. 2.). Nessa disputa cada vez mais acirrada com a Gironda, o Père Duchesne acusava explicitamente os seus adversários de tentarem atingir uma das dimensões da soberania popular, sua capacidade legislativa. Qual o grande objetivo do complô dos brigands couronnés6 e dos seus agentes, os brissotins, rolandins, os feuillants,7 os realistas? O nº 211 do Père Duchesne respondia: “[…] nos impor a lei. A nós, porra, que queremos somente recebê-la do povo soberano! Sim, soberano apesar de todos os esforços que vós fizestes para mergulhá-lo de novo na servidão” [1969, p. 2]. Nesse trecho, Hébert, usando seu poder de retórica, retoma a associação, comum a muitos revolucionários, entre a liberdade como consequência de uma sociedade em que as leis são criadas pelo povo e a servidão como a submissão às leis impostas pela tirania, sendo a tirania uma expressão que, no texto do Père Duchesne, identificava tanto o governo de um só, a monarquia, quanto o governo de poucos, a oligarquia. Após o 31 de Maio – 2 de Junho de 1793, os conteúdos políticos do panfleto de Hébert não descambaram para um “discurso do poder”. Assim sendo, no número 259, Hébert voltava a insistir na capacidade 5 Brissotistas ou girondinos. Ver: Oliveira (2007) e Vovelle (2000). 6 Bandidos coroados. Expressão utilizada recorrentemente no Père Duchesne para designar os monarcas europeus. 7 Rolandins, brissotins nada mais são do que o grupo girondino. Os Feuillants (fueldenses, em português) formaram o clube que se constituiu da cisão da ala majoritária dos jacobinos, liderada por Antoine Barnave, com a minoria representada por Brissot e Robespierre. Os Feuillants defendiam que essa fuga deveria ser, por assim dizer, esquecida. Ver: Halév (1989, p. 359-366). Para os girondinos, consultar: Ozouf (1989, p. 367-377).

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legislativa dos sans-culottes. Esse número saiu às vésperas da morte de Marat,8 antes do confronto com os Enragés (enraivecidos)9 pelos despojos jornalísticos do Amigo do Povo, e no momento da campanha contra o general Custine.10 Dessa forma, ele não estaria “evoluindo” e assumindo uma posição destes últimos que antes não advogava. Nesse número ele traçava um contraste entre o antes e o depois da Revolução. Antes o povo era tratado como “bestas de carga”. Agora, depois da Revolução, ele “deixou de ser estúpido” e, portanto, “[…] ele pode fazer a lei”. Pergunta o Père Duchesne nesse número 259, “quem pode pois impedi-lo de resolver por si mesmo seus negócios?” (1969, p. 2-3). Assim, não é difícil identificar no Père Duchesne, pelo menos durante o ano I, a defesa do tema sans-culotte, o “povo soberano legislador”. Porém, mesmo nesse momento, esse tema se desdobrava em outros componentes do discurso democrático sans-culotte, na capacidade de vigilância do cidadão sobre os mandatários, a revogabilidade deles e a ideia de referendum, isto é, em suas formas práticas. O poder de vigilância do cidadão sobre os mandatários, elemento fundamental da prática democrática do movimento secionário, já que esse instrumento tem a capacidade de monitorar o exercício do poder de legislar e assim superar as limitações do exercício direto do poder em matéria legislativa, foi retomado no discurso de oposição do Père Duchesne à Gironda. Esse discurso repisava os instrumentos essenciais para a existência da vigilância do cidadão: a revogabilidade e a sanção das leis. Esses instrumentos também serão utilizados na fase do panfleto de Hébert que chamamos de transição,11 na qual aparece a preocupação com a sanção da futura Constituição. Respondendo à proposição de Danton e de Couthon12 para que a nova Constituição (a de 1793) seja ratificada pelas assembleias primárias, o Père Duchesne aconselha os “os bravos camaradas” a “[…] exigir dessa

8 13 de julho de 1793. Para uma excelente visão desse personagem, ver Coquard (1996). 9 Grupo formado por Théophile Leclerc, Jacques Roux e Jean Varlet. Estava à esquerda dos grupos revolucionários mais radicais. Ver, entre outros: Dommanget (1993). Além desses integrantes, o grupo teve uma originalíssima ala feminina, composta, entre outras, por Pauline Léon. Ver: Guillon (1993). 10 Adam Philippe Custine foi acusado de traição e executado em 27 de agosto de 1793. Ver: Bertaud (2005, p. 316-317). 11 Essa fase sucede à derrubada dos girondinos em junho de 1793. Nesse momento há uma expectativa em relação à nova Constituição, críticas à nova composição do governo e ao seu famoso requisitório contra a presença dos nobres no comando dos exércitos 12 O “podagre” (paralítico) Georges Auguste Couthon foi membro da Assembleia Legislativa e da Convenção, quando tomou parte do Comitê de Salvação Pública. Nesse momento, aproximou-se de Maximilien Robespierre, tornando-se um seu leal companheiro e perecendo na guilhotina junto com ele no 10 do termidor. Cf. Braconnier (2005, p. 309-311).

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Convenção um modo para exercer vosso direito de soberania pois de que vos servirá tê-lo se vós não podeis dele fazer uso? Exijas dela sobretudo de que maneira ela entende que o povo sancionará seus decretos e como nos poderemos convocar13 os deputados que não andem direito” (1969, p. 7-8). Assim, neste número, o 181, são afirmados dois elementos fundamentais do movimento democrático sans-culotte: a revogabilidade dos eleitos e a sanção das leis. É nesses dispositivos que reside boa parte dos “temas sans-culottes atualizando a idéia de democracia direta”. Esses preceitos constituem um dos elementos-chave da ideia de democracia do movimento secionário, dando a possibilidade de efetivação prática à noção que Guilhaumou afirma ser fundamental à prática do governo direto, qual seja, fazer as leis por si mesmo. Lucien Jaume (1989, p. 329, grifo do autor) reafirma a importância da revogabilidade dos eleitos, salientando que “[…] a soberania do povo supõe a dependência completa do eleito diante dos eleitores (isto é, a transposição da velha idéia do mandato)”, ou seja, a soberania popular concretiza-se pela ideia da “[…] convocação dos deputados infiéis […]” (JAUME, 1989, p. 329). Soboul (1968, p. 113) já fizera a mesma análise:

sem retomar formalmente a teoria do mandato imperativo, tal qual tinha sido afirmada no momento das eleições para os Estados Gerais e da redação dos cadernos de queixas, as seções parisienses enunciaram claramente, quando das eleições para a Convenção, o princípio do controle e da revogabilidade dos eleitos pelo povo soberano: assim eram, em certa medida, atenuados os efeitos do sistema representativo.

É por meio desta ideia, a revogabilidade dos eleitos, que o debate acerca das noções de representação e do mandato imperativo, ponto essencial para o entendimento da democracia direta, aparece no Père Duchesne. Essa ideia é recorrente no discurso do Père Duchesne e não se restringe apenas às duas primeiras fases do panfleto. No momento em que está recém-nascida a República, a revogabilidade é uma arma que protege o povo da volta ao despotismo de todos os matizes, mas, sobretudo, do ressurgimento da Monarquia pelas mãos dos girondinos. Dessa forma, logo após a insurreição do 10 de Agosto, a

13 Convocar foi usado para traduzir rappeler, que tem o sentido de convocar um funcionário, retirando-o de suas funções.

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revogabilidade já é afirmada pelo nº 168 do Père Duchesne, quando este indicava a maneira de impedir que os franceses tivessem de novo um rei: “[…] é preciso berrar sem cessar às orelhas daqueles que nós nomeamos à Convenção nacional: é necessário reservar o direito de revogar e substituir os que não andem pelo bom caminho” (1969, p. 6). No calor da disputa com a Gironda, a revogabilidade era afirmada por meio das potencialidades da insurreição. É curioso que a insurreição do 31 de Maio – 2 de Junho de 1793 funcionou quase como uma modalidade de revogação de mandatos, pois depois dela a Convenção e a grande maioria dos seus deputados continuaram sua vida normal, à exceção, é claro, dos girondinos. E era exatamente isso o que pedia o número 176 do Père Duchesne (1969, p. 8) no caso do fragmento a seguir: “[...] cidadãos desde o momento que temos o direito de convocar nossos representantes, não suportemos mais por muito tempo esse grão ruim que estragará o bom trigo, eu não tenho necessidade de lhes dar o nome, vós o conheceis, eu me contento de passá-los em revista, aja já é tempo, porra”. No nº 214 do seu panfleto, Hébert reafirmava a revogabilidade quando lembrava ao povo que, diante do fato de que os representantes das duas legislaturas anteriores o traíram e se venderam aos seus inimigos, ele deve tomar precauções para que seja impossível “[…] a seus novos mandatários enganá-lo da mesma maneira”, para isso o povo deve “[…] se reservar o direito de convocar aqueles que não andem direito” (1969, p. 2-3). Aqui a linguagem que a revolução tornou clássica é retomada: mandatário e revogabilidade aparecem na mesma frase. Com efeito, se os deputados são revogáveis, eles o são porque são os commis de seus eleitores. Assim, Hébert também se utilizava da noção cara ao movimento secionário no seu início. Essa noção, já utilizada por outros revolucionários, tem um sentido mais preciso na caracterização da função dependente que devem assumir os deputados que commetant (mandatário), já que commis, em francês, significa agente subalterno. É assim que ele definia o papel dos convencionais no número 167: “[…] é preciso que os legisladores de um povo livre coloquem na cabeça que eles apenas são seus subalternos e não mestres, que eles devem obedecer tremendo à sua vontade soberana […]” (1969, p. 8). Commis ou commetant,14 as duas palavras servem para 14 O Père Duchesne só concordava relutantemente com a existência de commis ou mandant, já que estes só têm função à medida que os sans-culottes não sabem “nem A nem B” e, portanto, como diz Hébert no nº 190, eles não

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indicar ao legislador sua submissão à vontade soberana dos seus eleitores e que estes poderão lhe retirar seus poderes no momento em que eles se afastarem dos interesses populares. Ia na mesma direção o questionamento da inviolabilidade dos deputados. Nos números 169 e 170, Hébert voltava à carga. Nesse último número, ele afirmava que não se podia permitir “[…] que nossos deputados se digam invioláveis! Reservemo-nos o direito de lhes chamar e lhes entregar ao carrasco tão logo eles derem um mau passo” (1969, p. 7). Da mesma forma, no número 204, ele conclamava o povo a usar “[…] do direito que você tem de chamar aqueles de teus representantes que te traíram” (HÉBERT, 1969, p. 7). A existência da inviolabilidade do mandato seria contraditória no contexto da democracia direta. Daí a preocupação de Hébert em reafirmar seu posicionamento contra esse princípio. Quanto à questão da sanção das leis, o Père Duchesne era bastante claro: a Convenção deve submeter as leis à sanção popular. No número 181, chamando os deputados, certamente os girondinos, de ditadores, o Père Duchesne (1969, p. 4) conclamava os parisienses a libertarem a “[...] república desses ditatores que somente nos ditarão aquelas leis que nós quisermos aprovar”. No número seguinte, ele acusava os integrantes da Convenção de não se aterem ao juramento de “[…] submeter todos vossos decretos à sanção do povo […]” (1969, p. 5). Voltava à carga sobre o mesmo tema no número seguinte: “[…] o povo soberano sancionará seus decretos; ele enviará às favas aqueles que não lhe convierem, porra” (1969, p. 8). Quanto à Constituição do ano II, o número 225 do Père Duchesne afirmava que devia ser fruto de uma Convenção “purgada e restaurada” no momento em que os “[...] brissotistas, rolandistas e os outros idiotas […] sejam chamados pelos departamentos […]”, ou seja, uma Convenção controlada pelo povo por meio da revogabilidade dos mandatos e, ao mesmo tempo, pela sanção do povo, que “[…] aceitará e rejeitará os artigos” (1969, p. 7). Pelo exposto, no contexto do ano I, o panfleto de Hébert estava longe de estar de acordo com a política da Convenção, até porque esta, nesse momento, era dominada por girondinos, e o “discurso de oposição” de Hébert o levou, às vésperas da insurreição do 31 de Maio de 1793, para a prisão por ordem dessa Convenção. Portanto, estava longe também de podem “[…] por si mesmos tomar contas dos seus negócios […]” (HÉBERT, 1969, p. 4).

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ser um ideólogo com a preocupação de convencer sua clientela a manterse a reboque da Convenção. Para o Père Duchesne, essa Convenção não era o centro gerador do poder. Esse centro era o conjunto da sans-culotterie. O número 181 do Père Duchesne chegava mesmo a ter um tom ameaçador em relação à Convenção. Assim, os cidadãos da província virão a Paris não “[...] para defender esta Convenção, mas para controlá-la […]” (1969, p. 5) junto com o povo dessa cidade. E já no seu fim, no número 333, Hébert continuava a defender a força popular que “[...] está fora dos organismos legais: já faz dois anos que eu não cesso de dizer aos sans-culottes que eles só devem esperar sua salvação deles mesmos; pois é somente para eles que eles fizeram a revolução, e não para se dar novos mestres” (1969, p. 1-2). Nessa localização do poder no seio do povo de Paris, o papel fundamental não poderia ser o da Convenção, mas sim das assembleias primárias das seções. No momento da luta engajada contra a Convenção girondina, o número 177 do Père Duchesne afirmava que era nelas que se apoiava a Revolução: “[...] com que direito essa Convenção mete seu nariz nas assembléias primárias? Não é lá que está o povo? Ele não tem o direito de nelas fazer o que melhor lhe pareça e de escolher aqueles que ele quiser e da maneira que ele quiser, para cuidar de seus assuntos?” (1969, p. 2). No número 237, Hébert (1969, p. 5) chegava a acusar Pétion de querer fechá-las A importância das seções era tal que o Père Duchesne chegou a propor uma solução para resolver o grave problema da perda da jornada de trabalho dos cidadãos mais humildes devido à frequência às seções. No número 282, ele imaginava algo semelhante ao óbulo da democracia ateniense: “[...] para engajar os sans-culottes a estarem presentes a suas seções, e a perseguirem os nobres, os trabalhadores receberão uma gratificação todas as vezes que eles se dirigirem a assembléia de sua seção” (1969, p. 7). Podemos ver, portanto, que, ao menos durante o ano I — quando no momento do “discurso de oposição”, na expressão de Lucien Jaume — senão ao longo de todo o período revolucionário, Hébert manifestava claramente a defesa da ideia do “povo soberano legislador”, ideia esta fundamental para o movimento secionário democrático, situando-se no contexto comum da ideias rousseauístas com a sans-culotterie.

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A Guarda Nacional de Paris durante a Monarquia de Julho: interesses políticos de manutenção da ordem no cotidiano 1 Mathilde Larrère Na Paris da Monarquia de Julho (1830-1848), a manutenção da ordem era assegurada no cotidiano da Capital por várias forças de repressão: a polícia, a guarda municipal e a guarda nacional. Em caso de motim, essas forças eram ainda mobilizadas juntamente com as tropas de linha. Esse sistema parisiense de manutenção da ordem, que propiciou aos soldadoscidadãos da Guarda Nacional uma posição central, gerou consequências no cotidiano dos habitantes, em sua forma material e simbólica de sentir a cidade, que é ao mesmo tempo vivida e sonhada. Essa escolha, que se explica essencialmente por razões políticas, levou a Guarda Nacional ao cerne de interesses de poder por vezes concorrentes, ou de forças políticas tão opostas quanto podiam ser os monarquistas no poder e os republicanos que cobiçavam sua posição. Diferentemente de outras forças repressivas, profissionais e remuneradas com o soldo, a Guarda Nacional era uma milícia formada por cidadãos que lhe prestavam serviço obrigatório. Como consequência da lei de março de 1831, que define sua organização, a guarda abre seus escalões a todos os franceses de 21 a 60 anos que paguem impostos. Concretamente, para um habitante da Capital, pequeno lojista, empregado, vendedor de tecidos ou dono de bar, uma vez, a cada mês e meio ou dois meses, era preciso vestir o uniforme, pegar o fuzil, passar 24 horas na guarita, fazer algumas horas de guarda – por vezes, no frio do 1 Texto traduzido por Ingrid Bueno Peruchi e Diego Fonseca dos Santos

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inverno –, sair uma ou duas vezes para patrulhar durante a noite ou, caso contrário, ocupá-la com partidas de baralho, com discussões viris entre homens do bairro ou com um cochilo sobre miseráveis colchões de palha. A guarda nacional é uma criação do início da Revolução Francesa: ela nasce no dia 13 de julho de 1789 (às vésperas da tomada da Bastilha), em reação à decisão do rei de concentrar as tropas ao redor de Paris, medida sentida como uma ameaça pelos habitantes da Capital que se encontravam, então, em plena ebulição revolucionária. A Guarda é a materialização do direito do povo de se defender. A primeira lei que a organiza, em 1791, promove-a claramente a uma instituição cidadã, que reúne, conforme a terminologia da época, os “cidadãos ativos”, ou seja, os franceses que pagam impostos e se beneficiam do direito de voto. Sob a Convenção Montanhesa, a Guarda abre seus escalões a todos, abertura que ocorre pouco antes do direito de sufrágio. A história da Guarda está ligada, portanto, fortemente ao período revolucionário, do qual ela é uma criação e uma instituição simbólica. Durante o Império, Napoleão, que preferia seus grognands, 2 deixa-a de lado; porém, quando a cidade é ocupada em 1814, seus habitantes, movidos por um reflexo de defesa, engajam-se na milícia para participar da defesa de Paris. A Restauração (1814 – 1830) mantém a instituição, mas nega às classes populares sua integração, reduz o contingente e não a utiliza mais para manter a ordem pública. No máximo, uma dúzia de homens fazem um serviço ostentatório em frente a alguns locais do poder. Mas, em 1827, quando o rei passa as legiões parisienses em revista, gritos contra a política do governo saem das fileiras. Na mesma noite, a Guarda é dissolvida. Em julho de 1830, a revolução estoura na Capital. Espontaneamente, homens se juntam à Guarda nos quartéis, usando o velho uniforme que eles haviam conservado desde a dissolução. Não se trata de uma adesão à revolução, mas de uma necessidade de autodefesa contra as forças do rei contestado e contra as pilhagens tão temidas. 3 Na noite de 29 de julho, o governo provisório decide, por decreto, reorganizar a Guarda. Trata-se de um imperativo de ordem pública, pois é preciso assegurar a ordem na Capital enquanto as outras forças repressivas se encontram comprometidas com o regime derrubado. Essa decisão é, também, política e simbó2 “Reclamões”, soldados da Velha Guarda de Napoleão (N.T.) 3 Cf. Mathilde Larrère. La garde nationale des Trois Glorieuses Sociétés et représentations, n° 8, 2000.

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lica, pois ela anula a dissolução de 1827, marcando a ruptura com o regime desfeito e, ainda, permite reviver a lembrança da grande Revolução, inscrevendo o novo regime na sua continuidade. No dia seguinte à Revolução de Julho, os uniformes tricolores dos soldados-cidadãos desfilam novamente nas cidades do reino. A lei votada em março de 1831 limita novamente o alistamento aos pagadores de impostos, mas concede aos liberais uma de suas principais reivindicaçõe: os soldados-cidadãos recuparam o direito revolucionário de eleger seus oficiais.

A territorialização

A Guarda Nacional parisiense é organizada segundo um modelo militar, em legiões, batalhões ou companhias comandadas por oficiais com patentes militares. As divisões seguem uma lógica territorial: serve-se à companhia, o batalhão e a legião correspondente a seu domicílio. Para cada distrito parisiense (havia 12 na época), uma legião: 12 legiões às quais se devem acrescentar duas legiões que recrutam em todo o espaço parisiense, ou seja, a 13ª legião de cavalaria e a 14ª legião de artilharia, essa última dissolvida em 1832 por razões políticas. As legiões são definidas por bairro em batalhão e, sucessivamente, por quarteirão em companhias, variáveis em função do número de habitantes. Essa escolha territorial por uma organização enraizada no bairro tem várias razões que a justificam, e a primeira é de ordem prática. Os primeiros anos do reinado de Luís Felipe são tempos agitados política e socialmente, durante os quais ocorrem dois motins parisienses, em 1832 e 1834, e, posteriormente, outra tentativa rapidamente controlada em 1839. Em frente a essas dificuldades, não somente são enviadas as forças profissionais (exército e Guarda Municipal) mas também a Guarda Nacional. Os tambores tocam a generala nas ruas dos bairros, os guardas devem responder e se reagrupar, armados e de uniformes, para participar da repressão. A lógica de organização territorial permite um reagrupamento rápido e eficaz. A intenção da Monarquia de Julho é institucionalizar grupos de vizinhos a fim de promover uma mobilização eficaz. Mas a territorialização da Guarda atende também a outras lógicas mais políticas. As autoridades no poder temem que os republicanos consigam tomar o controle das companhias da Guarda, ou até mesmo das legiões, o

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que resultaria em homens armados e treinados, ou seja, num exército às mãos dos rebeldes. Para evitar essa situação, o primeiro dispositivo é a territorialização da Guarda, pois, disseminados nos bairros da Capital, os republicanos não conseguiriam constituir uma massa importante. Existem, como vimos, duas exceções a essa regra da territorialização. Os cavaleiros da 13ª legião são recrutados em toda a Capital e designados para diferentes esquadrões, sem que se leve em conta o seu local de domicílio. Mas, como é preciso possuir um cavalo para poder integrar a divisão, a seleção social induzida parecia, aos olhos das autoridades, ser uma proteção suficiente contra a influência dos republicanos (o que se confirmou, efetivamente). Da mesma maneira, as quatro “baterias”  da 14ª legião, que guardam os canhões-cidadãos, função puramente simbólica após a Revolução de Julho, não impõem condições de recrutamento territorial. A única condição para integrá-la é ter experiência militar no corpo de artilharia. Ainda assim, em 1830, antigos artilheiros de opinião republicana (e eles existiam!) conseguem se reagrupar em duas das quatro baterias e promovem, pela eleição, oficiais republicanos à liderança. Tal situação, inquietante para o governo, torna-se rapidamente o pretexto para a dissolução do corpo em 1832. A companhia da Guarda é, portanto, essencialmente enraizada em seu bairro. Ela reforça as relações sociais entre vizinhos. Uma vez por mês, os vizinhos encontram-se no corpo da Guarda, jogam baralho e trazem algumas lavadeiras, em desrespeito ao regulamento. Todos esses anos de noitadas no corpo da Guarda, às vezes com a lembrança dos momentos perigosos compartilhados durante as rebeliões, criam laços e solidariedades fortes, a ponto de os guardas omitirem ao Estado-Maior eventuais mudanças de domicílio para poderem permanecer em sua antiga companhia.4 Ao longo do reinado, a exigência militar de respeito à territorialidade apaga-se: a companhia torna-se, cada vez mais, um lugar de sociabilidade que tende a perenizar um mesmo grupo de homens. Esse processo de perenização favorece as expressões identitárias: mais do que as identidades de bairro ou de classe social, é realmente a identidade da companhia que emerge progressivamente. As companhias da Guarda tornam-se grupos sociais particulares e relativamente 4 Uma pesquisa do préfet de Seine, em 1843, estima assim que, em algumas companhias, a metade dos contingentes não pertence ao território da companhia. O préfet estima até mesmo que de 10 a 20 homens por companhia não moram mais no mesmo distrito (ARCHIVE DE LA SEINE VD6/50).

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autônomos. Submetidas às regras gerais impostas pela lei, elas refletem o modelo oficial, porém guardam um espaço para sua própria interpretação. A particularidade de uma companhia encontra-se primeiramente (e principalmente) no seu tipo de administração. Cada companhia dota-se de um “conselho familiar” que resolve os assuntos cotidianos, cuida do pequeno orçamento da companhia, recebe as reclamações relativas ao serviço, resolve amigavelmente os eventuais desentendimentos. A lei de 1831 é silenciosa quanto a esses órgãos, que existiam, no entanto, oficialmente desde a Revolução Francesa. As companhias desenvolvem, assim, seus conselhos de família com certa liberdade e fixam sozinhas os regulamentos que delimitam suas competências e sua organização. Logo, cria-se uma enorme variedade de uma companhia para outra. 5 Membros do conselho são eleitos em certas companhias, nomeados pelo capitão numa outra ou, ainda, sorteados numa terceira; em algumas companhias, os oficiais são majoritários, em outras não. A renovação segue ritmos variáveis, assim como a frequência das reuniões. Ali, o conselho representa-se à paisana, aqui, de uniforme; aqui, vota-se levantando a mão, ali, vota-se por sufrágio secreto; o capitão tem por vezes direito a voto, que conta duplamente, por vezes não. O conselho pode tomar todas as decisões sozinho, como também, em alguns batalhões, reunir todos os membros em caso de tomada de decisões muito importantes. Oferecendo essas possibilidades diversas, as companhias parecem experimentar diferentes teorias políticas e manifestam perfis variados, que vão do funcionamento aristocrático ao mais democrático. Esses perfis, que podem coexistir num mesmo bairro, sem, no entanto, indicar diferença de recrutamento social, são frequentemente o resultado do toque original dos primeiros oficiais de 1830. Longe de serem partes idênticas de um vasto sistema de manutenção da ordem, as companhias da Guarda expressam uma identidade própria, mistura de espírito de corpo, de espírito de classe e de identidade de bairro, construídas e reforçadas pelos hábitos de funcionamento, ambiente de uma sociabilidade nova em que o posto de guarda se constitui como espaço, a noite de guarda como reunião recorrente e o banquete da companhia como o momento crucial. 5 Os conselhos familiares redigem regulamentos para determinar suas competências. Os textos estão conservados na Bibliothèque Nationale (BN) en Lf 133 – 18.

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O serviço cotidiano de manutenção da ordem As companhias da Guarda Nacional efetuam, junto de outras forças profissionais, um serviço cotidiano de manutenção da ordem na Capital, de dia como de noite. A necessidade de presença de uma força de repressão cotidiana nas ruas da cidade é compartilhada pelas autoridades e pela população. Durante o dia, o principal receio é o agrupamento de pessoas, pressentido como uma tentativa de preparação de motim, enquanto os medos da noite recaem sobre possibilidades de ataque ou de cilada (DELATTRE, 2002). Essas preocupações intensificam-se particularmente durante a Monarquia de Julho, momento em que o sentimento de insegurança aumenta em função dos medos sociais, que associam em igual valor o vagabundo, o delinquente e os rebeldes. A imprensa mantém o receio de uma onipresença criminosa (que alimenta romancesfolhetins, publicados rapidamente, a exemplo dos Mistérios de Paris, de Eugène Sue) e, sob pressão da opinião pública, as autoridades devem assegurar um controle cada vez maior do espaço público. O dispositivo de repressão associa forças cidadãs e profissionais, mas também forças visíveis, de uniforme, e polícia secreta, à paisana. Durante a Monarquia de Julho, a polícia secreta é objeto de numerosas críticas e torna-se suspeita de aproximar-se daqueles que ela persegue. A ênfase é então colocada nas forças visíveis, consideradas dissuasivas.  Durante o dia, caso ocorra agrupamento de pessoas, as autoridades preferem enviar a Guarda Nacional para dispersar a multidão. O uniforme cidadão é mais bem aceito pela população do que os da polícia ou da Guarda Municipal; a Guarda é o vizinho que se escuta mais facilmente. Os diferentes grupos armados não partilham os postos nem as patrulhas. No início do reinado, havia-se tentado estabelecer postos mistos, guarda e tropa de linha, Guarda Nacional e guardas municipais. Mas, depois de alguns meses de união – selada com brinde – das tropas, o espírito de corpo volta a dominar sobre a fraternização. Os profissionais não escondiam mais seu desprezo pelos “soldados de mentira” e os cidadãos, por sua vez, mostravam-se muito sensíveis ao mínimo desafio. Algumas querelas por pouco não degeneraram em duelos, o que pôs fim à experiência. Os postos de guarda, fixos em todo o reino, situam-se na prefeitura

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de distrito e em frente aos principais locais de poder.6 São necessários 700 guardas nacionais a cada dia para a ocupação desses postos, ou seja, aproximadamente 21 000 homens por mês. A título de comparação, sob a Restauração, somente 60 guardas eram necessários por dia. Um cidadão faz em média cinco guardas por ano, os oficiais um pouco mais, até sete ou oito guardas. As guardas começam às oito horas da manhã, depois do toque de chamada do bairro, apesar das queixas dos moradores incomodados durante seu sono. Durante o dia, os homens ficam nos postos, prontos para serem requisitados; à noite, eles saem para patrulhar e percorrrer o bairro, momento em que cruzam com patrulhas de outros corpos e seguem um ritual muito cerimonioso, regrado por prioridades de fala e trocas de nomes codificados. Eles prendem os indivíduos suspeitos e dão o alarme em caso de problemas. Esse serviço cotidiano é mal aceito pela maioria dos guardas. Aos dias perdidos nos negócios, às longas noites de problemas e de frio soma-se o incômodo dos postos mal mantidos e em condições deploráveis. A literatura pitoresca florescente, particularmente durante a Monarquia de Julho,7 legou numerosos vestígios dessa recusa do serviço, por meio da caricatura que se constituiu como principal topoi. Vários parisienses tentam escapar do serviço, com a cumplicidade de zeladores e de vizinhos. E quando, apesar disso tudo, eles são capturados pelo sargento-mor, eles interpretam as regras à sua maneira, chegando a frisar a insubordinação, abstendo-se do posto durante o dia, abandonando a guarita, não saindo para patrulhar quando está chovendo e terminando frequentemente a noite bêbados e inaptos à manutenção da ordem pública. No entanto, é preciso relativizar as informações das fontes que insistem nas desordens: de modo geral, o serviço é corretamente assegurado na Capital. É preciso ter em mente, também, que as forças de manutenção da ordem da monarquia são vítimas de críticas cada vez maiores. Julgadas como barulhentas e incômodas, elas são cada vez mais denunciadas como inúteis: ao ouvir os guardas que patrulham, os delinquentes teriam somente que se esconder momentaneamente para, em seguida, retormar seu delito. A fim de assegurar o serviço cotidiano, não se podia mais contar com 6 Os “grandes postos”, assim nomeados por oposição aos postos de subprefeitura de distrito, situam-se diante das Tuilerias, da Prefeitura, da Câmara dos Pares, da Câmara dos Deputados, da Casa da Moeda e do guichet de l’échelle (situado no Palácio Real do Louvre, N.T.). 7 São exemplos: Les parisiens de 1840, d’officiers à tambours, joies et douleurs de la Garde nationale. Paris: Marchands de Nouveautés, 1840, ou HUARD, Louis. Les physiologies du garde nationale. Paris: Aubert et Cie., 1841.

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o zelo dos cidadãos, que, mesmo que gostassem de estar entre homens bebendo um copo de vinho, não suportavam mais o peso do serviço. Para obter o número de homens necessário, as autoridades esforçaram-se em manter o contingente da guarda parisiense, que chegou a atingir aproximadamente 57 000 homens ao longo de todo o reinado. Isso só era possível com a implantação voluntária de obrigações e de boa gestão. Vastas operações regulares de recenseamento no bairro permitiam a identificação de homens com idade de carregar a arma cidadã, a custo de portas batidas e gozações diversas contra os recenseadores. Seguia-se um vasto trabalho de transcrição a fim de inscrever esses homens nos registros e distribuí-los entre as companhias, de atualização das inscrições e de registro das reclamações diversas. Garantir o serviço implicava também certa disciplina para perseguir os recalcitrantes. Uma casa de detenção da guarda, apelidada de Casa dos Feijões (provavelmente era a comida servida) recebia cotidianamente de 20 a 30 guardas, entre eles, alguns nomes ilustres, como Alexandre Dumas, que escreveu seus “Infortúnios como guarda nacional” (Mes infortunes de garde national) ou, ainda, Alfred de Musset, que imortalizou sua passagem em dois poemas, a exemplo dos “Versos escritos na célula 14 da casa de detenção da Guarda Nacional” (Vers inscrits dans la cellule 14 de la maison d’arrêt de la garde nationale). Porém, é preciso reconhecer que essa manutenção da milícia, de seus contingentes e de seu serviço em Paris, durante a Monarquia de Julho, é algo excepcional. A história da Guarda Nacional é feita de fluxo e de refluxo. A Guarda passa por momentos de entusiasmo cidadão, que levam os homens a se alistarem para defender a Capital de inimigo, como em 1814, ou apoiarem um regime nascente, como em 1815. Mas a história da milícia é frequentemente a de postos abandonados, de contingentes que diminuem devido ao abatimento dos cidadãos, contra o qual os poderes não fazem nada ou, até mesmo, do qual se satisfazem. O governo prefere apoiar-se nas forças profissionais, mais eficazes e mais controláveis, tendência que se pode constatar da Revolução até a Restauração. Em 1830, as companhias florescem em todas as cidades da França, das menores às maiores, no entusiamo da mudança do regime. Por volta de cinco anos mais tarde, a maioria das companhias só existe no papel. As autoridades as dissolviam quando elas pareciam dominadas excessivamente pelas ideias da oposição,8 ou quando elas naturalmente se desagre8 Como em Marselha ou em Estrasburgo, para citar os exemplos mais famosos.

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gavam. Mas em Paris, pelo contrário, tudo é feito para manter a Guarda. Essa vontade não se justificava pela eficácia da Guarda, que era bem inferior à das forças profissionais. Os guardas, de fato, cumprem unicamente as instruções obrigatórias, e são bem poucos aqueles que sabem realmente se servir dos fuzis que lhes são atribuídos. Por vezes, bastante dedicados num motim, eles expõem-se inutilmente, obrigando os soldados profissionais a perderem tempo e energia em protegê-los, ao invés de restabelecer a ordem. Em várias ocasiões, o comandante militar da praça de Paris propõe ao poder planos de repressão dos motins que evitariam o apelo às guardas nacionais.9 Mas o poder recusa e mantém a presença dos cidadãos-soldados no dispositivo de repressão. Não somente a Guarda Nacional é menos eficaz, como ela não é controlável e poderia se revelar perigosa para o poder. Como ter certeza, de fato, que os guardas atenderão à chamada para esmagar a insurreição? Ou, até mesmo, como garantir que uma parte da Guarda não aderirá ao motim contra o poder? A história, antes da Monarquia de Julho, propiciou alguns exemplos no assunto, como a insurreição lionesa de 1831, que mostrou que a guarda poderia de fato passar para o outro lado da barricada. Ainda que limitados e severamente castigados, os casos de deserção provocavam a inquietação dos poderes públicos. E, no entanto, em Paris, mantém-se a Guarda, e seu papel é conservado nas ações cotidianas assim como nas extraordinárias. Somente a análise dos interesses políticos dessa escolha permite justificar esse ato.

Interesses políticos

Passemos brevemente pelas motivações econômicas, que não são primordiais, ainda que reais. A carga financeira que representa a manutenção da Guarda pesa relativamente pouco no orçamento. O Estado financia os armamentos e os gastos do Estado-Maior, enquanto as cidades custeiam os gastos de administração e dos locais. Porém, como os guardas fazem o serviço sem soldo, equipam-se a seus custos e chegam até a pagar alguns gastos da companhia, eles acabam assumindo os gastos principais. Se fosse preciso pagar o soldo de guardas profissionais em número suficiente para garantir o mesmo serviço, as despesas do

9 Plan d’Arriule, 1832, A. N. 221 A. P. / 4, ou Plan Pajol, 1840, S.H.A.T. E5/84, “correspondance militaire”.

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Estado seriam ampliadas. A Guarda Nacional aparece então como uma solução para um regime preocupado com a ordem pública, mas também com economias orçamentárias. Se o poder precisa da guarda, é, antes de tudo, por razões políticas e simbólicas. Em 1830, a Guarda Nacional é imediatamente instrumentalizada nas representações do poder nascente. Os discursos oficiais construíam uma imagem idealizada do combatente de Julho, quando, na verdade, o renascimento das primeiras companhias tinha sido, como evocamos anteriormente, mais motivado por reflexos de autodefesa do que desejo de integrar a revolução. Pouco importa, pois todas as narrativas, todas as gravuras apontam os cidadãos-soldados nas barricadas como defensores da Carta-patente e da Liberdade (LARRÈRE, 2006). O discurso que apresenta o guarda-cidadão como um dos principais combatentes dos Três Gloriosos prepara aquele que o mostra como apoio da nova monarquia. O poder afirma, por esse meio, a filiação do regime aos eventos revolucionários, os de 1830, mas também os de 1789, em particular, pela liderança daquele mesmo comandante da Revolução: o general Lafayette. Luís Felipe esforça-se em pôr em cena os laços que o unem à milícia. Uma legião organiza um baile: o rei e sua família apressam-se em comparecer. Os oficiais são, em troca, convidados às festividades do palácio real. O afeto deve ser apresentado como recíproco, e os jornais relatam as inaugurações, festivas e regadas a muita bebida, dos bustos do monarca nos corpos da Guarda. O clímax da encenação é a grande revista da guarda parisiense no dia 29 de agosto de 1830. Na ocasião, 50  000 homens vestidos de azul, branco e vermelho, sob o comando do “Héroi dos Dois Mundos”, no Champ de Mars, recebem do rei as bandeiras dos batalhões: a lembrança da festa da federação está em todas as mentes. Resta ao discurso oficial divulgar a ideia do rei legitimado pela aclamação das guardas, heróis de Julho, representantes do povo. O rei teria dito, na volta da revista, “Isso tem mais valor para mim que a Sagração de Reims!”. Mas a Guarda é também necessária para a repressão de motins. No dia 5 de junho de 1832, o enterro do general Lamarque, um dos melhores oradores da oposição na Câmara, degenera em motim orquestrado pelos meios republicanos (BOUCHET, 2000). Os bairros populares do centro de Paris cobrem-se de barricadas. As forças de repressão são imediatamente mobilizadas e, ainda que o essencial da repressão seja confiado às tropas profissionais, divisões da guarda nacional também participam.

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No dia seguinte, a situação está controlada e o clima é de celebração dos vencedores. A Guarda se beneficia de um tratamento favorável: socorros generosos às vítimas (o balanço definitivo é de 27 mortos e de uma centena de feridos), funerais grandiosos e grande revista, no domingo seguinte, para honrar os mártires e reconfortar as viúvas e os órfãos. A dificuldade para o regime é, de fato, conseguir manter a memória de suas origens (por não ter realizado suas promessas) e justificar, ao mesmo tempo, a repressão da insurreição. Além do mais, os oponentes ao regime veem na insurreição de junho de 1832 o verdadeiro prolongamento de Julho. Insistindo na participação da guarda e reivindicando a continuidade entre o combatente de 1830 e o defensor da ordem de 1832, o poder tenta igualar a revolução originária à legitimidade da repressão dos outros momentos. O poder apresenta então os guardas não como soldados obedientes, que fazem seu dever, mas como cidadãos que lutam até a morte pelo regime de sua escolha. A partir do momento em que a Monarquia nascente tinha se aliado à Guarda Nacional e tinha lhe proporcionado um papel central na representação de sua legitimidade e na encenação de seus fundamentos, todo distanciamento correria o risco de parecer um sinal de desconfiança em relação ao povo, um esquecimento das esperanças de Julho ou, pior ainda, uma traição. Assim, a cada ano, o aniversário dos Três Gloriosos renova, por uma grande revista da guarda, a aliança original do trono e da milícia. A presença dos cidadãos-soldados é também mantida, a cada dia e noite, nas ruas de Paris. Os planos sucessivos dos dispositivos de luta contra os motins também delegam à Guarda Nacional um papel importante na repressão. Finalmente, o poder conserva uma instituição que irá se revelar, de fato, senão ameaçadora, ao menos incômoda a ele. Essa aliança do trono com a Guarda tem também seu efeito perverso: a posição central dada à milícia nos discursos oficiais e nas festividades do poder a coloca como alvo natural da oposição. Para os republicanos, rapidamente decepcionados com o regime de Luís Felipe, a primeira reação foi começar com uma vasta campanha de caricatura para denegrir os “soldados de mentira”, representando-os como cachorros obedientes ao poder ou denunciando sua violência contra o povo. Poderíamos esperar que a participação dos guardas no motim de junho de 1832 e a encenação da aliança renovada com o poder decepcionasse definitiva-

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mente a oposição. Não foi o caso. O ano de 1832 reconcilia, ao contrário, os laços entre a oposição e a Guarda. “Não brigamos bestamente com uma grande e bela instituição”, explica, estrategicamente, o republicano Armand Carrel, no dia 16 de junho de 1832.10 E completa: “Não somente nós nunca vimos na Guarda Nacional um obstáculo ao desenvolvimento de nossas idéias, como ainda acreditamos que é por ela, persuadindo-a, que elas irão triunfar”. Essa reconsideração da Guarda, que se esboça primeiramente em meio aos moderados do National, é a consequência da reviravolta estratégica dos republicanos após junho de 1832. Em função da diminuição da esperança de vitória pela rua, provocada pela repressão, uma maioria de republicanos aposta, doravante, numa reconquista da opinião, particularmente a das classes médias que compõem a milícia. A ocasião propícia apresenta-se nitidamente durante a campanha de 1839-1840 para a reforma eleitoral. Protestando contra o sufrágio censitário,11 os republicanos e os liberais de esquerda não brigam, no entanto, pelo sufrágio universal. O seu lema é: “Todo guarda nacional deve ser eleitor”. De fato, já que o regime admite a capacidade dos guardas de defendê-lo pelas armas e de eleger seus oficiais, como é possível que ele lhes recuse a capacidade de eleger os deputados? As legiões parisienses engajam-se então massivamente no movimento. Uma campanha de petição é organizada no interior da milícia; guardas participam de banquetes reformistas; uma manifestação em janeiro de 1840 reúne até mesmo 300 guardas e oficiais republicanos de uniforme, o que era proibido. Se o movimento se desagrega a partir do verão de 1840, ele tem, no entanto, consequências importantes na história da milícia. Apesar de não terem conseguido o direito de voto, os guardas têm a impressão de ter conquistado o direito de se expressar. Mais do que a encenação oficial havia permitido, a campanha pela reforma torna-os cidadãos. Assim, a revista de junho de 1840, a cerimônia de transferência dos restos mortais dos heróis de Julho sob a coluna da Bastilha em julho do mesmo ano e a volta das cinzas de Napoleão no mês de dezembro seguinte são acompanhadas de muitos gritos de protesto dos guardas. Entretanto, melhor que dissolver as legiões parisienses – o que teria lembrando a falta de habilidade de Carlos X – o regime prefere pôr fim às encenações oficiais 10 Le National, 16 de julho de 1832. 11 É preciso pagar, sob a Monarquia de Julho, 200 francos de censo para ter direito de voto nas eleições legislativas.

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em companhia da Guarda, conservando-a ainda assim na manutenção da ordem cotidiana. Privados dessas solenidades que os aproximavam do trono, os guardas, assim como a maioria da burguesia, distanciamse do regime, que se torna cada vez mais conservador. Os republicanos aproveitam então as eleições dos oficiais para se apoderar do comando de algumas companhias.

As eleições da Guarda

As eleições da Guarda (LARRÈRE, 2004) são um evento interessante dentro das problemáticas do poder e do cotidiano. A partir da lei de 1831, os guardas nacionais recuperam o direito, que já lhes cabia durante a Revolução Francesa,12 de eleger seus oficiais. Efetivamente, essas eleições são as mais democráticas do reinado. As restrições censitárias do sufrágio, ocorridas durante a Monarquia de Julho, continuam importantes apesar da diminuição do censo em 1830. É certo que a lei municipal democratizou a eleição do conselho municipal, porém as regras que permitiram às classes populares nas cidades do reino o acesso ao sufrágio não se aplicavam a Paris: o colégio eleitoral da cidade é reduzido por uma lei especial, ainda em virtude da angústia em face às classes populares urbanas. Portanto, 15  000 parisienses elegem seus deputados, 17  000 escolhem seus conselheiros municipais, mas, a cada três anos, 57  000 elegem os seus oficiais-cidadãos. As eleições parisienses mais democráticas são, de fato, as eleições da guarda. O poder tentou, no entanto, “despolitizá-los”. Quando se verifica a imprensa oficial e governamental relativa às eleições gerais de 1831, 1834 ou 1837, nota-se um desinteresse flagrante pelo pleito. Os jornais congratulam somente a renovação do corpo, não propõem nenhuma interpretação política dos resultados, os quais constituíam, no entanto, um campo fértil, já que os raros candidatos a se apresentar claramente como de oposição eram rejeitados. Num momento em que a mínima expressão de comemoração emitida pela guarda durante uma pequena revista parcial é imediatamente interpretada como um sinal de apoio

12 A Monarquia de Julho limita, no entanto, o direito de voto à eleição direta dos oficiais de companhia. Os oficiais são eleitos pelo sufrágio indireto e os chefes de legião nomeados pelo rei, porém com base numa lista constituída após eleição por sufrágio indireto.

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incontestável dos cidadãos pelo rei de sua escolha, o silêncio sobre as eleições traduz o medo que o poder tem de politizar a guarda. Os jornais, assim como os ministros, comemoram a restrição dessas eleições “a casos de vizinhança”, enquanto, nos primeiros anos do reinado elas representavam a consagração dos notáveis locais. São eleitos os tabeleães, os grandes comerciantes do bairro e os homens já importantes, cujas ombreiras representam somente uma parte de seu reconhecimento, pois são ainda eles que mantêm os centros de benevolência, organizam no bairro microempréstimos, ocupam cargos em outras instituições do distrito… Mas as coisas evoluem aos poucos durante o reinado. Primeiramente, porque as classes superiores tendem a fugir da milícia, que julgam cada vez mais vulgar, com postos sujos e noites de guarda tediosas. Os mais abastados conseguem estabelecer seu domicílio oficial no campo e escapam do recenseamento de Paris ou, então, inscrevem-se na cavalaria para evitar os simples mortais. Há, portanto, menos notáveis aptos a se tornar capitães, o que cede lugar aos candidatos ao posto, pois, afinal, a ombreira atrai. A patente confere certo reconhecimento no bairro, os homens “[...]  gostam de assinar Guillaume ou François, capitão da Guarda, no estado civil no dia de seu casamento”13. Tantas razões se misturam para explicar o prestígio do capitão: para gerações educadas com as histórias heroicas das glórias napoleônicas, contam o prestígio do uniforme, da condecoração, do aparato militar ou, ainda, o estatuto de eleito, diferenciado pelos votos de seus companheiros. Obter uma patente na milícia, mais do que comandar homens ou assumir responsabilidades de comando, permite ter acesso a um reconhecimento social. Além disso, não é supreendente que as eleições da Guarda se tornem de interesse dos burgueses de Paris e participem de suas estratégias sociais de ascensão social. Vários se lançam na batalha eleitoral e obtêm êxito: lojistas, fiscais, artesãos tornam-se tenentes ou capitães da Guarda, renovando assim o perfil sociológico do corpo. De fato, os eleitores não querem mais sistematicamente os notáveis do bairro na liderança. Constata-se, na segunda metade do reinado, o hábito dos eleitores das classes inferiores (termo da época) de afastar, pelo voto, as classes elevadas.14 Os eleitores, para o conselho municipal 13 Nouveaux tableaux de Paris au XIXe sc, Cosson, 1834, tome II, «Le boutiquier». 14 Christine Guionnet constata o mesmo fenômeno em seu estudo das eleições municipais na região de Paris  : L’apprentissage de la politique moderne: les élections municipales sous la monarchie de Juillet. Paris: L’Harmattan, 1997.

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ou para a companhia da guarda, querem eleger pessoas que lhes sejam semelhantes. “Uma companhia composta quase exclusivamente de comerciantes precisa ser representada e comandada por comerciantes” 15 , afirma um planfleto distribuído por candidatos comerciantes da 3ª companhia do 1° batalhão da IIa legião em 1843 – e, de fato, o arquiteto que comandava o corpo desde 1834 será substituído por um lojista vendedor de fitas. Vê-se aqui a expressão de uma lógica identitária, própria à classe média, que caracteriza a maioria das companhias. A eleição vira uma competição. Para ter um renome e se salientar em relação aos outros, os candidatos organizam reuniões preparatórias, distribuem panfletos no corpo da guarda, comunicando sua profissão de fé nas “cartas aos eleitores”.16 Essas práticas, quase inexistentes em 1831 e 1834, são observadas em 1837 e atestadas como frequentes nos pleitos seguintes, de 1840, 1843 e 1846. Entretanto, esse desenvolvimento de uma verdadeira campanha eleitoral, com suas práticas específicas, oferece as condições ideais ao surgimento de lutas partidárias, pois, se todos os candidatos se igualam ao prometer manter os contingentes da companhia, zelar por uma justa repartição do serviço, aplicar-se pela dignidade do corpo e, sobretudo, festejar a sua eleição, um dos principais meios que os distingue torna-se, em breve, seu posicionamento em frente a questões políticas. Nesse sentido, 1840 constitui uma ruptura: é a partir dessa eleição que as profissões de fé políticas se tornam numerosas. Em 1840, os candidatos se pronunciam sobre a reforma eleitoral, sobre a construção de fortes autônomos. Em 1843, surge o interesse pela política externa “anglomaníaca” de Guizot e, em 1846, os candidatos se pronunciam sobre o caso Pritchard e sobre as insurreições polonesas. Essa politização é, em parte, fruto de uma estratégia de investimento dos republicanos que esperam, a partir de 1840, aproveitar do duplo contexto que lhes é favorável, contexto social primeiramente, com essa caça à patente, e contexto político em seguida, porque a campanha para a reforma eleitoral mobiliza plenamente as legiões parisienses e prepara a separação da Guarda do regime. Antes, os republicanos se preocupavam mais em evitar as solenidades oficiais para as quais a guarda era convidada. Assim como o regime, eles pouco se interessavam pelas consultas eleitorais. A partir de 1840, seu interesse pode ser medido em bra15 B. N. “Pièces relatives à l’élection”, Lf 133 – 19. 16 Numerosas cartas aos eleitores foram conservadas na B.N. “Pièces relatives à l’élection”, Lf 133 – 19.

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ças pela campanha de imprensa que se prepara. Os jornais de oposição multiplicam, desde o início do mês de fevereiro, os artigos sobre as eleições do mês de março. Por meio da escolha de seus oficiais, a oposição republicana incita os guardas a se pronunciarem sobre os interesses de política geral: as eleições devem servir de “advertência” ao poder, termo então repetido à exaustão pela imprensa republicana: É um grande ato político que nós vamos realizar. Mesmo que essas eleições não sejam tão barulhentas quanto as eleições para deputado, elas não deixam de ser igualmente importantes : se os deputados são encarregados de fazer as leis, os oficiais da guarda têm por missão garantir a execução dessas leis, e, até mesmo, interpretá-las durante as crises políticas (LE NATIONAL, 12-3-1840).

Evidentemente, os republicanos pretendem se beneficiar dessa politização das eleições da guarda para exercer controle sobre algumas companhias. Eles conseguirão inegavelmente transformar essas eleições nos momentos mais marcantes da vida política da segunda metade do reinado. Por outro lado, eles constituirão somente um pequeno núcleo de companhias comandadas por republicanos (umas 20 num total de 280 companhias da guarda parisiense). Porém, em fevereiro de 1848, a milícia parisiense recusa-se a dar seu sangue pelo rei. Os guardas deixam acontecer uma revolução na qual eles não tomam partido. A deserção dos burgueses é uma das causas da vitória da Revolução: não tanto porque ela privou a Monarquia de defensores, mas, sobretudo, porque, ao não apoiar o regime, ela legitimou sua queda. A República saberá tirar partido do poder que legitimizava os soldadoscidadãos de Paris. “Somente à guarda cabe distinguir uma revolução de um motim”, proclama, no dia 24 de fevereiro, o Comitê Democrático do Sena. De certa forma, os defensores medianamente eficazes mas cotidianamente presentes da Paris orleanista tinham o poder na ponta no fuzil. Referências BOUCHET, T. Le roi et les barricades: une histoire des 5 et 6 juin 1832. Paris: Seli Arslan, 2000.

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DELATTRE, S. Les douzes heures noires: la nuit à Paris au XIXe siècle. Paris: Albin Michel, 2002.

GUIONNET, C. L’apprentissage de la politique moderne: les élections municipales sous la monarchie de Juillet. Paris: L’Harmattan, 1997. HUARD, L. Les physiologies du Garde Nationale. Paris: Aubert et Cie., 1841.

LARRÈRE, M. La garde nationale des Trois Glorieuses: sociétés et représentations, le peuple dans tous ses états, 2000. LARRÈRE, M. Les élections des officiers de la Garde Nationale: la politisation des classes moyennes en question: la Garde Nationale entre nation et peuple en armes: mythes et realiétes, 1789 – 1871. Rennes: Presses Universitaire de Rennes, 2004.

LARRÈRE, M. Un combattant de papier? La Garde Nationale dans les récits immédiats des révolutions et des émeutes du règne orléaniste. In: BOURDIN, Philippe. La révolution, 1789 – 1871, ecriture d’un histoire immediate. ClermontFerrand: Presse Universitaire Blaise Pascal, 2006. LES PARISIENS de 1840, d’officiers a tambours, joies et douleurs de la Garde Nationale. Paris: Marchands de Nouveautés, 1840.

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As cidades e a experiência eleitoral de magistrados (Vitória/ES, 1822-1841) Adriana Pereira Campos Neste texto, parte-se da premissa enunciada por Oliveira Viana (1978, v. 1, p. 221) e Raymundo Faoro (1984, p. 296) segundo a qual as magistraturas leigas, criadas na década de 1820, constituíram-se em veículos de transformação da política municipalista, transmutando as antigas práticas aristocráticas de governo em formas eleitorais de escolha das autoridades. A temática possui grande relação com a construção da cidadania no Brasil. Cabe, portanto, esclarecer que a magistratura leiga instituída no Brasil Império consistia basicamente na eleição de juízes de Paz e jurados que envolvia todos os cidadãos de dada paróquia. Essa magistratura, contudo, tornou-se alvo dos mais calorosos debates políticos ao longo do século XIX. Discutiam-se as qualidades da sociedade brasileira para a adoção do tal modelo de autogoverno, sobretudo no campo do Judiciário. Essa mudança significou a ampliação da participação política nas cidades brasileiras, pois a reduzida exigência censitária incluía grande número de pessoas como votantes. Tais pessoas encontravam-se habilitadas a atuar ativamente na gestão dos negócios da Justiça, por meio da eleição de magistrados locais e de jurados. No entanto, instalou-se, ao longo do Império, no Parlamento e nos jornais, acirrado debate acerca da inaptidão da sociedade brasileira para protagonizar a administração dos negócios do governo. Atribuía-se à magistratura eleita desídia, autoritarismo e inoperância na condução da política judiciária. A Constituição de 1824 definiu, em seu art. 151, o Poder Judicial como independente e composto de juízes e jurados. Consagrava-se, assim, a

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organização do Estado pela divisão de poderes. Para fins de análise, não trataremos da especificidade que tal divisão adquiriu no Brasil com o Poder Moderador, mas que tem importantes repercussões para a compreensão do problema que se coloca neste texto. O art. 152 completava o anterior com a seguinte sentença: “Os jurados pronunciam sobre o fato, e os juízes aplicam a lei”. Mais à frente, no art. 162, instituía-se o Juizado de Paz, formado por magistrados eleitos pelo mesmo tempo e maneira por que se elegiam vereadores das Câmaras. A constituição definiu claramente que os juízes de paz se responsabilizariam pela “reconciliação das partes”, atividade sem a qual “não se começará Processo algum”. Elegia-se como regra processual primordial a conciliação, como exortava o próprio imperador:

[...] antes de começar qualquer processo, se tentem os meios de reconciliação: Atendendo as repetidas queixas, que muitas pessoas pobres e miseráveis das diversas Províncias diariamente fazem subir à Minha Augusta Presença, sobre a impossibilidade de intentarem os meios ordinários dos processos, não só por incômodos, gravosos e tardios, mas até pelas grandes distancias em que muitos residem das Justiças competentes e Desejando que todos os habitantes deste Império gozem já, quanto possível for, dos benefícios da Constituição,

[...] tendo ouvido o Meu Conselho de Estado: Hei por bem ordenar conforme a letra do artigo 161, do título 6º, capítulo único dela: Que nenhum processo possa desde já ter principio, sem que primeiro se tenha intentado os meios de reconciliação como é também recomendado pela Ordenação do Reino, Livro 3º, titulo 20, Parágrafo 1º, devendo esta providencia ser geral e indefectivamente observada por todos os juízes e Autoridades a quem competir, enquanto não houverem os Juízes de Paz, decretados pelo artigo 162 da mesma Constituição (DECRETO de 17 de novembro de 1824).

Providenciou-se, portanto, para que a conciliação ocorresse mesmo antes que se formalizasse um regime de funcionamento dos Juizados de Paz, que, de fato, somente ocorreu em 15 de outubro de 1827. A lei, em seu primeiro artigo, estabeleceu o Juizado de Paz com um magistrado e um

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suplente em todas as freguesias e capelas curadas do Império Brasileiro. Prescreveu, no terceiro artigo, que somente os cidadãos eleitores podiam concorrer ao posto de Juiz de Paz, limitando a ocupação do cargo àqueles que possuíssem uma renda mínima anual de duzentos mil réis. A Constituição brasileira previu as eleições indiretas, realizadas em dois turnos. No primeiro, todos os cidadãos escolhiam os eleitores, que podiam ser somente cidadãos com o dobro de renda dos votantes de primeiro grau (200 mil réis). Miriam Dolhnikoff (2008, p. 15), em análise a respeito do governo representativo no Brasil do Oitocentos, afirma que os votantes de primeiro grau exerciam “[...] apenas o papel de legitimação do processo eleitoral, [mas não nega que], mesmo com função apenas de legitimação, o voto de primeiro grau era uma forma de incluir setores mais amplos da população no jogo político”. Direcionando sua análise para as características de representação política no Parlamento, Miriam não explora o modo pelo qual os votantes podiam ultrapassar as barreiras impostas pelas regras eleitorais e se tornar ativos politicamente. Nas eleições de vereadores e juízes de paz, os cidadãos realizavam sua escolha diretamente. Os vereadores e os juízes de paz deveriam possuir a qualidade de eleitores. Neste capítulo, sugiro discutir a prática eleitoral municipal como experiência que introduziu certa noção de cidadania e do voto como um direito de todos os cidadãos. É preciso, igualmente, acentuar que se trata de uma investigação em andamento e algumas questões não foram aprofundadas. Há duas que, especialmente, gostaria de frisar. A primeira é a comparação entre o processo de eleição do juiz de paz e o processo de eleição do juiz ordinário na época colonial, quando se seguiam os preceitos das ordenações que, em minha opinião, confrontam as práticas de cidadania do tipo do Antigo Regime com a cidadania moderna. A segunda diz respeito à comparação com o processo de criação do Juizado de Paz em Portugal, que ocorreu na conjuntura de assunção de Pedro IV ao poder, que nos daria oportunidade de pensar que a instituição e a organização das magistraturas eleitas conformavam certo projeto liberal gestado no Primeiro Reinado com características já muito amplas. Essas comparações destinam-se a considerar, na reflexão do tema, em primeiro lugar, as continuidades das práticas de eleição de magistrados em Câmaras Municipais no Brasil e, depois, a vinculação da magistratura ao liberalismo que se implantava nessa época. Essas, no entanto, são questões ainda em andamento e que aguardam maiores pesquisas.

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Importa, por enquanto, salientar que, na Província do Espírito Santo, a boa recepção às novas instituições pode ser comprovada por meio da informação fornecida por Ignácio Accioli, antigo juiz de fora, que assumiria a função de presidente de Província por ocasião da Independência. Segundo ele, em 1824, não se realizou a imediata eleição de vereadores e juízes de paz, na forma do Projeto de Lei de outubro de 1823, dada a “[...] denúncia e declaração que ali houve, que o mesmo Colégio Eleitoral resolvera suspender seus trabalhos, até decisão do mesmo Augusto Senhor Autor que achando-se de boa fé [...] restava a dúvida, se por isso deveria, ou não, retratar nulas as Eleições”, conforme ofício recebido da Câmara de Vitória (30-8-1824, AV, Caixa 1). Em 1829, o presidente foi avisado, pelo Governo Imperial, sobre as mudanças nas funções do juiz de paz. Em razão dessa instrução, foram convocadas, nos termos reproduzidos a seguir, as Câmaras das vilas e da cidade de Vitória a tomarem as “devidas providências”, como explicita um trecho do ofício recebido pelo presidente da Província do Espírito Santo, Série Acciole, livro 72: Ilmo Ex mo Sr

Acusamos a recepção do ofício que recebemos de V. Excia datado de 30 de Novembro do Corrente ano acompanhado um Aviso de Sua Majestade Imperial datado de 20 de Setembro do Corrente sobre os artigos do Juízo de Paz, o qual demos as devidas providências a respeito. Deus Guarde V. Excia muitos anos. Vila de São João da Barra. Em Sessão Extraordinária de 21 de Dezembro de 1829. Ilmo Ex mo Sr Presidente da Província Visconde da Praia Grande João José e Brito [e outros].

Em Vitória, a eleição transcorreu antes mesmo da admoestação de Sua Majestade, como se pode verificar pela data do ofício da Mesa Paroquial da Cidade de Vitória, por meio do qual se comunicava a escolha do juiz de paz e seu suplente para a sede da Província:

A mesa eleitoral desta Paróquia tem a honra participar à Câmara desta cidade, que na apuração dos votos a que procedeu para Juiz de Paz

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desta dita paróquia na forma de Lei obteve a maioria de votos para Juiz de Paz Luiz da Silva Alves da Azambuja Susano, e para suplente, Manoel de Moraes Coutinho. [...]. Vitória, 1º. de fevereiro de 1829 (OFICIO RECEBIDO, AMV, Caixa 2).

Luiz da Silva Alves da Azambuja Susano foi um sujeito de atuação destacada na política capixaba, pois participou ativamente do processo de Independência. Na qualidade de secretário do Governo Provisório do Espírito Santo, Luiz da Silva Alves de Azambuja Suzano propôs que D. Pedro fosse aclamado imperador, como aconteceu na Corte do Rio de Janeiro. Diante disso, a Câmara foi para a Matriz para, “[...] junto com as demais corporações, fazer a aclamação” (apud GOULART, 2008, p. 61). Azambuja Susano ocupou não somente o posto de juiz de paz, como também o de juiz de órfãos, além de escriturário da Junta da Fazenda. A função, no entanto, mais importante foi a de deputado provincial, participando, inclusive, da primeira mesa eleita na instalação da Assembleia Provincial do Espírito Santo. Nem todos os juízes de paz gozavam, porém, de prestígio e admiração como Susano. Verificaram-se, em diversos pontos da Província, discordâncias no tocante à autonomia dos juízes locais em relação às autoridades policiais. Em Benevente, importante vila do sul, um delegado, embravecido com a suposta falta de providências do juiz de paz local no combate a um grupo de assaltantes, exigiu do vice-presidente da Província em exercício, Senhor Francisco Monjardim, providências a respeito:

Diz Manoel da Costa Pinto, residente na Vila de Benevente, na qualidade de Delegado [...] comande inspeção do Governo ou do Presidente, tem o Juiz de Paz abusado da Lei [...]. Portanto, o Suplicante recorre a V. Excia para que a vista do exposto mande por em ordem a carreira deste [depréstimo?] antes que o Suplicante deixe sua residência (CORRESPONDÊNCIAS RECEBIDAS, Série Accioli, Caixa 74).

Oponentes mais importantes, no entanto, dariam início às críticas aos magistrados eleitos. Analisando os Anais do Senado, percebe-se que, desde maio do mesmo ano, já se discutia a respeito do juiz de paz, questionando-se sobre o número de juízes, suas atribuições e quem os designaria, já que não seriam mais nomeados pelo imperador e sim eleitos nas

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Câmaras municipais. Em uma estrutura demasiadamente concentrada, os liberais ansiavam por reformas capazes de reduzir o poder do Imperador, desconfiados do interesse de Pedro na sucessão do trono português e acreditando na sua intenção de reunir as duas Coroas. As suspeitas tornaram-se mais graves com a morte de D. João em Portugal, em 1826. Em 1830, com a Lei de 20 de setembro, intitulada Sobre o abuso da liberdade de imprensa, lançaram-se bases mais concretas, desta vez, para a organização de outra forma de eleição de magistrados. Tratava-se do Júri. Em seu título III, a lei definia que, em cada vila e cidade do País, haveria um Conselho de Jurados, cuja eleição ocorreria sob o comando dos vereadores e eleitores. Excluíam-se, é verdade, os votantes desse processo. Nesse sentido, um elemento fulcral de nossa pesquisa são a identificação e diferenciação de votantes e eleitores na qualificação da experiência eleitoral em relação aos magistrados eleitos. O Código de Processo Criminal delegou ainda maiores responsabilidades às magistraturas eleitas, em detrimento dos juízes de direito nomeados. Resolveu-se, no art. 5° do Código de Processo, instituir em cada Termo um Conselho de Jurado. De acordo com o Código de Processo, a instituição do Júri passou a conhecer todos os crimes, cumprindo, finalmente, o que a Constituição já havia prometido desde 1824. Manteve-se o preceito dos dois Conselhos de Jurados, o Júri de Acusação, composto por 23 membros, e o Júri de Sentença, formado por 12 pessoas. A descentralização judiciária havia se concretizado e as críticas começaram a ser frequentes. No entanto, houve quem defendesse a instituição do Júri na esperança de, apesar das provas concretas de absolvições, se perceber a necessidade do órgão para a independência da estrutura judicial brasileira. A desídia do jurado foi muito mais divulgada, em especial, pelos relatórios dos presidentes de províncias que, na segunda metade do século XIX, frequentemente, lamentavam a facilidade com que o Júri absolvia os mais terríveis criminosos. Ventilava-se que somente os membros mais insignificantes da sociedade corriam o risco de ser condenados pelos jurados. Além disso, a facilidade em se alcançar a liberdade por meio do pagamento de fiança aumentava o número de fugas para o interior do País, onde a recaptura se transformava em uma missão muitas vezes não cumprida. Acusando o Tribunal do Júri de lentidão e subserviência ao mandonismo local, os opositores reuniam forças para reformar a instituição.

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As críticas às inovações promovidas pelo Código de Processo apresentaram-se muito cedo nos relatórios dos ministros de Justiça do Império. Em 1833, Honório Hermeto Leão, na posição de secretário de Estado dos Negócios da Justiça, criticou a compilação de leis estrangeiras sem levar em conta a experiência judiciária existente. Desta vez a exortação consistia em bradar:

Sim, Senhores, Vós tendes destruído o poder absoluto: dele já não restam vestígios; resta-vos agora, para consumardes a vossa obra reconstruir o Poder Constitucional, armando-o de Lei e Instituições, que lhe dêem força capaz de defender a liberdade, a integridade do Império, e a Monarquia Constitucional, se ela se puser em perigo (RELATÓRIO DO ANO DE 1832, p. 19).

A administração da Justiça, como foi organizada no Código de Processo, na opinião Honório Leão, não oferecia condições à repressão dos crimes e da desordem no Brasil:

Além disso, um só Promotor, e um só Conselho de Jurados nas grandes cidades, com o número de Sessões periódicas, e com a duração delas estabelecida no Código, não é suficiente para dar pronta expedição aos processos de presos, que estão nessas Cidades por sentenciar; principalmente devendo-se desde já cotar com a morosidade própria do nosso tirocínio em semelhante fórmula de julgar (RELATÓRIO DO ANO DE 1832, p. 34-35).

Em 1833, outro secretário de Estado dos Negócios da Justiça, Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, também dirigia suas críticas ao sistema de jurados estabelecido pelo Código de Processo: “As Câmaras pois nomearão sempre Jurados no sentido da opinião da maioria de seus Membros; [...], talvez d’aqui tenha resultado o fato observado, que em alguns Municípios o Júri tem sido demasiadamente rigoroso, e n’outros tão indulgente, que tem absolvido todos os criminosos” (RELATÓRIO DO ANO DE 1833, p. 22). Além de estadistas, renomados juristas tomaram partido no debate acerca do sistema eletivo no Judiciário brasileiro. Francisco Alberto Teixeira de Aragão filiava-se à noção de independência judiciária com base na participação leiga. Declarava o jurista a respeito do Tribunal do

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Júri:

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[...] Todo o cidadão terá o direito de ser julgado pelos seus pares, e aos Magistrados, simples órgãos da Lei, ficará competindo unicamente a aplicação da pena, que a mesma Lei impuser ao delito de que o acusado for culpado, e depois que os seus pares o tiverem declarado convencido (ARAGÃO, 1824, p. V).

Aragão considerava ainda o Júri um necessário órgão para equilibrar o poder dos juízes, dada a condição dos magistrados como funcionários do Estado, pois poderiam “[...] ceder ao respeito e ao medo e hão de sucumbir às seduções, tornando-se instrumentos do despotismo, e empregando para destruir a liberdade aquele mesmo poder que lhes foi confiado para a defenderem” (ARAGÃO, 1824, p. 18). A defesa do Júri coube a outro jurista com sólida carreira intelectual e influente posição política. José Antônio Pimenta Bueno advogou a favor do Júri no período em que as críticas se tornaram ainda mais severas, e mesmo assim, garantia ele tratar-se de um órgão que representava a “[...] mais sólida garantia da independência judiciária” (BUENO, 1857). Como Aragão, Pimenta Bueno formou-se em Direito, na primeira turma da Faculdade de Direito de São Paulo, e tornou-se um eminente político conservador no Império brasileiro, alcançando a posição de Conselheiro de Estado e presidente do Conselho de Ministros. Mesmo pertencendo aos altos escalões burocráticos do governo, Bueno considerava a manutenção do Júri essencial para os magistrados não se converterem em “comissários, instrumentos ou escravos de um outro poder”. Ora, referia-se o jurista ao servilismo dos juízes funcionários ao Executivo e apresentava o juiz leigo, neste caso, o Júri, como elemento de decisão com independência suficiente para não sofrer as influências advindas dos governos. A imprensa divulgava opiniões acerca do Júri. O destacado jornalista e proprietário do Aurora Fluminense, Evaristo da Veiga, emprestou sua pena à defesa do jurado como “[...] instituição política destinada a moderar a ilimitada preponderância de uma que se não fosse o jurado o dominaria totalmente” (FLORY, 1986, p. 184). Já outro influente jornalista, Justiniano José da Rocha, dedicou-se a atacar o sistema de jurados como um estrangeirismo importado descuidadamente, que não levava em conta a imaturidade da sociedade brasileira, composta ainda por pes-

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soas incultas ou com homens cultos insuficientes para dar conta de um órgão com tamanha responsabilidade. Justiniano José da Rocha (1835, prefácio) asseverava que “[...] a instituição do júri em qualquer país, França ou Inglaterra, sofre[ia] dos mesmos males que o Brasil [...]. Assim resolveu discutir a “inequívoca” benevolência do Júri. De sua escrivaninha, o jornalista conservador traduzia a tendência de seu tempo, usando as absolvições dos Tribunais do Júri para descredenciar a participação leiga na administração judiciária. Em primeiro lugar, afirmava que as absolvições constituíam elemento de subversão social, pois animavam a criminalidade no Império: “Examine-se, diz Montesquieu, as causas da multiplicidade dos crimes, e ver-se-á que a devemos à impunidade, e não à moderação das penas” (ROCHA, 1835, p. 5). Em seguida, sentenciava a causa da impunidade:

Indagando a causa de tão lastimosa confusão do justo e do injusto, julgamos poder assegurar que é: 1º a formação das culpas entregues aos Juízes de Paz; 2º os julgamentos confiados aos Juízes de Fato; 3º a nulidade absoluta do juiz do Direito na decisão a mais importante.

Justiniano Rocha (1835, p. 2 e 11) considerava que, reduzindo a função dos juízes togados à simples “[...] operação automática, maquinal, passiva: trasladar aquillo que a decisão dos Jurados lhe manda[va] copiar”, impedia-se o Judiciário de realizar sua tarefa precípua de “[...] proteger a sociedade dos ataques de seus membros”. Nas críticas ao sistema eletivo dos juízes, há dois elementos expostos apenas parcialmente que, trazidos à luz, podem clarear significativamente o modo restritivo pelo qual se delinearam as reformas aprovadas na segunda metade do século XIX. O primeiro elemento consiste na experiência regencial de construção da ordem. Como sentencia Carvalho (2002, p. 235), a “[...] Regência falhara nos dois testes: a ordem fora constantemente quebrada, pondo em perigo a própria sobrevivência do País, e o regente eleito tinha-se revelado incapaz de arbitrar as divergências dos grupos dominantes”. A experiência liberal de administração do Estado fracassara no Brasil, e a crítica reunia argumentos colhidos na experiência europeia. O conservadorismo francês, por exemplo, advogava que a revolução resultou na ação de um punhado de indivíduos tentando “[...] impor normas

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e valores que se chocavam com aquilo que a sociedade efetivamente é” (PEIXOTO, 2001, p. 27). O Brasil vivenciou também o retumbante insucesso da experiência liberal durante a Regência. As respostas conservadoras baseavam suas formulações na influente matriz de pensamento conservador da época, que responsabilizava o liberalismo pelas perturbações da ordem. O engajado grupo de monarquistas saquarema dirigiu seus ataques aos órgãos que, segundo eles, minavam as forças do poder central. A estratégia desenhada envolvia restituir ao Governo Central os poderes retirados pela legislação liberal. Uruguai explicitamente condenava as soluções liberais, que “[...] em lugar de introduzir a luz e a ordem no caos em que a abdicação deixara, [...] procurou o remédio exclusivamente no sistema eletivo [...]” (apud CARVALHO, 2002, p. 496). No Brasil, portanto, o problema da ordem recaía sobre os juízes de paz eletivos e o júri, juízes municipais, de órfãos e promotores eleitos. O segundo elemento consiste no conservadorismo das políticas públicas desenvolvidas no Brasil, sobretudo a partir do Regresso. O conservadorismo, como corrente política, construiu-se em fins do século XVIII e ganhou campo na Inglaterra, França, Portugal, entre outros. Peixoto (2001, p. 25) assinala a “[...] visão relativamente pessimista do ser humano” característica desse pensamento, segundo o qual “[...] a condição do indivíduo em sociedade é naturalmente conflitiva e caracterizada por tensões” (p. 25). Tal premissa conservadora guiava, nesses lados dos trópicos, os conservadores na recusa das instituições liberais, como o sistema eletivo de juízes. Apontava Visconde do Uruguai (apud CARVALHO, 2002, p. 468) para a necessidade “[...] de muito critério, para separar uma parte dessas instituições e aplicá-la a outro país diverso, cuja organização, educação, hábitos, caráter e mais circunstâncias são também diversos”. Claramente, o grupo político conservador, os ditos saquarema, em suas opiniões acerca do sistema eletivo de juízes, refletia mais a dificuldade de seus líderes em lidar com a ordem num quadro burocrático sem hierarquias do que numa realidade de fracassos dos Tribunais de Júri ou dos Juizados de Paz. Em relatório datado de 1840, o então secretário de Estado dos Negócios da Justiça, Paulino José de Souza Soares, assim resumiu seu dilema como estadista: No interior de muitas das nossas Províncias vivem os seu habitantes

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separados uns dos outros, e das povoações por grandes distâncias, cobertas de matas e serras em um certo estado de independência, e fora do alcance da ação do Governo, e de sua autoridades. [...].

Como as Justiças territoriais são o resultado das eleições, recaem estas muitas vezes em pessoas que deveriam expiar nas prisões uma longa carreira de crimes, e que reforçadas com a autoridade dos cargos se tornam pequenos potentados, de fato independentes do Governo, e acima de toda a responsabilidade (RELATÓRIO DO ANO DE 1840, p. 19).

O Regresso fizera a clara opção pelo controle social e político da nação. Justiniano José da Rocha (1956, p. 189) chamou esse período de “luta da reação” porque, em sua opinião, “[...] era impossível que a obra da organização democrática se operasse sem que distúrbios se multiplicassem e o sangue brasileiro desse lamentável testemunho de que a sociedade não pode caminhar sem autoridade que a proteja”. Em 1837, o próprio Feijó renunciava ao cargo de regente, convencido de que sua permanência não poderia mais “remover os males públicos”:

Estando convencido de que a minha continuação na regência não pode remover os males públicos, que cada dia se agravam pela falta de leis apropriadas, e não querendo de maneira alguma servir de estorvo a que algum cidadão mais feliz seja encarregado pela nação de reger seus destinos, pela presente me declaro demitido do lugar de regente do Império [...] (apud CALDEIRA, 1999, p. 180).

Em nome do combate ao espírito de anarquia e desordem que, desde 1832, campeava nas províncias, as autoridades ansiavam por legislações fortes. O sistema de juízes eleitos, responsável pela atividade de repressão, entrou em crise, pois se revelava, na opinião dos conservadores, inoperante para manter a paz. O Código Processual, que passara na Câmara dos Deputados sem maiores problemas e, no Senado, foi mais aperfeiçoado do que debatido, tornou-se alvo de críticas incessantes. As reformas orquestravam o retorno do poder ao Governo Central, fórmula para os conservadores restabelecerem a ordem. De acordo o Visconde

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do Uruguay, “A Lei da reforma do Código do Processo tinha por fim habilitar o Poder para resistir aos partidos descontentes, e para cumprir um dos seus primeiros deveres, a manutenção da Ordem pública [...]”(RELATÓRIO DE 1842, p. 4). Em 3 de dezembro de 1841, aprovou-se a reforma do Código de Processo, Lei nº 261, da qual merece destaque a extinção do Júri de Acusação. O art. 95 extinguia o primeiro Conselho de Jurados e as Juntas de Paz, cujas atribuições passaram a ser exercidas por autoridades policiais. Na prática, criaram-se tribunais policiais e entregaram-se tarefas judiciárias aos delegados, a quem cabia a decisão de pronúncia ou impronúncia dos réus, a qual seria submetida à aferição do juiz municipal. No lugar das Juntas de Paz, também se delegou aos agentes policiais a organização de uma lista de cidadãos aptos a atuar como Jurado, fazendo-a publicar na porta da Paróquia, da capela ou em jornal, se houvesse. Outra reforma incluída na Lei nº 261 alterou a face do jurado, pelo menos filosoficamente. Tratava-se da exigência de o cidadão saber ler e escrever e o aumento da renda mínima (art. 27). Houve, na mesma linha de intervenção, o detalhamento do direito de apelação por parte do juiz de Direito, ampliando as possibilidades de recurso ex-officio da decisão dos jurados. Sempre que entendesse ter o Júri proferido decisão sobre o ponto principal da causa, contrariando a evidência resultante dos debates, depoimentos e provas apresentadas, o juiz de Direito deveria escrever no processo os fundamentos da sua convicção contrária. Enviado o processo à Relação, outro juiz, desta vez hierarquicamente superior, pois desembargador, decidiria se a causa devia ou não ser submetida a novo Júri. Nem o réu, nem a vítima ou o promotor possuíam o direito de solicitar o mesmo procedimento da parte do juiz de Direito. Facultava a mesma Lei ainda o recurso ex-officio se a pena aplicada fosse a de morte ou galés perpétuas. Tais reformas, portanto, reforçavam a autoridade dos delegados e juízes de Direito, ambos ligados hierarquicamente ao Secretário de Estado dos Negócios da Justiça e, consequentemente, as reformas dirigiam-se à centralização de poderes em detrimento das forças locais. Essa reforma recebeu maior detalhamento com o Regulamento nº 120, de 1842, que, definitivamente, colocou os chefes de Polícia, delegados e subdelegados sob o comando da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça. A respeito do Júri, definiu-se que, em cada termo, alcançado o número

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de cinquenta jurados, instalar-se-ia o Conselho. Quando não se apurasse esse número, reunir-se-iam, como se fazia desde 1830, dois ou mais termos para se formar um só conselho. Neste último caso, contudo, a escolha do lugar em que o mesmo conselho e a junta revisora deveriam se reunir cabia ao presidente da província. A abrangência criminal do Júri diminuiu na edição das diversas reformas. O Regulamento n° 120 fixou que o crime de contrabando deixava de ser competência do Tribunal do Júri e passava à seara do Juízo Municipal. Roubo e homicídio nos municípios de fronteira do Império, moeda falsa, resistência e bancarrota exemplificam os diversos crimes retirados da alçada do Tribunal do Júri, cuja existência fulgurante do início do século se encontrava completamente ofuscada pelas reformas centralizadoras. O sistema eletivo de juízes no Brasil do Oitocentos, como se viu, sofreu uma crescente perda de atribuições e poder. É verdade que a instituição do Júri e o Juízo de Paz implantaram-se como órgãos liberais e constituíram-se em ferramentas descentralizadoras diante de um monarca estrangeiro e autoritário. Não se pode, todavia, menosprezar o fundamento liberal da implantação desses órgãos, na qualidade de guardiães da independência judiciária e dos direitos individuais. Em 1824, já se publicava um libelo a favor do Júri, intitulado A instituição do Jury criminal, de autoria de um dos juristas mais influentes no campo do Direito à época: Francisco Alberto Teixeira de Aragão. Não cessaram os apoios, erguendo-se a voz de um constitucionalista do peso de Pimenta Bueno. Enfim, é impossível negar a influência das luzes no processo de criação e instituição do Juízo de Paz e Tribunal de Júri no Brasil Império. Não se tratava apenas de um instrumento no jogo contra Pedro I. Os ministros de Justiça saquarema não se cansaram de bradar a inadequação da instituição em relação à sociedade brasileira. Estudiosos, como Thomas Flory, acabaram por concordar com o fracasso do sistema eletivo dos juízes. Oliveira Vianna, porém, apresentava outra interpretação que julgo oportuna resumir nestas considerações finais. Vianna (1987, v. 1, p. 221) assegurava que, no Oitocentos, surgiram novas e pequenas estruturas locais. Duas leis constituem o marco desse processo – a Lei de 19 de outubro de 1828, que reorganizou os municípios, e o Código de Processo. Vianna considerava que, principalmente, o Código de Processo impôs uma democracia municipalista quando obrigou os senhores rurais a entendimentos e combinações para a realização das eleições

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de autoridades locais, como os juízes de paz, juízes municipais, jurados etc. Oliveira Vianna explicava ainda o significado para os grupos locais, denominados, em sua sociologia, de clãs, pois se transferiram os poderes da ordem e do controle social para as autoridades eletivas. O êxito da ordem descentralizadora residiu nas sociabilidades proporcionadas pelas eleições, que resultaram em pequenas solidariedades locais. A ordenação política liberal imposta pelo Código de Processo transmutou o poder exercido pelas aristocracias locais – os clãs feudais de Vianna – para uma elite local de base municipal. Torna-se um engano, portanto, encerrar a experiência das autoridades judiciárias localistas nos resultados de seus processos sob a simples clivagem absolvição ou condenação. A contribuição política desses órgãos ultrapassou substancialmente a coerção do crime e do controle social. Lançou-se um programa de construção das bases comunitárias da política. O sucesso da empreitada, segundo Oliveira Vianna, e não o fracasso, abriu espaço para a supressão das falhas da Regência, quando a ordem permanecera instável e perigava cindir a unidade do País. Quando se observam os fenômenos do coronelismo na história recente do Brasil e mesmo a instituição da municipalidade como um ente da Federação nos dias atuais, percebe-se que o sistema eletivo de juízes logrou mais êxitos do que se pode enxergar no curso das críticas do século XIX. Referências Documentação primária impressa ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Série Accioli. Ofícios e correspondências recebidas pelo presidente de Província do Espírito Santo.

ARQUIVO PÚBLICO DO MUNICÍPIO DE VITÓRIA (ES). Ofícios recebidos da Câmara de Vitória, 30-8-1824, AV, Caixa 1.

COLEÇÃO DE LEIS DO IMPÉRIO (Cartas de Leis, Decretos, Alvarás, Cartas Régias, Leis e Decisões imperiais). A publicação digitalizada compreende o período de 1808 a 1889). Disponível em: .

RELATÓRIOS MINISTERIAIS (1821-1960). Disponíveis em: .

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Liberalismo brasileiro no Oitocentos: pensamento político e ideias liberais nos debates parlamentares (1840-1860) Julio Bentivoglio Este texto destina-se a discutir a presença do ideário liberal no início do Segundo Reinado, localizando os matizes do liberalismo, recuperando algumas falas daqueles representantes parlamentares na arena parlamentar entre 1840 e 1860, momento de profundas transformações vividas pelo governo imperial identificadas pela historiografia sob a rubrica de consolidação do Estado brasileiro e procura revelar o caráter multifacetado e heterogêneo do vocabulário político-econômico oitocentista, ao identificar o quanto concepções mais antigas conviviam lado a lado com outras mais contemporâneas e atuais, sintonizadas com o debate europeu e norte-americano. Vários autores trataram da relação entre o liberalismo e a sociedade brasileira durante o Império. De maneira geral, o discurso foi pontuado, no final dos anos 1970, por duas posições: a de que era um conjunto de ideias fora do lugar — como postulou Roberto Schwarz (1973) em seu artigo As idéias fora do lugar — ou a de que elas estavam no lugar — egundo Maria Sylvia de Carvalho Franco (1976) em sua crítica àquele autor. Penso que a Begriffsgeschichte possa ser uma ferramenta útil para se compreender o liberalismo no quadro teórico da historiografia brasileira à luz do descolamento ou da pertença entre ideias e espaços, tal como recuperados a partir de alguns testemunhos daqueles contemporâneos. De acordo com Schwarz, ao contrário do que ocorrera na Europa, no Brasil o liberalismo não rompeu antigos laços e valores tradicionais na

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economia ou na política. Aqui ele fora travado pela presença do escravismo e devido à política dos favores. Em suas palavras, “[...] adotadas as idéias e razões européias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificação, nominalmente ‘objetiva’, para o momento de arbítrio que é da natureza do favor” (SCHWARZ, 1973, p. 17). Enquanto na Europa o liberalismo era uma ideologia que correspondia às aparências e encobria a exploração do trabalho, aqui a exploração era explicitada, fazendo com que as idéias liberais parecessem falsas (SCHWARZ, 1973, p. 14). Esse autor procurava amparar-se em Sérgio Buarque de Holanda para corroborar suas afirmações, ao repetir que “[...] as fórmulas e as palavras são as mesmas, embora fossem diversos o conteúdo e o significado que aqui passavam a assumir” (apud SCHWARZ, 1987, p. 47). Ao se referirem às luzes ou ao liberalismo, as elites brasileiras sabiam do que estavam falando e tinham um propósito quanto ao seu uso, algo que Schwarz percebeu. Era uma maneira de se notabilizarem, de se destacarem, de revelar erudição, condição essencial para caracterizar status social. Para Maria Sylvia, essa análise não passava de uma nova roupagem para o velho modelo dualista, criticando o fato de Schwarz assinalar as ideias liberais no Brasil como algo transplantado, como se fossem postiças, inautênticas e copiadas ou, como ele mesmo diz, “[...] partimos da observação comum, quase uma sensação, de que no Brasil as idéias estavam fora do centro, em relação ao seu uso europeu” (FRANCO, 1976, p. 24). Ainda segundo essa autora, a escravidão freou a formação de uma sociedade de classes, impediu que a relação entre homens livres e pobres assumisse um caráter mercantil, bem como afirmou que as diferenças e a diversidade da economia brasileira eram perfeitamente coerentes com a presença das ideias liberais na realidade brasileira. A despeito disso, as ideias liberais estavam, lá como cá, em seu devido lugar. Dos anos 1980 até o presente, houve uma pequena alteração nessas duas perspectivas fundadoras. O que se verificou na historiografia sobre o tema foram esforços no sentido de pensar um liberalismo brasileiro indicando suas especificidades em relação ao liberalismo europeu ou norte-americano. Os estudos, buscando radiografar esse liberalismo, consideraram as ideias como realidades em si, dotadas de coerência e homogeneidade. Ou seja, mantinham uma abordagem tradicional de história das ideias, que surgem e se adaptam, realçando seu presentismo. Procurando reencontrar os significados desse liberalismo, preferiram

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abordá-lo de maneira mais geral e extensiva. Assim, diferentes discursos e expressões do pensamento liberal eram recortados e urdidos para constituir um só liberalismo. Alijado de sua historicidade, o conceito perdeu sua potência e a capacidade de identificar experiências e significados multifacetados, podendo ter se tornado, utilizando expressão cara a Quentin Skinner, em uma verdadeira mitologia (JASMIN; FERES JÚNIOR, 2006, p. 7). Uma estratégia usada em relação ao catolicismo brasileiro, tornandoo, plural não se verificou em relação ao liberalismo. Assim, fala-se muito em catolicismos do Brasil, para realçar sua pluralidade – o catolicismo popular, o galicano, o ultramontano, o regalista, dentre outros –, mas não se fala em liberalismos, embora, nas falas daqueles contemporâneos, muitas vezes tenhamos a impressão de que havia o reconhecimento de conteúdos diversos, que distinguiam formas de entendimento e mesmo de utilização do referido ideário. A partir das falas da elite imperial brasileira e da presença das ideias liberais, vislumbra-se a existência de uma ênfase sobre a economia política, que entendia o liberalismo de maneira mais uniforme e como uma expressão do pensamento econômico oitocentista. Ou seja, a elite imperial tinha uma compreensão mais unívoca, práticas e ideias liberais, quando se referia à economia. Mas havia um registro local; havia uma assimilação crítica de seus postulados. Os políticos do Império estavam cientes das descontinuidades entre teoria e prática, embora soubessem que estavam umbilicalmente associadas (BENTIVOGLIO, 2002, p. 17s). Do ponto de vista mais filosófico e político, as ideias liberais tornamse um objeto mais complexo de se investigar, afinal o liberalismo político possui matizes diferenciadas no pensamento ocidental em suas expressões francesa, inglesa, alemã e norte-americana. Registre-se ainda que o pensamento político liberal em sua longa duração e abarcando pensadores nos séculos XVIII e XIX era algo multifacetado, cujo mapeamento e análise extrapolariam os limites aqui pretendidos. Seria necessário localizar em cada fala as vozes dos autores responsáveis pela formação e pelas predileções individuais. Nesse sentido, o pensamento de alguns estadistas daquele período já foi estudado, por exemplo, o visconde do Uruguai e sua afinidade às ideias de Bentham, Smith e Locke, tal como analisou José Murilo de Carvalho (1999). O que algumas análises dos discursos parlamentares brasileiros dão a entender é que, em matéria política, determinados princípios liberais

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eram conhecidos e manuseados pela elite imperial, deixando transparecer não apenas um eixo articulador, mas conteúdos variados do pensamento de Locke, Bentham e também de Sismondi, Chevalier. Também não era incomum a referência a outras tradições do pensamento liberal, particularmente List na Alemanha, que leram em tradução francesa, e aos federalistas norte-americanos, como Hamilton, Madison e Jay (BENTIVOGLIO, 2002, p. 57). De consensual havia o pensamento de Adam Smith, tal como traduzido pelo visconde de Cairu (ROCHA, 1999, p. 26). De qualquer modo, os usos ou o entendimento que eivavam a ação política tomavam, não raro, contornos díspares. Exemplo mais evidente disso foi a radicalização do conceito de liberdade que, no Brasil, era associado tanto ao princípio democrático visto com reservas quanto ao enfoque moderado de cunho aristotélico ou lochiano. A tônica do debate historiográfico, tanto nos anos 1970 quanto nos anos 1980, teve seu aggiornamento na questão da ideologia, subsumindose, portanto, ao pensamento marxista, quer o corroborando, quer o refutando. Assim, tanto Schwartz quanto Carvalho Franco concordavam que as ideias liberais se coadunavam com determinadas práticas sociais alinhavadas a um modelo de Estado controlado por uma elite senhorial escravista que procurava manifestar sua pertença ao mundo civilizado e à ilustração europeia. Outra concordância entre Schwartz e Carvalho Franco assinala o reconhecimento do caráter dialético desse ideário liberal, tal como se expressava no Brasil. Para eles e muitos outros intérpretes haveria, nesse liberalismo conservador brasileiro, traços da ilustração ibérica, permanências da política pombalina, ou seja, vestígios de um pensamento social conservador e autoritário. Bastaria considerar o comportamento da elite política portuguesa, para perceber, de maneira clara, uma política autodefensiva, reformista, que valorizava a integridade do Império e a manutenção de monopólios e privilégios (RODRIGUES, 1999, p. 12s). Minha proposta é entender o liberalismo como um conjunto desigual de experiências e como a manifestação da crise de uma consciência histórica, vivida, sobretudo, na conjuntura entre 1808 e 1831, da emancipação política à crise do Primeiro Reinado. De experiência original, assimilada na leitura dos clássicos, feita em Coimbra ou nas academias brasileiras, as ideias liberais vão ganhando novas acepções em meio às experiências geracionais ou quando submetidas à força das circunstâncias, do mesmo

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modo que conteúdos sedimentados assumem reorientações e, às vezes, são também esquecidos. É evidente o quanto essas experiências geracionais ganharam relevo no conflito vivido nos anos 1830, entre a geração coimbrã e aquela mais nova de formação nacional. Esses processos são concomitantes e ocorrem em meio a profundas transformações sociais, políticas e econômicas. Naquele período, o termo liberal assumiu novas conotações que conviviam e se justapunham ao seu conteúdo originário. Firmou-se uma conjunção na qual a experiência política marcada pelo processo de emancipação política e a posterior consolidação do Império representaram sensíveis mudanças na consciência histórica, fazendo com que as ideias passassem a sofrer um processo de adequação de sentidos conforme se impunham novas expectativas e projetos políticos (BENTIVOGLIO, 2002). Naquele contexto, o liberalismo surgia como um saber-fazer e como um corpo de estratégias que expressavam a sintonia da elite brasileira com o mundo civilizado. E ele se materializava como um conjunto de princípios orientadores para a política e para a administração. Durante o Império, sua tônica foi o caráter reformista e de manutenção das tradições burocrático-administrativas (COSTA, 1987). Nesse sentido, o discurso liberal assumia um duplo registro: marcava o compasso com as ideias europeias modernas e criava uma imagem de progresso. Na percepção lúcida de Bernardo Pereira de Vasconcelos, o liberalismo brasileiro, em meados de 1830, foi “[...] inicialmente concebido como instrumento contra o despotismo real, em seguida defendendo-se das pretensões democratizantes radicais” (apud CARVALHO, 1995, p. 140), isto é, servia para defender a ordem constitucional com liberdade e sem excessos. Devidamente no lugar, as ideias e os princípios liberais puderam promover a afirmação da liberdade e da propriedade privada na sociedade escravista imperial brasileira. Como pilar desse liberalismo possível e conservador, estava a preservação da ordem oligárquica. Compartilhando um ideário comum, as oligarquias agrário-exportadoras defendiam a liberdade econômica entendida como o acesso sem grandes restrições ao mercado internacional; e a liberdade política, compreendida como poder votar e ser votado. As reformas graduais e o expediente de apelar para a inércia, para o imobilismo e para a manutenção da ordem não deixam de ser astuciosos. A prudência e o exame seguro da realidade determinaram a atuação do governo imperial brasileiro, de modo até excessivo. Ousadia,

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revolução e transformação, por exemplo, eram palavras pouco apreciadas pela maioria dos representantes da elite imperial. Esse é o olhar que dá a tônica para os estudos sobre o tema ao longo dos anos 1990. Tentava-se conciliar esse corpo doutrinal com as especificidades da realidade brasileira, que eu denomino de império das circunstâncias. A esse respeito, é bastante ilustrativa a discussão travada entre o deputado pelo Pará, Souza Franco, e o carioca visconde de Itaboraí. Franco afirma, em 25 de abril de 1850: [...] não tenho receio de sustentar essas idéias [liberais], e de lhes anunciar o triunfo futuro, porque confesso que não são propriamente minhas; eu as bebi nesses gigantes financeiros de países gigantes nas ciências, nas artes, nas indústrias, e no comércio, em comparação a nós, que ainda somos pigmeus. (ANAIS DO PARLAMENTO, 1850, p. 482).

Ao que lhe retrucou o ministro da Fazenda Rodrigues Torres:

Disse-se que o ministro da fazenda devia lembrar-se do que se tem praticado em outros países, das medidas adotadas pela Áustria, pela Inglaterra e pelos Estados Unidos. Senhores, eu entendo que obraria mal, que seria precipitado o ministro, que por ter lido que em alguns países se praticam certas coisas, as quisesse imediatamente adotar no Brasil, sem examinar se as circunstâncias do seu país são idênticas às daquele que quer imitar [...] Tenho procurado interar-me de algumas coisas que se têm feito em outros países sobre o meio circulante, e as julgo quase todas inaplicáveis às circunstâncias em que nos achamos (ANAIS DO PARLAMENTO, 1850, p. 485).

Itaboraí não havia mudado seu ponto de vista, pois, já em 1843, havia afirmado que “[...] as medidas [econômicas] devem ser tomadas de acordo com as circunstâncias” (ANAIS DO PARLAMENTO, 1843, p. 599). Nesse registro, o liberalismo brasileiro revela-se protecionista e pragmático. A elite política imperial não desejava nem tinha condições de realizar plenamente todos os princípios liberais, mas isso não a tornava menos liberal. Mesmo na Inglaterra ou na França o liberalismo era praticado com reservas, haja vista a trajetória de Robert Peel nas finanças britânicas. Nesse sentido, o deputado pelo Rio de Janeiro, Antônio Junqueira des-

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mascarou, por exemplo, a suposta liberdade comercial inglesa e mostrou como aquele país aumentou as tarifas para importação de algodão dos Estados Unidos, de 5% para 10% em 1836 (ANAIS DO PARLAMENTO, 1846, t.1, p. 429). E criticou o protecionismo que a França e a Inglaterra praticavam, com políticas alfandegárias bastante austeras, adotando direitos diferenciais em relação aos navios brasileiros, algo que não faziam com a Bélgica.1 Para o deputado Pereira da Silva, a pressão draconiana inglesa deveria fazer com que o Império voltasse sua atenção para o comércio com as nações vizinhas: “[...] a política externa do Brasil deve dirigir-se principalmente para as Repúblicas circunvizinhas, maxime para as do Prata” (ANAIS DO PARLAMENTO, 1844, p.199). A Inglaterra era referência constante, modelo de desenvolvimento econômico. Ao reclamar dos excessos do Senado, no tocante aos assuntos referentes a impostos e à renda pública, Souza Franco mencionou, na sessão de 29 de agosto de 1850, alguns procedimentos ingleses, ao que certos deputados ridicularizaram-no, “Quer-nos agora fazer ingleses?”. Ele respondeu: Os senhores é que querem ser ingleses quando lhes convém defender a organização do senado, e quando não lhes convém, rejeitam a imitação dos seus estilos. Eu não quero que sejamos ingleses, mas quero que sejamos brasileiros mesmo executando [...]. Miranda: — As leis inglesas! (ANAIS DO PARLAMENTO, 1850, p. 717).

Para Marco Aurélio Nogueira, as ideias não estavam totalmente fora do lugar; elas simplesmente tiveram que se adaptar ao pensamento conservador brasileiro, por isso eram ambíguas noções como liberdade, igualdade e propriedade, se se levasse em conta a existência, por exemplo, do escravismo. Assim, o liberalismo teria se impregnado do “[...] autoritarismo que ordenava as relações sociais e a política, escamoteava a questão social e a do indivíduo, podava seu impulso reformador em troca da moderação e da prudência” (NOGUEIRA, 1984, p. 66). Mais uma vez explicita-se a tônica de identificar o liberalismo brasileiro como um conjunto homogêneo de pensamento que apresentava grande contraste com o liberalismo europeu. Eis o que outro diálogo nos revela acerca do ideário liberal brasileiro, ocorrido em 2 de março de 1850:

1 Fala de Souza Oliveira, em 17-7-1846. AP, p.174.

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Rodrigues Torres: — Quando o nobre deputado fala em partido liberal, eu pergunto-o, que somos nós? É o honrado membro liberal e nós inimigos da liberdade? Se o honrado membro é liberal, não pode deixar de estar conosco; e se não está é pseudo-liberal [...].

Souza Franco — Graças a Deus! Já ouvi dizer a um ministro que é liberal! Rodrigues Torres (com força) — Somos liberais; somos amigos das instituições livres; defensores da constituição (elevando a voz); inimigos dela são aqueles que empunham armas para derrubá-la (muitos e repetidos apoiados) [...] (ANAIS DO PARLAMENTO, 1850, p. 27).

O viés é claro: do ponto de vista econômico, havia uma concordância e um reconhecimento tácito do pensamento liberal. Ele criava um campo consensual em torno do conceito, mas, do ponto de vista político, o líder saquarema procurava esvaziar qualquer especificidade do colega luzia. Inferiorizava-o, denegando-lhe o monopólio de um pensamento político. Esse mesmo viés ressurge em outra passagem: ao tratar do excesso de apólices circulando no mercado, o deputado pelo Rio de Janeiro, Francisco Vianna, falou a Souza Franco que os saquaremas eram forçados a esse expediente para contornar as dívidas deixadas pelos ministérios chamados liberais. “Chamados por quê? – retrucoulhe o deputado pelo Pará. “Todos nós somos liberais” – respondeu-lhe Vianna (ANAIS DO PARLAMENTO, 1850, p. 241). De maneira geral, essa compreensão entendia o liberalismo do seguinte modo: um conjunto de princípios político-administrativos, portanto também econômicos, que defendiam o equilíbrio comercial, mercados autorregulados, o Estado Constitucional e a adoção do padrão-ouro. Do ponto de vista político, não havia a mesma concordância. Para José Luís Fiori (1999, p. 51), na

[...] contramão do liberalismo e do marxismo, ainda no século XIX, a ‘verdade produtivista’ do mercantilismo foi redescoberta pelo ‘protecionismo’ industrializante de Alexander Hamilton, e pelo ‘nacionalismo econômico’ de Friederich List [...], todos movidos pelo mesmo objetivo político: o fortalecimento dos seus Estados e capitalismos tar-

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dios frente ao capitalismo originário e imperial da Inglaterra de Smith, Ricardo e Marx.

Em Report on Manufactures, de 1791, Hamilton havia também exposto sua teoria da superioridade das nações que monopolizavam e detinham um ramo da indústria, o que impediria que outras nações também se desenvolvessem (apud FIORI, 1999, p. 51). Friedrich List, por sua vez, afirmou que a economia política inglesa [...] não reconhece nenhuma distinção entre as nações que atingiram um estágio superior de desenvolvimento econômico e as que ainda estavam em um estágio inferior de evolução [...] [e por isto] em parte alguma, os defensores deste sistema se preocupam em explicar os meios pelos quais as ações hoje prósperas chegaram a atingir esse poder e esta prosperidade que nelas observamos (FIORI, 1999, p. 51).

Os princípios liberais capitaneados pela Inglaterra, potência hegemônica do período, acabaram problematizados pelo nacionalismo que era adotado pelos Estados tardios e defendido pelas nações que dispunham de mecanismos de barganha para confrontar-se com os interesses ingleses, ou que estivessem fora de sua área de influência direta. Assim, a incorporação dos princípios liberais ocorria mediante filtros, fazendo com que, no caso brasileiro, como em Portugal, o liberalismo adquirisse também essa feição protecionista (BONIFÁCIO, 1996). Isso fez com que o embate em torno de questões como a do mercado livre, das tarifas alfandegárias, da paridade monetária com a libra esterlina, entre outros, se revestisse, muitas vezes de falas pró-Inglaterra e de falas bastante ciosas dos interesses comerciais brasileiros. Isso em meio ao uso de ideias não só consoantes com o mais puro liberalismo clássico, mas também de conceitos e doutrinas fisiocráticos e até de preceitos mercantilistas, o que revela a dinâmica e heterogeneidade do pensamento político-econômico no Brasil, durante o século XIX (OLIVEIRA, 2001). Vejamos mais alguns exemplos. O deputado por Pernambuco, Nunes Machado, afirma em 18 de setembro de 1847: O Brasil só é político, não é mais nada, quando, senhores o sistema industrial, contém em si quase todos os sistemas políticos, porque a

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indústria é quem faz desenvolver todas as faculdades da alma, todas as proporções do corpo. Sabe a câmara quanto os povos civilizados se têm ocupado desta questão e quais os sistemas conhecidos de indústria, entre os quais, os mais notáveis são os de Colbert e de Quesnay [...] Entretanto, cada um desses sistemas é vicioso [...] o primeiro faz a vaidade nacional prejudicar o comércio, levando ao isolamento e o segundo porque defende uma liberdade sem limites. E nós? Nós não temos nenhum sistema e por uma dessas contradições do espírito humano invertemos o colbertismo! Isto é, compramos tudo e não vendemos coisa alguma (ANAIS DO PARLAMENTO, t.2, p. 397).

Falar em Colbert e Quesnay é indicativo da permanência do pensamento mercantilista que, do ponto de vista econômico, deveria ter sucumbido às ideias de Adam Smith. Contudo, tais preceitos continuam a alimentar o pensamento econômico brasileiro, convivendo com novas ideias e com uma hibridização constante, na quaol postulados díspares poderiam existir tranquilamente, pelo menos no plano dos discursos. Mas essas falas contrastavam sempre com as falas emanadas pelos representantes do governo imperial que ambicionavam maior coerência e homogeneidade. Até meados de 1850, a grande maioria dos membros da elite que participava do governo foi educada em Coimbra, uma universidade que nasceu na virada para o século XIV e que, no final do século XVIII, tinha uma orientação iluminista, com um caráter reformista e pedagógico, mas profundamente conservador (CARVALHO, 1996, p. 57). Mas esse contingente diminuía vertiginosamente em face à expansão dos diplomados no Brasil e contrastava com o pensamento liberal europeu, mais individualista, revolucionário e radical. O choque entre estas duas correntes, a matriz coimbriana no âmbito jurídico e a matriz liberal no âmbito político e social, fazia-se sentir na jovem nação brasileira (RODRIGUES, 1999). Especialmente nas faculdades de Direito, difundiram-se as doutrinas econômicas no Brasil: em Olinda, havia a influência dos utilitaristas e em São Paulo a predominância maior foi da escola clássica em sua vertente francesa (GREMAUD, 1997, p. 9). Ou seja, em São Paulo predominou a escola francesa mesclada com certo ecletismo, com a presença de Sismondi, Chevalier e Mcleod.2 Já em Olinda, predominava a escola

2 Mcleod, escocês, escreveu Elements of Political Economy, em 1858, bem como Theory and Practice of Bankin. Representa, para Schumpeter, um dos precursores da moderna teoria analítica do crédito bancário, na medida

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inglesa de Smith, Ricardo e Mill. Na sessão no Parlamento, em 16 de junho de 1851, o deputado Zacarias de Góis afirmou que o lente de São Paulo estava indicando as teorias absurdas de Rousseau e seus adeptos. Isso feria as diretrizes apontadas desde a fundação da Faculdade de Direito, pois Já nos estatutos de 1825 estabelecia-se para cada disciplina do curso os livros básicos de referência que deveriam inspirar os docentes na preparação de suas aulas e servir de complemento para o estudo dos alunos. Para Economia Política foram selecionados os seguintes autores: Adam Smith, Thomas Malthus, David Ricardo, Jean Baptiste Say, Simonde de Sismondi e William Godwin (apud GREMAUD, 1997, p. 28-29).

Bernardo de Souza Franco, que de deputado alcançou o cargo de ministro da Fazenda, por exemplo, além do pensamento econômico europeu, também conhecia a atuação dos ministros da Fazenda norteamericanos: Hamilton, Wolcott, Gallatin – este último ficou 12 anos à frente dessa pasta –, além de Dallas e Wolbury, que ele citava com alguma frequência (BENTIVOGLIO, 2002). Percebe-se que os brasileiros acompanhavam as tendências e os debates não somente europeus acerca das questões político-econômicas. Eram, por exemplo, constantes suas referências ao semanário inglês The Economist.3 A influência de Smith, Say e Malthus não se fez sentir apenas na obra do Visconde de Cairu, mas também em Solano Constantino, Acúrcio das Neves, Manuel de Almeida e Ferreira Borges. Solano Constantino traduziu o livro de Malthus. Ele defendia a industrialização e foi considerado um dos precursores de List e Carey. Acúrcio Neves apregoou a necessidade das manufaturas para a prosperidade agrícola (LIMA, 1969, p. 53-4). Como se vê, a elite imperial interessava-se em conhecer as teorias formuladas recentemente, sintonizando-se com o mundo civilizado. A respeito do protecionismo ou não à indústria, três falas são reveladoras, ambas pronunciadas no Senado, na sessão de 29 de agosto de 1851. Na primeira, o senador Montezuma revela que essa questão divide os economistas políticos, mas que ele achava melhor “[...] andar no meio termo das coisas, não chegar a extremos”, afirmando que optava por um

em que rejeitava a concepção de se distinguir capital de moeda e notas de depósitos bancários, definindo a economia como a ciência das trocas. 3 Na sessão de 9 de junho de 1854, por exemplo, há referência a esse periódico.

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“sistema médio”. D. Manoel, na mesma linha, afirma que “[...] dois escritores [...] ocuparam a atenção na França, Blanqui e Chevalier, o primeiro defendendo a liberdade para a indústria e o segundo direitos diferenciais e até proibitivos”. Para ele não era o caso de se levar a extremos, mas de se conciliar essas duas opiniões à realidade brasileira, afirmando, em seguida, que não estava disposto “[...] a obrigar meus concidadãos a um grande sacrifício para enriquecer um, dois, três ou quatro indivíduos”.4 Por fim, pronunciou-se o ministro da Fazenda Rodrigues Torres:

[...] não sou partidista da liberdade ilimitada da indústria aplicada ao nosso país, porque entendo que em um país inteiramente agrícola como o nosso, onde há escassez de braços e de capitais, devemos esforçarnos não por dar desenvolvimento à indústria fabril em desproporção com as nossas circunstâncias, mas desenvolvimento razoável que faça mais rapidamente crescer suas forças e aumentar a riqueza pública [...]. Entendo que o meio mais conveniente é uma revisão da tarifa ou pauta das alfândegas (ANAIS DO PARLAMENTO, 1850, 717-8).

Essas breves considerações permitem avaliar as vicissitudes do liberalismo no Brasil, no início do século XIX, o diálogo intenso travado com a economia política clássica que era materializado por meio práticas protecionistas e filtrado por ideias conservadoras de uma elite que se consolidava ao construir o Estado imperial e ao afirmar a ordem escravista. Tais aspectos deixam claro o fato de que os encarregados de pensar a economia política no Brasil não eram meros copiadores das doutrinas estrangeiras e que tampouco expressavam um liberalismo homogêneo ou monolítico tal como desejaram muitos intérpretes. Referências

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Liberalismo, ordem e participação política na Argentina do século XIX: a perspectiva alberdiana 1 Fabio Muruci dos Santos A consolidação de sistemas constitucionais estáveis se tornou uma das prioridades da vida política hispano-americana após o período das lutas de independência. O quadro crônico de conflito civil que caracterizou boa parte do continente através do século XIX suscitou diversas mudanças de enfoque na trajetória ideológica de membros das elites letradas locais. Os ideais republicanos de expansão da participação política e educação cívica, que motivaram muitos letrados nos anos 1810 e 1820, cederam lugar à preocupação com o fortalecimento dos mecanismos de controle do Estado e da ordem constitucional. Um dos grandes desafios do pensamento político no período foi a criação de governos representativos legítimos e efetivos, capazes de ocupar o espaço deixado pela monarquia espanhola sem a utilização de meios despóticos. Enquanto expressavam preocupações com o respeito pelos direitos civis e a limitação do poder arbitrário pela lei, muitos simpatizantes do liberalismo na região demonstravam aguda desconfiança a respeito da capacidade das sociedades hispano-americanas, criadas pelo colonialismo espanhol, de viver pacificamente sob um regime representativo constitucional. Daí a prioridade dada ao tema da ordem, a qual carregou o liberalismo local com algumas tensões particulares. Essa característica suscita debate entre historiadores contemporâneos. A presença frequente de mecanismos centralizadores e dispositivos de emergência nas constituições do período, como a possibilidade da decretação de medi-

1 Este texto é parte de nosso projeto de pesquisa “Juan Bautista Alberdi e os paradoxos do liberalismo argentino do século XIX” em andamento na Ufes.

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das de exceção sempre que ameaças à ordem fossem detectadas, pode ser lida como um indicador da superficialidade dos princípios liberais que, supostamente, regeriam essas cartas. Da mesma forma, a fragilidade dos poderes legislativos diante de executivos fortes e as diversas limitações aos direitos de locomoção, expressão e crença indicariam a existência de regimes autoritários de fato sob um verniz constitucional. Por outro lado, Gabriel Negretto, sem negar os resultados arbitrários e violentos desses dispositivos, defende que esse tipo de abordagem não seria suficiente para a plena compreensão do pensamento liberal do período. As condições de instabilidade política intensa e o quadro teórico a partir do qual esse contexto foi lido também teriam que ser considerados como essenciais para a determinação das alternativas de governo consideradas viáveis. Dado o ambiente de conflito agudo e a arbitrariedade pessoal que dominaria a vida política, a adoção de meios legais de exercício do poder, mesmo aplicados de forma centralista e usando poderes de emergência com certa regularidade, poderia ser vista como um avanço na regularização das práticas do Estado. Garantia, por exemplo, que certas ações excepcionais do Executivo tivessem que receber aprovação do Legislativo, o que limitava o pleno exercício do arbítrio pessoal. Naquele contexto, seria uma perspectiva realista a respeito de um constitucionalismo possível (NEGRETTO, 2002). Aqui, também, o tema da “ordem” assume precedência na agenda política. A Argentina se destacava como uma das regiões mais agitadas, constantemente atingida por conflitos entre Buenos Aires e as demais províncias. Ali, a relação entre ordem e direito foi tematizada de forma bastante sistemática por Juan Bautista Alberdi. Alberdi pertenceu ao grupo de jovens intelectuais exilados de oposição ao regime de Juan Manuel de Rosas, conhecido como Geração de 1837. Embora suas relações com o rosismo tenham oscilado em diferentes momentos, Alberdi terminou por louvar sua derrubada pela rebelião liderada por Justo José de Urquiza, em 1852. Aproveitando a oportunidade gerada naquele momento, Alberdi redigiu uma proposta de Constituição que, a seu ver, poderia resolver os males que afligiam a confederação argentina desde a sua origem. Sua proposta deu origem ao livro Bases y puntos de partida para la reorganización de la Republica Argentina, publicado naquele mesmo ano e depois revisto em edições posteriores. A obra, além do modelo constitucional sugerido, é uma reflexão de

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ampla escala sobre as perspectivas do liberalismo no cenário hispanoamericano. Alberdi discute as peculiaridades históricas do continente, a histórica política local recente e os modelos constitucionais já em uso para alcançar um diagnóstico dos males que, em sua opinião, teriam levado ao quadro de fragilidade dos regimes constitucionais locais. Em sua análise, é possível destacar o predomínio do tema da ordem como uma característica determinante de seu liberalismo. Ao mesmo tempo, é importante enfatizar que tal direcionamento não exclui a preocupação com temas essenciais de uma agenda liberal, como o dos diretos civis e o da liberdade. Porém, tais temas são enquadrados em uma concepção geral que vê a expansão da comunidade política como uma ameaça a esses mesmos direitos, dadas as condições objetivas da vida política local. Nesse sentido, Alberdi apresenta uma articulada percepção das questões colocadas por Gabriel Negretto citadas anteriormente. Sua reflexão busca definir as condições objetivas que, em sua leitura, garantiriam a vigência real das leis, considerando que o fortalecimento do Poder Executivo era uma solução inevitável. Porém, ao mesmo tempo, procurava criar mecanismos que regulamentassem o uso desse mesmo poder. Para tornar mais claros seus objetivos, analisou e refutou cartas constitucionais que considerava como liberais apenas na aparência pois continham dispositivos que anulariam todos os direitos que afirmavam defender. Apesar disso, seu próprio liberalismo não deixava de produzir mecanismos excludentes. Em seu livro, Alberdi articula a eficiência dos dispositivos constitucionais ao desenvolvimento político das sociedades. Absorvendo lições de Montesquieu, sua abordagem historicista privilegia os costumes acima dos aspectos formais da lei, tomando a adequação entre direito formal e práticas sociais como requisito indispensável para sua vigência. A lei não aparece como produto da ação racional pura do legislador e sim como fruto da evolução orgânica das sociedades:

O homem não escolhe arbitrariamente sua constituição robusta ou esbelta, nervosa ou sangüínea; tampouco o povo dá para si, por sua vontade, uma Constituição monárquica ou republicana, federal ou unitária. Ele recebe essas disposições ao nascer: recebe-as do solo onde tem lugar sua morada, do número e da condição dos povoadores iniciais, das instituições anteriores e dos fatos que constituem sua histó-

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ria: em tudo aquilo que sua vontade não tem mais ação do que a direção dada ao desenvolvimento dessas coisas no sentido mais vantajoso a seu destino providencial (ALBERDI, 1994, p. 91).

Toda lei deve se ajustar ao desenvolvimento da sociedade que regerá e, dessa forma, deve ser produto de uma reflexão original sobre as particularidades daquele contexto: “A Constituição que não é original é má porque, devendo ser a expressão de uma combinação especial de fatos, de homens e de coisas, deve oferecer essencialmente a originalidade que afeta essa combinação no país que tem que constituir-se” (ALBERDI, 1994, p. 32). A transposição de leis de outra nação, baseada na crença de sua suposta universalidade, seria ineficiente. O erro da primeira geração de constituintes platinos, comandados por Bernardino Rivadavia em 1826, teria sido a crença no poder das ideias e princípios abstratos como instituidores da ordem social, uma influência perversa da Revolução Francesa, ingenuamente aplicada em condições pouco propícias: “Paradoxal e utópico é o propósito de realizar as concepções audazes de Sièyes e as doutrinas puritanas de Massachusetts, com nossos peões e gaúchos que apenas levavam vantagens sobre os indígenas” (ALBERDI, 1994, p. 180). Para Alberdi, os esforços de Rivadavia em disseminar a educação cívica e expandir a participação política eram totalmente inadequados para uma sociedade sem qualquer prática histórica de autogoverno, como a que os Estados Unidos teriam. Os séculos de governo colonial teriam criado uma estrutura política centralista e pouca vida cívica. A súbita desconcentração da autoridade estimularia ambições provinciais e ideais democráticos, sem estruturas formais de governo que os canalizassem de forma ordenada. O resultado seria a disseminação de um espírito insurrecional constante. Faltaria aos rivadavianos o respeito pelas etapas normais do desenvolvimento social. O pensamento de Alberdi sofreu consideráveis transformações entre seus primeiros escritos e o período de redação de Bases. Alejandro Herrero propõe duas fases principais em sua trajetória. Em seus primeiros escritos, seria visível uma significativa influência de escritores franceses da geração de 1830, como Pierre Leroux e Jean Louis Lerminier. Nesse período, promove a continuidade da “revolução da igualdade e da inteligência”, em que a república popular superaria o poder da monarquia e da aristocracia. Destaca a primazia da vontade coletiva e a função

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de educação política das artes, mais essencial do que o puro prazer estético. No entanto, já nessa época, alertava contra os riscos do voluntarismo democrático, defendendo que o republicanismo não existiria sem o progresso da “inteligência” (HERRERO, 2006, p. 36). Suas posições foram muito influenciadas pelos eventos traumáticos do regime rosista. Por algum tempo, Alberdi pareceu acreditar que Juan Manuel de Rosas poderia representar um modelo de governo forte, com apoio popular e aconselhamento dos letrados, necessário para estabilizar a ordem política nacional. Porém, a decepção com os rumos autoritários e tradicionalistas do regime de Rosas e com a retomada dos conflitos civis estimulou sua preocupação com os riscos que o despotismo pessoal e a agitação política constante traziam para os direitos civis e o ordenamento social. Nessa fase, passa a considerar que a soberania popular só poderia se tornar realidade com a futura elevação intelectual das massas. Até lá, o governo teria que ser conduzido por minorias ilustradas. Já nos anos 1840 e 1850, Alberdi encontra-se em busca de mecanismos constitucionais adequados a um contexto marcado pela oscilação entre despotismo e desordem. Desenvolve uma crescente inclinação pelo realismo político, procurando estabelecer com mais clareza as esferas particulares da sociedade civil e do Estado. Os direitos civis, tidos como naturais a toda a sociedade, são agudamente distinguidos dos direitos políticos, que emanariam da ordem estatal. Além disso, reforça sua recusa em pensar a sociedade como objeto passivo sobre o qual se exerceria a ação legislativa, tomando-a, inversamente, como um organismo a ser interpretado para a construção da lei (PALTI, 1994). Partindo dessas premissas historicistas, Alberdi coloca na sociedade a origem dos males platinos, já que os costumes seriam os verdadeiros fundamentos da ordem social. Nenhuma formulação jurídica superaria a ausência de costumes ordenados. Um costume só pode ser superado por uma prática mais forte. A instauração da ordem tinha que ser feita por uma reforma social que alterasse o comportamento belicoso e indisciplinado das populações platinas, tanto das elites como do povo: O problema do governo possível na América antes espanhola não tem mais de uma solução sensata, que é a que consiste em elevar nossos povos à altura da forma de governo que a necessidade nos impôs; em dar-lhe a aptidão que lhes falta para ser republicanos; em fazê-los dig-

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nos da república que proclamamos, que não podemos praticar hoje nem tampouco abandonar; em melhorar o governo pela melhoria dos governados; em melhorar a sociedade para obter a melhoria do poder, que é sua expressão e resultado direto (ALBERDI, 1994, p. 62).

O julgamento geral de Alberdi sobre as condições das populações locais para alcançar um padrão elevado de disciplina social é extremamente negativo: “Com três milhões de indígenas, cristãos e católicos, não realizareis certamente a república” (ALBERDI, 1994, p. 181). Para mudar os costumes, seria necessária a presença de populações com outra experiência histórica, com costumes marcados pela disciplina, produtividade e espírito empreendedor. Mas tal reforma não poderia ser realizada sem que os princípios que orientavam o constitucionalismo hispano-americano mudassem primeiro. As leis predominantes no continente até então caminhariam no sentido inverso desse objetivo, pois foram criadas em um momento em que a meta era a defesa contra a presença estrangeira. Dificuldades de naturalização, barreiras contra a posse de propriedades e limitações de trânsito atormentariam a vida dos estrangeiros que quisessem viver na América do Sul. A lei argentina seria inspirada nos princípios franceses da época revolucionária, nacionalistas e de protecionismo comercial, os quais já se teriam tornado anacrônicos no momento de integração da economia capitalista internacional de meados do século XIX. O isolamento seria um mal sul-americano herdado da independência. Em vez de separação, os dois lados do Atlântico deveriam buscar o reencontro pela via da migração humana. Daí a insistência de Alberdi em todo o seu projeto constitucional em defender medidas que facilitassem a entrada e a regularização de imigrantes vindos de países economicamente modernos. O modelo não deveria ser a França nacionalista e sim os Estados Unidos, abertos para a entrada de amplas ondas de imigração para ocupar um território continental. Os hábitos intelectuais também teriam que ser mudados. Discordando frontalmente de seu contemporâneo Domingo Faustino Sarmiento, considerava que o ensino de valores cívicos nas escolas públicas apenas estimulava a agitação política e a retórica, quando o necessário seria o espírito empreendedor na economia e a disciplina no trabalho. O contato com imigrantes de origem anglo-saxônica ou alemã disseminaria costumes de disciplina e produtividade entre os gaúchos platinos com

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mais eficiência que escolas (BOTANA, 1997). O ensino do latim deveria ser urgentemente substituído pelo da língua inglesa. Em seus artigos de polêmica com Sarmiento, posteriormente intitulados Cartas Quillotanas, Alberdi atacou duramente a prática da elite argentina de usar a imprensa como veículo para disputas políticas e ataques pessoais, o que via como estímulo para sentimentos apaixonados e improdutivos. A coerência e o espírito de ordenamento deveriam prevalecer na própria prática dos homens de letras: “No es la resistencia, senõr Sarmiento, lo que deben enseñar los buenos escritores a nuestra América española enviciada en la rebelión; es la obediencia”(ALBERDI, 2005, p. 132). Além de incitar paixões políticas mal compreendidas entre massas pouco disciplinadas, o constante uso da retórica cívica também teria efeito pernicioso entre as elites, alimentando o culto militarista da glória, criado nas lutas de independência e nunca superado. A cultura republicana de grandeza histórica e frugalidade espartana desestimularia o interesse pelo crescimento econômico: A glória militar era o objeto supremo de ambição. O comércio e o bemestar material se apresentavam como bens destituídos de brilho. A pobreza e a sobriedade dos republicanos de Esparta eram realçadas como virtudes dignas de serem imitadas por nossos republicanos da primeira época. Opunham-se com orgulho às ricas telas da Europa os tecidos grotescos de nossos camponeses. O luxo era visto com maus olhos e considerado como o escolho da moral e da liberdade pública (ALBERDI, 1994, p. 53-54).

A busca pela imortalidade deveria ser substituída por objetivos mais banais, porém, para Alberdi, de resultados mais sólidos, como a satisfação do interesse particular em uma economia em expansão, capaz de ordenar progressivamente a sociedade por meio dos hábitos calmos do comércio e da indústria. A mesma ausência de sectarismo e passionalidade deveria ser seguida em assuntos religiosos. A garantia constitucional de liberdade religiosa na esfera privada era fundamental para evitar que o tema afastasse os colonos protestantes, exatamente as populações mais enérgicas. Alberdi se angustiava com o exemplo do México, onde seria preciso jurar ser católico para ter a cidadania reconhecida. Para países em formação, a perspectiva inclusiva deveria predominar amplamente sobre a seletiva. Citava a Califórnia como exemplo de postura

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receptiva aos estrangeiros que a Argentina deveria seguir. Além da fraca autoridade do Estado após o fim do domínio monárquico espanhol, a ausência de economia industrial causaria uma carência de hábitos de regularidade e disciplina: “A indústria é o calmante por excelência. Ela conduz pelo bem-estar e pela riqueza à ordem, pela ordem à liberdade: exemplos disso são a Inglaterra e os Estados Unidos” (ALBERDI, 1994, p. 67). A América Hispânica precisaria estimular o hábito da obediência à lei, tanto na política quanto nos hábitos cotidianos, que seria parte necessária de qualquer sociedade ordenada que quisesse evitar tanto a desordem quanto o despotismo: “Algo muito simples distingue o país civilizado do país selvagem. Algo muito simples distingue a cidade de Londres de um acampamento de índios dos Pampas: tratase do respeito que a primeira tem a seu governo e o desprezo cínico que a horda tem por seu chefe” (ALBERDI, 1994, p. 205). Diante dessas carências profundas, a expansão da arena política com a inclusão de uma população indisciplinada seria totalmente contrária aos objetivos de ordenamento necessários ao progresso econômico e ao estado de direito. Sem o respeito pela autoridade da lei, não seria viável a real defesa dos direitos constitucionais. Em um contexto de desordem, segundo Alberdi, a democracia é uma ameaça aos direitos porque o cidadão se vê desprotegido tanto diante das multidões quanto do Estado tomado pelo arbítrio pessoal. Como aponta Jeremy Adelman, o desafio seria construir um modelo de justiça direcionado para a defesa dos direitos do indivíduo dentro de uma percepção de que a sociedade estava amplamente despreparada para o self-government. Desse ponto de vista, seria ilusório criar uma carta para defender direitos que, na realidade, não existiriam. Seria necessário consolidar a ordem constitucional para constituir e garantir os direitos da sociedade civil (ADELMAN, 2007). Esse diagnóstico gera uma inversão de certas premissas liberais, transformando o Estado constitucional no instaurador de direitos onde eles não são produtos espontâneos da vida associativa local, como na teoria norte-americana, ou frutos da resistência contra o absolutismo, como no modelo britânico. Tendo em vista a história de centralismo político local, Alberdi considerava contraproducente impor a descentralização por decisão legislativa. Os hábitos legados pela colonização estariam muito arraigados para serem anulados pela vontade racional. Caberia utilizar essas inclinações e direcioná-las para a elaboração de um poder constitucional vigoroso,

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que oferecesse garantias para que os agentes ordenadores do trabalho e do progresso atuassem sobre os costumes da população local sem se sentirem ameaçados. Os períodos de governo autoritário teriam contribuído para esse objetivo ao exercitar as populações platinas na necessária arte da obediência: “Aprende-se a governar obedecendo e vice-versa” (ALBERDI, 1994, p. 169). Mesmo a despótica obediência imposta durante o governo de Rosas teria dado sua contribuição, desde que agora ela fosse direcionada para a autoridade da carta constitucional em vias de ser criada:

O poder supõe o hábito da obediência [...]. Essa disposição, obra involuntária do despotismo, será tão fecunda mais adiante, quando colocada a serviço de um governo elevado e patriota em suas tendências, quanto foi estéril sob o governo que a criou no interesse de seu egoísmo (ALBERDI, 1994, p. 168) O poder, o princípio de autoridade e de comando, como elemento de ordem, permanece e existe, apesar de sua origem dolorosa. A nova política deve conservá-lo em vez de destruí-lo (ALBERDI, 1994, p. 170).

Nessa perspectiva, mesmo a autoridade dos caudilhos, em princípio uma constante ameaça aos esforços de construção da autoridade nacionalmente unificada, teria sua contribuição a dar na medida em que fosse institucionalizada e acatasse as regras constitucionais. A própria experiência dolorosa da guerra constante já estaria ensinando para as elites provinciais o valor da disciplina e das regras:

Os que antes eram repelidos com o ditado de caciques, hoje são aceitos no seio da sociedade da qual se tornaram dignos ao adquirir hábitos mais cultos, sentimentos mais civilizados. Esses chefes, antes rudes e selváticos, cultivaram o espírito e o caráter na escola do comando, em que muitas vezes homens inferiores se enobrecem e se ilustram. Governar dez anos é fazer um curso de política e de administração. Tais homens são hoje outros tantos meios de operar no interior uma ordem estável e proveitosa (ALBERDI, 1994, p. 169).

Ao fundar nos costumes a base de efetividade dos dispositivos

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constitucionais, Alberdi acabou desenvolvendo algumas interessantes inversões de perspectiva na mentalidade política argentina. Os mesmos caudilhos e gaúchos que tornavam inviável a adoção de um sistema republicano plenamente participativo não deixavam de ser considerados como sujeitos políticos necessários em um projeto ordenador mais pragmático. Além do comentário acima citado sobre as lideranças regionais, Alberdi, alguns anos após, veio a criticar as políticas de exclusão e agressão militar contra os gaúchos, ressaltando sua contribuição histórica para a independência argentina. Sua perspectiva era a de um amplo processo de inclusão, não pela política e sim por meio da reforma dos costumes:

Con caudillos, con unitarios, con federales, y con cuanto contiene y forma la desgraciada República, se debe proceder a su organización, sin excluir ni aún a los malos, porque también forman parte de la familia. Si establecéis la exclusión de ellos, la establecéis para todos, incluso para vosotros. Toda exclusión es división y anarquía. ¿Diréis que con los malos es imposible tener libertad perfecta? Pues sabed que no hay otro remedio que tenerla imperfecta y en la medida que es posible al país tal cual es y no tal cual no es (ALBERDI, 2005, p. 91).

O problema nacional não estava em uma suposta barbárie típica das populações rurais e sim na ausência de uma estrutura de governo adequada para canalizar construtivamente as práticas geradas por sua formação histórica particular. O processo de organização constitucional, então, deveria seguir caminho oposto ao movimento rivadaviano. Agora, a lei deveria reencontrar a realidade social sobre a qual atuaria, respeitando sua história particular. Nesse movimento, a atividade política da sociedade civil deveria ser severamente desestimulada, direcionando as forças sociais para o trabalho produtivo e a busca do interesse pessoal, atividades mais necessárias para o ordenamento nacional do que a busca da glória militar ou o idealismo político. A Constituição deveria, assim, estar concentrada no estabelecimento de garantias de propriedade, liberdade e segurança aos cidadãos empreendedores. No ambiente especificamente político, deveria haver mecanismos centralistas que garantam a governabilidade e a sua própria durabilidade como lei superior da nação. Alberdi desenvolve uma crítica da apropriação do modelo revolucionário francês pelos indepen-

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dentistas platinos em duas direções. Por um lado, o desejo de difusão da educação republicana seria inadequado para uma sociedade carente de experiência política. Por outro, considera que o modelo francês confere demasiado poder ao Estado, submetendo os direitos do indivíduo às necessidades do poder político. O papel da lei constitucional deveria ficar delimitado de forma mais exclusiva como garantidora dos direitos civis. O Poder Executivo receberia consideráveis recursos legais para garantir essa missão, mas seria regulado pelo Legislativo para evitar as tentações do despotismo pessoal. O espaço político, por outro lado, teria o acesso restringido a grupos seletos, capazes de conduzir o processo de desenvolvimento econômico e o ordenamento social. Para alcançar esses objetivos, Alberdi dedica diversos capítulos de seu livro ao exame das constituições vigentes em diversos países da América Hispânica, avaliando suas contribuições para a meta da defesa dos direitos civis. A premissa geral de sua análise é que a maioria dessas cartas não cumpriria as promessas de respeito pelos direitos que afirma defender porque abrem espaço demasiado para que o Poder Executivo crie estados de exceção regularmente. No caso do Paraguai, por exemplo, Alberdi vê um modelo de Constituição que reforça procedimentos despóticos. Criada em 1844, após o governo de Francia, pretenderia regulamentar um Executivo forte, mas, na visão de Alberdi, apenas construiu uma ditadura disfarçada. O texto constitucional permite que o presidente assuma poderes extraordinários e organize exércitos sem necessitar de autorização do Legislativo, sempre que for preciso conservar a ordem. Seu mandato dura dez anos, nos quais só seriam previstas duas sessões do Congresso, que, por sua vez, é nomeado pelo próprio presidente: Se, em países que estão se regenerando e que têm de ser totalmente refeitos, são poucas as reuniões a cada seis meses, poder-se-ia dizer que são escassas as reuniões do Congresso do Paraguai? Talvez não, pois o Congresso detém tão pouco poder legislativo que suas reuniões são quase insignificantes [...].

O poder forte é indispensável na América, é verdade; mas o do Paraguai é o exagero desse recurso, levado ao ridículo e à injustiça; sem dúvida, aplica-se uma solução célebre por sua docilidade e sua disciplina jesuítica de tradição remota (ALBERDI, 1994, p. 50).

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Alberdi aponta uma deformação do princípio do fortalecimento do Poder Executivo, que é transformado, na prática, em um poder arbitrário porque os diversos dispositivos de que dispõe para criar situações de excepcionalidade o tornam virtualmente independente do Legislativo. A divisão dos poderes se tornaria um mero formalismo. Como curiosidade significativa, acrescenta que a palavra “liberdade” não aparece nenhuma vez no texto: “É a primeira vez que se vê uma Constituição republicana sem uma só liberdade” (ALBERDI, 1994, p. 51). No caso da Bolívia, as mesmas deformações seriam verificáveis. A Constituição de 1851, diferente da paraguaia, seria abundante em declarações de garantia dos direitos civis, mas condicionaria esse reconhecimento ao respeito pela autoridade, o que abriria enorme campo para avaliações arbitrárias: “[...] deixam reduzidas a nada as estupendas garantias para o desgraçado que se torna culpado por um simples desacato” (ALBERDI, 1994, p. 192). Declara a liberdade de consciência, mas afirma que o culto católico é o único permitido. A circulação pelo País é livre desde que não seja proibida pela polícia ou pela alfândega. Pela Constituição, casas não podem ser violadas, mas pela lei podem ser “invadidas”. E, novamente, caberia ao presidente suspender a Constituição no caso de a Pátria estar ameaçada, necessitando apenas de uma consulta aos ministros, que ele mesmo nomeia: “Nesse sentido, na Bolívia, a Constituição rege com permissão das leis. Em outras partes, a Constituição faz viver as leis; ali as leis fazem viver a Constituição. As leis são a regra, a Constituição é a exceção” (ALBERDI, 1994, p. 193). Toda a estrutura legal da América Hispânica estaria viciada pela incoerência entre as diversas esferas legais: “Com um direito constitucional republicano e um direito administrativo colonial e monárquico, a América do Sul arrebata por um lado o que promete pelo outro: a liberdade na superfície e a escravidão na profundidade” (ALBERDI, 1994, p. 100). Em seu projeto constitucional, então, estabelece o mandato presidencial por seis anos, confere ao Executivo poder de veto ao Legislativo e a possibilidade de suspender garantias individuais em casos de desordem interna ou ataques externos, mas proíbe a reeleição presidencial e exige a aprovação do Legislativo para a adoção de medidas excepcionais, dispositivo que foi atenuado na versão final aprovada (NEGRETTO, 2002). Alberdi procurava fortalecer o Executivo com poderes excepcionais constitucionalmente regulamentados contra o arbítrio pessoal.

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Um modelo de equilíbrio que buscava preservar o regime de direitos ao mesmo tempo em que limitava a participação política em um contexto de instabilidade crônica. Na perspectiva de Alberdi, as garantias constitucionais só poderiam ter aplicação real em um modelo centralizado de governo com poder para conter, simultaneamente, as rebeliões provinciais e o despotismo pessoal. Ao mesmo tempo, o fortalecimento do Executivo teria que ser rigorosamente institucionalizado em dispositivos constitucionais que exigissem aprovação do Poder Legislativo. O fortalecimento do Estado se tornava uma garantia da liberdade civil. Por outro lado, esse mesmo movimento implicava a despolitização da sociedade civil, cujo espírito insurrecional e indisciplinado era tomado como ameaça aos direitos do indivíduo. As premissas historicistas que fundamentam sua abordagem sobre a eficácia da lei e o pessimismo de seu diagnóstico sobre a sociedade argentina geram uma concepção da ordem liberal que procura garantir a esfera do direito ao preço da limitação do processo de inclusão política. Referências ADELMAN, J. Between order and liberty: Juan Bautista Alberdi and the intellectual origins of the Argentine constitutionalism. Latin American Research Review, v. 42, n. 2, p. 86-110, 2007. ALBERDI, J. B. Fundamentos da organização política da Argentina. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.

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Políticas étnicas e cotidiano: transformações da política indigenista no México após a Revolução Mexicana de 1910 Antonio Carlos Amador Gil A história contemporânea do México está profundamente marcada pelos movimentos étnicos. No decorrer do século XX, as elites mexicanas acreditavam que iriam chegar à modernidade por meio de políticas integracionistas e nacionalistas que tentaram recobrir o étnico. Para muitos intelectuais o problema indígena teria desaparecido, subsumido às questões agrárias e camponesas. Contudo, é interessante notar como hoje, em diversos países da América Latina, especialmente no México, ressurgem os movimentos étnicos. Esses processos estão profundamente associados às reformas constitucionais que estabeleceram políticas favoráveis em relação ao reconhecimento dessas identidades étnicas. São, de fato, políticas de “discriminação positiva” que tem produzido processos de reetnificação ou etnogênese e tem gerado novas identidades e novos discursos sobre o passado, operacionalizados por renovados conceitos de etnicidade, grupo étnico e identidade étnica. Se, numa perspectiva estática, a etnicidade era vista como um conjunto imutável de “traços culturais” (crenças, valores, símbolos, ritos, regras de conduta, língua, práticas de vestuário ou culinárias, etc.) transmitidos de geração para geração no grupo, a perspectiva corrente, hoje, trabalha com uma concepção dinâmica, em que a identidade étnica (ou qualquer identidade coletiva) é construída e transformada na interação de grupos sociais por meio de processos de exclusão e inclusão que estabelecem limites ou fronteiras entre tais grupos, definindo os seus

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integrantes (POUTIGNAT, 1998, p.11). Alinhando-nos numa perspectiva dinâmica, como a definida por Barth, consideramos que as identidades étnicas são construídas a partir das relações entre os grupos sociais com a delimitação de suas fronteiras ou limites. O que diferencia, em última instância, a identidade étnica de outras formas de identidade coletiva é o fato de ela ser orientada para o passado, não o da ciência histórica, mas aquele em que se representa a memória coletiva, uma história mítica. A etnicidade está ligada, portanto, à fixação dos símbolos identitários que fundam a crença em uma origem comum. A história mexicana do século XX foi profundamente marcada pela ideologia da mestiçagem. Diversos antropólogos e historiadores sustentaram essa ideologia, que foi definida como elemento da nacionalidade e, portanto, qualquer reivindicação cultural específica deveria ser tratada num contexto de contribuição à cultura nacional mestiça considerada como um todo orgânico. A construção de uma ideologia da mestiçagem foi um processo que se desenvolveu desde o período porfirista e alcançou sua maior expressão nos ideólogos da Revolução. Ela retomou as concepções criollas de identidade étnica, estendendo-as a um grupo mais amplo, o dos mestiços. Devemos ter claro que essa categoria de mestiços não pode ser associada à mestiçagem do período colonial. Se, no período colonial, os mestiços eram fruto de uma mistura entre brancos, indígenas e negros e ocupavam um lugar secundário na estrutura social colonial, os mestiços, após a Revolução Mexicana, converteram-se no grupo social dominante, que passou a definir a identidade nacional mexicana. Esse processo está diretamente ligado à criação e ao triunfo da ideologia de mestiçagem que permitiu que um grande contingente de indígenas e de brancos abandonasse os seus referenciais identitários anteriores e assumisse a identidade mestiça. A incorporação proposta pela ideologia da mestiçagem manteve o caráter elitista do ideário criollo implementado após a independência e mantido durante todo o século XIX. Se a cidadania era ampliada, a inclusão só poderia ser feita se houvesse o abandono da identidade indígena e a adoção dos valores culturais ocidentais. Não podemos deixar de lembrar que, no início do século XX, imperava uma série de doutrinas raciais e deterministas que consideravam as “raças” misturadas como inferiores a seus componentes originais. Durante o século XIX, as ideias evolucionistas de Spencer (1820-1903) tiveram grande inserção nos setores

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intelectuais criollos. No entanto, os ideólogos da mestiçagem no México defenderam a positividade da mescla que gerava algo muito melhor do que os indígenas que, demograficamente, eram um elemento que não poderia ser negligenciado. Isso não impediu que a própria estruturação dessa identidade mestiça fosse permeada por um racismo que envolve as relações interétnicas até os dias de hoje. Como ideologia, o Estado mexicano a impôs como a única identidade válida, excluindo todas que não aceitassem a sua transformação. Foi implementada, portanto, uma política homogeneizadora e unificadora, e o Estado adotou políticas públicas com esse objetivo. O processo de mestiçagem no México forçava a participação dos indígenas, que deviam ser incorporados à comunidade nacional mexicana desde que abandonassem a sua cultura e sua identidade. Para que isso ocorresse, foi instaurado pelo Estado o indigenismo, uma política sistemática para tentar resolver a questão indígena e incorporar os índios definitivamente por meio da mestiçagem. Essa política pretendia fazer com que a integração se desse pelo avanço da ciência e do progresso (NAVARRETE, 2004, p. 108). O indigenismo contém três elementos fundamentais: a denúncia da opressão do índio, a busca de políticas de superação da situação indígena pelo caminho da integração e a manifestação do caráter mestiço do continente. O indigenismo foi uma política governamental nutrida por uma visão de mundo que apontava as políticas e as ações dirigidas aos indígenas, porém em uma perspectiva não indígena. Gonzalo Aguirre Beltrán, num discurso em 1967, como diretor do Instituto Indigenista Interamericano, afirmou: “O indigenismo não é uma política formulada por índios [...] mas sim por não índios”. Após a Revolução Mexicana, os responsáveis pela política indigenista estabeleceram uma estratégia definida de integração. Defendiam que a multietnicidade era o fator central que impedia o progresso. As políticas indigenistas foram essenciais para o processo de mexicanização do México ou, dito de outra forma, para criar uma nação “integrada” e “homogênea” Nesse processo, a adoção do espanhol como idioma principal e a assimilação dos valores ocidentais derivados da influência espanhola foram elementos fundamentais. Os primeiros indigenistas tiveram um papel de destaque ao frisar a existência de populações indígenas, legítimas herdeiras das culturas indígenas antigas, e ao tratar de terminar com as teorias de desapari-

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ção, de degeneração e com o esquecimento das populações e comunidades imersas na mestiçagem. Essa abordagem da questão etniconacional foi defendida pelos nacionalistas integracionistas que possuíam um enfoque evolucionista. Apesar da preocupação em encarar o problema indígena, consideravam as características socioculturais dos povos indígenas como tradicionalistas e opostas ao progresso e à civilização que representava o México mestiço (SÁNCHEZ, 1999, p. 29) e a heterogeneidade étnica era um obstáculo para a conformação plena da nação. Dentre os intelectuais dessa corrente, podemos destacar Andrés Molina Enríquez, Manuel Gamio, José Vasconcelos e Moisés Sáenz. Manuel Gamio foi um precursor no combate aos setores que não queriam reconhecer a existência do problema indígena. Para muitos, Manuel Gamio foi considerado o pai da antropologia social no México. Iniciado o movimento social de 1910, lançou, em 1916, o livro Forjando Patria. Justino Fernández, no prólogo feito à edição de 1959, ressalta que o livro faz parte do ideário da Revolução Mexicana, tendo como propósito utilizar os conhecimentos de toda índole para fins práticos, como meio de alcançar um maior bem-estar social. É um desmentido aos que pensam a Revolução somente como um movimento caótico e destruidor (GAMIO, 1982, p. x-xi). Nesse livro, Gamio proclamou a si mesmo como o promotor de uma nova antropologia, meditando sobre os problemas que deveria resolver a administração revolucionária, particularmente “[...] integrar na vida nacional um grupo ainda muito numeroso que era a população indígena” (p. xi). Em seu primeiro capítulo, afirmava: Se pretendió esculpir la estatua de aquellas patrias con elementos raciales de origen latino y se dio al olvido, peligroso olvido a la raza indígena o a título de merced se construyó con ella humilde pedestal broncíneo, sucediendo a la postre lo que tenía que suceder: la estatua, inconsistente y frágil, cayó repetidas veces, mientras el pedestal crecía. Y esa pugna que por crear patria y nacionalidad se ha sostenido por más de un siglo, constituye en el fondo la explicación capital de nuestras contiendas civiles. Toca hoy a los revolucionarios de México empuñar el mazo y ceñir el mandil del forjador para hacer que surja del yunque milagroso la nueva patria hecha de hierro y de bronce confundidos.

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Ahi está el hierro... Ahi está el bronce... ¡Batid hemanos! (GAMIO, 1982, p. 6).

Fica clara aqui a sua preocupação com a integração do elemento indígena à nação. Gamio utilizou os métodos histórico, etnográfico e estatístico. Para ele, a finalidade primordial da antropologia social era a construção da nacionalidade, uma vez que, ao analisar a situação do México, constatava que o País ainda não constituía uma “verdadeira nação”. Havia, segundo Gamio, um Estado politicamente definido que compreendia uma minoria “moderna e civilizada” e um grande número de “pequenas pátrias” (múltiplos grupos indígenas dispersos), ou seja, um Estado multinacional com uma manifesta heterogeneidade. Ao descrever o México, Gamio ressalta essas pequenas pátrias que se dividem em dois tipos: aquelas cuja população é exclusivamente indígena e aquelas em que observa a “fusão harmônica” da “raça indígena” com a “raça de origem europeia” (GAMIO, 1982, p. 12). Para Gamio, o México estava dividido em dois grupos: de um lado, a população branca, promotora do progresso e da “civilização”; e, de outro, os grupos indígenas e mestiços, a maioria “passiva e subdesenvolvida”, que eram, até aquele momento, pouco conhecidos, exceto por contadíssimos antropólogos mexicanos e alguns estrangeiros. Para ele, esse desconhecimento era um crime imperdoável contra a nacionalidade mexicana, pois, sem conhecer as características e as necessidades daquelas agrupações, seria impossível procurar a aproximação e sua incorporação à população nacional. Ao definir as características que configurariam a nação, as ações requeridas para sua constituição ou fortalecimento seriam as seguintes: a mestiçagem dos grupos étnicos heterogêneos; a melhoria das comunicações e dos acessos a regiões isoladas; a “castelanização”; a evolução cultural na ciência, arte, religião; e a diminuição da distância evolutiva que os separava da época contemporânea (GIRAUDO, 2008, p. 15). O “verdadeiro sentimento de nacionalidade” se constituiria a partir da incorporação das “famílias indígenas” à vida nacional e, para alcançar tais fins, a Arqueologia e a Antropologia tinham um papel a cumprir. Segundo Gamio, a Antropologia deveria ser o conhecimento básico para o amplo desenvolvimento do bom governo. A única maneira de conhecer as famílias indígenas, em seu tipo físico, sua civilização e seu idioma, consistiria em investigar, com critério antropológico, seus antecedentes pré-coloniais e coloniais e suas características contemporâneas (GAMIO,

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1982, p. 15). Esse conhecimento, estabelecido pela observação científica de seu desenvolvimento, determinaria os meios necessários para suprir as necessidades dessa “grande família” a fim de colaborar com o seu futuro bem-estar físico e intelectual, incorporando as famílias indígenas à vida nacional, fortalecendo o “verdadeiro sentimento de nacionalidade” (GAMIO, 1982, p. 17-18). Para Gamio, apesar de os indígenas terem aptidões intelectuais comparáveis a qualquer “raça”, eles não despertariam espontaneamente, sendo necessário que “corações amigos” trabalhassem por sua redenção (GAMIO, 1982, p. 21-22). Seu livro Forjando Patria defende, de maneira geral, a fusão de raças, a convergência e fusão de manifestações culturais, a unificação linguística e o equilíbrio econômico dos elementos sociais. Essas características devem, a seu ver, caracterizar a população mexicana como condição primordial para a formação de uma pátria poderosa e “[...] uma nacionalidade coerente e definida” (GAMIO, 1982, p. 183). Gamio teve um papel muito importante, naquele momento, uma vez que defendia que os índios, mais da metade da população mexicana, não podiam continuar a ser ignorados. Essa ideia perpassou todos os seus escritos. Gamio se perguntava: como um país, no qual os dois grandes elementos que compõem a sua população diferem fundamentalmente em todos os aspectos e se desconhecem totalmente, poderia ser considerado como nação? Apesar da premência por mudanças e transformações, impulsionadas pelo momento revolucionário, Gamio defendia que o processo de incorporação dos indígenas deveria ser feito de maneira gradual. Para Gamio, não se devia tentar “europeizá-los” de imediato. O processo deveria se dar de tal maneira que o contato e a assimilação fossem feitos de uma forma menos traumática e cruel. A castelanização, ou seja, a imposição do espanhol como língua nacional, não significava, necessariamente, uma política de extinção violenta das línguas indígenas, como afirmaram alguns críticos da política indigenista. Alguns dirigentes da educação, nos primeiros anos revolucionários (Moisés Sáenz, por exemplo), eram partidários da castelanização direta, defendendo, inclusive, o uso de meios coercitivos e a extinção violenta das línguas vernáculas. Gamio não teve essa atitude, visto que, já em 1916, assinalava que a maioria dos habitantes de uma nacionalidade definida e integrada deveria ter um idioma comum, sem prejuízo de poder contar com outros idiomas secundários.

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Em 1910, às vésperas da Revolução, foi fundada a Escola Internacional de Arqueologia e Etnologia Americana, copatrocinada pelos governos dos Estados Unidos e da Alemanha e fortemente influenciada por Franz Boas. A inauguração da Escola ocorreu quando da visita de Franz Boas ao México, como um dos convidados de Porfírio Díaz para as celebrações da independência, sendo dirigida primeiramente por Boas e depois por Gamio (ZERMEÑO, 2002, p. 328). A instituição não sobreviveu ao período revolucionário. Em 1917, foi criada a Direção de Antropologia subordinada à Secretaria de Agricultura e Fomento, tendo à frente o próprio Manuel Gamio, que a dirigiu até 1925. Ele coordenou pesquisas no Vale de Teotihuacán que empregaram as primeiras escavações estratigráficas e metodologia renovada. O resultado dessas pesquisas, sob sua direção, foi elogiado, em 1921, pela Associação Americana de Antropologia (COMASI, 1983, p. 260). O programa de Gamio, em termos gerais, corresponde ao esforço do mundo positivista liberal em identificar, classificar (ordenar), incorporar (governar) e predizer o desenvolvimento do mundo social: se certas condições são criadas ou dadas, então, pode-se esperar que, num período de tempo razoável, a população indígena será capaz de formar uma parte importante da civilização representada pelos orquestradores desse modelo (ZERMEÑO, 2002, p. 318). Nos anos 1930, os comunistas e os lombardistas, seguidores das ideias de Vicente Lombardo Toledano,1 foram críticos das teses integracionistas. Essas duas correntes abandonaram os posicionamentos críticos a partir do início da década de 40. Durante o governo de Lázaro Cárdenas, desenvolveu-se um posicionamento diferenciado em relação à questão indígena. No final de seu mandato, em 1940, foi realizado o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano. A delegação mexicana, mesmo com distintas posições em relação à problemática indígena, apoiou o sincretismo do agrarismo cardenista e do nacionalismo integracionista, rechaçando o enfoque “racial” da problemática indígena e defendendo a adoção de uma política “integracionista”, sustentada nos princípios da igualdade individual e justiça social (SÁNCHEZ, 1999, p. 40-41). O propósito da política indigenista formulada em Pátzcuaro era a integração do índio à sociedade

1 Vicente Lombardo Toledano foi presidente da Comissão de Educação da Confederación Regional Obrera Mexicana (CROM) em 1924 e escreveu o livro El problema del índio, em que adotou a tese stalinista das nacionalidades oprimidas (SÁNCHEZ, 1999, p. 36).

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nacional, com toda a sua bagagem cultural, “[...] proporcionando-lhes os instrumentos da civilização necessários para sua articulação dentro da sociedade moderna”. Portanto, o seu objetivo político primordial continuava a ser a integração paulatina dos indígenas. A política de integração desenhada pelo Estado foi respaldada por uma série de instituições que passaram a tratar das questões indígenas e a administrar a política indigenista estatal. Em 1937, Alfonso Caso protagonizou a fundação do Departamento de Antropologia (DA), ligado ao Instituto Politécnico Nacional (IPN) (CASAS MENDONZA, 2005, p. 191). Em 1942, o Departamento de Antropologia deixou o IPN e passou ao Instituto Nacional de Antropologia e História (INAH), instituição criada em 1938. O resultado dessa mudança foi a criação da Escola Nacional de Antropologia (ENA). Alfonso Caso teve um papel central, pois era o diretor do INAH (CASAS MENDONZA, 2005, p. 192-193). Em 1946, a ENA mudou seu nome, tornando-se Escola Nacional de Antropologia e História (ENAH) e, a partir de então, foi privilegiada a contratação de antropólogos pelas agências indigenistas. Foi também nesse período que houve a criação de um novo modelo que poderíamos chamar de “integração desenvolvimentista”, possuindo influências ecléticas derivadas principalmente do particularismo histórico e do funcionalismo (CASAS MENDONZA, 2005, p. 33). Se, no período de 1910-1940, a figura relevante do processo de mediação social foi o “professor”, no período posterior aos anos 1940, a figura preferencial foi a do “antropólogo” (CASAS MENDONZA, 2005, p. 196). Paralelamente, a partir de 1940, após o governo de Cárdenas, iniciou-se um processo de asfixiamento da agricultura camponesa, com um estratégia de modernização rural que se caracterizou por uma diminuição da reforma agrária e a reversão das conquistas e compromissos firmados pela legislação agrária de 1917.2 Em 1948, durante a gestão presidencial de Miguel Alemán, houve a criação do Instituto Nacional Indigenista (INI), hoje Comissão Nacional para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas do México, 3 e Alfonso Caso tornou-se seu diretor, permanecendo no cargo até 1970. Logo após a 2 Uma das conquistas do processo revolucionário foi a promulgação da Constituição de 1917. Seu art. 27 regulamentava a posse das terras coletivas dos ejidos e a proibição de alienação, ou seja, garantia aos indígenas o direito de posse de suas propriedades comunais e sua proteção legal. 3 Em 21 de maio de 2003, foi publicado, no Diário Oficial da Federação, o decreto que expediu a Lei de Criação da Comissão Nacional para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas do México e que anulou a lei de criação do Instituto Nacional Indigenista. O decreto entrou em vigor em 5 de julho de 2003.

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criação do INI, Alfonso Caso chamou Gonzálo Aguirre Beltrán para coordenar o projeto de desenvolvimento integral em Chiapas com a fundação do primeiro Centro Coordenador Indigenista, que se instalou em San Cristóbal de Las Casas, em 1951. Esse foi, segundo Beltrán, o primeiro projeto regional de desenvolvimento integral. A aplicação desse programa de desenvolvimento pressupunha que era impossível considerar a comunidade separadamente; era necessário levar em conta o sistema intercultural do qual fazia parte. O desenvolvimento regional priorizou não somente o indígena, mas também o mestiço, ou seja, o sujeito da ação indigenista era toda a população que habita uma região intercultural. No caso, então, a modernização ou a ocidentalização da cidade mestiça era um fator primordial para o “melhoramento” da situação indígena. Gonzalo Aguirre Beltrán tinha tido uma primeira experiência na aplicação de programas com enfoque regional no Departamento Geral de Assuntos Indígenas (DGAI), em 1945, e já possuía uma posição crítica da etapa incorporacionista por não ter levado em consideração as diferenças socioculturais e os contextos regionais (CASAS MENDONZA, 2005, p. 180). A obra de Aguirre Beltrán foi profícua e influenciou, enormemente, o indigenismo mexicano. Para Díaz-Polanco, Aguirre Beltrán desenvolveu uma perspectiva teórica e prática que foi adotada como “[...] versão oficial e como programa de ação por parte do Estado mexicano” (SÁNCHEZ, 1999, p. 44-49). Como médico e antropólogo, estudou temas relacionados com os indígenas que vão da educação, política, economia, à medicina e à magia. Publicou diversos livros importantes, por exemplo, em 1957, El proceso de aculturación que, para muitos, é a obra-base do indigenismo mexicano. No final da década de 70, assume a direção do INI. De 1981 em diante, trabalhou no Centro de Investigaciones y Estudios Superiores de Antropología Social (CIESAS). Morreu em 1996. Aguirre Beltrán, em seu livro O processo de aculturação e a mudança sociocultural no México, define um dos elementos principais de sua teoria, a ideia de integração regional. Para ele, as comunidades indígenas se apresentam como partes de um sistema constituído por um núcleo dominante ladino (no caso, mestiço ou nacional) ao redor do qual giram, como satélites, os povos índios. Ou seja, para Aguirre Beltrán, a maioria dos grupos étnicos da Mesoamérica está inserida num sistema solar de mercado, num padrão de integração regional regido por uma cidade mestiça. A região tzeltal-tzotzil de Chiapas seria um exemplo manifesto.

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A função da ação indigenista estaria na aceleração desse processo de integração. Para Aguirre Beltrán, a ação indigenista não deveria fortalecer, de modo algum, os valores e as instituições das comunidades indígenas para que estas se conservassem como tais. As pesquisas de campo de Beltrán o levaram a concluir que o mundo comunitário indígena foi instrumento e resultado de um triplo processo de subordinação, exploração e exclusão e que, dessa forma, o fim da sujeição cultural indígena estaria ligado à desaparição das instituições tradicionais do poder comunitário. As ações indigenistas foram ligadas, portanto, às ideias de mudança cultural para a integração à “grande comunidade nacional”. Aguirre Beltrán reiterou que o indigenismo não estava destinado a procurar a atenção e o melhoramento do indígena como sua finalidade última, mas, sim, como um meio para a consecução de uma meta muito mais valiosa: o avanço e o êxito da integração e desenvolvimento nacionais, sob normas de Justiça Social, em que o índio e o não índio fossem considerados cidadãos livres e iguais. Essa política foi muito ativa até o início dos anos 1970, quando começou a entrar em crise, visto que não conseguiu realizar o seu objetivo primordial, que era a integração total das comunidades indígenas, exatamente no momento em que começaram a surgir movimentos que tinham como bandeira a reafirmação das identidades étnicas indígenas e populares. Diversos movimentos indígenas contemporâneos polemizam com o indigenismo uma vez que esses movimentos privilegiam a pluralidade étnica na formação da cultura nacional. A forte permanência da ideologia da mestiçagem na consciência nacional mexicana demonstra o racismo profundamente arraigado em relação aos povos indígenas que defendem formas alternativas de estar no mundo contemporâneo. Como lidar, então, com as demandas pelo reconhecimento da pluralidade? Nós, historiadores, temos um papel importante na discussão dos caminhos para esse convívio e reconhecimento. Referências AGUIRRE BELTRÁN, Gonzalo. El Processo de aculturación y El cambio socio-cultural em México. 4. ed. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1992. (Obra Antropológica VI). AGUIRRE BELTRÁN, Gonzalo. Formas de gobierno indígena. 3. ed. México, D. F.:

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Movimento feminista e afirmação da cidadania: a luta contra a violência de gênero Maria Beatriz Nader Considerado como o movimento social mais importante do século XX, o feminismo não ficou restrito aos desejos e às mudanças somente do comportamento das mulheres. Toda sociedade sentiu não só as transformações que esse movimento implementou na vida feminina, mas também incorporou, em seus diversos setores, mudanças que proporcionaram um novo relacionamento entre homens e mulheres. A presença da mulher no campo político, no mercado de trabalho, nos programas educativos que proporcionam uma profissão e em todos os setores nos quais, durante séculos, o homem lhe negou a participação, afetou sensivelmente a vida da sociedade e o comportamento dos homens, que tiveram de aprender a conviver com a mulher também fora do espaço doméstico. Portanto, depois de passados quase 40 anos dos tempos memoráveis da década de 1970, falar que o movimento feminista ajudou a transformar o mundo se tornou lugar comum na historiografia e na literatura. As mulheres fizeram-se seres tão ousados e corajosos que se pode afirmar que suas realizações, após aqueles anos, são inigualáveis na história e que, sem qualquer sombra de dúvida, suas conquistas são totalmente sem volta. Hoje, milhares de mulheres em todo o mundo estão por leis colocadas em pé de igualdade com os homens, apesar de na prática continuarem prejudicadas pela perseverança histórica de receberem salários inferiores aos deles, terem menos chances de ascender na carreira profissional e serem vítimas de abusos sexuais e de violência física em seu próprio domicílio. Nem por isso as mulheres deixaram para trás as questões de intolerância que promoveram as ideias feministas. O combate à violência

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de gênero doméstica e intrafamiliar contra a mulher foi uma das principais bandeiras de luta dos movimentos feministas, que buscava o reconhecimento desse problema como um problema político. Considerando que todo poder é político, pois os homens exercem seu poder sobre as mulheres de várias formas na vida pessoal, o movimento feminista brasileiro mobilizou-se, principalmente a partir da década de 1980, na tentativa de que o Estado incorporasse suas demandas e implementasse políticas públicas voltadas especificamente para as necessidades das mulheres. Após anos de luta, algumas das reivindicações feministas foram incorporadas e apropriadas pela agenda política dos governos locais e nacional. Diante de situações históricas e inovações legais, o presente estudo abordará situações concretas transformadas em decisões judiciais e, à luz deste estudo, buscar-se-á enfocar possibilidades e perspectivas capazes de estimular novas pesquisas que tratem do processo histórico de discriminação de gênero e contribuam com o fim da violência contra a mulher. Para tanto, tomou-se o estudo do Movimento Feminista no Brasil e da implementação de políticas, programas e serviços voltados para mulheres em situação de violência de gênero como resgate de uma conquista totalmente sem volta.

Breve história do feminismo no Brasil

No Brasil, as primeiras manifestações do feminismo surgiram no período da campanha abolicionista. Daí em diante, a evolução do movimento foi lenta, mas progressiva, sob o impulso das transformações sociais que possibilitaram às mulheres de classes mais abastadas abrir as portas das casas, sair de seu redutos domésticos e trabalhar fora de casa. Restritas ao ambiente doméstico, as mulheres que desenvolviam somente atividades voltadas para a família se viram diante das numerosas ofertas de trabalho que absorviam pessoas, de ambos os sexos, detentoras de bom nível de escolaridade. Eram serviços que precisavam de moças que pertencessem às famílias de condição elevada para assumir funções em escritórios, comércio e repartições públicas (SINGER, 1981). Na virada do século XIX para o século XX, movimentos reivindicatórios surgem da iniciativa dessas mulheres e seu cunho liberal ultrapas-

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sou o elemento biológico, colocando, inclusive, em discussão o conceito de natureza que sempre foi utilizado como justificativa do poder masculino sobre as mulheres, procurando dar maior atenção ao contexto sociocultural, uma vez que este era utilizado como elemento influenciador daquele comportamento. Elas lutaram para serem incluídas nos direitos formais de cidadania e para entrar na esfera pública, por meio da luta pelo sufrágio universal, tornando suas reivindicações como movimento sufragista. Os direitos políticos eram seu principal foco. Considerado como a primeira onda do feminismo, esse movimento detinha mulheres que questionavam, refletiam e procuravam modificar diversas instituições, principalmente as relações hierárquicas e de autoridade baseadas no princípio da superioridade masculina que se constitui em um ingrediente fundamental dos mecanismos de dominação de gênero, qual seja, as relações patriarcais. Essa forma de domínio se mantinha e se reproduzia em estratégias de impedimento ao direito feminino ao voto, pois passava para a arena de luta pelo sufrágio universal o impedimento feminino de acesso ao mercado de trabalho, à educação, à legalização do divórcio e à reforma na legislação acerca do casamento. O sufrágio feminino, o divórcio, o direito à propriedade, à educação e a participação da mulher na política eram os principais pontos de luta das mulheres que pretendiam a igualdade social e política, sem, no entanto, buscar transformar a vida privada familiar. Elas aceitavam de pronto a divisão entre a esfera pública, especialmente política, e as questões de ordem privada, mas queriam acabar com as leis discriminatórias entre homens e mulheres. Confirmando essa afirmativa, Berta Lutz dá um parecer na Câmara, em 1937, afirmando:

Não encaramos a função feminina maternal apenas como fenômeno físico e clínico, mas na sua sublimação social e espiritual [...]. Enquanto ao homem interessam primordialmente as questões partidárias e os problemas técnicos e econômicos, as mulheres se dedicam, de preferência, à harmonização das relações e ao bem-estar dos seres humanos (SAFFIOTI, apud SINGER, 1981, p. 113).

Após a conquista do sufrágio feminino, a partir do início do século XX, a questão feminina ficou apenas por conta da doutrina dos partidários de ideias e princípios professados pelos liberais e pelo sistema

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político que preconizava a incorporação de mulheres aos meios coletivos de produção, o socialismo. Essas ideias propunham não uma reforma na sociedade, mas a sua transformação radical. Com efeito, pretendiam a abolição da divisão tradicional do trabalho masculino e feminino em todos os setores, a participação da mulher nos assuntos comunitários, no trabalho, no governo, na educação e na cultura, proporcionando a união dos sexos baseada na liberdade e no afeto. Também tinham como ponto de luta o direito ao voto e à legislação divorcista. Inicialmente, as ideias socialistas conquistaram somente mulheres de classes média e alta, mas, aos poucos, influenciaram as pertencentes às bases populares, principalmente as atuantes em sindicatos. Por isso, o feminismo socialista se envolveu num tema mais voltado à superexploração das mulheres no trabalho assalariado e no impedimento à sua sindicalização, buscando superar o sistema capitalista, considerado causa da falta de humanidade e da submissão feminina. Uma das ideias principais do feminismo socialista era a participação da mulher na esfera pública e política por meio do trabalho, considerado o fator preponderante para a emancipação feminina. O fato de a mulher ser sustentada pelo homem prova a sua dependência e a induz à submissão. Logo, somente participando ativamente do processo de produção, a mulher se tornaria membro ativo da sociedade, igual ao homem. Por isso, mesmo considerado como movimento sufragista, essa primeira onda do feminismo não pode ser reduzida à luta pelo sufrágio, pois foi um fenômeno político amplo, multifacetado, de longa duração e altamente efetivo que incluía demandas mais amplas, como as citadas. Ou seja, tratou-se de uma batalha pela afirmação da condição fundamental e democrática da igualdade política entre os sexos, articulada evidentemente à dimensão universal. Como consequência desse movimento, as mulheres ganharam cidadania política, acesso à educação, maiores possibilidades de emprego, dentre outras conquistas que afetaram as estratégias patriarcais de manter as mulheres na esfera privada. No entanto, não se pode dizer que as mulheres conquistaram igualdade em relação aos homens. Encarnando aos olhos masculinos um modelo de passividade, as mulheres, à primeira vista, pareciam ser submissas e conformadas ao seu destino pobre e feminino. Mesmo havendo informações sobre grupos e associações que reivindicavam melhores condições de trabalho,

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aumento salarial, redução da carga horária de trabalho e a organização de sindicatos classistas, curiosamente, a resposta feminista foi a aceitação daquele imaginário. As mulheres iriam participar da vida pública e levariam consigo a moralidade que desenvolveram na vida em família. A presença feminina na vida pública iria acarretar uma mudança de qualidade, pois as mulheres se supunham não corruptíveis, uma vez que interiorizaram o imaginário de que eram agentes de correção da vida pública. Depois da Segunda Guerra Mundial, nos anos de 1950, muitas questões feministas defendidas até então, como a inclusão formal da mulher na vida pública e política, já conquistadas em parte, cedem lugar às reivindicações sexistas e raciais. A obtenção de garantias de redução das desigualdades econômicas e sociais, que impunham as diferenças dos papéis sexuais que impediam as mulheres de se afirmarem e se expressarem, passou a ser o principal ponto de luta do feminismo mundial. Também no Brasil, a partir daquele momento, as mulheres passaram a entender que as formas de desigualdade entre homens e mulheres são resultados de processos injustos e não de disposições naturais ou qualidades de quem é capaz de apreciar ou resolver assuntos de interesse individual. Na realidade, as mulheres tomaram consciência de que seus problemas não eram somente de ordem política ou material, e sim de ordem social. Muitas diferenças entre os sexos deixaram de ser consideradas como problemas de ordem privada para dar lugar às questões públicas sobre as quais o Estado tem responsabilidade. Creches, direito ao aborto legal e gratuito, reconhecimento jurídico da mãe de família em nível profissional, eliminação legal da discriminação sexual no trabalho, licençamaternidade, paridade salarial, dentre outras, foram reivindicações de mulheres que buscavam um novo entendimento de seu papel social. Ainda na década de 1950, era costume a menina casar-se antes de completar 20 anos, e aquelas que ultrapassavam essa idade sem um marido em perspectiva normalmente sentiam constrangimentos ao serem abordadas por cobranças sociais que as consideravam “encalhadas”. As que chegavam aos 25 anos sem se terem casado eram estigmatizadas como solteironas e viviam sujeitas aos constantes embaraços e insatisfações, além de serem forçadas a um controle obrigatório de sua reputação. Como não “arranjavam marido para sustentá-las”, eram consideradas um peso para a família e somente aquelas que desenvolvessem

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alguma ocupação que gerasse remuneração capaz de sustentá-las poderiam viver mais “sossegadamente”. As mulheres que acorreram ao mercado de trabalho, em fins dos anos de 1950 e durante a década seguinte, influenciaram suas filhas a buscar um estudo que as profissionalizasse e as ajudasse a conseguir emprego com o fim de se tornarem independentes, libertando-se, em parte, das expensas financeiras masculinas que, durante séculos, deram poderes aos homens sobre elas. As que foram educadas para repetir o papel social de suas mães e tiveram que reorganizar suas vidas para se adaptar à nova condição de trabalhadoras fora do lar já não mais permitiam que suas filhas imitassem sua trajetória social. Antes, trataram de orientá-las para que tivessem uma vida melhor. Essa geração de mulheres foi protagonista de uma série de mudanças nos códigos de comportamento e nas relações entre os gêneros. Dentre essas mudanças, destaca-se a redefinição de práticas e ideologias desafiantes da dicotomia entre papéis sexuais que levaram mães a matricular suas filhas em escolas que iriam prepará-las para o enfrentamento do mercado de trabalho, alterando significativamente a idade das mulheres para o casamento. Em se tratando de história local, em Vitória, capital do Estado do Espírito Santo, na Revista Vida Capichaba, fins dos anos de 1960, o jornalista Perpétuo (1969) afirmava que as mulheres capixabas que trabalhavam fora de casa, para conquistar sua independência, chegavam a suportar até 15 horas de trabalho diário, em empregos que lhes davam somente pequena remuneração. Nessa época, o jornalista também denunciava que as mulheres trabalhadoras da cidade, principalmente as funcionárias públicas e operárias, tinham uma vida sacrificada, em função da qual 75% delas se ocupavam não com trabalhos intelectuais, mas com trabalhos que as levavam a fazer um esforço sobre-humano para manter o próprio sustento. Além disso, se quisessem contar com a confiança dos seus, tinham de apresentar à família uma folha de trabalho onde relatavam toda sua produção. O autor acrescenta que, mesmo assim, cada vez mais jovens buscavam emprego e nenhuma delas queria permanecer sem trabalho, pois

[...] se envergonhavam de sua condição de desempregadas. Muitas já deixaram os estudos, por se sentirem inúteis à sociedade. Um simples fato marca a situação dessas jovens: - Em casa não é possível a sobre-

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vivência se eu não deixar a escola e empregar-me, como o papai pede! (PERPÉTUO, 1969, p. 28).

Tão logo concluíam o primeiro grau e com aproximadamente 16 anos de idade, essas jovens iniciavam a busca por um emprego que lhes desse condições de burlar a tradição de depender economicamente de um marido, apesar de não descartarem a ideia do casamento. As filhas de famílias menos abastadas que precisavam de trabalho para custear seus estudos no ensino médio ainda muito jovens passaram a trabalhar durante o dia e estudar à noite. Nos anos de 1970, várias escolas públicas de Vitória ofereciam cursos secundários profissionalizantes no horário noturno, incorporando-se à nova legislação educacional (Lei n.° 5.692/71) e à realidade social. Só as filhas de famílias com boas condições financeiras não precisavam trabalhar e mantinham seus estudos secundários no período diurno, em escolas particulares. À primeira vista, esses dados parecem ser um tanto contraditórios, mas, não obstante a mudança no perfil da relação mulher e trabalho, proporcionou ganhos à classe feminina. A mulher passou a desempenhar um papel importante no crescimento de uma consciência favorável à entrada de outras mulheres no mercado de trabalho, produzindo efeitos que, associados às mudanças culturais ocorridas após os anos de 1960, evidenciaram-se no confronto com a nova realidade de vida das mulheres. A partir daí, o feminismo passou a ser um movimento de vulto. Ainda naqueles anos, o movimento contava com apoio inclusive de partidos políticos, principalmente os de esquerda, que se posicionaram favoráveis à emancipação da mulher, muito embora com objetivos políticos generalizados, identificando a libertação feminina com a conquista do socialismo. Aproximadamente nos anos de 1970, inicia-se a segunda onda feminista na qual foi dada ênfase às reivindicações relativas aos direitos civis, sexuais, reprodutivos, econômicos, políticos e sociais, entre outros. As mulheres queriam repensar a própria política do movimento, incluindo nela uma análise da vida diária. Assim, um slogan dessa época firmou-se como “O que é pessoal é político!”, indicando que era preciso repensar os princípios da igualdade e da democracia a partir de um viés emancipatório. Ficava claro para as mulheres que os problemas “pessoais” só poderiam ser resolvidos por meio de ações políticas. As mulheres que conquistaram o mercado do trabalho foram incen-

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tivadas pelos movimentos feministas de anos anteriores e reafirmaram o entendimento de que as formas de desigualdades entre os sexos eram resultado de processos injustos e não de falta de disposição natural ou de capacidade de apreciar ou resolver assuntos de interesse individual. Isso levou centenas de mulheres a formar grupos que se debruçaram sobre problemas voltados para a saúde, a educação e os direitos femininos. Esses grupos envolviam pessoas de todas as camadas sociais, níveis de escolaridade, credo e raça. Faziam parte deles mulheres das classes trabalhadoras que eram oprimidas por questões relativas não só ao sexo, mas também à classe social, e pessoas pertencentes às classes média e alta que tiveram acesso mais fácil ao conhecimento. Em decorrência, foram criadas inúmeras associações femininas, que desenvolveram publicações periódicas, denunciando o preconceito e a discriminação da mulher na família, na educação e no trabalho, além da discriminação sexual, que marcou com profundas diferenças socioeconômicas a relação de gênero. Inúmeros interesses foram apresentados pelas associações feministas que se formaram e a discussão sobre a violência contra a mulher ganhou centralidade nas demandas por uma distribuição equitativa de poder social. Para o entendimento da complexidade da violência contra a mulher, é de fundamental importância o conhecimento do conceito de gênero e sua ligação direta com a percepção das diferenças entre os sexos como importante demarcador de poder. O conceito de gênero estrutura a organização simbólica das relações de poder, controle e acesso às fontes de sobrevivência, além de poder ser entendido como uma construção social e cultural, sustentada pela diferença do feminino e do masculino. Em consequência, a relação entre os sexos não é um fato natural, mas sim uma interação social construída e remodelada incessantemente, entre as diferentes populações e os inúmeros períodos históricos. Por isso, é importante conhecer a estruturação e a evolução dos sistemas de gênero, ou seja, dos conjuntos de papéis sexuados, assim como as suas relações e representações que definem, culturalmente, o feminino e o masculino, concedendo-lhes identidade. Nesse sentido, o discurso de gênero foi diferente em cada época histórica e em cada cultura, expressando-se por paradigmas diversos e amparado pelo aparato jurídico, que funcionava como mecanismo de definição e de representação dos papéis genéricos. Se o conceito de gênero é a distinção entre atributos culturais

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alocados a cada um dos sexos e a dimensão biológica de seres humanos, a violência contra a mulher se refere a qualquer ato de violência que tenha por base o gênero, ou seja, o fato de a vítima ser mulher. Desde os anos de 1960, havia mulheres que já se organizavam em torno da luta contra a violência física, sexual e psicológica da mulher. Naquela época, um período de forte articulação de mulheres em todo o mundo, o Movimento Feminista começava a se politizar e a tornar públicas as relações de violência que se davam no domínio do privado. Dados consistentes sobre a violência contra a mulher foram trazidos a público e a partir daí se operou uma verdadeira batalha contra a violência dirigida à mulher, tornando-se impossível desvincular do Movimento Feminista qualquer tentativa de se legitimar ações contra a violência da mulher. Nesses mesmos anos, iniciaram-se novos alvos políticos, ou seja, a volta à democracia, a anistia aos presos e presas políticas e uma busca constante de melhores condições de vida. Contudo, foi nos anos de 1970 que os movimentos cresceram e deram origem aos movimentos urbanos de bairros, os quais quase sempre dominaram o debate político, contando com a presença maciça de mulheres que reivindicavam, além dos diversos interesses antes relacionados, melhores condições de vida e de trabalho. Devido à violência praticada pelo regime de exceção instituído no Estado brasileiro após 1964, vários grupos se formaram em torno da defesa de direitos humanos, e as mulheres, engajadas nesses grupos, foram além das discussões da violência política e produziram uma série de argumentos ligando a violência contra a pessoa à violência contra a mulher, principalmente no ambiente doméstico. Os jornais, os congressos e encontros nacionais que abordavam questões relacionadas com a discriminação passaram a olhar o tema violência de gênero, enfatizando o problema da violência doméstica. Estabeleceu-se, então, o primeiro momento da violência contra a mulher como um problema social. Denúncias de atos, mobilizações femininas no cenário público e inúmeros trabalhos acadêmicos foram se constituindo, iniciando novos olhares do Judiciário sobre o tema. Até então, os casos julgados pela Justiça que envolviam vítimas mulheres, estupros, espancamento ou femicídio,1 dentro ou fora do ambiente doméstico, demonstravam que, quanto mais o agressor se aproximava 1 O assassinato de mulheres motivado por questões de gênero (a condição de a mulher ser mulher) é conhecido como femicídio ou feminicídio.

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do comportamento esperado pela sociedade do modelo masculino de bom pai, trabalhador e honesto, maior era o afastamento do comportamento da vítima do modelo feminino prescrito de ser esposa fiel, mãe dedicada e zelosa com os filhos. A lógica que presidia essas decisões jurídicas era favorável ao agressor pelo fato de apoiar-se na oposição dos papéis sociais entre vítimas e agressores ordenados pela sociedade e na adequação dos envolvidos com eles. A partir da aplicação desse raciocínio na solução dos conflitos domésticos, verificava-se a extensão da valorização do comportamento dos envolvidos nos modelos de comportamentos socialmente elaborados. Era como se fosse mais valorado o comportamento dos envolvidos do que o próprio crime. E isso ocorria em todo o País. Um exemplo típico dessa visão machista do delito fundamentada na hierarquia e na desigualdade de lugares sociais sexuados foi o assassinato de Ângela Diniz, em 1976, no Rio de Janeiro. A condição de mulher separada, vivendo história de amor com outro homem, e o seu comportamento de mulher de vanguarda foram comportamentos tidos como fora dos padrões sociais femininos e serviram de base para os promotores que queriam denegrir a imagem de Ângela Diniz perante a sociedade. A absolvição do criminoso, Doca Street, sob alegação de que o crime foi uma reação à defesa da “honra” masculina, desencadeou revolta numa significativa parcela da sociedade que exerceu pressão para um novo julgamento em 1979, quando o assassino foi condenado. Esse caso tornou-se um marco histórico que deu visibilidade à questão da violência contra a mulher, e a mídia documentou fartamente o processo judicial. Na mesma época, ocorreram os assassinatos de Claudia Lessin Rodrigues, no Rio de Janeiro, em 1977; de Eloísa Balesteros, em Belo Horizonte, em 1980; e de Eliane de Grammont, em São Paulo, em 1981. Esse último crime, em que o ex-marido da vítima era o cantor Lindomar Castilho, motivou a campanha “Quem ama não mata”. A repercussão dessa campanha levou milhares de pessoas às ruas em todo o País, protestando contra a impunidade dos agressores. Eram políticos, professores, artistas, sindicatos, lideranças comunitárias e pessoas que sofreram agressões ou tiveram familiares agredidos. Indignadas, as milhares de mulheres que saíram em passeatas pelas ruas protestavam contra a impunidade dos agressores. Com a condenação do assassino de Ângela Diniz, no segundo julgamento, e com a divulgação

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progressiva de casos semelhantes na imprensa e a lenta abertura política que o final da ditadura estava desencadeando, as feministas perceberam que esse era o momento para se rever algumas leis no Código Civil em relação à mulher e propor mecanismos sérios que coibissem essas ações. A partir daí se operou uma verdadeira batalha contra a violência sofrida pela mulher. Todos os meios de comunicação abundam de publicações que discutem o tema e propõem formas de combate a esse tipo de violência, que parece ter um conceito novo, pois, apesar de não ignorar as práticas que existiram em todos os tempos, um novo sentimento em relação a elas tomou fôlego. As denúncias e reivindicações políticas e sociais passaram a ser o centro de entidades de cunho feministas que se formaram com o objetivo de combater a violência contra a mulher e orientar as vítimas. Centenas de mulheres de todo o globo se engajaram na política de busca de mecanismos para coibir o uso costumeiro da violência de gênero. Os movimentos feministas em todo o mundo, que até então se dedicavam somente a denunciar práticas agressivas contra a mulher, iniciaram um trabalho que objetivava mudanças legislativas e criação de serviços para atendimento às mulheres vítimas da violência de gênero. Embora possamos identificar interesses diversos apresentados por diferentes grupos feministas, a questão da opressão das mulheres ganhou centralidade na busca da democratização das relações entre mulheres e homens. No Brasil, por exemplo, a partir da década de 1980, com o início da redemocratização do País, o movimento feminista teve como foco temas relativos à violência contra a mulher e à saúde da mulher, conquistando visibilidade política e levando à construção de políticas públicas específicas. O Movimento Feminista brasileiro mobilizou-se na tentativa de que o Estado incorporasse suas demandas e implementasse políticas públicas voltadas especificamente para as necessidades das mulheres. E, ao retomarmos a história dos movimentos sociais desse período, percebese como algumas de suas reivindicações foram incorporadas e apropriadas pela agenda política dos governos locais e nacional. Um marco fundamental na história política do Brasil que acarretou mudanças significativas nas concepções de democracia e cidadania foi a Constituição de 1988, que rege sobre temas tradicionalmente tratados como pertencentes à esfera privada e, portanto, considerados anteriormente apolíticos, como “Da família, da criança, do adolescente e do idoso” (Título VIII,

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Capítulo VII). A partir dela várias reivindicações dos movimentos feministas, incluindo as políticas públicas sociais, sofreram modificações substanciais. Dentre elas, o fim da violência doméstica e intrafamiliar contra a mulher foi uma das principais bandeiras de luta dos movimentos feministas, que buscava o reconhecimento dessa questão como um problema político. E, se todo poder é político, o feminismo entendeu que, se os homens exercem seu poder sobre as mulheres de várias formas na vida pessoal, tem sentido falar de “política sexual”. Assim, o pessoal se converteu em político, e esse enfoque passou a iluminar muitos aspectos desagradáveis da vida doméstica, especialmente sua violência. Nos anos de 1980, foi instituído o “SOS – Mulher”, entidade feminista destinada a dar assistência à mulher vítima da violência, que tinha como principal objetivo instalar práticas de conscientização social e desenvolver um trabalho puramente político. Além disso, pretendia que a mulher assistida adquirisse uma nova consciência da sua condição de gênero na sociedade. Contudo, a conscientização pretendida como único método de assistência do “SOS – Mulher” não agradava muito às vítimas de violência que, antes, pretendiam receber ajuda judicial e de saúde. Logo, os interesses imediatos das organizadoras da instituição se conflitaram com os interesses das vítimas e as práticas do SOS foram prejudicadas. As unidades do SOS que sobreviveram às crises e atingiram eficácia em seus interesses adaptaram-se e absorveram equipes que atuaram paralelamente no atendimento jurídico, psicológico e de assistência social, como creches, empregos e albergues. Esse exemplo de assistência às mulheres vítimas de violência mostrou às muitas mulheres feministas que a autonomia do movimento em relação ao Estado prejudicava a conscientização da mulher vítima de violência e a implantação de políticas públicas que auxiliassem seu trabalho. Se antes não se poderia pensar em uma ligação com partidos políticos para difundir as ideias, nesse momento, com a gradual abertura política, era hora de mudar seu veículo de ação. Assim, em 1982, algumas mulheres, filiadas ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), iniciaram um trabalho de conscientização política, no sentido de alcançar cotas de poder e obter recursos para implementar políticas sociais direcionadas ao combate discriminatório feminino. Tais objetivos foram alcançados quando, em 1984, em São Paulo, foi criado o Conselho Estadual da Condição Feminina (CECF), que visava, dentre outros objeti-

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vos, a implementar frentes orientadas a resolver problemas que diziam respeito às ações de melhorias para as áreas de saúde, trabalho e violência contra a mulher. O Centro de Orientação Jurídica e Encaminhamento da Mulher (COJE) foi uma das primeiras ações do CECF de São Paulo e tinha como objeto orientar jurídica e psicologicamente mulheres que sofriam de violência. Seu trabalho consistia em prestar, além do atendimento jurídico necessário, uma conscientização da mulher vítima de violência quanto aos seus direitos e, para pôr fim à relação de subordinação, o esclarecimento a respeito da igualdade social entre os sexos. Elevando a discussão da violência contra a mulher e identificando o seu fim como uma luta prioritária de seu governo, o então presidente da República José Sarney, em 1985, criou o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). Vinculado ao Ministério da Justiça, o CNDM iniciou seus trabalhos com o objetivo de promover políticas que visassem a eliminar a discriminação contra a mulher e assegurar sua participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do País. Ainda em 1985, foi lançada a Campanha Nacional Contra a Violência Direcionada à Mulher e criada a Comissão de Violência que articulava interesses de vários ministérios. Nesse mesmo ano, tem aprovação o projeto mais significativo do CECF, de São Paulo, ou seja, a criação das Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAM). No ano seguinte, foi realizado o I Encontro Nacional de Delegadas das DEAM. O objetivo principal da DEAM, em todo o País, voltava-se para uma política social direcionada à mulher vítima de violência, doméstica ou não, e à punibilidade do agressor, independente de conscientização feminista de planejar ou colocar em prática projetos que buscassem interferir nas condições estruturais das desigualdades entre o homem e a mulher. Essa desigualdade, tradicionalmente, é caracterizada pela violência nas relações de gênero, que é uma variação da violência cultural impregnada na História do Brasil desde os tempos coloniais. Considerando ainda haver, na sociedade brasileira, comportamentos tipicamente patriarcais, nos quais os papeis femininos, durante séculos, estiveram simplesmente voltados à procriação e à obediência, era de se esperar que as estruturas de discriminação que sustentam e permeiam as desigualdades entre os sexos fossem baseadas na estratificação em que a mulher ocupa uma posição inferior. Apesar das dificuldades de sobrevivência encontradas pelas DEAMs em se manterem dentro de seu objetivo principal, o número de delega-

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cias em todo o País cresceu e sua permanência até os dias atuais clareia e dá visibilidade à violência contra a mulher, mostrando que realmente há um crime que acontece todos os dias e que, de certa forma, é compartilhado pela sociedade que insiste em manter, em determinados segmentos, as representações de gênero baseadas em caracteres patriarcais que determinados segmentos sociais insistem em preservar. A Constituição de 1988, caracterizada por seu esforço em incorporar as liberdades individuais às garantias e direitos sociais, essencialmente destinadas a tornar aquelas liberdades acessíveis a todos os cidadãos brasileiros e, por conseguinte, a assegurar real, e não meramente formal, a igualdade perante a lei, foi, sem dúvida, a conquista feminina que “consagrou” como crime a violência contra a mulher no Brasil. O princípio da igualdade é registrado repetidamente na Constituição Federal e é seu compromisso assegurar a igualdade e a justiça entre os sexos. Contudo, foi a Lei nº 11.340, criada em 7 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, que proporcionou mecanismos para se pôr em prática os compromissos assumidos pelo Brasil ao subscrever tratados internacionais que impõem a edição de leis visando a assegurar a proteção à mulher. Foi fruto de um consórcio de organizações não governamentais (ONGs) feministas que elaborou o Projeto de Lei nº 4.559/2004 do Poder Executivo, que originou o Projeto de Lei de Conversão nº 37/2006 e, posteriormente, a própria Lei nº 11.340. 2 Mais um marco da luta política feminista, a Lei Maria da Penha identifica-se com a corrente ideológica do feminismo de gênero, cujos ideais visam a assegurar proteção à mulher e acabar de vez com a desigualdade socialmente construída dentro de um sistema de dominação considerado natural, campo fértil para atos de discriminação e violência que se “naturalizam” e se incorporam ao cotidiano de milhares de mulheres. A implementação de políticas, programas e serviços voltados para mulheres em situação de violência de gênero foi uma conquista importante. A criação dos Conselhos da Mulher na década de 1980 e, mais recentemente, de Organismos Governamentais de Políticas para as Mulheres demonstra que as reivindicações femininas, para serem incluídas entre os “atores” que participam da formulação, da implementação e do controle das políticas públicas, vem sendo em alguma medida atendidas. 2 O Consórcio foi composto inicialmente pelas ONGs: CFEMEA, CEPIA, CLADEM, THEMIS, AGENDE, ADVOCACI e CEDIM. Posteriormente, outras instituições e pessoas somaram-se ao Consórcio.

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No entanto, essa participação se restringe, muitas vezes, a assuntos específicos e a pastas que não tem orçamento próprio ou autonomia política. Ressalvando-se as dificuldades, a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) pelo Governo Federal, em 2003, significou avanços na implementação de políticas públicas e na articulação política, especialmente no que tange ao enfrentamento à violência contra as mulheres. Nesse sentido, destacam-se o Plano Nacional de Políticas para Mulheres (2004), a sanção da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (2007) e o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2008). Essas políticas voltadas para as mulheres devem se transformar e se consolidar, cada vez mais, em políticas de gênero, que trazem em si o foco inovador da dimensão relacional entre os gêneros e da sua transversalidade. O esforço teórico e político de que o gênero seja balizador das diretrizes das políticas públicas voltadas para mulheres objetiva construir possibilidades de emancipação para mulheres e homens, promovendo mudanças políticas, sociais e subjetivas que, com certeza, proporcionarão conquistas feministas que não terão volta. Referências ALMEIDA, S. S. Femicídio: algumas algemas (in)visíveis do público-privado. Rio de Janeiro: Revinter, 1998.

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Sobre os autores

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Sobre os autores

ADRIANA PEREIRA CAMPOS é professora do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, especialista em História pela mesma instituição, doutora em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora do Centro de Estudos do Oitocentos (Ceo) e bolsista produtividade do CNPq. ANA TERESA MARQUES GONÇALVES é professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, mestra em História Social pela Universidade de São Paulo, doutora em História Econômica pela mesma instituição, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir) e bolsista produtividade do CNPq. ANDRÉIA CRISTINA LOPES FRAZÃO DA SILVA é professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestra e doutora em História pela mesma instituição, pesquisadora do Programa de Estudos Medievais (Pem) e bolsista produtividade do CNPq. ANDRÉS ZARANKIN é professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor e pós-doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas, tendo realizado curso de pós-doutorado junto ao Consejo Nacional de Investigaciones Cientificas y Técnicas (Argentina). É bolsista produtividade do CNPq. ANTÔNIO CARLOS AMADOR GIL é professor do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor e pós-doutor em História pela Universidade de São Paulo.

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A cidade à prova do tempo

ENEIDA MARIA DE SOUZA MENDONÇA é professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e do Programa de PósGraduação em Geografia da Ufes, mestra e doutora em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. ÉRICA CRISTHYANE MORAIS DA SILVA é mestra em História pela Universidade Federal do Espírito Santo e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista, sob orientação da Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho. FÁBIO MURUCI DOS SANTOS é professor do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre e doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. FRÉDÉRIC MORET é Maître de Conférence da Université de ParisEst, pesquisador do Laboratório de Análise Comparada dos Poderes da mesma instituição, mestre em História pela Universidade de Paris 10 e doutor em História pela Universidade de Paris 7. GILVAN VENTURA DA SILVA é professor do Programa de PósGraduação em História e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em História pela Universidade de São Paulo, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir) e bolsista produtividade do CNPq. JOSEMAR MACHADO DE OLIVEIRA é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre e doutor em História pela Universidade de São Paulo. JULIO BENTIVOGLIO é professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em História pela Universidade Estadual Paulista e doutor em História pela Universidade de São Paulo. LANA LAGE DA GAMA LIMA é professora e atual coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense, mestra em História pela Universidade Federal Fluminense e doutora em História pela Universidade de São Paulo. LEILA MEZAN ALGRANTI é professora do Programa de PósGraduação em História da Universidade Estadual de Campinas, instituição na qual obteve a livre docência. É mestra e doutora em História pela Universidade de São Paulo. É pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (Unicamp) e bolsista produtividade do CNPq.

Vida cotidiana e relações de poder nos ambientes urbanos

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MARIA BEATRIZ NADER é professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestra em Educação e doutora em História pela Universidade de São Paulo e pós-doutora em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense. MATHILDE LARRÉRE é Maître de Conférence da Université de ParisEst, pesquisadora do Laboratório de Análise Comparada dos Poderes da mesma instituição e doutora em Letras (menção História) pela Universidade de Paris I. NORMA MUSCO MENDES é professora do Programa de PósGraduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestra em História pela mesma instituição, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense, pesquisadora do Laboratório de História Antiga (Lhia) e bolsista produtividade do CNPq. PEDRO PAULO FUNARI é professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas, instituição na qual obteve a livre docência. É mestre em Antropologia Social e doutor em Arqueologia pela Universidade de São Paulo, tendo realizado cursos de PósDoutorado nas seguintes instituições: Universidad de Barcelona, University College (Londres) e Illinois State University. É coordenador do Centro de Estudos Avançados da Unicamp e bolsista produtividade do CNPq. ROBERT MOSES PECHMAN é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Planejamento Urbano e Regional pela mesma instituição, doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas, pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e bolsista produtividade do CNPq. SEBASTIÃO PIMENTEL FRANCO é professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em Educação pela mesma instituição e doutor em História pela Universidade de São Paulo. SERGIO ALBERTO FELDMAN é professor do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em História pela Universidade de São Paulo e doutor em História pela Universidade Federal do Paraná. VINCENT LEMIRE é Maître de Conférence da Université de ParisEst, pesquisador do Laboratório de Análise Comparada dos Poderes da mesma instituição e doutor em História pela Universidade de Provença.

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