A cidade e os medos – \"Historia del miedo\" (Benjamín Naishtat, 2014)

May 24, 2017 | Autor: N. Christofoletti... | Categoria: Cinema and the City, Argentinean cinema
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Natalia Christofoletti Barrenha

A cidade e os medos – Historia del miedo (Benjamín Naishtat, 2014) Natalia Christofoletti Barrenha

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Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

O filme argentino Historia del miedo (Benjamín Naishtat, 2014), estreado no Brasil como Bem perto de Buenos Aires, é organizado como uma série de situações em que os personagens experimentam medos difíceis de nomear mas que têm a ver com a sensação de mal-estar urbano que (n)os rodeia. Os episódios transitam entre o inexplicável, o fantástico e o absolutamente concreto, situando a narrativa num ambiente de instabilidade que provoca esse insistente medo – enfatizado pela utilização de elementos formais e temáticos típicos do gênero de horror, além da recorrente utilização do suspense. Neste texto, buscamos pensar como o filme se dedica a estabelecer o medo a partir da experiência urbana desenvolvendo algumas observações tais como as potências narrativas derivadas da trilha sonora e a inscrição do extracampo enquanto agente do temor – que vem de fora (ou da alteridade). Nossa análise se inspira em reflexões sobre algumas produções brasileiras recentes como Trabalhar cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011) e O som ao redor (Kléber Mendonça Filho, 2012), que retratam o cotidiano mas se afastam do realismo tradicional para abraçar de maneira sutil aos códigos do horror. Artigos como os de Mariana Souto (2012), de Cristiane da Silveira Lima e Milene Migliano (2013) e de Kim Wilheim Dória (2014) sobre ditos filmes nos chamaram a atenção sobre a presença do gênero nas diversas figurações do medo e suas articulações com as vivências na cidade, fazendo com que esse seja outro elemento de destaque em nosso estudo. ***

Há três núcleos no longa de Naishtat: 1) uma família de classe alta que vive em um condomínio fechado, região sitiada física – e imaginariamente – que pretende se ausentar do turbilhão caótico da grande cidade e suas problemáticas; 2) Camilo e sua mãe Edith, que vivem em um apartamento na cidade – porém, nas alturas, também tentando se apartar do que acontece ao redor, e cujas características da residência indicam, como no primeiro caso, uma confortável situação econômica; 3) um conjunto de pessoas da classe baixa relacionadas por laços de parentesco, amorosos ou de trabalho, e que prestam serviços aos anteriores.

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Não há um desenvolvimento dos personagens, cujos nomes são sempre pronunciados en passant, como se suas individualidades e trajetórias não tivessem muito interesse para a trama e só importassem seus atos imediatos, sem contextualização ou motivação. Essa escassa caracterização dos indivíduos desloca certo protagonismo ao espaço: os diferentes mundos que coexistem na produção são bastante bem delineados (especialmente através de suas paisagens sonoras) e são as residências que revelam o pouco que sabemos sobre cada um, enquanto a movimentação nelas e entre elas moldam os acontecimentos do filme, sempre relacionados à maneira como é ocupado cada lugar e às fronteiras reais e fictícias estabelecidas. Somos introduzidos ao condomínio fechado (ou country, como é frequentemente denominado na Argentina) por meio de planos bastante abertos e que privilegiam as áreas externas da propriedade, nas quais seus ocupantes desfrutam de momentos de prazer: Carlos joga bola com o filho em um cenário de pintura, com folhagens por todos os lados e um avultante céu azul; Mariana, sua esposa, toma sol estendida na espreguiçadeira. O lugar é identificado pela quietude e por sons bucólicos de passarinhos, grilos e vento nas folhas. O apartamento é silencioso como um túmulo, como se fosse acusticamente isolado da cidade que espreitamos pela imensa janela de vidro – na verdade, só é possível ver o topo de alguns prédios e o céu, quase sempre carregado. Os móveis e a decoração são minimalistas, compostos por linhas retas, duras e por cores neutras, compondo com a quietude um ambiente frio e desconfortável, que mais parece um espaço morto que um lugar habitado. A casa do subúrbio – onde moram Pola (jardineiro do country) e sua mãe Teresa (empregada doméstica de Edith) –, por outro lado, é composta por uma acumulação de objetos e por cores quentes, cercada por ruídos constantes que indicam uma grande movimentação ao seu redor. Entretanto, essa vida que borbulha não faz dita residência mais aconchegante, mas sufocante. Já na sequência de abertura se ressalta a importância do espaço com uma tomada aérea que sobrevoa o que parece ser um clube, passando por um condomínio fechado com suas mansões e piscinas, e por um bairro humilde adjacente a esses lugares pomposos. Também nestas cenas iniciais se institui uma atmosfera de ambiguidade que vai rondar todo o filme: um estranhamento que devém não apenas do choque visual ao constatar-se como estão tão longe e tão perto aqueles que têm muito daqueles que têm pouco, mas maiormente porque os ocupantes do helicóptero tentam dar uma notícia através de um alto-falante, como ocorre, geralmente, em filmes apocalípticos nos quais já não se pode mais ter contato com o que ficou em terra. Devido ao som da hélice, é difícil entender o que é comunicado, sendo claras poucas palavras como “devem apresentar-se em sete dias”, “ordem de desalojo”, “perseguição e punição”.

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O ponto de vista do helicóptero se reveza com as reações dos que estão no chão, que olham assustados e confusos para o alto, mas não tomam nenhuma atitude. Não se termina de definir se tal situação é inusitada ou ordinária, como ocorrerá em diversas outras ocasiões: o que é estranho parece corriqueiro, e o que poderia ser corriqueiro é insólito, desenhando verdadeiros episódios de terror e estabelecendo o medo. Segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa, o medo é um estado emocional resultante da consciência de perigo ou de ameaça (sendo estes reais, hipotéticos ou imaginários). Para María Milagros López (citada por Pastana, 2003), o medo faz parte de nossa natureza, mas seus objetos são historicamente determinados – o medo é realidade e representação. Na coletânea Ensaios sobre o medo (2007), o organizador Adauto Novaes também destaca como as formas do medo são oscilantes no tempo e no espaço, acrescentando que, no passado, o medo vinha maiormente da natureza e do sobrenatural, enquanto, hoje, o principal medo da humanidade vem do próprio homem – afirmação complementada por Maria Rita Kehl e por Jean Delumeau no volume editado por Novaes. Segundo Kehl, atualmente, toda a enorme variedade dos sentimentos do medo ficou encoberta pelo temor em relação a nossos semelhantes. Já Delumeau lembra que, ao lado das apreensões universais que são parte do inconsciente coletivo (como o medo do mar ou da noite) ou daquelas inquietações motivadas por perigos concretos (como os desastres naturais e as epidemias), é preciso atentar aos medos mais culturais, como é o medo do outro. Segundo o autor, a alteridade nos assusta pela sua diferença, e não deixa de ser uma forma de medo do desconhecido. Delumeau ainda pinça algumas questões sobre a cidade e o medo: embora, para ele, seja uma banalidade dizer isso, hoje é sobretudo nas cidades (e, especialmente, nas grandes cidades) que se tem medo. É preciso lembrar que essa situação é contrária ao que prevaleceu durante muito tempo, já que o surgimento da cidade está ligado à necessidade de aplacar o fenômeno do medo, como nos explica Josepa Bru e Joan Vicente: As origens da cidade como realidade e como conceito foram marcadas em grande (mas não única) medida pela necessidade dos grupos humanos de se sentirem seguros e, para isso, se gerou um espaço e umas estruturas sociais e de poder que a satisfizessem. Estabeleceu-se uma relação “dentro-fora”, com a muralha como limite real e metafórico, que fazia do espaço urbano um lugar de ordem (Bru e Vicente, 2005: 15).1

Yi-fu Tuan (2005) e Zigmund Bauman (2009) também destacam o paradoxo de as cidades serem vistas como lugares assustadores e associados ao perigo 1 Todos os textos que não possuem edição em português foram traduzidos por nós.

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devido à relação fundacional entre cidade e proteção. Outro paradoxo que se dá é que, à medida que a cidade obriga à convivência e a definir políticas de integração das diferenças que frequentemente estão na origem da insegurança e do medo, ela se torna o único espaço capaz de mitigar verdadeiramente o medo sem renunciar a essa complexidade. Assim, segundo Bru e Vicente, a cidade é segura não por ser fechada, mas por ser um lugar de convivência. Porém, como já comentamos, o desconhecimento entre os sujeitos diversos causa desconfiança, e a construção (interior) do outro como estranho acaba tornando-o um inimigo exterior. Débora Regina Pastana (2003) aponta que o medo permite compreender algumas relações sociais, já que é uma forma de exteriorização cultural que intencionalmente ou não muda os valores de um grupo, aumentando ou diminuindo o grau de coesão entre os indivíduos. Dessa maneira, o medo cria novas formas de usar a cidade, mais restritivas e defensivas, induzindo mudanças na vida cotidiana dos espaços urbanos em razão das medidas de controle. De um lado, as pessoas são orientadas a ter conduta alerta, prudente, vigilante, que mesura cada ato com o cuidado necessário para evitar riscos a sua vida e patrimônio, instituindo mudanças de hábito através das precauções aprendidas pelos cidadãos para a diminuição da vulnerabilidade. De outro, a materialização do medo toma distintas expressões com a (re)estruturação do espaço urbano e a adoção de uma “arquitetura do medo” composta por elementos como muros, grades, cercas, câmeras, privatização, alarmes e um longo etcétera. A cultura do medo propaga limites de sociabilidade e incrementa a segregação espacial, além de degenerar as relações sociais em face da desconfiança (Eckert e Rocha, 2008). Quando observamos o título do filme de Naishtat em português em paralelo com seu original ficam em evidência as conexões que serão estabelecidas entre a experiência urbana e o medo. Em realidade, a cidade em si, enquanto espaço público, aparece na produção de maneira fugidia – e também como um grande extracampo –, mas são suas dinâmicas e como estas se refletem no espaço privado que determinam o que ocorre na narrativa. O country, por exemplo, é apresentado como um lugar de tranquilidade, bonança e beleza; mostrado sempre com a exuberante luz do dia – com exceção da sequência final, na qual desembocarão todas as tensões acumuladas até então. Contudo, essa (aparente) estabilidade sofre um curto-circuito logo nos primeiros planos: seja através do ruidoso e enigmático helicóptero; seja pela explosão de raiva, e sem sentido, do garoto com o pai. Os momentos disruptivos vão se encadeando e multiplicando: o alarme de uma casa que dispara sem motivo e tarda em ser desligado, a cerca quebrada, o lixo queimado que aparece sem cessar vizinho ao condomínio, o guarda que desaparece da guarita, o cortador de grama que soa como uma serra elétrica, uma chuva de barro que cai

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misteriosamente sobre o carro da segurança. Tais acontecimentos transitam entre o aterrorizante e a normalidade, despertando a dúvida e deixando os personagens e os espectadores inquietos e temerosos. O som é elemento fundamental para a introdução de uma atmosfera assustadora e desconfortável. As alterações nas rigorosas paisagens sonoras de cada ambiente colaboram para a instalação da incerteza, especialmente porque se dão em off. Assim, nunca se vê o que incomoda, que adquire dimensão fantasmal. É dessa forma, também, que se dá a presença da cidade: como uma força que age sobre tudo e todos sem que se possa defini-la de forma precisa. Nesse sentido, é interessante observar o que diz Bauman:

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O medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivo claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em lugar algum se pode vê-la. “Medo” é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver além do nosso alcance (Bauman, 2008: 08; destacados no original).

Esse clima não se restringe ao barrio cerrado e se estende aos outros lugares da ação: há o elevador que sempre trava no meio do trajeto, a aparição de um rapaz inicialmente gentil e seu acesso de fúria quando negam sua entrada em um prédio, um garoto que atua de forma estranha ao realizar movimentos de dança contemporânea na fila de um fast food, as bombinhas e bolas de futebol que ecoam como tiros, a explosão de diversas casas noticiada pela televisão (tragédia que os moradores atribuem a um meteorito). Todos esses eventos estão relacionados, de alguma forma, ao temor da invasão, psicológica ou social, moldando um medo que parece exprimir a dificuldade em compartilhar um espaço. A insistência dos sons off também aponta nessa direção ao inscrever o temor no extracampo: o que ameaça, pressiona e assusta vem de fora – ou da alteridade. Aqui, é interessante apontar como se dão (ou não) os deslocamentos dos personagens: os habitantes do country nunca saem dali, como se este fosse um lugar pleno no qual nada nem ninguém faz falta. Mesmo em seu interior os trânsitos são raros, e em suas esmeradas e convidativas ruazinhas podem ser vistos apenas o jardineiro Pola, o segurança (cujo carro para fazer a ronda é seu companheiro inseparável) e algumas crianças brincando no bosque que é parte do barrio.2 Quando Camilo e a mãe empreendem uma 2 A proximidade da natureza é uma das benesses dos condomínios fechados mais exaltadas por suas publicidades. Porém, o arvoredo do country de Bem perto de Buenos Aires está mais para perturbador do que agradável, sendo outra figura do medo que desponta no filme.

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viagem até o condomínio em seu carro hermeticamente fechado (já que mal se escuta o trânsito ou o próprio ruído do motor), deparam-se com um homem nu no meio da estrada, o qual desafia a passagem do automóvel e cujo físico e atitude nos faz lembrar um zumbi. Pola e sua namorada, Tati, são os únicos que se aventuram nas ruas, em moto, provando um corpo a corpo com a cidade. Nessas ocasiões, ela é sempre guiada por ele, que também circula sozinho tanto no veículo quanto explorando lugares a pé como o hospital em que Teresa é atendida. Movimentar-se no espaço público é se misturar, encontrar, dividir, e Pola é o único personagem que prova dessa vivência. Entretanto, não parece haver prazer nessa experiência, e os lugares pelos quais o jardineiro se move relembram sempre cenários de horror. Enquanto no country ou no apartamento é sempre dia, quando estamos no subúrbio é sempre noite. Pola deve atravessar um estreito corredor para sair de casa (o qual desemboca em um beco que, apesar de pleno de adultos e crianças brincando, está envolto em sons que parecem tiros, como já comentamos), as ruas do bairro são desertas, a quitinete de sua amante é tão sufocante quanto sua própria residência, o rio ao qual leva Tati mais parece um pântano, e o hospital está abandonado e destruído. O local mais emblemático onde podemos encontrá-lo é o imenso estacionamento vazio do hipermercado em que trabalha Tati, cujo plano geral nos permite ver o letreiro decadente “Buenos Aires 2. Walmart”. Se não conhecêssemos o título do filme em português, essa indicação nos apontaria sem dúvidas o local da ação, que ainda poderia ser adivinhado pelo travelling aéreo da primeira cena – o qual revela uma geografia bastante característica da zona norte dessa cidade, com seus clubes, shoppings, countries e autoestradas cortados por zonas empobrecidas – e pelas várias quedas de luz, frequentes no verão da Capital Federal. ***

Zumbis, pântanos, estacionamentos desertos, serra elétrica, entre outros elementos que já citamos e que aparecem claramente ou diluídos em Historia del miedo são típicos de filmes de horror. Segundo Noël Carroll (1999), as obras que se pretendem de horror devem conter dois componentes fundamentais: provocar na plateia o afeto que empresta nome ao gênero e possuir monstros, que podem ser tanto seres antinaturais, que não pertencem à realidade física, quanto seres naturais que apresentam algum desvio físico ou psicológico. De acordo com o autor, a geografia das histórias de horror geralmente situa a origem dos monstros em lugares fora ou desconhecidos do mundo humano, ou lugares marginais, ocultos ou abandonados, isto é, pertencem aos arrabaldes. De maneira similar, Luís Nogueira (2002) caracteriza os monstros como seres que entendemos como alteridade, cuja convivência é impossível de ser implementada – a aproximação só pode se dar por meio da domesticação ou da violência, já

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que não há uma linguagem compartilhada e a impossibilidade de comunicação denuncia a inexistência de um vínculo de mediação que não a força, reproduzindo o pressuposto de hostilidade com que o homem parece assinalar toda e qualquer diferença. Cumprindo com a incerteza que domina o filme, nunca fica nítido quem é o monstro dessa possível história de horror – e até mesmo se ele realmente existe. Um monstro pode ser um fantasma e, como já assinalamos, há vários que rondam o longa de Naishtat. Também pode ser o outro que se desconhece e do qual se desconfia, e a exígua interação entre os personagens e dos mesmos com o meio gera desconhecimento e desconfiança. As gélidas relações que se estabelecem são cingidas por uma violência que raras vezes se concreta fisicamente, mas que se faz presente em palavras, meneios e olhares. Pola e Camilo são jovens que se cruzam, rapidamente e de maneira pouco clara, no que parece um casting ou a gravação de um documentário promovida pelo segundo. Apesar da distância de seus cotidianos, eles terminam, cada um por seu lado, configurando-se como possíveis protagonistas (monstros?) devido ao mal-estar que parece acometê-los (ainda que de maneiras diversas) e que contamina àqueles às suas voltas. Camilo é um elemento de distúrbio por estar sempre fazendo perguntas desconfortáveis, através das quais escancara e produz estranhamento no que parece naturalizado, como ao promover o jogo no qual insta os convivas de um jantar a dizer o que gostariam de ser e de ter. Seus objetivos não são patentes, mas sua presença é evidentemente perturbadora através, especialmente, de sua fala inquisitiva. Já Pola configura-se como um elemento inquietante por meio de seu permanente silêncio. Ao não externar seu incômodo verbalmente (como o faz de maneira exaltada Camilo), sua moléstia é visível no jeito como habita seu corpo, tomado por um tipo de raiva contida que estala em pequenos gestos e em suas expressões faciais – como a que ilustra o cartaz do filme, resultado da “cara de louco” solicitada por Camilo no suposto casting. Pola e Camilo, dessa forma, se constroem tanto como amedrontadores quanto como amedrontados, materializando de forma rarefeita e ambígua essa emoção da qual o filme propõe contar a história. O cartaz de Historia del miedo, disponível no site da produtora Rei Cine: http://www.reicine.com.ar/downloads/afiche-hmSPA.jpg. Um elemento narrativo importante na maior parte das histórias de horror é o suspense, que não é exclusivo do horror e atravessa os gêneros (Carroll, 1999).3 Em entrevista a François Truffaut (2009), Alfred Hitchcock explica que o suspense independe do medo – as emoções são elementos necessários para o 3 Há também diversos trabalhos que consideram o suspense um gênero por si só, como o de Odair José Moreira da Silva (2011), que utilizaremos neste estudo já que acreditamos que as fronteiras dos gêneros são elásticas e fluidas.

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suspense, e uma delas pode ser o medo. Segundo Odair José Moreira da Silva (2011), o suspense é a espera dilatada de que algo, iminente ou tardio, aconteça; é um efeito de sentido que instaura uma suspensão no continuum da narrativa com o intuito de conduzir o espectador a sofrer, ansiosamente, por meio da expectativa dos fatos que virão a seguir. Enfim, é a espera do inesperado. O uso feito pelo filme do escuro, da sombra e de interferências visuais funciona para o público como um “parece que...”, incrementando a articulação entre ocultação e revelação de informação; o nexo entre desvelamento e dissimulação que aciona o suspense. A informação é indicada e não exposta, o que gera atenção e apreensão do espectador, o prepara e o coloca no mood, altera e gera probabilidades (Wulff, 1996). Da mesma maneira, e como já adiantamos, os sons off cumprem papel crucial na construção do suspense – ademais de emblemáticos nos filmes de horror. Naishtat utiliza padrões que, segundo Rodrigo Carreiro (2011), são recorrentes no gênero: a audição de um ruído inesperado, que provoca o susto; o deslocamento no espaço de sons cuja origem é ou pode ser ameaçadora e o retardamento do processo de identificação de um determinado som com o que o origina. Como indica K.J. Donelly (2005), o deslocamento entre o que ouvimos e vemos cria uma tensão fundamental que confunde o conhecido e o desconhecido, o que ouvimos e não, o que pensamos que ouvimos – são quebras em um mundo sincronizado. A sensação de horror vem de não poder ancorar ou corporificar uma voz ou um ruído. Ainda de acordo com Silva (2011), pode-se instaurar o suspense a partir de um único fato que move a narrativa em um crescendo, fazendo com que o efeito de suspense se arraste sem produzir variações de impacto (apenas no desenlace final). Também se podem inserir fatos diversos na construção do suspense para intensificar um impacto durativo, postulando um suspense criado em camadas. Em Historia del miedo, o suspense se constrói através do segundo processo indicado pelo pesquisador, no qual o corte abrupto configura-se como elemento importante, intervindo nas ações antes que aconteça algo concreto e mantendo um estado de suspensão. Por meio da parada, a emoção e a angústia se intensificam, fortalecendo o impacto. Porém, este nunca ocorre: os eventos são interrompidos e nunca retomados, sendo engolidos por elipses. Frustra-se o suspense, mas se promove uma aglomeração de episódios mal resolvidos que não dissipam a tensão. Esse acúmulo de momentos tem seu clímax na última sequência, quando quase todos os personagens estão reunidos em um jantar no country. Uma das presentes fala sobre um pesadelo, seguida por Edith, que descreve a aparição do “homem-zumbi” na estrada, e pelo jogo constrangedor proposto por Camilo.

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Uma queda de energia deixa um escuro absoluto e a demora do retorno da luz4 provoca agitação, nervosismo e leva à falta de controle das pessoas, ainda que estejam no condomínio superprotegido. Estar no escuro é um medo fundamental que desata outros medos. Conforme Tuan, “a escuridão produz uma sensação de isolamento e de desorientação. Com a falta de detalhes visuais nítidos e a habilidade de movimentar-se diminuída, a mente está livre para fazer aparecer por mágica imagens, inclusive de assaltantes e monstros, com o mais leve indício perceptível” (2005: 25). Para Bauman (2008), a escuridão não constitui a causa do perigo, mas é o habitat natural da incerteza e, portanto, do medo – como não é possível ver, o perigo pode estar em qualquer lugar, dando a sensação de vulnerabilidade. Pablo Giménez Font (2005) discorre que, na noite, o ser humano se sente mais exposto e vulnerável, já que este é naturalmente um momento de repouso e quietude no qual as faculdades sensoriais se minimizam enquanto se incrementa o poder do imaginário. Segundo ele, existem dois tipos de medo em torno da noite: o primeiro é subjetivo, cultural e supersticioso, relacionado com os espíritos, as bruxas e os espectros do subconsciente; o outro é o medo real que converte a escuridão no terreno dos malfeitores e dos marginalizados. Sob as trevas (que incrementam o jogo que o Historia del miedo trava com o horror), o final potencializa o frágil equilíbrio entre a normalidade e o estranho que pontuou todo o filme e endossa o jogo lúdico estabelecido com o espectador no qual se pergunta o que realmente amedronta, já que o medo parece ser, em geral, causa e efeito. Aqui, podemos recorrer mais uma vez a Novaes e a Delumeau. Para o primeiro, O mundo profano e o desejado declínio das superstições, decorrentes em grande parte do prestígio da razão, não aboliram o medo. Paradoxalmente, ao deixar de ser teológico apenas, o medo perdeu corpo. Ele se torna duplamente temido porque, além de imaginário, como o medo tradicional, nem mesmo tem nome. Muitas vezes não se sabe do que se tem medo (Novaes, 2007: 12).

Delumeau (2007) se preocupa com a relação entre a insegurança objetiva e o sentimento de insegurança: o momento em que um excesso de segurança não reconforta mais e que a busca febril pela proteção cria novamente a angústia – sendo necessário tomar consciência dos perigos criados por nós mesmos. No longa que analisamos, quanto maior a segurança, maior a inquietação, deixando as pessoas em constante sobressalto, mesmo que nada (?) aconteça. *** 4 A energia volta em poucos minutos, mas nosso senso de duração é afetado quando algo nos deixa em suspense (Silva, 2011).

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Conforme analisa Carroll (1999), o objeto do horror é aquilo que nossos esquemas conceituais excluem – o quid das tramas está em mostrar que há mais coisas no céu e na terra que as que nossos marcos conceituais vigentes reconhecem. No caso de Historia del miedo, esses marcos são os muros, as portas, as cercas, os portões e tudo e todos que estão além deles são dignos de desconfiança – e de medo. Nesse sentido, vale para o filme de Naishtat o comentário que Kim Wilheim Dória faz sobre Trabalhar cansa: Em uma obra marcada por assombrações e criaturas sobrenaturais, o horror não está no horror [como formulado por Júlio Bressane no curta-metragem Horror palace hotel, de Jairo Ferreira, 1978], mas nas passagens apresentadas entre as sequências marcadas pelo insólito: no cotidiano e na normalidade. (...) É a partir da crítica da naturalização do horror que o filme opera sua maior originalidade (...) (Dória, 2014: 782).

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