A cidade-frankenstein: cinema, fragmento e sentimento

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NAME, L. . A cidade-frankenstein: cinema, fragmento e sentimento. In: Congresso Brasileiro de Arquitetos, 17, 2003. Anais... Rio de Janeiro, 2003.

A cidade-frankenstein: cinema, fragmento e sentimento 1 Leonardo Name Arquiteto-urbanista (FAU-UFRJ) Especialista em Sociologia Urbana (IFCH-UERJ) Mestrando em Geografia (PPGG/IGEO-UFRJ)

1. Frankenstein?! Entre as muitas representações das cidades, destacam-se aquelas que a comparam a uma máquina ou a um organismo vivo.

O urbanismo modernista, com suas utopias, encontrou

sustentação no primeiro caso. A ausência de uma utopia pós-moderna tende a se aproximar do segundo, ao considerar a cidade como organismo caótico e incontrolável, avesso a uma resolução. Tal como Frankenstein, o monstro autômato da literatura de horror, nossas cidades são produtos do acaso e de saberes específicos – técnicos e científicos – que cada vez mais se apresentam como uma colagem de elementos distintos tentando formar um conjunto coeso e funcional. Também como criações – artísticas, técnicas e econômicas – as cidades estão sujeitas a erros de cálculo e de projeto, assim como a disfunções.

Como Frankenstein, podemos

considerá-la como autômato ou como vida pulsante, triunfo técnico ou fracasso humano. O cinema guarda intrínseca relação com as cidades. Foi no auge da metrópole moderna que o cinema foi criado, necessitando tanto de seu aparato industrial quanto de seu adensamento, por ser uma arte de reprodução e de massa. Ao mesmo tempo, desde os primeiros fotogramas dos operadores de câmera dos Irmãos Lumière, as cidades foram registradas em celulóide. O meio urbano é, de fato, um grande motivo cinematográfico, e muitas vezes a cidade – real ou fictícia, locação ou (re)criação em estúdio – é personagem central da trama dos filmes.2 Esta cidade cinematográfica também é uma junção de fragmentos: takes descontínuos dos espaços filmados que conformam uma totalidade pelo poder da narrativa e da montagem. DELEUZE (1990) afirma que o próprio cinema é um autômato que, a partir da ilusão do movimento, adquiriu vida, evidenciando, assim, suas características de Frankenstein. A cidade, como conceito e como experiência, é a maior obra humana, que teve seu apogeu (e posterior declínio?) no século XX. Sua forma física põe parte da responsabilidade de “Criador” nas mãos do arquiteto-urbanista. A cidade causa fascínio – por seus feitos técnicos – e horror – 1

Este paper é um desenvolvimento de parte da minha monografia para obtenção do grau de Especialista em Sociologia Urbana (NAME, 2002), enriquecida pela leitura da recém -defendida tese de doutorado do geógrafo Jorge Luís BARBOSA (2002). Dedico este texto, entretanto, àqueles mestres responsáveis pela minha formação inicial, como arquiteto-urbanista, que me enriqueceram como ser humano a partir da transmissão de seu gosto pelo ensino e das suas experiências como técnicos e pesquisadores : Ione Machado da Silveira, Lílian Vaz, Milton Feferman, Mauro Neves Nogueira e William Bittar. 2

Para FORD (1994, p. 120), o que caracteriza a cidade como personagem da narrativa cinematográfica, diferenciando-a de um mero “cenário de fundo”, é a sua capacidade de influenciar psicologicamente e interagir com as outras personagens da trama.

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pelos fracassos dos mesmos e por uma negligência do fator humano. Por isso, as cidadesfrankenstein – de concreto e de celulóide – se relacionam com os mais profundos sentimentos humanos. Como domar a criatura quando esta se torna um monstro?3 Ao tentar responder a essa pergunta ao longo do tempo, o planejamento das cidades acabou por criar novos problemas. Na balança, priorizou-se muitas vezes o peso da forma, da razão e da técnica, esquecendo-se da relação cidade-usuário.

E o cinema, como nenhuma outra arte, soube revelar as proezas

técnicas, as utopias e a insatisfação dos indivíduos da cidade com o meio urbano e seus planejadores. Através de regressões e projeções temporais – seus pedaços de tempo – a sétima arte é capaz absorver e discutir as questões mais urgentes de sua época. Ou seja: mesmo quando a narrativa cinematográfica está localizada no passado ou no futuro, muito provavelmente ela está fazendo um comentário sobre o presente (TEIXEIRA, 1999). A cidade em tela, em sua forma – seus pedaços de espaço – captura as discussões das vanguardas artísticas, dos movimentos arquitetônicos (GOLD, 1985), bem como suas críticas mais severas – muitas vezes misturando-as em um mesmo filme. Pretendo, com este trabalho, lançar uma breve discussão sobre estas intrincadas questões. Num primeiro momento, farei uma exposição sobre a espacialidade e a temporalidade no fazer arquitetônico-urbanístico e no fazer cinematográfico, de modo a deixar claro que a junção de pedaços de tempo e espaço aproxima e é inerente aos dois ofícios.

A figura do autômato

Frankenstein será retomada a partir da análise de dois notórios filmes sobre autômatos e sobre cidades – Metrópolis4 e Blade Runner – o caçador de andróides,5 utilizados para expor a relação entre a sensação do descontrole do monstro urbano, a ineficiência das soluções (em parte) adotadas pelos arquitetos e os sentimentos e representações negativos gerados em relação à cidade.

2. Fragmentos de tempo e espaço A arquitetura tardou em perceber que o espaço era seu objeto específico: há mais de dois mil anos, o arquiteto grego Vitrúvio definia vagamente a arquitetura como “ciência que deve ser acompanhada por uma grande diversidade de estudos e conhecimentos por meio dos quais ela avalia as outras artes que lhe pertencem ... O acesso desta ciência se faz através da prática e da 3

A sensação de crise urbana é, segundo o geógrafo Jérôme MONNET (2000), originária do final século XVIII, e a partir de então três metáforas de uma “cidade-monstro” começaram a se configurar, tanto na academia como nas artes: as já referidas metáforas organicista (cidade como um corpo enfermo) e mecanicista (cidade como máquina gigante e desgovernada), e aquela da Ecologia Humana que mistura as duas representações anteriores. Não pretendo aqui fazer uma apologia do catastrofismo, mas sim analisar a sensação de crise inerente à metrópole que, segundo o mesmo autor, sustenta-se por meio de uma crença em um hipotético nível máximo do caos urbano, denunciadora de uma nostalgia de uma suposta “cidade sem crise” localizada no passado (MONNET, 1996). 4

Metropolis, Fritz Lang, Alemanha, 1927.

5

Blade Runner, Ridley Scott, EUA, 1982.

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teoria”. Considerado como o primeiro teórico da arquitetura, Vitrúvio a define com conceitos que servem a qualquer ciência. Mesmo quando Vitrúvio enuncia aquilo em que consiste a arquitetura, não esclarece de forma alguma a que objeto ela se destina estudar: “Como Vitrúvio conceituava a arquitetura? Dizendo que arquitetura é ordenamento, disposição, proporção, disposição. Do que? Do espaço, por certo – mas isto era dado como algo já estabelecido. Alberti: arquitetura é voluptas, firmitas, commoditas. E o espaço? Resposta possível: está implícito. Não: está escamoteado. Viollet-Le-Duc: arquitetura é a arte de construir. Fórmula até poética, mas novamente se parte do pressuposto de que já se conhece aquilo sobre o que vai se construir ou que se vai construir. Já Perret propunha que a arquitetura é a arte de organizar o espaço: vê-se aqui, pelo menos, a noção de espaço aflorar nitidamente à superfície do pensamento arquitetural, mas o arquiteto ainda vai continuar se preocupando com as noções tradicionais de material, forma, função ... Naturalmente se poderia dizer que até meados do século XX não se tinha nem menos com o que pensar o espaço a não ser em termos tradicionais de geometria, o que efetivamente é verdade, pois algumas disciplinas fundamentais para a abordagem do espaço só irão se firmar nas primeiras décadas de 1900 (como a psicanálise), enquanto outras só irão começar a se estruturar bem mais tarde (como a proxêmica)” (COELHO NETTO, 1979, p. 12). Já o cinema se tornou possível na medida em que a realidade e o espaço passaram a ser cada vez menos associados ao divino, justapondo-se aos resquícios desta ótica a uma nova fé: a leitura científica e racional do mundo. É nesse contexto que aflora o desejo de apreender, sentir e vivenciar o espaço cotidiano, antes renegado ao segundo plano diante da crença na existência de melhores e piores espaços a serem vividos após a morte, no encontro com Deus. Em um curto espaço de tempo, o homem ocidental viu-se diante de uma realidade transfigurada, a qual deveria se adaptar. Tal acontecimento provocou fortes mudanças nas artes: a aceleração promovida pela nova tecnologia do trem, por exemplo, pode ser percebida nas paisagens dissolvidas de Turner, nas diversas representações irregulares de impressionistas como Monet e Seurat, ou nas visões alucinadas dos campos de trigo de Van Gogh; a velocidade do percurso no espaço conseguida através das novas tecnologias do momento, paixão dos futuristas, também é influência para as experiências radicais do cubismo (SEVCENKO,1998, p. 516). A cronofotografia, desenvolvida em fins do século XIX por Etiénne Jules Marey, em suas ilustrações de lutadores de esgrima e praticantes de equitação, acrobacias e ginástica que visavam a definição dos movimentos, deu substrato teórico tanto para o quinetoscópio de Thomas Edison, quanto à pintura “Nu Descendo uma Escada”, de Marcel Duchamp, de 1912 (GUNNING, op. cit., p. 35-38; CABANNE, 1987, p. 56). O cinema, desenvolvimento da técnica da cronofotografia, foi, por certo, a mais contundente resposta a esta nova visão de mundo. É esta arte que utilizando diversos recursos tecnológicos

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disponíveis no momento e sempre se apropriando de novas tecnologias emergentes, mesmo sendo projetada em um espaço restrito de um retângulo bidimensional branco, trará em si a ilusão do espaço tridimensional e do movimento, que só existem aos olhos do espectador. Será o sucesso do cinema como arte e indústria que aproximará os arquitetos da questão do espaço.

É nesta forma de arte que os profissionais da arquitetura, trabalhando como

cenógrafos e muitas vezes como diretores terão que, na escala e velocidade industriais exigidas pelo cinema, criar e recriar espaços, e transportá-los para os vários espaços da tela. Arquiteto e cineasta, Sergei Eisenstein,6 elaborou conceitualmente a síntese entre o cinema e a arquitetura, sob a ótica do espaço intrínseco às duas artes: para ele, a arte do cinema oferecia a possibilidade de desenvolver uma nova arquitetura, entendida como pura concepção de espaços, liberta de condicionantes materiais e físicas do mundo real.

Assim, a arquitetura no cinema estaria

estritamente ligada à essência de toda a arquitetura, podendo ser simplesmente a expressão de sensações espaciais (EISENSTEIN apud TEIXEIRA, op. cit., p. 33). Porém o espaço não é o único elemento intrínseco à arquitetura e ao cinema. Na verdade, ambos se apropriam de um espaço para modificá-lo, mas acima de tudo, visam criar percursos no espaço, seja pela movimentação da câmera e das personagens no filme, seja pela previsão e indução dos percursos dos usuários do espaço do projeto arquitetônico. O filme dinamiza ainda mais seus pedaços de espaço, já que na sala de montagem estes são organizados de uma forma que pode tornar contíguos, aos olhos do espectador, dois ou mais espaços não contíguos, criando um percurso que só existe de fato no filme. Uma câmera posta em um ponto fixo que capte uma paisagem erma, sem que mude seu ângulo e que, após alguns instantes, não tenha em seu quadro qualquer elemento em movimento – um homem que passa, um animal correndo, uma pedra arremessada etc. – está se opondo à linguagem intrínseca a todo filme, estando muito mais próximo à fotografia. Da mesma forma, diferente do que tentam passar as revistas arquitetônicas – sobretudo as de decoração de interiores – não existe espaço arquitetônico sem a presença humana, ou seja, sem que este seja constantemente percorrido. Arquitetura e cinema têm o espaço medido a partir das dimensões do comprimento, da largura e da profundidade. Mas há uma quarta dimensão, que é dada pelo tempo: “Do ponto de vista formal, um filme é uma sucessão de pedaços de tempo e de pedaços de espaço. A decupagem é então a resultante, a convergência de um corte no espaço (ou melhor, de uma seqüência de cortes), executado no momento da filmagem, e de uma decupagem no tempo, entrevista em parte na filmagem, mas arrematada apenas na 6

O cineasta russo Sergei Eisenstein é talvez o maior teórico de cinema da História. Sua particul ar obsessão era pela montagem, considerada como essência do cinema. Vários são seus escritos em que argumenta o quanto a organização e a métrica dos pedaços dos rolos filmados pelo criador (diretor/montador) podem produzir significados totalmente díspares na criatura (filme): dependendo do contexto narrativo e daquilo que foi visto antes e o será depois, um sorriso de um ator, um objeto ou uma paisagem filmados podem adquirir conotações variadas. Ver EISENSTEIN (2002a e 2002b).

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montagem. É através dessa noção dialética que se pode definir (e, portanto, analisar) a feitura própria de um filme, seu resultado essencial” (BURCH, op. cit., p. 24, grifos do autor). Ainda neste sentido, escreve Coelho Netto: “Os espaços atuais não são vividos, são espaços vistos. Se se estivesse no teatro seria possível justificar um espaço apenas visto: o termo „teatro‟ provém de theasthai que em grego significava justamente ver. É mesmo certo que grande parte da tendência políticosocial de hoje caminha no sentido de tornar os indivíduos meros espectadores passivos seja em que domínio for, da arte (ou „artes‟ como a televisão) à decisão política. E é ainda correto que as propostas arquiteturais atuais pretendem tornar o habitar (uma cidade ou uma casa) um mero ato de visão: eu vejo a cidade mas não a uso ... o morador de uma casa vê sua sala mas não a usa, ela é quase sempre um quadro que ele apenas vê e conserva para os outros verem. Mas a vida não é um teatro – pelo menos não sempre, e o ver precisa ser substituído pelo viver, pelo sentir, e que em arquitetura se define pelo experimentar, tocar, percorrer, modificar: numa palavra, ação. E o espaço estático deve ser dinamizado. O espaço sem tempo, sempre igual a si mesmo, exige ser temporalizado, isto é, modificado. Se é possível dizer com justeza que o tempo só se define pelo espaço (agora é aqui, lá foi ontem ou será amanhã), não é muito aceitável que o espaço seja encarado sem o tempo, mutilado do tempo.

E se esse espaço não pode ser constantemente

modificado pela própria natureza do projeto arquitetural, pelo menos se modifique a percepção desse espaço: o trajeto pelo espaço” (COELHO NETTO, op. cit., p.78, grifos do autor). Surpreende o fato de que Coelho Netto, escrevendo no final da década de setenta – quando as questões aqui levantadas sobre a arquitetura e cinema estavam longe de ter tomado corpo e força – ao analisar a questão da necessidade de temporalização do espaço na arquitetura, involuntariamente tenha tocado em elementos-chave destas questões. Ao comentar que alguns arquitetos – que ao que parece reincidem no erro de não perceberem a essência de sua profissão – concebem o espaço de maneira estática e para um espectador passivo, o autor exige mais ação, mesma palavra vociferada pelos diretores de cinema nos sets de filmagem. Coelho Netto critica duramente a televisão e o teatro, mas não coloca o cinema como mais uma arte para platéias passivas. Nem poderia, pois é esta a arte que possibilita a participação do indivíduo na total temporalização do espaço, tão exigida pelo autor, na medida em que o cinema nos mostra a todo instante o espaço com movimento (de personagens, elementos cênicos, efeitos especiais...) e em movimento (angulações de câmera, cortes na ilha de edição, elipses de tempo...). Este é mais um dos elementos de aproximação entre cinema e arquitetura: a temporalização do espaço, isto é, o percurso do espaço pelo indivíduo, seja este percebido a partir de seus

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próprios olhos, ou por meio dos olhos da câmera.

São, por certo, duas flâneries muito

semelhantes. Para um indivíduo passivo, que não queira viver a cidade e seu espaço, como exige Coelho Netto, há uma segunda opção: vivê-los a partir de uma ida ao cinema.

3. Sentimentos na cidade

3.1. Entre o cérebro que comanda e a mão que faz existe o coração Louis Wirth, pesquisador de linha mais culturalista da Escola de Sociologia de Chicago – inicia artigo de 1938 afirmando que: “... da mesma forma como o início da civilização ocidental é assinalado pela fixação permanente de povos anteriormente nômades na bacia do Mediterrâneo, assim também o início do que pode ser considerado marcantemente moderno em nossa civilização é caracterizado pelo crescimento das grandes cidades”. (WIRTH, 1987, p.90). Uma ruptura ocorrera, uma nova maneira de ocupação do espaço se estabelecera e, por conseqüência, um novo estilo de vida e uma nova maneira de se encarar o mundo tiveram de ser assimilados. A grande cidade, ou seja, a metrópole que começara a despontar nos fins do século XIX, tinha características próprias: sociedade numerosa, mecanizada, especializada, consumista, com laços primários de parentesco enfraquecidos, representada por indivíduos de diversidades sexuais, etárias e étnicas nunca antes vistas. Esta metrópole era, por certo, a forma sócioespacial do apogeu de um período, a modernidade, que trouxe consigo um desamparo ideológico de um mundo pós-sagrado e pós-feudal que pôs em cheque todos os valores e normas préexistentes, que apresentou a racionalidade instrumental como suporte e moldura intelectual por meio da qual o mesmo mundo pode ser apreendido e construído, inúmeras mudanças tecnológicas e sociais que se configuravam desde o século XVIII e que alcançaram volume crítico nos fins do século XIX – crescimento populacional, industrialização e urbanização acelerados, surgimento de novas tecnologias, meios de transporte, explosão de uma cultura de massa etc – e, por fim, uma certa leitura neurológica do mundo, que evidenciou um registro da experiência subjetiva muito distinto, caracterizado por choques físicos e perceptivos do ambiente moderno, urbano e industrial. A modernidade implicou em um mundo mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fases anteriores da experiência humana. Mas se o período tem, como lembra Jeffrey T. Schnapp (1999, p. 21), na Fundação e manifesto do Futurismo, de 1909, com seu louvor às máquinas, ao barulho e o avançar da tecnologia,7 o marco inaugural da cultura moderna, também tem inerente o medo e o desencanto 7

“Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos o vibrante fervor noturnos dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas; as estações insaciáveis, devoradoras de serpentes fumegantes; as fábricas suspensas das nuvens pelos contorcidos

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com tal progresso.

Por mesclar em sua organização o

desconhecido e o novo, a metrópole se tornou alvo de elogios e ataques, causava medo e furor.

Essa mistura de

impressões foi vivida por Fritz Lang, cineasta austríaco com formação em Arquitetura, ao visitar Nova Iorque em 1924. Lang viu-se fascinado por aquela cidade, tendo durante sua visita fotografado algumas vistas da cidade quando à noite (NEUMAN, 1999, p 110): “Nova

Iorque

à

noite

é

um

facho

de

beleza

FIG. 1: A Broadway fotografada à noite por Fritz Lang.

suficientemente forte para ser o tema central de um filme ... Há feixes de luz vermelhos e azuis ... de um branco berrante ... ruas varridas por luzes em movimento, que giram em espiral e muito acima dos carros e dos comboios suspensos, os arranha-céus surgem azuis e dourados, brancos e purpúreos e mais alto ainda há anúncios luminosos que brilham mais que

FIG. 2: As Metropolis.

imagens

noturnas

de

as estrelas”. (LANG apud NEUMAN, 1999, p. 110) E o filme foi feito: Metrópolis, declaração artística de amor e ódio à metrópole. A obra de Lang busca inspiração nos arranha-céus de Nova Iorque que tanto impressionaram o diretor.

A concepção da cidade do filme – vale lembrar

futurista, localizada em 2026 – é completamente vertical: os espigões presentes em Nova Iorque foram imaginadas, no

FIG. 3: Os subterrâneos onde se controlam as máquinas.

futuro da História, como organizadora da sociedade: no alto de sua torre mais elevada – uma nova Torre de Babel – é onde vive e trabalha Joh Fredersen (interpretado por Alfred Abel), intitulado no filme como “the master of Metropolis”, e nos subterrâneos labora a classe operária. Ou seja, a verticalidade, não só é forma e estética de Metrópolis, mas também a maneira como se configuram os pedaços da cidade, suas camadas de segregação. Nestes subterrâneos da classe operária vê-se explicitamente o temor da nova era da máquina. A maquinaria é quem controla a metrópole, sem ela o espaço urbano – como ocorre no filme na seqüência final – entra em colapso e por isso os cidadãos-operários nada têm a fazer a

fios de suas fumaças, cintilantes ao sol com um fulgor de facas; os navios a vapor aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de amplo peito que se empertigam sobre os trilhos como enormes cavalos de aço refreados por tubos e o vôo deslizante dos aeroplanos, cujas hélices se agitam ao vento como bandeiras e parecem aplaudir como uma multidão entusiasta”. (MARINETTI, 1996, p. 291).

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não ser se dedicar exaustivamente ao manejar ininterrupto dessas máquinas. O medo de a máquina superar o homem é expresso no fato dele ser apenas mais uma das engrenagens do monstro-máquina, peça substituível por turnos, como explicita a clássica cena em que o filho de Joh, Freder Fredersen (Gustav Froelich), sucumbe ao tentar controlar um relógio gigante e desgovernado e que marca apenas as dez horas do turno. A cidade é um autômato, um artefato de reprodutibilidade técnica que deve ser domado

FIG. 4: Città Nueva, de Sant‟Elia.

para não fugir ao controle. Em Metrópolis, a concepção plástica da cidade muito se assemelha às utopias arquitetônicas de sua época.

É

possível perceber inspirações nas formas e na estética da Città Nueva que o arquiteto italiano futurista, Antonio Sant‟Elia desenvolveu por toda a década de vinte, das cidades-torres

propostas no

mesmo período

FIG. 5: Cidades-torres

por Le

Corbusier, como também das idéias de Hugh Ferris, na mesma época, para a cidade de Nova Iorque no futuro. Neste período, a arquitetura das mais diversas vanguardas modernas começava a entrar em evidência. Em discursos diversos se acusava que as cidades eram um erro, sendo a única solução para melhorá-las sua destruição e substituição

FIG. 6: Plan Voisin, de Le Corbusier.

pelas formas “corretas e certas” das vanguardas. O Plan Voisin, de Le Corbusier, por exemplo, previa a demolição de todo o centro histórico de Paris, preservando apenas o Louvre e seu entorno imediato. Pode-se perceber também na cenografia de Metrópolis uma influência do pensamento de BURGESS (1979), pesquisador do departamento de Sociologia da Escola de Chicago que, em 1924, desenvolveu um modelo padrão das formas das cidades.

Suas teorias sobre a expansão

radiocêntrica, em que a área de negócios invariavelmente situava-se no núcleo central da cidade, podem ser percebidas no filme de Lang. Apesar da divisão de classes

FIG. 7: Cidades do Amanhã, de Hugh Ferris.

no filme ser, como já dito, expressa de uma maneira vertical – diferente do modelo de Burgess em que o nível social e econômico se eleva conforme se afasta da área de negócios – os fotogramas que revelam a cidade sob um ponto de vista aéreo, localizando no tecido urbano a grande torre central, sugerem a materialização da cidade

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radiocêntrica: tem-se a impressão das vias da cidade de Lang serem a justaposição de arcos concêntricos e raios que apontam para a grande torre.

Ou seja: a concepção da cidade de

Metrópolis tem a forma, planejada, da cidade que Burgess definiu como espontânea. As cidades utópicas das vanguardas modernas eram plástica e ideologicamente próximas à cidade de Metrópolis, no que diz respeito à sedução em relação à modernidade e às máquinas, pelas vias expressas aéreas e pela infra-estrutura oculta.

Na cidade-pilotis proposta por Le

Corbusier em 1915, toda a infra-estrutura ficava escondida sob as vias suspensas da cidade, algo bastante parecido à imensa maquinaria que controla a cidade de Joh e está oculta em seus subterrâneos. Mas o filme de Fritz Lang ao mesmo tempo em que se apropria de formas e idéias destas utopias também as critica.

Paradoxalmente, sua cidade é uma

declaração de fascínio e uma crítica ao novo tipo de cidade proposta

pelos

arquitetos

modernos.

Em

resumo,

Metrópolis é, em seu contexto, a expressão visual de todos os medos, frustrações e ódios produzidos contra a cidade desde o século XIX, que chegavam ao seu ápice no início do século XX. Simultaneamente, essa mesma cidade, por ser tão nova, tão diferente e moderna, era extremamente sedutora. O filme de Lang confessa sua sedução pela nova forma urbana e modo de vida, mas também revela a insatisfação com as vanguardas arquitetônicas, símbolo e

FIG. 8: Metropolis.

expressão de uma época que, ao invés de planejarem a cidade existente, sugeriam de maneira sonhadora sua extirpação, exigiam recomeçá-la ao invés de resolvê-la. O filme de Fritz Lang demonstra ao mesmo tempo fascínio e medo em relação ao seu Frankenstein. Metrópolis nos fala da anulação do indivíduo perante a racionalidade

técnica:

operários

despersonalizados

trabalham nos subterrâneos em condições desumanas, controlando máquinas que mantêm a ordem da cidade. Os edifícios altos, por sua vez, contribuem para aumentar a sensação de anulação dos cidadãos, formigas operárias sem nome e sem vida fora do trabalho.

FIG. 9: O modelo proposto por Burgess.

Em resposta à

opressão, os trabalhadores reúnem-se às escondidas, liderados por Maria (Brigitte Helm), misto de líder espiritual e revolucionária pacifista. Joh (Albert Abel), o dono da cidade e da fábrica, temendo uma rebelião, manda Rotwang

FIG. 10: A torre central de Metropolis.

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(Rudolf Klein-Rogge), um cientista perturbado, raptar Maria, que faz dela uma cópia robótica. Inserida no meio urbano, a falsa Maria não assume atitude blasé que, segundo o filósofo alemão SIMMEL (1987) é comum aos indivíduos da metrópole.

O robô tem um colapso de personalidade,

respondendo a todos os estímulos da cidade: entrega-se aos prazeres, mete-se na política incitando os operários à violência, imagina-se artista dos palcos.

Talvez por ter

FIG. 11: Metropolis.

Os

trabalhadores

de

“nascido” no meio urbano já em “idade madura”, sem que tenha sido por ele moldada, a falsa Maria não consegue impor para si mesma a fragmentação de atividades e a limitação de compromissos e respostas aos estímulos considerados por Simmel inerentes ao indivíduo metropolitano. Para o autor, a metrópole condiciona certo desligamento neurológico em relação aos seus inúmeros estímulos, explicação bastante conveniente para a apatia social dos metropolitanos de ontem e de hoje. Tais pensamentos estão presentes no filme de Lang: um robô, elemento externo do meio urbano, é o único capaz de conduzir a massa operária metropolitana à contestação do status quo, atitude vista como maldosa e nociva no contexto narrativo. A falsa Maria, autômato repleto de sentimentos contraditórios que o fazem fugir do controle, é a grande vilã da história, que acaba sendo queimada em praça pública, seu castigo por ser tão diferente do modelo apático definido por Simmel. Na cena final, a verdadeira Maria promove uma reconciliação.

Proclama que “entre o

cérebro que comanda e a mão que faz existe o coração”. Ela coloca frente a frente Joh, o racionalismo capitalista em estado puro, e o líder dos operários que com suas mãos controlam a cidade. É a bondade do coração de Freder que fará com que os dois lados apertem as mãos, encerrando o filme. Apesar da ambigüidade ideológica de tal happy end - Joh enganou o filho e continuará oprimindo ou realmente a partir do simbólico cumprimento haverá diálogo? – prefiro concordar com o geógrafo Jorge Luiz Barbosa, que acredita que a seqüência – como todo o filme – é uma crítica ao racionalismo dos Modernos – mas lhe dá uma leitura mais delicada e humanista: “A busca do seu apaziguamento, e não da superação, é encontrada no papel mediador de Freder, cuja missão é doar compaixão à racionalidade técnica. O aperto das mãos no final do filme não celebra uma impossível união, mas as separações necessárias para a realização da cidade racional e abstrata. Metrópolis estava salva da tempestade, mas ardia dolorosamente como uma flor azul numa sucata de utopias” (BARBOSA, 2002, p. 133-134, grifos meus).

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3.2. O criador pode consertar a criatura? Blade Runner – o caçador de andróides foi exibido nos cinemas dois anos após a primeira Bienal Internacional de Arte de Veneza em que houve espaço para a arquitetura. Na Bienal de 1980, uma rua batizada de Strada Novissima foi aberta em um dos locais mais tradicionais da cidade italiana – a Cordoaria quinhentista do Arsenal – para que vinte arquitetos de renome montassem stands pessoais. Emoldurados por falsas fachadas alinhadas, que mantinham o caráter de “rua”, os stands eram parte de uma mostra intitulada Presença do Passado. Passado esquecido pelos Modernos, que desde a década de vinte a cada mostra tentavam exaustivamente manter o agonizante espirit neuf de Le Corbusier.

Contraditoriamente, a volta ao tempo

proposta pela mostra se tornou uma novidade chocante para o público presente. As fachadas simplesmente utilizavam

FIG. 12: A fachada de Gordon Smith na Strada Novíssima.

símbolos, ícones e estereótipos da arquitetura de todos os tempos, manipulando-os de maneira propositadamente jocosa, localizando-os fora do lugar, descaracterizando suas funções, misturando. O público adorou aquela rua, que se descontando alguns exageros, não é muito diferente da produção arquitetônica dos anos oitenta e até mesmo da atual. Encarou-a quase que como um parque de diversões, enquanto os herdeiros dos Modernos insistiam dizer tratar-se de um movimento passageiro (ARANTES, 1995, p. 28-47). Não era passageiro.

Os anos se passavam e as

críticas ao planejamento modernista se acumulavam. Apesar de serem em número elevado, quase a totalidade fazia coro ao notório trabalho de Jane JACOBS (2001) que nos anos sessenta colocava o abandono da rua – e por conseqüência o esfacelamento da vida comunitária e familiar

FIG. 13: A fachada de Hans Hollen na Strada Novíssima.

– como causa dos horrores modernos. Ao mesmo tempo, a tipologia arquitetônica presente na Strada Novíssima – uma rua! - teve como marco conceitual a publicação, na mesma década de sessenta, do livro Contradição e complexidade na arquitetura do arquiteto americano Robert VENTURI (1995). Venturi lançaria, mais tarde, Aprendendo com Las Vegas, escrito em conjunto com a também arquiteta Denise Scott Brown (1998). Tais livros ressaltavam a importância das mensagens que a arquitetura pode e deve passar, e a necessidade do emprego de símbolos e ícones de massa para que haja amplo reconhecimento e aceitação popular. Estes símbolos

NAME, L. . A cidade-frankenstein: cinema, fragmento e sentimento. In: Congresso Brasileiro de Arquitetos, 17, 2003. Anais... Rio de Janeiro, 2003.

variariam conforme o local de cada arquitetura e, por fazerem parte do imaginário do público, muitas vezes se remeteriam ao passado difundido pela história e pelas artes, como o cinema. Seus ideais abalaram os alicerces do Movimento Moderno, que regia suas formas – consideradas novas e desapegadas do passado “ruim” e “errado” da arquitetura – a partir da ausência de ornamentação e do uso da simplicidade e da pureza das formas, o que supostamente descaracterizaria um estilo próprio ao mesmo tempo em que legitimaria a internacionalização.8 Entretanto, a arquitetura moderna era de difícil compreensão para o público em geral, diferente da arquitetura pós-moderna e seu irrestrito repertório que nas bases conceituais de Venturi já visava ser popular. A “morte” (até hoje questionável) do movimento Moderno acabou sendo datada pelo arquiteto Charles Jencks às 15h32m de 15 de julho de 1972, quando o projeto premiado do conjunto habitacional Pruitt-Igoe, do arquiteto japonês Minou Yamazaki, em St. Louis, foi implodido por ser considerado impróprio para abrigar a população a que se destinava (HARVEY, 1989). Na Strada Novissima dos anos oitenta todo o espírito da obra de Venturi estava presente e exacerbado. A arquitetura pós-moderna vinha ganhando cada vez mais espaço, mas nunca havia se mostrado em um conjunto tão grande e, principalmente, em uma escala urbana – a rua. Depois de invadir a falsa via de Veneza, tal arquitetura dominaria de vez a cena real. Otília Arantes critica a arquitetura pós-moderna chamando-a de obscena, considerando-a como produto de uma “Era de Simulacros”, de objetos “atravessados pelas mais diversas pulsões fetichistas, consumidos como sonho de poder social” (ARANTES, op. cit., p. 47). O termo utilizado pela arquiteta paulista não se refere à libido.

Para Arantes, a arquitetura pós-moderna está

diretamente ligada à sociedade capitalista de consumo,9 da mídia e da imagem, que extravasa isso a partir da exposição plena, assumindo-se como produto de consumo explícito.

Uma

arquitetura que não permite nada a não ser a imersão total do indivíduo. Obsceno quer dizer obliteração da cena. Arantes acredita que por ser um exagero cenográfico, a arquitetura pósmoderna é uma simulação que cega o olhar e desfaz a própria cena, e que deixa de ser parte da paisagem e não seduz, mantendo-se no “reino chapado da superfície” (Id. Ibid., p. 48, grifos meus).

8

O que os arquitetos modernistas nunca admitiram foi o fato da própria ausência de ornamentação e iconografia arquitetônicas e da necessidade de parecer industrial, somadas à repetição de elementos -chave como planta-livre, pilotis, estrutura independente, formas geométricas puras e cores primárias, terem se tornado um repertório expressivo – e reconhecível em boa parte do mundo – da arquitetura moderna, caracterizando-a portanto como estilo extremamente singular. 9

A arquitetura moderna não estaria ligada também à sociedade capitalista, porém em seu contexto de produção em escala industrial? Por essas e outras constatações é que se torna difícil crer que a pósmodernidade, e mesmo a arquitetura pós-moderna, aparentemente tão diferente da moderna, são rupturas no desenvolvimento da sociedade ocidental. Ver ROUANET (1991).

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Neste sentido, Blade Runner é visionário, pois dez anos após o anúncio da morte do Movimento Moderno e apenas dois anos depois do grande sucesso da arquitetura pósmoderna na Bienal de Veneza já se mostra bastante desiludido com ela: a Los Angeles futurista – e cenográfica! – do filme de Scott mostra o exagero da estética pós-moderna em edifícios que têm referências históricas e estilísticas em profusão, das formas piramidais do Egito Antigo, passando

FIG. 14: A paisagem pós-moderna de Blade Runner.

por colunas greco-romanas nas fachadas e nos interiores dos mesmos e pela arquitetura francesa dos anos vinte presente na decoração de uma boate. O pensamento urbano pós-moderno tem como seu maior porta-voz o arquiteto italiano Aldo ROSSI (2001). Em seu livro A arquitetura da cidade, tenta exaustivamente separar a reforma urbana e a revolução social do exercício do

FIG. 15: A paisagem pós-moderna de Blade Runner.

arquiteto-urbanista. Para ele, o desenho urbano – termo que gradativamente substituiria o planejamento no vocabulário dos arquitetos e gestores das cidades – deveria trazer de volta a função da cidade como um monumento. A cidade, para Rossi, é uma simples obra de arte que é boa quando sua arquitetura é bela. públicos

da

Para ele, o fracasso dos espaços

arquitetura

pós-moderna

não

é

de

FIG. 16: Zigurates na Los Angeles de 2019.

responsabilidade dos arquitetos, mas sim da ideologia do Estado e sua gestão pública, totalmente desvinculados da figura dos seus colegas de profissão.

Em uma clara e

pungente crítica ao Movimento Moderno, diz que a cidade não se sujeita a modelos, sendo impossível planejá-la por inteiro.

Defende, por isso, o planejamento fragmentado, o

desenho de pedaços de cidade, um regionalismo exacerbado.

Fig. 17: O caos das ruas em Blade Runner.

Por fim, termina seu discurso enfatizando que problemas sociais sempre existiram, e tudo que já foi feito para resolvêlos fracassou, não restando nada ao arquiteto fazer para se tentar uma mudança. Rossi, mais apático que os operários de Metrópolis e mais blasé que a mais hiperbólica

FIG. 18: A torre da Tyrell Corporation, inspirada em Metrópolis.

representação dos metropolitanos descritos por Simmel, acreditava ser parte do campo da utopia a reforma social ou urbana pela arquitetura, renunciando tanto o título de “criador” quanto a oportunidade de tentar “consertar” a “criatura”.

NAME, L. . A cidade-frankenstein: cinema, fragmento e sentimento. In: Congresso Brasileiro de Arquitetos, 17, 2003. Anais... Rio de Janeiro, 2003.

Evidentemente, a crítica à reforma urbana Moderna tem seu valor. Os arquitetos modernos se consideravam os anunciadores da verdade e da beleza, propunham o bota-abaixo do existente para substituição do novo e projetavam seus espaços em escalas monumentais baseados em três princípios humanos supostamente universais – habitar, trabalhar e recrear – que por homogeneizarem o homem moderno que em sua essência necessitava de individualização eram fadados ao fracasso. O grande erro pós-moderno, razão de boa parte da desilusão expressa em Blade Runner, foi o de não procurar uma substituição prática e exeqüível às utopias modernas que tanto criticavam. Ao invés disso, os arquitetos passaram a aceitar o caos, limitando-se a ditar regras jurídicas para controle da desordem e mantendo-se desenhando – e não planejando ou projetando – espaços urbanos mínimos, quase decorativos, que nada resolvem dos problemas locais e que nem sempre vão ao encontro da tradição regional que tanto valorizava Robert Venturi. Diferente da ideologia social moderna, o urbanismo pós-moderno se aliena e torna-se a expressão da manutenção do status quo: “[d]esde o colapso da idéia da planificação global da cidade ... as intervenções urbanas vêm se dando de forma pontual, restrita, por vezes intencionalmente modestas, buscando uma requalificação que respeite o contexto, a morfologia ou tipologia arquitetônica, e preserve valores locais. Este, ao menos, é o discurso que acompanha tais iniciativas. Em nome dessa fraseologia da modéstia a todo custo, chega-se até mesmo a advogar a causa surpreendente de um urbanismo anárquico ou a fazer a apologia da cidade caótica, plural como uma colagem, fragmentária, soft etc. Cabe perguntar se não se está substituindo a ideologia do plano por uma outra, a ideologia da diversidade, das identidades locais, em que os conflitos são escamoteados por uma espécie de uma estetização do heterogêneo” (ARANTES, 1998, p. 131).

No futuro de Blade Runner, na Los Angeles do ano de 2019, a cidade é super lotada, repleta de asiáticos e latinos. Suja, caótica e deteriorada, Los Angeles não é um bom lugar para se viver. Por isso, muitos humanos já foram morar em outros planetas. O policial Deckard (Harrison Ford), entretanto, ainda mora na cidade, e é surpreendido com a ordem de voltar a seu antigo trabalho, o de blade runner, caçador de replicantes. Os replicantes são cópias do ser humano conseguidas pelo avançar da engenharia genética da empresa Tyrell Corporation, que domina a paisagem com sua enorme torre e a economia da cidade.

Tais autômatos genéticos são utilizados como

escravos em outros planetas. Seu tempo de vida é curto – quatro anos – e, por isso, quatro deles – Roy (Rutger Hauer), Pris (Daryl Hannah), Leon (Brion James) e Zhora (Joana Cassidy) – se rebelam no espaço e voltam à Terra para exigir mais tempo. A figura dos replicantes serve como recurso metonímico para toda Los Angeles do filme de Ridley Scott. Tudo parece artificial e ao mesmo tempo deteriorado. Tudo parece estar prestes a morrer. E, assim como as cidades do planejamento pós-moderno, eles são montados pedaço a pedaço: há os especialistas em olhos, peles e outras partes do corpo. Roy, querendo mais tempo, pergunta a Tyrell (Joe Turkel): “O criador pode consertar a criatura?”.

Na perspectiva pós-

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moderna,Tyrell não pode. O tempo não é um pedaço, não é um fragmento. A mudança do tempo implica o reajuste do todo e Tyrell é avesso a mudanças extremadas. Roy exige longa duração, seu criador e os criadores das cidades do período do filme em questão não acreditavam nesta idéia. Outra replicante, Rachel (Sean Young) tem outra sorte. Ela desconhece ser um produto da engenharia genética por possuir memórias artificialmente implantadas em seu sistema. Rachel tem um simulacro de passado, de fotos instantâneas, que fazem-na ter uma falsa História. A reprodutibilidade técnica fotográfica, serviu para que Rachel acreditasse em uma ilusão. Seu passado é uma junção de pedaços de superfície lisa e plana de uma folha fotográfica, desconexos mas que ela teimosamente insiste em colar, mas que não têm a densidade do tempo vivido. Não muito diferente do passado evocado nas colagens dos edifícios historicistas pós-modernos. O desenhar e redesenhar das cidades pós-modernas torna-as um confuso rabisco urbano de tecidos sobrescritos. O uso do reverenciado repertório popular, por ser ligado à massificação da mídia, contraditoriamente acaba por vir ao encontro da internacionalização exigida pelos Modernos e tão criticada por Venturi. A Los Angeles-frankenstein do filme de Ridley Scott poderia de fato ser qualquer cidade, pois seu caos, sua arquitetura confusa e seus espaços degradados e abandonados estão presentes em várias metrópoles do mundo. Blade Runner é uma resposta extremamente pessimista à ausência de utopia urbana e, principalmente, à ausência de um planejamento efetivo e organizado das cidades. É uma reclamação pós-moderna à própria pósmodernidade (fragmentada, historicista, minimalista) vigente nas cidades. Comparando-o com Metrópolis, do qual é uma declarada releitura, vê-se que sua cidade é mais decadente, mais suja, mais sombria e mais caótica.

Acima de tudo, parece irrecuperável.

Não há nenhum

deslumbramento com a arquitetura apresentada e com a imagem da cidade. A cidade é um mal inaceitável, destinada à escória da humanidade. O monstro, neste caso, só causa medo. Em Metrópolis, não há um negativismo tão grande: seus grandes vilões são um robô rebelde, um empresário capitalista e um cientista maluco. O mal maior de Metrópolis é o homem, capaz de resolver seus problemas.

Em Metrópolis, percebe-se também um pouco de fascínio pela

opulência e pela tecnologia da cidade. Na Los Angeles de Blade Runner, ao contrário, tudo é repulsivo. Esta radical mudança é fruto, por certo, de uma perda de esperanças extravasada em conseqüência do discurso e das atitudes dos indivíduos que planejam ou dominam as cidades, entre eles os arquitetos.

4. Considerações finais A cidade é mesmo um monstro prestes a fazer o mal? É um organismo doente que precisa ser curado ou extirpado? Uma máquina descontrolada? É o que o cinema, em filmes como Metrópolis e Blade Runner, temporalmente afastados em quase 60 anos, parece nos dizer. Mas, ao invés de aceitar argumento tão simplista e pessimista, é mais sábio perceber que o cinema, arte para as massas, tende a expor representações afinadas com a vivência contínua da cidade.

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Violência, crime, mau planejamento urbano, poluição. Tudo isto existe, mas a cidade não se resume a isto. O cinema faz um recorte, que nos filmes aqui apresentados vai ao encontro dos sentimentos mais negativos dos indivíduos em relação às cidades. Parte da responsabilidade – mas não toda – é da arquitetura e do urbanismo, quase sempre com boas intenções mas muitíssimas vezes fechados em discursos sobre si mesmos, e que, outras vezes, renunciam ao menos tentar solucionar, optam por apenas adornar a cidade. Esta situação aparentemente sem saída e longe de estar resolvida sempre foi acompanhada de perto pelo cinema, arte que como aqui foi demonstrado, tem intrínseca relação com o espaço e, por conseqüência, com a arquitetura e suas cidades. Os filmes aqui utilizados podem ser chamados de clássicos e, por isso, muito já foi escrito sobre eles. Espero aqui ter acrescentado minha visão de arquiteto-urbanista evidenciando que o olhar atento do arquiteto, como criador, não deve se fechar para as imagens cinematográficas. Muito pelo contrário: antes ver um Frankenstein antecipado no celulóide do que vivê-lo mais tarde em seu grau máximo na cidade.

O cinema é o coração mediador exigido por Maria, em

Metrópolis. É a emoção coletiva expressa em fotogramas dos usuários da cidade. Ele é a oportunidade de diálogo, infelizmente quase nunca ouvido com seriedade, entre aqueles que fazem e aqueles que usam a cidade, categorias que se entrecruzam mas que quase sempre parecem estar em lados opostos.

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