A Cidade-Jardim de Ebenezer Howard e sua aproximação com os significados da sustentabilidade urbana

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A Cidade-Jardim de Ebenezer Howard e sua aproximação com os significados da sustentabilidade urbana Rafaella Brandão Estevão de Souza (1) (1) Mestrado em Desenvolvimento Urbano – MDU, UFPE, Brasil. E-mail: [email protected] Resumo: Embora extensivamente discutido nas últimas décadas, o conceito de sustentabilidade é vasto, pouco preciso e permite a incorporação de diferentes significados. Contudo, a busca de sua definição possibilitou o acréscimo de inúmeras outras considerações para a discussão do futuro das cidades. Algumas destas considerações atualmente tratadas pela sustentabilidade urbana já estavam inseridas nos debates urbanos em busca de uma cidade melhor, como na proposta de Ebenezer Howard para a Cidade-Jardim de 1902. Assim sendo, o presente artigo tem por objetivo identificar e discutir alguns pontos propostos na obra de Ebenezer Howard Cidades-Jardins de Amanha relacionando-os aos atuais significados de sustentabilidade urbana, para então concluir que a sustentabilidade urbana incorpora conceitos há tempos enraizados na discussão do ambiente construído urbano. Palavras-chave: Sustentabilidade; Sustentabilidade Urbana; Ambiente construído; Cidade-Jardim; Ebenezer Howard. Abstract: Although extensively discussed in recent decades, the sustainability concept still broad, little accurate and it allows the incorporation of different meanings. However, the search for its definition allowed the addition of many other considerations to discuss the cities’ future. Some of these considerations currently treated by urban sustainability were already included in the urban debates in search for a better city, as in Ebenezer Howard’s proposal for the Garden-City in 1902. Therefore, this paper aims to discuss and identify some proposed points in the work of Ebenezer Howard, “Garden Cities of Tomorrow”, relating them to the current meanings of urban sustainability, to conclude that urban sustainability incorporates concepts rooted a long time ago in the urban built environment discussion. Key-words: Sustainability; Urban Sustainability; Built Environment; Garden-City; Ebenezer Howard. 1. APRESE'TAÇÃO O presente artigo tem por objetivo identificar e discutir, enquanto ensaio teórico, alguns pontos propostos na obra de Ebenezer Howard Cidades-Jardins de Amanhã1, em relação aos atuais significados de sustentabilidade urbana. Para atingir tal objetivo, a primeira parte desta pesquisa tratará das discussões acerca do conceito de sustentabilidade. A segunda será dedicada à revisão do conceito de Cidade-Jardim proposto por Howard, para então explorar a aproximação dos significados e dimensões da sustentabilidade urbana com o conceito da Cidade-Jardim. 2. EM BUSCA DO SIG'IFICADO: A SUSTE'TABILIDADE URBA'A Nos anos 90 algumas das principais organizações multilaterais mundiais e suas conferências internacionais incluíram em suas agendas temas como desenvolvimento urbano, controle da poluição atmosférica e hídrica nas cidades, utilização sustentável de recursos naturais e conservação de espaços verdes urbanos, consolidando a aproximação e inclusão da temática ambiental na discussão do espaço urbano (BRAGA, 2006). A inclusão de tais temas em suas agendas aconteceu sob a declarada influência do conceito de desenvolvimento sustentável divulgado pelo Brundtland Report em 1987, segundo o qual, o desenvolvimento sustentável é aquele que responde as necessidades do presente de forma igualitária, 1 HOWARD, Ebenezer. Cidades-Jardins de Amanhã. Tradução: Marco Aurélio Lagonego, Introdução: Dácio Araújo Benedito Ottoni. São Paulo: Estudos Urbanos, Série Arte e Vida Urbana, Hucitec, 1996. A primeira edição foi publicada em 1898 sob o título Tomorrow: A Peaceful Path to Real Reform, em 1902 o livro é reeditado, revisado e relançado sob o título Garden Cities of Tomorrow (OTTONI, 1996).

sem comprometer as possibilidades de sobrevivência e prosperidade das gerações futuras (BRUNDTLAND, 1987). Anterior ao Brundtland Report, a primeira definição de desenvolvimento sustentável surge na publicação World Conservation Strategy: living resource conservation for sustainable development preparado pela International Union for the Conservation of =ature (IUCN) em 1980. Para a IUCN o desenvolvimento sustentável é aquele centrado na integridade ambiental considerando as dimensões sociais, ecológicas e econômicas. Já para o Urban World Forum de 2002 a sustentabilidade urbana pode ser definida a partir de uma série de prioridades para o desenvolvimento das cidades: superar a pobreza, promover equidade, melhorar a segurança ambiental e prevenir sua degradação, estar atento à vitalidade cultural e ao capital social para fortalecer a cidadania e promover o engajamento cívico (BRAGA, 2006). Temas como estruturas morfológicas compactas, adensamento populacional, dinâmicas socioeconômicas, transporte público, resíduos, reciclagem, energia, água, diversidade e pluralidade socioeconômica, cultural e ambiental compõem apenas uma parcela de questões das atuais discussões da sustentabilidade urbana (GONÇALVES e DUARTE, 2006). É observado que, apesar de extensivamente proclamado e discutido nas últimas décadas, o conceito de desenvolvimento sustentável é vasto, pouco preciso e permite a incorporação de diferentes significados, dificultando um consenso acerca do que é o desenvolvimento sustentável. São discursos em disputa pela expressão que se pretende mais legítima. Pois a sustentabilidade é uma noção a que se pode recorrer para tornar objetivas diferentes representações e idéias. (ACSELRAD, 2001 apud DEMANTOVA e RUTKOWSKI, 2007) O que há subjacente às diversas versões do que seria o desenvolvimento sustentável urbano é uma disputa pelo estabelecimento da “verdade” no que tange a esse conceito. Verdade entre aspas, pois esta nunca é absoluta, é sempre socialmente construída através de uma disputa de poder. (BRAGA, 2006, p.48)

Independentemente da existência de um consenso sobre o que é o desenvolvimento sustentável urbano, ou ainda, do que é sustentabilidade urbana, o fato é que a busca pelo estabelecimento de sua “verdade”, de sua definição e conceito, possibilitou o acréscimo e desdobramento de inúmeras outras considerações para a discussão do futuro das cidades. Uma destas ponderações indica, oportunamente, que a sustentabilidade urbana está além das relações meramente ambientais e de recursos naturais, mas inserida numa relação entre o espaço construído - e suas necessidades sociais - e a maneira como estes se integram ao ambiente natural. [...] É proposto que a sustentabilidade urbana seja construída através de uma simbiose entre sustentabilidade social (bem-estar humano alcançado pelo acesso indiscriminado aos serviços de ecossistemas ofertados – de provisão, de regulação, de suporte e culturais) e sustentabilidade ambiental (gestão adequada de ecossistemas). (DEMANTOVA e RUTKOWSKI, 2007)

Além de relacionar ambiente natural ao espaço construído e suas necessidades sociais, a sustentabilidade urbana implica ainda a construção de relações equilibradas e sem a geração de efeitos negativos para outros ambientes urbanos, sejam estes adjacentes ou afastados. Isso implica em levar em conta não apenas a escala local, ou intra-urbana, da sustentabilidade, mas também considerar a escala regional, constituída pela cidade e suas relações com o entorno, e a escala global, constituída pelos seus impactos sobre os problemas ambientais globais, como o efeito estufa, e por questões relativas aos impactos agregados da rede mundial de grandes cidades sobre o planeta. (BRAGA, 2006, p.49)

Contudo, é perceptível que, em torno destas discussões, algumas das considerações tratadas pela sustentabilidade já estavam inseridas na própria construção da discussão urbana em distintos invólucros e intensidades. “A discussão acerca de arquitetura e ambiente não é propriamente nova, é tão velha quanto a história da arquitetura [...]” (HICKEL, 2005). O que ocorreu de fato foi que durante o século XX as mudanças ambientais, sociais, econômicas e tecnológicas permitiram a mutação de determinados conceitos existentes sobre o espaço construído, suas

necessidades sociais e a maneira como estes se integram ao ambiente natural. Tais mutações, independente de época ou significado, aconteciam na tentativa de melhor responder um dos objetivos comuns das infindáveis discussões urbanas: buscava-se buscava se a uma constituição melhor de cidade. Ebenezer Howard foi um, entre vários, entusiastas que buscavam buscavam tal constituição melhor de cidade, e propôs a Cidade-Jardim Jardim em 1902. A Cidade-Jardim Cidade Jardim foi uma tentativa de combater os males sociais e ambientais produzidos pelo desenvolvimento econômico, pelo inchaço urbano desordenado, e pelo crescimento populacional. Sua proposta era a criação de uma nova cidade, auto-suficiente auto suficiente e desconectada dos incômodos gerados pela cidade de Londres no final do século XIX. O intuito desta investigação não é determinar ou atribuir à Howard a idealização de uma cidade sustentável, tão pouco de investigar as perdas e permanências de suas idéias na transposição para os primeiros projetos para a construção efetiva das cidades-jardins, cidades jardins, como Letchworth ou Welwyn. O objetivo é identificar e discutir, enquanto ensaio teórico, alguns pontos pontos propostos para sua CidadeCidade Jardim que possam ser confrontados aos atuais significados de sustentabilidade, e assim constatar que a sustentabilidade urbana pode sim ser considerada uma mutação,, desejável e oportuna, de conceitos há tempos presentes na discussão ussão urbana. Isto posto, dentre os vários significados atribuídos à idéia de sustentabilidade, este artigo considerará que a sustentabilidade urbana é a relação equilibrada entre as dimensões do espaço construído e do ambiente natural, e suas relações sociais ciais e econômicas. O limite para a identificação desta sustentabilidade urbana será a obra de Ebenezer Howard oward Cidades-Jardins Cidades Jardins de Amanhã, e sua delimitação abrangerá os seguintes aspectos inseridos na Cidade-Jardim: Jardim: a interface interface entre o espaço construído e o ambiente natural, a inserção de ecossistemas cossistemas naturais no espaço construído e a busca de sustentação ustentação econômica da camada trabalhadora. 3. HOWARD E A CIDADE-JARDIM JARDIM DE AMA'HÃ: EM BUSCA DE UMA UM CO'STITUIÇÃO MELHOR DE CIDADE A cidade do final do século XIX2 suscitou tou diferentes reações, e críticas contundentes, aos males sociais e ambientais produzidos pelo desenvolvimento econômico, pelo espalhamento urbano e pelo crescimento populacional desordenado. (Figura Figura 1 e 2). 2

FIGURA 1 e 2 - Ilustrações de Gustave Doré retratando a cidade industrial inglesa, poluída, suja, sem espaço e superlotada. Fonte: OTTONI (1996, p. 17 e 19).

Alguns almejavam a retomada da saudosa cidade da idade média e a sua saudável relação com o campo, outros buscavam a criação da sociedade perfeita, em uma cidade mais perfeita ainda. Houveram os que combateram os problemas da cidade pensando-a pensando a como uma grande rede de diferentes sistemas, e outros simplesmente demoliram - ou negaram - a antiga, insalubre e indesejável cidade, construindo const uma mais nova em seu lugar. Com sutileza, algumas destas reações influenciaram a construção da idéia da Cidade-Jardim Cidade de Howard: É meu presente objetivo mostrar que, apesar de o projeto como um todo ser novo e talvez, por isso mesmo, merecedor de consideração, consideração, seu apelo mais forte à atenção pública reside no

2 A constituição de cidade do final inal do século XIX nos países industrializados assemelha-se assemelha a constituição de cidade do final do século XX nos países em desenvolvimento.

fato de conjugar os aspectos importantes de vários projetos defendidos ao longo do tempo, combinando os, como que para assegurar os melhores resultados de cada um deles, sem os combinando-os, perigos e as dificuldades dificuldades que algumas vezes, mesmo na mente de seus autores, foram vistos clara e distintamente. distintamente (HOWARD, 1996, p. 170)

Especificamente, o projeto para a Cidade-Jardim Cidade Jardim é a junção de três propostas nunca anteriormente combinadas. A primeira delas é o movimento movimento migratório organizado de população proposto por Edward Gibbon Wakefield e de Alfred Marshall. A segunda é o sistema de posse fundiária proposto por Thomas Spence que mais tarde sofreu uma importante modificação por Herbert Spencer. Spencer. A terceira e última proposta é a cidade-modelo modelo de James Silk Buckingham. Como resultado da combinação destas três propostas, Howard fundamentou a Cidade-Jardim Cidade no que chamou de ímã Cidade-Campo.

FIGURA 3 - Os Três Ímãs proposto por Howard. Fonte: HOWARD (1996, p. 109).

A afluência contínua de pessoas para as já super-povoadas super povoadas cidades e o esvaziamento dos distritos rurais era tema recorrente e um problema a ser solucionado na Inglaterra. Mas como restituir as pessoas ao campo envolvendo uma cuidadosa consideração às causas causas que as levaram a migrar para as cidades? Howard observou que as discussões a respeito desta questão giravam em torno da polarização campocampo cidade e de como fazer para devolver a população rural ao seu local de origem. As causas de migração para a cidade deveriam ser entendidas como atrativos, e a cidade como um ímã mais atrativo do que o ímã-campo. campo. Assim, Howard propôs um terceiro ímã que poderia ser a mais atrativo que os dois primeiros: o ímã Cidade-Campo (Figura 3). Na verdade, não há somente duas alternativas como se crê – vida urbana ou vida rural. Existe também uma terceira, que assegura a combinação perfeita de todas as vantagens da mais intensa e ativa ativa vida urbana como toda a beleza e os prazeres do campo, na mais perfeita harmonia. [...] Com efeito, a cidade e o campo poderiam ser vistos como dois ímãs, cada um buscando atrair as pessoas para si – uma rivalidade da qual uma nova forma de vida, conjugando ndo a natureza de ambas, viria a participar. participar. (HOWARD, 1996, p. 108)

A partir do ímã Cidade-Campo constituiu-se constituiu o diagrama da Cidade-Jardim. Em uma gleba de 2.400 hectares, a cidade seria organizada próximo ao centro da propriedade, ocupando 400 ha, ou uma sexta parte do total. Howard apresenta um plano geral de toda a área municipal, mostrando a cidade ao centro (Figura 4) e uma secção ou distrito urbano, onde esquematiza a cidade em si (Figura 5), e deixa perfeitamente claro que este diagrama é uma “descrição ção que consiste em mera sugestão, a ser provavelmente muito modificada” (HOWARD, 1996, p.114).

FIGURA 4 e 5 - Diagrama n°2 e n°3 para a Cidade-Jardim.. Fonte: HOWARD (1996, p. 113 e 114).

Os Diagramas mostram uma cidade dividida em setores concêntricos: concêntricos: no anel central alguns equipamentos públicos como hospitais, museus e bibliotecas; a seguir um grande Parque Central seguido por um anel de “casas excelentemente construídas, cada uma ocupando um lote amplo e independente” (HOWARD, 1996, p.115); no próximo anel está a Grande Avenida com 128m de largura e constituída por um cinturão verde, formando um parque adicional à cidade seguido de mais um anel de residências e algumas instituições, como escolas públicas e igrejas; no anel externo da cidade localizam-se loc as fabricas armazéns, laticínios, mercados, carvoarias, serrarias, etc., bem como a linha férrea que alimentará a cidade; e por fim, o cinturão rural envolvendo toda a Cidade-Jardim. Cidade

FIGURA 6 e 7 - Diagrama n°5. Fonte: HOWARD (1996, 1996, p. 190 e 204). 204

Sua população seria de aproximadamente de 30.000 habitantes na cidade propriamente dita, e de 2.000 habitantes no setor agrícola. Quando a cidade atingisse a população de 32.000 habitantes prevista no plano estabelecia-se, através do poder público, uma nova cidade a uma pequena distância da primeira e depois do cinturão rural, que poderia atingir uma população de 58.000, e 250.000 em seu conjunto de cidades. (Figuras 6 e 7). E tal princípio de crescimento – sempre preservar um cinturão cinturã rural ao redor de nossas cidades – seria retido em mente até que, com o passar do tempo, tivéssemos uma rede de cidades, não, é claro, dispostas geometricamente tal como meu diagrama, mas agrupadas em torno de uma Cidade Central, em que cada morador de todo todo o grupo, ainda que em certo sentido vivendo numa cidade de pequeno porte, na realidade desfrute de todas as vantagens de uma grande e belíssima cidade, mantendo-se mantendo se a poucos minutos a pé ou de condução, de todas as delicias do campo: relvados, sebes e bosques bosques e não meramente parques afetados e jardins.. (HOWARD, 1996, p. 187, 188)

Além das detalhadas descrições dos diagramas e planos para a cidade, Howard destina uma grande parte de sua obra ao detalhamento da viabilidade econômica e política para a concretização concretização da Cidade-Jardim. Cidade A propriedade seria adquirida em nome de “quatro cavalheiros de posição respeitável, honra e reputação ilibada” (HOWARD, 1996, p.113), os juros e a amortização do empréstimo para a compra da gleba seriam pagos através de cotas, e o excedente seria repassado ao Conselho Central da nova municipalidade para viabilizar obras de infra-estrutura estrutura e manutenção da cidade, de equipamentos comunitários e também utilizados para a manutenção da administração. A municipalidade, por sua vez, é controlada de perto pelos habitantes. Seu grau de empreendimento e dimensão dependerá exclusivamente da vontade dos munícipes em pagar maiores ou menores cotas de participação “e crescerá à razão direta da eficácia e honestidade com que é levada a cabo a atuação atuação municipal”. Assim o cooperativismo desenvolvido será de maior ou menor intensidade, dependendo do interesse da comunidade. comunidade (OTTONI, 1996, p.42)

Finalmente, a obra de Howard em busca da construção de uma melhor cidade, é em determinados momentos poética, e em tantos outros, extremamente concreta e objetiva, mas em todo o seu discurso

percebe-se se “[...] uma absoluta convicção de que ele havia descoberto O Caminho Pacífico para uma Verdadeira Reforma”3 (FISHMAN, 1999, 199 p.25).

Figura 8 (esq.) - Fotografia de Ebenezer Howard. Fonte: http://www.lib.umd.edu/NTL/gardencities.html http://www.lib.umd.edu/ Figura 9 (dir.) - Fotografia de Ebenezer Howard (de cabeça baixa). Fonte: HALL (1995, p.105).

4. A CIDADE-JARDIM JARDIM E A SUSTE'TABILIDADE SUSTE'TAB URBA'A A primeira dimensão a ser discutida sobre a aproximação da proposta para a Cidade-Jardim Cidade de Howard e a sustentabilidade urbana é a do espaço construído e do ambiente natural,, que constitui uma forma mais sustentável do uso da terra para as ocupações urbanas preservando o ambiente natural. A urbanização de novas cidades ocupa terrenos extensos, e geralmente de grande valor ambiental ou econômico. Ao conectar as novas cidades, Howard propõe a expansão das fronteiras fr urbanas e a ampliação das áreas rurais e atividades agrícolas, implicando em grande perda de biodiversidade e na degradação ambiental. A Cidade-Jardim Cidade foi construída [...], como omo crescerá? Crescerá estabelecendo – provavelmente por meio dos poderes podere do parlamento – outra cidade a uma pequena distância de sua zona “rural”, de modo que a nova cidade tenha igualmente sua própria zona rural. Eu disse “estabelecendo outra cidade” e, para fins administrativos, haverá duas cidades. Mas os habitantes de uma poderão atingir a outra em poucos minutos, pois se providenciará especialmente para isso transporte rápido e assim o povo das duas cidades representará, na verdade, uma única comunidade. comunidade (HOWARD, 1996, p. 187)

Deste modo, a dispersão da ocupação urbana proposta por Howard para as Cidades-Jardins Cidades não deve ser entendida como uma similaridade aos conceitos atuais sustentabilidade urbana, muito pelo contrário, seria a concentração urbana a representar uma alternativa mais sustentável para as ocupações urbanas. A concentração urbana, per se,, poderia potencialmente facilitar a resolução de problemas ambientais, pois aumenta a disponibilidade total de terra, permite ganhos na produtividade agrícola e facilita a preservação de florestas e outros outros ecossistemas naturais. naturais (MARTINE, 2007, p.188) Ou seja, a concentração urbana e suas vantagens de escala representam uma forma mais sustentável do uso da terra. A proteção da biodiversidade e dos ecossistemas naturais depende, por último, da absorção da população em atividades de setores não-primários não e em áreas densamente povoadas. povoadas (MARTINE, 2007, p.186)

Apesar disso, uma gestão equivocada, ou mal direcionada, para o desenvolvimento destas concentrações urbanas pode provocar desafios ambientais, socais e econômicos ainda maiores. Logo, embora represente uma forma mais sustentável de ocupação o espaço, a concentração urbana deve ser gerida com primazia, ou será tão prejudicial quanto à dispersão urbana. Observa-se se que ao discutir a dimensão do espaço construído construído na sustentabilidade urbana, é indissociável a discussão sobre o ambiente natural. A busca da qualidade ambiental está constantemente presente no 3 Tradução nossa para “[...] an absolute conviction that he had discovered ‘The The Peaceful Path to Real Reform’” (FISHMAN, 1999, p.25).

discurso de Howard para a Cidade-Jardim. O ímã Cidade-Campo é a sua maior representação e anseio, de estabelecer um equilíbrio entre o ambiente natural e o ambiente construído, representação esta, muitas vezes poética: O campo é a fonte de toda a saúde, de toda a riqueza, de todo o conhecimento. Mas ao homem não foi revelado conhecê-lo na plenitude de sua alegria e sabedoria, e isso nunca poderá ocorrer enquanto perdurar essa infeliz e antinatural separação entre sociedade e natureza. Cidade e campo devem estar casados, e dessa feliz união nascerá uma nova esperança, uma nova vida, uma nova civilização. (HOWARD, 1996, p. 110)

Mas a consideração de Howard pelo ambiente natural não se esgota na relação Cidade-Campo. Jardins, parques públicos, área de recreação, cinturão verde e uma “[...] avenida arborizada, como todas da cidade”, são temas recorrentes em seu discurso, bem como a consciência dos benefícios que estes trariam para a população residente da Cidade-Jardim. O ambiente natural urbano, e outros ecossistemas naturais inseridos no espaço construído em diferentes escalas, oferecem tanto benefícios sobre os impactos ambientais locais, quanto benefícios de repercussão regional. [...] O meio ecológico é um tipo de infra-estrutura existente que desempenha importantes e diferenciadas funções para a manutenção e melhoria da sustentabilidade urbana. Existem inúmeros serviços de ecossistemas que podem ser ofertados para ampliar a preservação ambiental nas cidades e promover o bem-estar humano[...]. (DEMANTOVA e RUTKOWSKI, 2007) [...] Os serviços de ecossistemas gerados localmente têm tem um impacto substancial na qualidade de vida nas áreas urbanas e devem ser adicionados no planejamento de uso da terra. (BOLUND, 1999 apud DEMANTOVA e RUTKOWSKI, 2007)

Em relação à dimensão social e econômica, no plano para as Cidades-Jardins é nítida a inclusão de diversas classes sociais, com cuidado especial para a locação a baixo custo das classes operárias, bem como a sugestão econômica e financeira, ricamente detalhada, para a sustentação das mesmas. Além disso, Howard indica a nova municipalidade como realizadora das obras de infra-estrutura, de manutenção da cidade e de equipamentos comunitários, financiados com o excedente da cota paga pela compra da terra. [...] Encontrar para a nossa população operaria trabalho com salários de poder aquisitivo superior e assegurar-lhes um ambiente mais saudável e uma oferta mais constantes de empregos. [...] Numa palavra, visa-se elevar os padrões de conforto e saúde de todos os verdadeiros trabalhadores de todos os níveis, constituindo os meios pelos quais esses objetivos serão atingidos uma combinação saudável, natural e econômica de vida urbana e rural, e isso em terras de propriedade da municipalidade. (HOWARD, 1996, p. 113)

Finalmente, uma última consideração a respeito da sustentabilidade urbana, ou a respeito de uma relação equilibrada entre as dimensões do espaço construído e do ambiente natural, e suas relações sociais e econômicas deve ser feita: diferentes modos de ocupação e apropriação por uma determinada população de um mesmo espaço podem gerar conseqüências ambientais expressivamente distintas. Na realidade, a maior parte dos aspectos ambientais negativos relacionados à urbanização está ligada mais a outros fatores – tais como padrões de desenvolvimento (produção e consumo insustentáveis), falta de desenvolvimento (pobreza), localização geográfica, padrões de uso da terra (o sprawl urbano), forma urbana (e.g. – pavimentação excessiva e “desnaturalização”), falta de controle e gerenciamento urbano ineficiente – do que à urbanização, densidade ou tamanho per se. Isto é, as cidades sem dúvida têm impactos ambientais sérios porque concentram tanto a população quanto a atividade econômica e a riqueza, mas tais efeitos estão associados a um determinado padrão de civilização e poderiam ser abrandados. (MARTINE, 2007, p.186, grifo nosso)

Assim sendo, apesar da produção e consumo da época serem considerados prioritariamente insustentáveis, sugere-se que a maneira de ocupação e apropriação do espaço pela população das CidadesJardins proposta por Howard em sua obra abrandaria, sim, os aspectos ambientais negativos relacionados à sua urbanização. Dito em de outra forma, identifica-se uma relação equilibrada entre as dimensões do espaço construído e do ambiente natural, e suas relações sociais e econômicas na Cidades Jardim de Ebenezer Howard.

TABELA 1 – Síntese dos aspectos relacionados a sustentabilidade urbana, seus conceitos atuais e a aproximação com a proposta de Howard para a Cidade-Jardim. Aspectos relacionados à sustentabilidade urbana

Autores atuais defendem:

Howard propôs em sua Cidade-Jardim:

Implicações

Interface entre o espaço construído e o ambiente natural.

A forma de ocupação urbana concentrada potencializa e facilita a preservação de florestas e outros ecossistemas naturais. (MARTINE, 2007)

A forma de ocupação urbana dispersa, quando a CidadeJardim atingisse seu limite populacional, uma nova cidade seria construída em seus arredores.

A proposta de Howard de ocupação urbana dispersa está distante dos conceitos atuais de sustentabilidade, onde se considera a dispersão da expansão urbana uma agressão ao meio ambiente natural.

Ecossistemas naturais inseridos no espaço construído.

Inúmeros são os benefícios que os ecossistemas naturais podem ofertar para ampliar a preservação ambiental nas cidades e promover o bemestar humano. (DEMANTOVA e RUTKOWSKI, 2007)

A inserção de ecossistemas naturais permeando toda a Cidade-Jardim: parques públicos, jardins, áreas recreativas, cinturões verdes e avenidas arborizadas.

A proposta de Howard de inserir variados ecossistemas naturais em meio urbano reforça sua aproximação a sustentabilidade em sua proposta para a CidadeJardim.

Superar a pobreza e promover a equidade social. (Urban World Forum, 2002)

Locação de baixo custo para as classes operarias, com sugestão ricamente detalhada de sustentação da mesma, onde o excedente da cota paga pela terra seria reinserido na comunidade através de obras de infraestrutura comunitárias.

A proposta de Howard abrange todas as classes sociais promovendo a equidade social, na tentativa de assegurar um ambiente mais saudável e ofertas mais constantes de emprego para a época.

Sustentação econômica da camada trabalhadora.

Embora se encontrem noções de sustentabilidade incorporadas na proposta para a Cidade-Jardim, do plano de Howard para a Cidade-Jardim para a realidade de sua construção, houve, sim, uma significativa transformação. A obra de Letchworth, a primeira Cidade-Jardim, concretizada pelos planejadores Raymond Unwin e Barry Parker, por exemplo, foi executada continuamente com o montante financeiro abaixo do previsto, gerando um ritmo lento de construção e de apropriação do espaço pela população (OTTONI, 1996) além da redução do cinturão agrícola a menos da metade em relação ao plano de Howard: O cinturão agrícola é progressivamente diminuído, perde qualquer relevância econômica e, tanto em Letchworth, quanto em Welwyn reduz-se a um anteparo verde, a fim de garantir os limites impostos a cidade. (BENEVOLO, 1998, p.358)

Apesar de atualmente exercer o papel esperado pelo seu idealizador, o desenvolvimento da primeira Cidade-Jardim levou décadas para se estabilizar. Em 1938, trinta e seis anos depois do início da construção de Letchworth, a cidade comportava apenas 15.000 habitantes, menos da metade do previsto no plano de Howard (HALL, 1995). O ritmo lento de crescimento repercutiu, na escassez de estabelecimentos comerciais, e a conseqüente alta de preços e a falta de mercadoria desestimulavam a chegada de novas indústrias (OTTONI, 1996).

FIGURA 10 (esq.) – Letchworth, a primeira Cidade-Jardim em 1915. Fonte: http://www.hertfordshiregenealogy.co.uk/images/views/letchworth-station-road.jpg FIGURA 11 (dir.) – Letchworth, na atualidade. Fonte:http://www.tomorrowsgardencity.com/?q=aboutthecompetition.

Estas são apenas algumas das transformações e implicações da materialização da Cidade-Jardim, e também um apontamento para investigações futuras que busquem identificar quais as concessões que tiveram de ser feitas para que os conceitos de sustentabilidade contidos no plano de Howard fossem aplicados na construção das cidades-jardins. Por fim, registra-se que a Cidade-Jardim howardiana foi certamente uma utopia, [...] mas não no sentido pejorativo de ser vago, de ser um sonho impossível. Pelo contrário, uma utopia no sentido da clássica definição de Karl Mannheim, uma utopia como um programa coerente de ações decorrentes do pensamento que "transcende a situação imediata", um programa cuja realização é "romper os laços" da sociedade estabelecida. (FISHMAN, 1999, p. x)4

5. CO'SIDERAÇÕES FI'AIS: A MUTAÇÃO DO ACÚMULO DE TEMPORALIDADES VIVIDAS A discussão em torno da obra de Ebenezer Howard Cidades-Jardins de Amanhã, publicada em 1902, desvela que algumas das considerações tratadas pela sustentabilidade já estavam inseridas na própria construção da discussão urbana em distintos invólucros e intensidades. Logo, a alcunha de novo paradigma, não é propriamente nova, tão pouco apropriada, como se tem disseminado nos mais recentes debates acerca da sustentabilidade. Indiscutivelmente, a sustentabilidade precisa ser incorporada às discussões urbanas como uma visão de mundo definitiva, e não nova, da relação equilibrada entre o espaço construído, o ambiente natural, e suas relações sociais e econômicas. Sugere-se que o paradigma não é novo, pelo simples fato de que vem sendo construído há décadas, ou séculos, e foram as mudanças ambientais, sociais, econômicas e tecnológicas que permitiram a transformação de determinados conceitos existentes para a significação do que hoje entende-se, ou buscase entender, como sustentável. Considerar a sustentabilidade urbana é considerar a mutação do acúmulo de temporalidades vividas. Tais mutações, independente de época ou significado, aconteciam na tentativa de melhor responder um dos objetivos comuns das infindáveis discussões urbanas: buscava-se, e ainda busca-se, agora através da sustentabilidade, uma constituição melhor de cidade.

6. REFERÊ'CIAS BIBLIOGRÁFICAS BENEVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. São Paulo: Perspectiva, 1998. BRAGA, Tánia Moreira. Sustentabilidade e condições de vida em áreas urbanas: medidas e determinantes em duas regiões metropolitanas brasileiras. EURE (Santiago), ago. 2006, v.32, n. 96, p.47-71. BRUNDTLAND, Gro Harlem. Our common future (”The brundtland report”). United Nations, World Commission on Environment and Development, abr. 1987. DEMANTOVA, Cristina; RUTKOWSKI, Emília Wanda. A sustentabilidade urbana: simbiose necessária entre a sustentabilidade ambiental e a sustentabilidade social. Arquitextos 437, 2007. Disponível em: . Acessado em: 15 nov. 2008. FISHMAN, Robert. Urban utopias in the twentieth century: Ebenezer Howard, Frank Loyd Wright, and Le Corbusier. Cambridge: The MIT Press, 1999. GONÇALVES, Joana Carla Soares; DUARTE, Denise Helena Silva. Arquitetura sustentável: uma integração entre ambiente, projeto e tecnologia em experiências de pesquisa, prática e ensino. Ambiente 4 Tradução nossa para: “[...] but not in the pejorative sense of being vague, impossible dreams. Rather, they come under Karl Mannheim's classic definition of utopia as a coherent program for action arising out of thought that "transcends the immediate situation", a program whose realization would "brak the bonds" of the established society”.

Construído, Porto Alegre, out./dez. 2006, v. 6, n. 4, p. 51-81. HALL, Peter. Cidades do Amanhã. Tradução: Pérola Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995. HICKEL, Denis Kern. A (in) sustentabilidade na arquitetura. Arquitextos 328, 2005. Disponível em: . Acessado em: 15 nov. 2008. HOWARD, Ebenezer. Cidades-Jardins de Amanhã. Tradução: Marco Aurélio Lagonego. Introdução: Dácio Araújo Benedito Ottoni. São Paulo: Estudos Urbanos, Série Arte e Vida Urbana, Hucitec, 1996. MARTINE, George. O lugar do espaço na equação população/meio ambiente. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, São Paulo, jul./dez. 2007, v. 24, n. 2, p. 181-190. OTTONI, Dácio Araújo Benedito. Introdução. In HOWARD, Ebenezer. Cidades-Jardins de Amanhã. São Paulo: Estudos Urbanos, Série Arte e Vida Urbana, Hucitec, 1996.

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