A CIDADE PARANOICA DE CECILIA GIANNETTI

May 23, 2017 | Autor: L. Bandeira de Melo | Categoria: Cidades, Literatura Brasileira Contemporânea, Sujeito
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Revista Litteris -Literatura Novembro de 2010 Número 6

A CIDADE PARANOICA DE CECILIA GIANNETTI Lucas Bandeira de Melo Carvalho1 (Mestrando em Ciência da Literatura, UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil)

Resumo O trabalho explora, a partir de uma análise do livro Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi, a condição do homem urbano como apresentada pela literatura. Para isso, retomam-se alguns assuntos comuns em textos literários ambientados em grandes cidades. São também tratados temas como o medo e suas formas patológicas, como a paranoia; a forma fragmentária do romance contemporâneo; subjetivação; representações do real, e a função do esquecimento.

Palavras-chave cidade – romance contemporâneo – paranoia – sujeito – representação

Abstract Based on the analysis of the book Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi, this essay explores the urban man condition as presented in literature. Therefore, it resumes some themes which are habitual in literary texts set in big cities. Other topics are also discussed, such as fear and its pathological forms, paranoia; the fragmentary

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Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lucas Bandeira de Melo Carvalho trabalhou entre 2005 e 2010 como produtor editorial e editor na Ediouro (Agir e Nova Fronteira). Atualmente, trabalha na editora Zahar. Cursou a pós-graduação em Literatura Brasileira na PUC-Rio e hoje é mestrando em Ciência da Literatura (Literatura Comparada) na UFRJ. Email: [email protected].

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form of the contemporary novel; subjectification; representations of the real, and the function of forgetfulness.

Keywords

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city – contemporary novel – paranoia – subject – representation Continent, city, country, society: the choice is never wide and never free. (Bishop, 2008)

Esclarecimento Este não é um trabalho desinteressado. O primeiro contato que tive com o livro de que trato – Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi, de Cecilia Giannetti – não foi como “leitor”, pelo menos não no papel daquele leitor que recebe o livro como um objeto pronto, quase sagrado. Foi como editor, o que pressupõe que, além de ler, gostar ou não, me emocionar ou me entediar, eu deveria modificar ou sugerir modificações à autora. Ou seja, eu não seria capaz do juízo desinteressado na acepção de Kant. Não quer dizer que este trabalho seja uma defesa do livro, que eu me coloque do lado da autora. É justamente para compreender algumas linhas que apenas intuí em 2007 que, dois anos depois da leitura atenta que minha participação na produção do romance exigiu, é necessário que ao trabalho de “edição” se some uma reflexão. Nas primeiras leituras, em 2007, considerei o livro ao menos válido – uma estranha ideia que às vezes adotamos, nós que trabalhamos em livros como produto cultural, ao falar de obras em que encontramos algum valor para a cena literária, pela inovação, pelo tema ou por atrair público sem comprometer a qualidade. O primeiro motivo que colocaria o livro nessa categoria de “válido” é tratar de uma questão atual – e que é tão mais atual quanto, desde pelo menos a década de 1970, como falarei adiante, segue o tema predominante a literatura brasileira –, e por tratá-la por uma chave que, embora não seja nova, é rara na nossa literatura contemporânea: a chave não-realista. Revista Litteris Número 6

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Até para fugir da defesa do livro, preferi me ater à análise do texto e relacioná-lo com algumas imagens literárias da cidade, desde a visão de Poe do homem das multidões, o homem sozinho mesmo em grupo, perseguindo sua própria identidade em meio à falta de identidade dos outros. Não é minha intenção inserir o livro de Cecilia Giannetti no panorama contemporâneo da literatura brasileira, embora acredite ser válido um futuro trabalho de expandir a compreensão do romance para localizá-lo dentro do discurso literário sobre a cidade – a tão falada literatura urbana brasileira.

A cidade e o medo “– Este velho – disse eu por fim – é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa estar só. É o homem das multidões. Seria vão segui-lo, pois nada mais saberei dele, nem de seus atos. O pior coração do mundo é um livro mais espesso do que o Hortulus Animae, e talvez seja apenas uma das grandes misericórdias de Deus o fato que er lässt sich nicht lesen [não se deixa ler]” (Poe: 2001, 400). O parágrafo final de O homem das multidões, escrito por Edgar Allan Poe em 1840, mais do que conhecido, é uma entrada triunfal do tema da identidade do homem urbano na literatura. No ano anterior, Poe já havia publicado William Wilson, a perseguição do homem pelo seu duplo, seu Doppelgänger (o duplo errante). Poe desenha aqui uma relação do indivíduo com a sociedade que é característica dos agrupamentos urbanos. O homem das multidões – que é tanto o velho perseguido pelo narrador do conto quanto o próprio narrador, em uma caça a alguém muito semelhante a ele em sua “vagabundagem” ou “errância” – é aquele que, acompanhado de pessoas em iguais condições, se sente sozinho, não se reconhece. Mas qual é o sentimento desse indivíduo em relação aos seus iguais, com os quais forma as multidões? O familiar, para ele, paradoxalmente, é justamente estar entre desconhecidos e em meio ao desconhecido. O indivíduo, ao mesmo tempo que teme e evita integrar-se demais ao todo, se sente impelido a ele. Por isso, porque se sente atraído por aquele que lhe causa temor, o protagonista do conto de Poe persegue “o tipo e o gênio do crime profundo”. Se pensarmos que, como formulou Adorno, o capitalismo tardio – época de florescimento dos grandes aglomerados urbanos – reifica as relações sociais e Revista Litteris Número 6

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transforma cada indivíduo em coisa substituível por outra coisa, esse medo é o temor de ser realmente substituído. Interiormente, o sujeito não se sente substituível, mas o lugar que ocupa na sociedade sempre está aquém de sua interioridade e, portanto, ele pode ser substituído por outro sujeito igualmente reificado. Num dos mais belos momentos de Minima moralia, Adorno expõe esse processo ao falar de como a morte se torna indigna: “A sociedade mantém à espera para todo homem, pronto com todas as suas funções, o seu substituto, para quem aquele, aliás, desde logo não passa de usurpador do posto de trabalho, de candidato à morte” (Adorno: 2008, 229). Para Adorno, a violência não seria um erro de funcionamento da sociedade, mas parte da lógica dessa sociedade para a qual cada indivíduo só vale enquanto produz. O homem desumanizado no campo de concentração, ao morrer, era substituído por outro, que cumpriria a mesma função sem que isso atrapalhasse o funcionamento, e esse seria o modelo concentrado de todo o sistema social. O que Adorno escreveu em 1947 poderia ser transposto quase com poucas alterações para a realidade das grandes cidades brasileiras no início do século XXI: as mortes são apenas questão de estatística, e o único lugar em que elas ganham um rosto (numa operação com caráter claramente dúbio) é o noticiário dos jornais populares e dos telejornais. Mas, afinal, qual é a natureza desse medo? Anteriormente, o medo era repartido por grupos sociais, que temiam outros grupos sociais. Hoje, o perigo pode vir de qualquer lugar, já que a multidão é informe, não tem o caráter (ou fisionomia) definido dos pequenos agrupamentos. Tememos aquilo que não conseguimos quantificar: a multidão incontrolável, o Estado controlador. Antes, o inquantificável era a natureza, que era reconciliada com o homem pela religião. Diante da multidão, o homem deve procurar outras maneiras de reconciliação. Pressionado entre o processo crescente de reificação de sua vida – mesmo em seus momentos mais “particulares”, como viu o mesmo Adorno –i e o medo daquilo que não consegue quantificar, o sujeito apela ao recalque desse medo ou mesmo ao sublimálo por meio do consumo da violência representada. Podemos empregar para muitas das atividades culturais contemporâneas a frase de Roland Barthes sobre fotos-choque: “apresenta-nos o escândalo do horror, não o horror propriamente dito” (2003, 109). A violência é representada majoritariamente de duas maneiras em nossa sociedade. A Revista Litteris Número 6

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primeira é a escandalização coletiva, como quando o noticiário apresenta um acontecimento violento, que será, para usar uma palavra cara aos estudos de comunicação, agendado, ou seja, que vai se tornar assunto para a opinião pública. Mais do que ver nisso alguma forma de manipulação, aqui a denúncia e a informação se unem com uma função catártica o indivíduo, informado, se sente solidário, ou seja, se sente parte de uma comunidade que se une do lado “do bem”, mas também alheio ao perigo, já que a desgraça não o atingiu, a mediação produz certa distância entre o sujeito e o mundo. A outra maneira de representar a violência, mais do que conhecida, é a do hiperestímulo sensitivo da montagem acelerada do cinema. Essa substituição do medo real pelo representado só pode ser realizada porque esquecemos. Nietzsche mostrou como o esquecimento, mais que a memória, é responsável pela constituição da subjetividade e do eu. A memória é uma das causas do estado enfermo da consciência: “apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” (Nietzsche: 1998, 50) e “a todo agir liga-se um esquecer” (idem: 2003, 9). Se isso é verdade genericamente – a ideia de que para cada ação devemos esquecer de tudo que nos impede de agir –, também é verdade no caso específico da vida urbana. Para sairmos à rua, trabalharmos, consumirmos, temos que esquecer o lado deletério desse sistema: a violência. A paranoia, nesse caso, não seria uma situação delirante, mas a reação lógica à realidade. Não há alucinação, apenas se torna impossível esquecer e a lembrança leva à generalização da lógica: vivo na cidade, a cidade é violenta; portanto, vivo em meio à violência, que pode me atingir a qualquer momento – uma realidade em que a violência, marginal ou do Estado, não pode ser prevista nem controlada. Mais do que no Homem das multidões, em O processo, de Franz Kafka, parece ser representado esse estado paranoide da realidade: todo o sistema é feito para destruir qualquer espaço para o sujeito. Uma representação que, não à toa, ganhou uma sobrecarga interpretativa como profecia. Na literatura brasileira, é apenas nos anos setenta que a cidade ganha o posto de tema quase obrigatório, ao mesmo tempo que se torna metonímia de violência – e o exemplo maior talvez seja a obra de Rubem Fonseca –, violência como efeito de uma realidade social e política perversa. Mas não chegava a ser um estado de consciência. Em Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi, ao escolher evitar a representação Revista Litteris Número 6

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realista ou hiperrealista da violência, comum mesmo nas obras brasileiras mais complexas, Cecilia Giannetti não fala da violência nem do escândalo diante dela (não é catarse nem denúncia), mas do efeito no sujeito dessa violência transformada em sistema.

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Lugares que não conheço “Cidades inventadas”, “cidades invisíveis” (títulos de livros de Italo Calvino e Ferreira Gullar) – talvez toda cidade seja, mais ainda que uma “comunidade imaginária”, uma geografia imaginária. Sua lógica sempre nos escapa, a escala é grande demais para que possamos ter uma ideia do conjunto. Qual relação pode haver entre dois moradores do Rio de Janeiro, o motorista preso no trânsito da Linha Vermelha e o morador de um prédio miserável em São Cristóvão que assiste TV num aparelho de 14 polegadas, a não ser o fato de o primeiro olhar pela janela do carro parado o que o outro faz dentro do enquadramento da janela do conjugado? Ou entre o motorista de um ônibus que é assaltado de madrugada e um homem que dorme o sono dos justos para ir no dia seguinte trabalhar e que só saberá, talvez, pelos jornais do dia seguinte, o que aconteceu com o motorista? Vista assim do alto, mais parece o céu no chão, e, como o céu, é grande demais para conseguirmos contar cada ponto brilhante. Não é à toa que a cidade é cantada do avião, como na música de Tom Jobim ou no poema de Elizabeth Bishop. Em “Night City – From the airplane”, publicado em Geography III, de 1976, ela descreve uma cidade que consegue se aquecer queimando sua culpa, em que um magnata chora um arranhacéu (não mais um rio, como na canção de Arthur Hamilton), e em que apenas um semáforo cuida dos homens (Bishop: 2008, 156-7). Ou como no poema de Ferreira Gullar (2009, 162-3):

A cidade. Vista do alto ela é fabril e imaginária, se entrega inteira como se estivesse pronta. Vista do alto, com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém. Revista Litteris Número 6

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Mas vista de perto, revela seu túrbido presente, sua carnadura de pânico: as

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pessoas que vão e vêm que entram e saem, que passam sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro sangue urbano movido a juros.

Falar da cidade, portanto, é falar da cisão entre dois pontos de vista. A cidade vista do alto – “fabril e imaginária” – e de perto – com seu “túrbido presente, sua carnadura de pânico”. E essa radicalização da cisão entre o espaço social coletivo e o sujeito é traumática.ii Isto é, podemos relacionar a violência a um desencontro entre dois planos de visão, o plano do sujeito, cada vez mais estreito, e da cidade como organismo. Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi é a história de um trauma. Como no luto,iii a protagonista tem que desfazer todas as suas ligações com o passado e criar novas ligações. Nesse percurso, a primeira e mais abrupta ruptura é com seu próprio nome. Suas lembranças oscilam, agora sem ter um lugar certo ao redor do qual gravitar (afinal, como ela pode ter uma identidade sem ter um nome?), se tornam fantasmas, e ela só poderá retomar o nome quando os fantasmas se forem. Antes de analisarmos mais detalhadamente o significado geral do romance, me detenho um pouco nos três primeiros capítulos, espécie de prólogo realista em um livro que pretende rever a validade da representação realista da violência urbana. O romance de Cecilia Giannetti inicia com a apresentação de um problema de objetividade jornalística. Diz o capítulo chamado “Registro”: “Um dia as coisas pararam de acontecer.” Afinal, acontecimento é a matéria-prima do jornalismo, e a resposta ao problema deve ser justamente registrar que coisas foram essas. O segundo capítulo, “Como terminam as visitações”, parece que vai resolver nosso lide (a cartilha jornalística: o quê, quando, onde, como e por quê). “Vocês estão lá pelas três da manhã sentados em torno de uma mesinha com cortes de queijo Revista Litteris Número 6

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(quadrados) e salsichas temperadas (algo cilíndrico).” Mais à frente, como em uma crônica da vida noturna na cidade, o texto referencial se torna instrutivo, semelhante a um manual: “Olhe disfarçadamente seu (sua) acompanhante”, “Agora concentre-se (...) e dê início à comunicação telepática com seu benzinho” (Giannetti: 2007, 9-10). No terceiro capítulo, a autora termina de expor, de uma maneira clássica, o ambiente e o caráter da protagonista, seus interesses, um pouco de sua história, seus conflitos iniciais. Ainda na terceira pessoa, o narrador nos conta que ela é repórter de TV, que é obcecada pela aparência, mantém um casamento entediante com um “poeta magro”, mora na zona sul do Rio de Janeiro. Ficamos sabendo também que era ela quem estava no capítulo anterior às três da manhã numa festa entediante – a noite havia durado mais do que esperara e era difícil acordar. Também é fornecida uma informação que se tornará importante para o desenvolvimento da história: o mecanismo que ela, repórter, utiliza para conseguir ir trabalhar sem pensar nos horrores que presencia todo dia e que, objetivamente, deve relatar. Após uma digressão sobre o lugar onde mora e sobre o homem com quem divide o apartamento, o narrador nos conta o que a protagonista está pensando: “Talvez os nomes dos lugares e das pessoas realmente tivesse importância fundamental no destino. Ou era aquele mais um pensamento mágico a que recorria antes de ir para o trabalho.” Atesta sua impotência diante do mundo e conclui: “É muito cansativo lutar contra as coisas sobre as quais não temos controle. Mesmo assim ela acorda cedo para gravar” (idem, 16). Deste modo, a repórter consegue aos poucos dar partida ao processo de esquecimento vital para encararmos “um mundo cada vez mais perverso”. Ao sentar-se à mesa para tomar o exíguo café-da-manhã, ela já está pronta para ouvir “colegas reprisando crimes do dia anterior”. Onipresente, na televisão ligada enquanto está em casa e no rádio enquanto se dirige para o lugar em que gravará uma “externa”, o noticiário relata, racionalmente, os crimes, os números de mortos, o custo ao município de cada menor de idade infrator. A protagonista é alguém consciente de até que ponto a violência chegou no mundo de hoje, das “calamidades”, como diz o narrador. Essa consciência, no entanto, divide espaço com sua insatisfação com o relacionamento amoroso, do qual ela guarda lembranças de tempos melhores, quando “tudo era novidade”, e com sua vaidade. Mais Revista Litteris Número 6

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do que isso, ao correr do capítulo, as informações sobre a violência que a acompanham, se pouco antes a abalavam, agora parecem tranqüilizá-la: são números, estatísticas, não têm rosto. Ela chega ao lugar da reportagem e a violência que provocava incômodo, desânimo e astenia, de repente, se torna um choque: a entrevista que ela está gravando sobre os problemas de uma favela na Ilha do Governador, bairro carioca, é interrompida por um acontecimento tão absurdo que não é possível para ela interpretá-lo. Não é possível aceitar uma realidade em que esse acontecimento ocorre. Transcrevo aqui esse trecho, essencial na arquitetura do romance:

A repórter arregalava os olhos claríssimos, pensando que a interrupção os obrigaria a gravar de novo pelo menos a segunda parte da entrevista. A câmera tremeu e só então entraram no quadro os dois meninos, o maior deles levando e arrastando o outro pelos braços, saídos de trás de um barraco que escondia uma escada esculpida na terra. A mulher farejava sangue nos gritos e já gritava também quando os dois se tornaram o foco principal da matéria. O menorzinho perdia sangue pelo chão, tinha um buraco de bala em cada uma das mãos e outro na cabeça, e antes de uma ambulância ser chamada já estava descordado ou morto. O garoto maior gritava engasgado nas lágrimas, abraçado pela mulher, que também se agarrava ao corpo do outro filho. Num canto do quadro a repórter tossiu, o rosto amarfanhado, murcho, e então ela se curvou para a frente. Queijo, pão, pasta, café e o golinho de nada de suco, a devolução no segundo plano, por cima da blusa verde e da empatia do microfone com o logotipo da emissora, golfou cercada pelo garoto em choque, pelo morto esburacado, pela entrevistada. Ao fundo, o barraco ajeitadinho em que moravam a vítima de roubo de biscoito pela polícia e mais cinco, todos iluminados pelo céu claro que destaca os olhos claros. A participação da repórter seria editada. Doca despertaria perdido num mundo que se esgota aos poucos, para baixo e para dentro, engolido (ibidem, 23). Revista Litteris Número 6

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Assim ficamos sabendo que o Doca que dá nome ao terceiro capítulo (“Doca na TV”) é o menino morto, e que o mundo – aquele mundo em que havia uma violência assustadora, mas mediada pelo noticiário, e em que havia um poeta magro e uma dieta a ser seguida – desapareceu. No mundo que deixou de existir, a morte é banal, no novo ela é onipresente, pois vai acompanhar a protagonista em todos os seus passos. Aqui, posso citar artigo de Beatriz Resende sobre o romance, em que ela fala de “banalidade do mal”, “onde a morte de hoje faz rapidamente esquecer a de ontem” (Resende: 2008, 98), mas também recuar até Adorno, cuja defesa do sujeito cindido pelo capitalismo tardio é cada vez mais pertinente. “Quando o indivíduo que a morte aniquila é nulo, desprovido de autocontrole e do próprio ser, então se torna nula também a potência aniquiladora, como na anedota da fórmula heideggeriana do nada que nadifica. O caráter radicalmente substituível do indivíduo converte praticamente, com inteiro desprezo, a morte em revogável (...) a morte é completamente enquadrada.” E mais à frente: “morrer nada mais atesta do que a absoluta irrelevância do ser vivo natural diante do absoluto social” (Adorno: 2008, 229). A construção de um novo mundo pela protagonista tem a função de não permitir que a morte seja desprezível, não permitir que seja apenas substituição de peças. Surge um sujeito que não existia – Doca era parte da paisagem, da favela, antes de morrer – para que sua morte se torne presente, eternamente presente. Aquele que morreu desprovido do próprio ser ganha ser, e para isso quem permaneceu ali perde sua identidade.iv Nas próximas duzentas páginas, vamos conhecer o mundo que surge dos escombros do outro. Mais ou menos real? Mais ou menos feliz? A esta pergunta a resposta é fácil: é o mundo possível após o trauma. Mais à frente veremos que apenas quando o esquecimento volta a ter seu papel na economia do sujeito a questão da felicidade volta a se colocar. À primeira pergunta, cabe aqui uma observação. Embora busque uma outra maneira de pensar um tema tantas vezes tratado pela literatura brasileira contemporânea, em nenhum momento a autora escapa de representar o nosso momento, as questões que enfrentamos, e se os personagens, como disse mais acima, são fantasmas, aparições (não são personagens construídos em busca de profundidade nem tipos: seus contornos são difusos), é porque a maneira como o mundo toma forma Revista Litteris Número 6

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no romance é fantasmática, pois não é possível que os conflitos dos personagens se comuniquem no estado de sítio da consciência em que se encontra nossa subjetividade. Temos acesso apenas aos conflitos da personagem, e mesmo assim pelo filtro da indecisão (formal) da narrativa.

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O mundo novo começa a ser esboçado a partir daquilo que o constrói: a consciência. Se antes – como na nossa vida – era a estratégia do esquecimento que permitia que a protagonista se movesse no mundo, para retornar a este ou reconstruir outro é necessário que algo volte a ser registrado e, portanto, lembrado. O capítulo “Eu me lembro” não é a recordação do que aconteceu após o primeiro turning point, para utilizar uma expressão cara à estética realista. Já estamos imersos no mundo novo, póstraumático. Doca vive, está assistindo a um casal fazendo amor. Quem narra, agora na primeira pessoa, é a mulher, que não conta ao companheiro que vê o menino se masturbando com a cena que se desenrola na cama. Mas, claro, Doca é um fantasma – e um fantasma gabaritado, pois está ali para ser promovido a Erê –, o fantasma de uma criança com duas chagas nas mãos, que usa para se masturbar. Em seu ensaio sobre o livro de Cecilia Giannetti, Beatriz Resende cita um artigo de Jacques Rancière sobre a passagem do medo ao terror. Segundo ele, enquanto o medo seria um nó entre ordem e desordem, o terror seria uma forma de percepção e de pensamento, uma lógica “da repetição do trauma e de seu violento acerto de contas” (Rancière: 2007, 54). Essa distinção se aplica à ruptura da protagonista, que troca um nó em que temia sair de casa por causa da desordem do mundo por uma nova configuração de entendimento do mundo, em que tudo o que vê obedece a uma lógica do horror. Por isso a cena em que Doca volta à vida, mais do que violenta, é a expressão de terror da protagonista. Nesse momento, a narrativa parece perguntar a si mesma: como contar? Até aqui, a narrativa, embora fragmentada, apresenta de maneira clássica, como disse anteriormente, as características da personagem. Mas agora, que devemos seguir uma personagem fugindo de sua identidade, a narrativa volta-se para si e busca uma maneira de ter continuidade fugindo de si mesma. É exatamente essa questão que norteará a forma da narrativa daí para a frente. Uma primeira observação formal: apesar de fragmentada, com seus capítulos autônomos, como notou Beatriz Resende, ainda sabemos o que acontece, sabemos que a Revista Litteris Número 6

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protagonista cai da janela, que não reconhece o “poeta magro” e o abandona, vai morar em outro apartamento, sabemos que há um enigma sobre quem escreve algumas notas na primeira pessoa que a protagonista não reconhece, já que ela, como no título dos capítulos, esqueceu, apagou, calou. Outro elemento formal: algumas imagens ou resíduos de acontecimentos se repetem nos capítulos que se seguem, como a protagonista que se joga da janela, e às vezes pensamos que isso é apenas uma alucinação, outras que é um fato decorrente de sua fuga do mundo; ela pegar um táxi na Lapa e observar pela janela a cidade; o apartamento, um duplex que se transforma (antes mesmo de ela se mudar) num ideal de solidão claustrofóbica em alguns momentos; um porta-retratos com a foto de uma coruja; a sombra de amendoeiras; a televisão, como um símbolo da existência midiática dos acontecimentos noticiados, como onipresença da mediação. A narrativa tenta se organizar, ao mesmo tempo e da mesma forma que a memóriav organiza a nova existência da protagonista, a partir desses elementos que voltam, cada hora em um lugar. Olhando mais detalhadamente essa relação entre a heterogeneidade ou autonomia dos capítulos e a unidade de sentido da obra, podemos verificar alguns traços importantes. O uso da primeira e da terceira pessoa, por exemplo, que em certos momentos dá aos fragmentos uma aparência de crônica da vida urbana, ganha outro significado quando vemos a ordem em que ocorrem esses usos. Logo após o ponto de ruptura, surge um narrador, mas um narrador que assume o ponto de vista e o horizonte diegético e linguístico da protagonista. Ele nos conta “o desconforto que [ela] sente ao ouvir o nome pelo qual é conhecida”. Esse desconforto, podemos pensar, não é apenas pelo nome, mas também pela pessoa do discurso, e só isso justifica a narrativa ter mudado de voz. Essa vontade de ser outro também é vontade de falar de outro lugar. Em outros momentos, a terceira pessoa surge como a voz da informação (do noticiário) e se desprende – poucas vezes – da protagonista para nos informar sobre fatos de que ela tomou conhecimento. Mas imaginamos: essa voz que nos relata como foi comprado o apartamento em que a repórter morava ou como foram certos momentos da infância de Baiano, o homem que passa a desempenhar papel central na vida da protagonista, não seria a voz da escrita? De maneira mais simples: não é a protagonista tentando tirar seu “eu” do texto que escreve – levando em Revista Litteris Número 6

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consideração a possibilidade de aqueles fragmentos serem notas escritas por ela? A única maneira de a voz e a narrativa deixarem de coincidir é se toda essa flutuação de pessoa do narrador for efeito de uma recuperação – recuperação da capacidade de se identificar – pela escrita. “Atualmente sou mais normal escrevendo do que falando”, diz, no capítulo “Sono químico”, a protagonista. O livro que temos em mãos seria então, podemos pensar, uma restauração da economia do ego por meio da expressão, como na gênese (que já virou anedota) de História do olho, que Georges Bataille teria escrito, sob indicação de seu analista, para conseguir conviver com seus fantasmas. Em “Ordenação dos sonhos”, a narradora leva adiante essa virtude sublimadora daquilo que está escrevendo, o que pode levar a uma interpretação do romance como o relato de uma cura psicanalítica, mas insere outro elemento importante: a expectativa da escrita, pois não se trata aqui de uma escrita funcional, e sim literária:

Não há nada que se queira de um escritor que não tenha lhe causado prazer agudo, dor, angústia, náusea, euforia absurda, que não o tenha transformado em um estranho gato porque seus amigos mais antigos ainda o chamam para a cerveja – apesar dele mesmo e de tudo que nele se tornou desagradável e perdido. (…) Tinha que começar de algum ponto, sem me preocupar se a ordem em que as coisas me ocorrem corresponde à ordem em que aconteceram. Não sei se vivi as coisas que descrevo; se um dia foram fatos. Você viu? Baiano, narro distante o que não posso chamar de eu. Narro, eu, o que quase tenho certeza de viver (Giannetti: 2008, 169).

Aqui, fugindo de uma explicação psicanalítica, é interessante pensar como o pessoal se relaciona com o coletivo. O que estamos lendo, nos diz a narradora, essa narrativa da incerteza, é aquilo de que ela tem quase certeza. Aquilo pode ter acontecido com outra pessoa, pode ser inventado, mas devemos, assim como a narradora, ter quase certeza de que aquilo aconteceu, e de que aconteceu daquele modo: um Rio de Janeiro em que existem buracos por onde mendigos e pessoas desavisadas desaparecem, em que o fantasma de um menino morto permanece junto a uma repórter para ser promovido a Revista Litteris Número 6

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Erê. Isso porque o texto é feito não (apenas) para a sublimação de um trauma, mas para ser lido, pois não há nada que se queira de um escritor que não lhe tenha causado um trauma. O texto que lemos, portanto, é uma narrativa pessoal, do trauma da protagonista, e também é a exploração de como esse trauma pode ser apresentado literariamente. Temos, então, duas interpretações complementares da estrutura do romance. A primeira como a ficção de notas de uma repórter que encontra na escrita a possibilidade de retomar sua identidade. No início, ela nem mesmo reconhece sua letra. “Não sabe quem desenhou a letra redonda bem-feita no caderno, as linhas certas e os pensamentos distorcidos. Alguma espécie de insônia. Tenta imaginar como foi que aconteceu, e a história vem no clarão. Desaparece se tenta resumi-la (…) Tenta lembrar-se, e adormece, e acorda, e o mundo não é mais o mesmo” (ibidem, 76). O reencontro entre o sujeito da escrita e aquele que vive os acontecimento coincide com o momento em que ela volta a encontrar o nome. “Encontro meu caderno”, começa o capítulo em que finalmente a protagonista volta a se nomear, e daí até o final todos os capítulos, exceto o último, se chamarão “Cristina”. A segunda interpretação da estrutura do livro é de que o acontecimento traumático – que deve ser diário numa cidade marcada pela violência, se não próxima fisicamente, próxima virtualmente pelo noticiário – deve ganhar forma no livro, encontrar uma voz que o exprima e que o transforme em algo complexo, algo além da reificação da morte produzida pelo discurso jornalístico. Se o trauma e a escrita são pessoais – “não há nada que se queira do escritor que não lhe tenha causado (…) dor” –, esse sujeito, no entanto, não é coeso, indivisível. Afinal, a Cristina que surge do processo de sublimação é outra, diferente da repórter bem-sucedida dos primeiros capítulos. “Tenho certeza de que sou eu a quem se refere porque vejo minha fotografia no canto da tela” – o que pressupõe que ela reconhece a imagem, mas não a história pessoal que é atribuída àquela imagem, embora também já não a rejeite (ibidem, 211). Em outro trecho, essa impossibilidade de retomar a identidade anterior fica ainda mais clara: “Irei à festa ciente de que gostarei menos de mim quando estou perto dos outros. Eles sempre me dão chances infinitas para atuar como a pessoa cheia de merda, afetada, caricatural e fleumática que sou” (ibidem, 145). A antiga máscara não serve Revista Litteris Número 6

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mais. E essa incapacidade de o sujeito se reconhecer é uma característica compartilhada e tem ligação estreita com aquilo que Adorno chama de “mônada”: “A situação em que desaparece o indivíduo é ao mesmo tempo a do individualismo sem peias” (2008, 146). Ao mesmo tempo em que só tem a si, o sujeito não consegue se reconhecer na imagem social que está apegada a seu nome. Portanto, se a situação do indivíduo na cidade é a de mônada, a narrativa de um trauma de um indivíduo alienado representa o trauma da sociedade em que o indivíduo se vê impotente diante de uma lógica que não compreende totalmente – a lógica do poder, da violência. Para entender como se configura no livro a vida na cidade como mônadas, devemos ver a recorrência da metáfora do desaparecimento das pessoas. Esse desaparecimento toma várias formas: as pessoas simplesmente perdem os contornos, não são mais reconhecidas ou são engolidas no meio da rua. “Meus amigos perdiam seus contornos um pouco a cada dia”, “Agora seus rostos se dissolvem e se refazem”, “Não seria capaz de reconhecê-los na rua. Meus amigos estão mortos” (Giannetti: 2008, 54). O esquecimento da fisionomia está ligado a um utilitarismo dos relacionamentos. Como a protagonista tem “ficado sozinha demais”, as pessoas que conhecia se tornam “pessoas que nunca vi”, numa espécie de solipsismo às avessas. Ela os conhecia porque tinham uma função em sua antiga vida. Junto com o esquecimento da função social dos relacionamentos, apagam-se as fisionomias. Ao mesmo tempo que ela se desvincula dos relacionamentos úteis, sua relação com os objetos se torna fetichista – “a foto da coruja me comoveu, por seu o objeto mais inútil em oferta” (ibidem, 55) –, em uma recusa inconsciente da relação direta que se faz entre valor e utilidade. Ela abandona os relacionamentos válidos porque úteis e adota objetos que ganham valor exatamente porque estão dissociados de sua função original. Como já observou Adorno, essa é a pequena perturbação dos brinquedos na ordem das coisas: não servir para aquilo que aparentam, mas apenas para uma simulação daquele uso (2008, 224-5). Aqui surge uma metáfora recorrente, a do museu no qual a protagonista guarda, fora do tempo e num espaço que não lhes é próprio, pessoas (ou melhor, seus fantasmas), objetos, lugares. Apenas como fantasmas as pessoas são lembradas, junto com os objetos inúteis. Revista Litteris Número 6

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Já o simples esquecimento – a segunda forma de desaparecimento – é a liberdade de se desligar da identidade que oprimia antes do trauma. “Estou livre de alguém que não reconheço mais (…) É como se pela primeira vez me desse conta de mim mesma, leve, ainda que ignore informações básicas que… eu deveria, por algum motivo, reter” (Giannetti: 2008, 63). Este é um dos momentos em que o trauma ganha seu oposto: a felicidade de, arrancada a máscara social pelo esquecimento, encontrar a pulsão que estava escondida pelo superego. O esquecimento como virtude. É a forma da ambivalência da personagem, que foge da identidade opressora e tenta recuperá-la, porque também a liberdade (a ausência de identidade) é terrível. Ela é tentada a permanecer no esquecimento, realizando sua alienação, mas precisa de algo para investir sua libido, e junto com esse investimento virá uma nova identidade. Por fim, as pessoas são não mais esquecidas ou perdem seu contorno, elas desaparecem. A primeira explicação desse fenômeno da cidade aparece na página 70: “Aqui os horários de coleta são rígidos e não se sabe de qualquer indicado que tenha se recusado a descer.” A coleta, que em cada capítulo recebe uma definição, aqui demonstra alguns traços que, juntando a outros, nos permitem interpretar essa metáfora. Primeiro, desaparecimento não é sinônimo de morte: a morte é um tipo de desaparecimento. Além disso, existe um componente voluntário nesse desaparecimento. Pode-se desaparecer por vontade própria. Na página 103, lemos que, com o desaparecimento de pessoas nos buracos que se abrem no chão, há “Menos gente para se ver nas ruas”. Mas ela teme o desaparecimento daquele que ama – afinal, nos diz a protagonista, só o amor é insubstituível, só ele tornaria a morte algo diferente da mera substituição (ibidem, 171). Nesse ponto, os buracos parecem obedecer a uma lógica mais uma vez solipsista: aquilo com que não tenho contato perde sua existência; desaparece num buraco porque, apesar de estar numa cidade grande, ou justamente por estar numa cidade grande, de indivíduos indiferenciados, só existe realmente aquele com quem se está em contato. A perda do contato é tão real quanto a morte, como se o indivíduo transformado em mônada regressa ao modo de pensar da primeira infância, em que a ausência e a morte se confundem.vi Como já mencionei, é justamente esse estado hiperindividualista da protagonista que nos permite relacionar seu trauma com a sociedade e, portanto, ver nessa “narrativa Revista Litteris Número 6

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por tentativas de falar” seu viés político. O trauma desperta na protagonista uma sensação de medo, mas não de um medo específico – a violência urbana, ou o tráfico de drogas –, mas um estado difuso, pois é o medo de algo que não se compreende: o perigo. No capítulo “Porco de silício”, a alucinação compartilhada com Baiano dá à protagonista uma sensação de terror, que é o medo daquilo que se sabe que está lá, mas que não é visto. E então ela consegue pressentir que há “outra realidade. E [soubemos] do medo que, de tão puro, é invisível, ridículo porque não deixa saída e não se sabe como entrou” (Giannetti: 2008, 125). Essa paranoia é a reação a um vislumbre de uma realidade em que a violência é um estado das coisas e não algo pontual e isolado, a que às vezes se tem acesso traumaticamente, como no assassinato de Doca. No capítulo “Tio Santo”, em uma notícia radiofônica, a violência urbana se mistura com o solipsismo da perda de contato – os dramas individuais e coletivos formam um amálgama. Os horários de coleta, nos conta a matéria, em que um conhecido ou um “homem na multidão” podem sumir para sempre da vida da protagonista, coincidem com os “horários de perigo”, e se somam 15 desaparecidos com 13 mortos (decapitados, esquartejados, carbonizados) (ibidem, 129-130). Aqui fica claro por que cabe nesse romance sobre os efeitos da violência urbana o discurso feminino sobre o amor ao lado do drama social. O cotidiano individual, com seus pequenos enredos dramáticos, se movimenta dentro do mesmo quadro que a tragédia social: a cidade “corrompida pela sua beleza” – e por isso localizar a narrativa no Rio de Janeiro é essencial. Por isso a cidade sofre da mesma dualidade de seus habitantes, a cidade dos relacionamentos calorosos mas fugazes, com sua valorização da alegria contida pelo crescimento descontrolado do tráfico, uma cidade em que beleza e horror são a mesma coisa. Enfim, é estabelecida na narrativa uma tensão entre representações do individual e do coletivo, de maneira que, mesmo no menor ato cotidiano, se insinua a violência urbana, mas sempre mediada por essa separação – exceto no momento do trauma, em que a falta de mediação faz com que a repórter crie outra maneira de mediar: a alucinação paranoica. A oposição que domina o livro ocorre entre casa e cidade. A casa, lugar em que se desenvolve a narrativa do indivíduo, tem uma história. “O armário embutido retém um cheiro implacável de talco...” (ibidem, 76). Ou seja, naquele lugar de que se tem Revista Litteris Número 6

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controle, é possível perceber a passagem do tempo, contínua. Já na cidade, em que o drama social se ergue, a protagonista só consegue perceber – jornalisticamente, talvez – acontecimentos, rupturas, saltos. Como não é possível acompanhar o fluxo da cidade (e, mantendo a lógica solipsista, não há como provar que há fluxo se ninguém o reconhece: talvez a cidade realmente se movimente aos saltos), só é possível registrar uma lista de “coisas que aconteceram no mundo” enquanto a repórter procurava uma identidade. O ponto final é a recuperação da protagonista (porque a cidade, é claro, não se redime). A primeira e mais óbvia interpretação é a de que o pai-de-santo a que a repórter levaria Doca para virar Erê na verdade é um psicanalista (antes, pairava uma dúvida se realmente ela queria ajudar ou se livrar da companhia obscena de Doca). “Se há pai-de-santo, não é este quem me faz perguntas. Não virá pai-de-santo algum. Não se trata de um centro espírita” (ibidem, 195). “O que imaginamos nem sempre é o que desejamos que aconteça”, capítulo em que estão estas últimas frases, é a descrição de uma cura pela análise. A analisada vai aos poucos percebendo a “verdade” de suas respostas até que o fantasma desaparece. Mesmo que logo a seguir ela enxergue a análise como um rito para afastar os fantasmas, comparando com uma descrição de ritos de outros tempos por Ovídio, ainda assim é bastante claro que há cura. Aqui encontramos um problema estrutural do livro – algo que, se não considerarmos uma incoerência, torna sua estrutura problemática, dúbia. Essa interpretação de que haveria uma cura pela análise, que podemos chamar de “factual”, por se ater ao desenvolvimento mais ou menos linear do romance, contradiz alguns dos fragmentos ou capítulos. No fragmento “Ordenação dos sonhos”, por exemplo, encontramos a defesa da escrita como a única maneira de existir a partir dos cacos de realidade que conseguimos recolher na existência de mônada na cidade: Temos o diário que merecemos… é meu cada ponto de tinta em suas páginas, em que me imagino reportando misérias alheias. Recuperando peças que contam a história de uma civilização. Eu deveria erguer meu museu. A construção, no entanto, resulta rapeada, sampleada, em cacos – sua confusão mesma, o começo de outra civilização. Único lugar em que imagino resistir (ibidem, 172). Revista Litteris Número 6

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Aqui vemos o peso da escrita como a única maneira pessoal de dialogar com alheio. Mais uma vez retomo aqui Barthes, desta vez a leitura que Claude Coste faz do curso Como viver junto: a literatura seria, para Barthes, “a harmonia futura entre a solidão de um escritor e a comunidade de seus leitores” (Coste: 2003, XXXIX). No romance de Cecilia Giannetti, apenas a escrita literária é capaz de refazer a ligação entre o sujeito e o coletivo. Embora pela cronologia da narrativa (pela ordem dos capítulos, o leitor se vê impelido a resolver o enredo e solucionar as questões) a explicação psicanalítica tenha mais peso, do ponto de vista da contaminação do texto a hipótese da escrita é mais forte, pois pontua quase toda a história. Guardadas as devidas proporções históricas – e também lembrando a análise do Barthes fragmentário de Como viver junto, segundo o qual o fragmento é uma falsa descontinuidadevii –, podemos aplicar no romance de Giannetti a análise da obra de Franz Kafka por Gunther Anders (Anders: 2007, 74-7). Anders afirma que os capítulos de O processo, por exemplo, poderiam ser agrupados em qualquer ordem porque na verdade cada ocorrência narrativa ali é paralisada, não faz propriamente desenvolvimento do personagem e da história. Giannetti constrói um romance em que também há independência dos fragmentos, e talvez seja justamente ao ter um final unificador que sua complexidade se perderia. Mas, se pensarmos como Anders ao analisar Kafka, ou seja, que o fim poderia estar em qualquer lugar da narrativa, a transformação do pai-de-santo em analista ganha força ao ser apenas mais uma possibilidade de contar aquela história, e não a forma “correta” de narrá-la. Isso, como disse, é corroborado pelo peso que tem a representação da escrita no romance, em face da quase nulidade da importância da análise. Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi não tem profundidade psicológica, e nisso está boa parte de sua virtude como recurso ao realismo da literatura urbana. Há uma profundidade ou complexidade estrutural, que reverbera a dificuldade de falar de algo que não se apresenta comumente na descrição naturalista da violência: como manter sua identidade no mundo da violência sistemática. Funcionam mais como fecho do livro três retomadas poéticas de temas abordados em fragmentos anteriores. São codas, que não concluem a narrativa, mas Revista Litteris Número 6

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lançam o leitor de volta às temáticas do livro. Num dos fragmentos nomeados “Cristina”, a narradora fala sobre como é possível observar apenas pedaços da realidade – neste caso, de pessoas na multidão – e ainda assim escrever a partir desses cacos. A escrita não corresponderá à realidade, mas a representa justamente por, assim como a realidade, trabalhar com incerteza, imprecisão, movimento. Logo a seguir, ela conta que conheceu uma pessoa feliz (ela mesma, claro), e essa pessoa não tinha história, apenas se deixava levar pelas rupturas dos choques internos, magmáticos da cidade, uma pessoa que não carrega o passado, que é levada pelo presente. Aqui, reencontramos a temática (nietzscheana e psicanalítica) do esquecimento como forma de quebrar a barreira que nos impede de seguir em frente: as agressões da realidade. O trigésimo segundo fragmento, uma simples frase, conclui com um toque cético e irônico o livro. “Sobem créditos”: “Boa noite”. Terminando como um telejornal, Giannetti acrescenta, ao tema da escrita e do esquecimento, o da mediação. De maneira cética, porque mostra que todos os acontecimentos informados aos espectadores – mediados – não passam de uma preparação catárdica e alienante para um “boa-noite”. Irônica, porque também é o romance que deseja ao leitor, antes de aparecerem os créditos, uma boa noite, embora tenha o tempo todo chamado o leitor a completar uma construção fragmentária de uma relação sem solução do sujeito com a realidade.

Pessoas que nunca vi (coda) Como vimos, aqui é narrado um drama individual – e verossimilhante, quase banal em sua semelhança com as notícias de jornal. Mas exatamente por tratar do indivíduo, perdido no meio da cidade e tendo de encarar um acontecimento que, mesmo com toda a carapaça de esquecimento e indiferença que vestimos, não estava preparado para encarar, é que o drama se torna coletivo, já que fala de uma experiência que todos vivemos. Como a alienação do homem urbano é coletiva, ela só pode ser representada individualmente. Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi consegue pôr numa forma literária um terror quase incomunicável. Um possível argumento contrário a essa literatura: o homem continua se relacionando apesar do perigo que a cidade representa. O contra-argumento: se ele consegue é porque sublima ou esquece sua paranoia, porque Revista Litteris Número 6

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está imune ao choque, porque, enfim, se conforma. Mas, para isso, é necessário haver compensadores: a banalização da violência na arte, em programas de TV sobre o “mundo cão”, em notícias que dão a entender que “a violência é enorme, mas está longe de você”. A personagem de Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi faz justamente o contrário disso, elimina toda compensação, inclusive a memória de sua identidade (que, no nosso mundo, tem a função de dizer: “apesar de tudo, eu sou bom”, a função de isolar a pessoa do social), como num luto pela morte do nome. Para viver na sociedade, temos que recorrer à carapaça do esquecimento. O estado paranoico da protagonista é ao mesmo tempo de lembrança permanente do choque e de esquecimento (ou abandono) da identidade. O acontecimento que choca é absurdo, injustificável, mas também é algo é calcado na realidade (em julho de 2009, num bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, uma menina se jogou de uma janela e morreu, a mãe a havia deixado dormindo enquanto buscava algo na festa junina em que estavam, no mesmo prédio – a menina morreu porque a mãe se ausentou vinte minutos –, e só nos resta imaginar o que passava na cabeça dela; na mesma semana, numa cidade do interior do Nordeste brasileiro, uma menina de doze anos foi executada porque testemunhou um assassinato; há poucos anos um pai e uma madrasta mataram uma menina, um caso até hoje comentado e acompanhado em “suítes” dos jornais. É conhecida a frase de Primo Levi de que as atrocidades do holocausto devem ser contadas para não ser esquecidas. Hoje, como uma sublimação (transformando uma pulsão em cultura), conta-se para esquecer.

Referências bibliográficas

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Escreveu Adorno sobre o lazer, sobre o tempo livre: “Logo não restará relação que não tenha em vista relações, nenhum impulso que não se submeta à censura prévia a qualquer desvio do aceitável. (…) Hoje é visto como arrogante e impertinente aquele que se envolve em coisas privadas sem exibir orientação para uma meta. É quase suspeito quem nada „quer‟” (Adorno: 2008, 19-20.) Revista Litteris Número 6

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O trauma original, para Freud, é o da quebra da ligação entre mão e filho. “What the baby experiences, subjected without recourse to a state of tension in the absence of its mother, was taken as the prototype of all traumatic situations” (Brette). iii

“Cada uma das lembranças e expectativas isoladas através das quais a libido está vinculada ao objeto é evocada e hipercatexizada, e o deslizamento da libido se realiza em relação a cada uma delas” (Freud: 1974). iv

Cortázar, uma das fontes literárias de Cecilia Giannetti, aborda essa “doação de existência” em contos como o clássico “Lejana” (2007, 147-155). v

Antes do ponto de ruptura, a protagonista se utilizava, como todos nós, da memória seletiva – versões dos acontecimentos filtradas pelo inconsciente –, que, segundo Freud, serve para proteger o ego consciente dos impulsos do id. Já a reconstrução da memória parte de um desligamento dos elementos do trauma. Ela volta a investir sua libido em elementos cotidianos, mas existe uma rearrumação: substitui relacionamentos antigos por outros, substitui a importância que dava à aparência pelo “usufruto” da solidão. vi

“Não estamos aqui longe da bola através da qual a criança (na análise de Freud), ao fazê-la desaparecer e reaparecer, vive alternadamente a ausência e a presença da mãe – fort-da-fort-da – e responde à angústia da ausência pelo ciclo indefinido de reaparição da bola”, escreveu Baudrillard sobre o costume de colecionar (talvez também colecionar pessoas). (Baudrillard: 2000, 105). vii

“O fragmento do discurso (saído do impulso fantasmático) é certamente linguagem, é um falso descontínuo – ou um descontínuo impuro, atenuado. Mas pelo menos ele é a menor concessão feita à fixidez da linguagem” (Barthes: 2003, 37). Acredito que podemos extrapolar essa ideia a partir da moral da forma de Walter Benjamin quando fala da função adaptativa dos estímulos do cinema: a fragmentação funciona como uma preparação para entender um mundo fragmentado.

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