A ciência Judaica em Portugal no século XV

July 18, 2017 | Autor: Luis Campos Ribeiro | Categoria: History of Science, Jewish History, Historia del Judaismo
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A ciência judaica em Portugal no século XV HELENA AVELAR DE CARVALHO | LUÍS CAMPOS RIBEIRO O século XV português é rico em exemplos das práticas científicas judaicas. As suas evidências chegam até nós de várias fontes, sendo as principais os manuscritos, as crónicas, os registos notariais e as chancelarias. Vamos centrar-nos sobretudo nos dois primeiros. Estão actualmente identificados 12 manuscritos hebraicos tardo-medievais de origem portuguesa. Destes, oito são obras de teor médico, três de teor astrológico/astronómico, e o restante combina duas obras: uma de natureza médica e outra de natureza astrológica. Esta convivência entre a medicina e a astrologia, embora estranha aos olhos contemporâneos, é prática comum desde a antiguidade até ao início da época moderna. A astrologia era usada como método auxiliar de diagnóstico, indicando propensão para determinadas doenças e elegendo momentos para a administração de remédios e para intervenções médicas. A ênfase nestes dois temas permite deduzir os interesses científicos dos praticantes judaicos quatrocentistas. Neste conjunto de códices médicos encontramos obras fundamentais da medicina medieval, como o Cânon de Avicena, a par com colecções de aforismos e receitas, e algumas traduções de obras médicas latinas1. Esta amostra, embora pequena, é contudo perfeitamente representativa dos interesses médicos judaicos desta época (Caballero-Navas, 2011). Um bom exemplo da prática conjunta da medicina e da astrologia é o manuscrito MS 8241 da Jewish Theological Seminary Library de Nova Iorque. Trata-se de um livro hebraico de luxo, contendo aforismos médicos e astrológicos, cuja encadernação original, em caixa, está identificada como sendo de origem Portuguesa (Avrin, 1989a). A sua decoração apresenta, de facto, muitas semelhanças com a produção das escolas portuguesas de iluminação: um rico frontispício com cercadura de flores, acantos e pássaros; no interior várias decorações em filigrana e alguns motivos mudéjares. O códice contém uma tradução hebraica dos aforismos médicos de Hipócrates e do Centiloquium – um conjunto de 100 sentenças astrológicas atribuídas a Ptolomeu e considerado fundamental para o estudo da medicina (Rutkin, 2006: 546). Neste manuscrito encontramos dois diagramas de especial interesse: o primeiro é uma representação do mundo, sob a forma de uma esfera armilar, movido por anjos através de manivelas localizadas nos pólos; o segundo é um esquema astrológico decorado com filigrana, no qual estão representadas as 12 casas do horóscopo. Desde o reinado de D. Afonso Henriques que está documentada a presença de indivíduos de ascendência judaica em cargos de destaque na corte portuguesa. Herdeiros da cultura clássica 1

Sobre alguns destes manuscritos médicos ver: Moita, 2012; Mendes, 1999.

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(através dos árabes), estes conselheiros judeus detinham um saber rico e versátil, que abrangia áreas como a Matemática, a Astronomia/Astrologia, a Filosofia, a Medicina e a Farmácia. A natureza multifacetada deste saber permitiu-lhes responder com sucesso às solicitações de cada época, tornando-os figuras centrais no avanço da ciência em Portugal. Deste grupo destaca-se a família Negro (fundada por Yaḥia Negro), cujo percurso na corte ao longo de toda a Primeira Dinastia e parte da Segunda, ilustra o impacto da ciência judaica na cultura medieval portuguesa2. Durante cerca de quatro séculos, os descendentes de Yaḥia Negro estiveram presentes na corte, desempenhando funções de prestígio, como tesoureiro, rabi, médico, astrólogo, conselheiro militar ou trovador, entre outros cargos. Vários membros desta família destacaram-se na ciência portuguesa quatrocentista. Um dos mais conhecidos é sem dúvida mestre Guedelha (Gedaliah ben Shlomo ibn Yaḥia – c.1400-c.1453) que desde 1428 foi astrólogo e físico na corte de D. João I. Mestre Gedelha teria à data menos de trinta anos de idade, o que é notável, dada a responsabilidade que o cargo implicava. Os seus serviços foram de certo apreciados, pois foi confirmado no cargo em 1443 pelo regente D. Pedro (Tavares, 1982, p. 133-134). Foi ainda médico e astrólogo do Infante D. Henrique e de D. Afonso V (Steinhardt, 2005: 119). Nas crónicas encontramos dois relatos da sua prática como astrólogo. O primeiro, narrado por Rui de Pina na Chronica do Senhor Rey D. Duarte, refere-se à coroação deste monarca. Diz o cronista que Mestre Guedelha pediu a D. Duarte que adiasse a cerimónia, por as configurações astrológicas do momento não serem as mais favoráveis. Como D. Duarte recusasse o conselho, Mestre Guedelha advertiu-o de que teria um reinado breve e atribulado (Pina, 1977: 493). D. Duarte reinou apenas 5 anos, tendo morrido aos 42 anos, vítima da peste que então grassava no país3. A segunda referência diz respeito ao jovem Afonso V, herdeiro de D. Duarte. Diz a crónica que a pedido do regente D. Pedro, Mestre Guedelha elegeu o momento astrologicamente mais favorável para o juramento de fidelidade ao futuro D. Afonso V, então com 6 anos de idade (Avelar de Carvalho, 2011: 118-119). Rui de Pina refere que «em quanto hum Meestre Guedelha, singular Fysico e Astrologo, per mandado do Yfante regulava, segundo as ynfluencias e cursos dos

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Não há acordo sobre a origem do nome. Alguns investigadores afirmam que D. Yaḥia adoptou o nome da vila, que já se chamava A-dos-Negros, enquanto outros afirmam que a localidade passou a ter este nome por ter sido atribuída a D. Yaḥya. Nesta última hipótese, as opiniões também se dividem quanto à razão da designação: o nome negro pode referir-se a um tom de pele ou a um trajo usado em combate. Alguns historiadores consideram este episódio uma fabricação do cronista (que viveu na corte de D. Manuel I) para denegrir a imagem de D. Duarte. É possível, pois as posições dos planetas descritas na crónica não correspondem às posições efectivas do dia 15 de Agosto de 1433. Ainda assim, o episódio serve para demonstrar o tipo de funções que se esperavam do astrólogo da corte.

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Planetas, a melhor ora e ponto, em que se poderia dar aquela obediência... E em dizendo Meestre Guedelha, que era booã ora pera fazer sua obediencia, o Yfante com os giolhos em terra tomou as maaons ao Pryncepe» (Pina, 1977: 588-589). Voltamos a encontrar referência a este astrólogo numa nota de privilégio datada de 28 de Dezembro de 1450, referindo-o como “físico e cirurgião do Infante [D. Henrique]” (Dinis, 1969: 346); terá portanto integrado a poderosa casa senhorial do Infante. D. Duarte também o refere no seu livro dos conselhos, registando a explicação do astrólogo sobre os cálculos para determinar o dia mais longo e o dia mais curto do ano, e também uma «tabela para saber as horas» (Duarte, 1982: 156, 296; Avelar de Carvalho, 2011: 70) A astrologia exigia ao praticante um nível de erudição considerável, tanto a nível da teoria astrológica como de astronomia e matemática, o que implicava a leitura (e possivelmente a posse) de várias obras fundamentais destes saberes. Seria portanto de esperar que entre os físicos e astrólogos judeus existisse uma considerável circulação de obras astrológicas, astronómicas e matemáticas – tanto textos judaicos originais, como traduções. Este investimento em livros está patente nos códices astrológicos que nos chegaram dessa época. Entre eles destacam-se dois manuscritos da Bodleian Library escritos em português com caracteres hebraicos: El libro cumplido en los iudicios de las estrellas (Oxford, Bodleian Library, MS Laud. Or. 310) e De Magica (Oxford, Bodleian Library, MS Laud. Or. 282). O primeiro é uma cópia da obra de Ibn Abi'r-Rigal (também conhecido por Ali ben Ragel), que teve grande circulação na Idade Média e foi traduzida de Árabe para Castelhano a mando de Afonso X de Castela em 1254 (Hilty, 1954). Este códice foi copiado em 1411, em Torres Vedras, por José Guedelha Franco, figura desconhecida, mas a avaliar pelos apelidos, próxima do círculo de físicos e astrólogos que trabalhavam na corte (Hilty, 1982). Curiosamente esta cópia contém apenas as partes mais complexas da obra (livros 4 a 8) o que indicia que foi feita a pensar no interesse de um praticante mais avançado. Este manuscrito atesta a existência de cópias desta obra a circular em Portugal, algumas das quais fariam parte da biblioteca real; note-se que o Libro cumplido é referido por D. João I no seu Livro da Montaria (Almeida, 1981, p.74). Na mesma obra D. João I refere também um «liuro de estronomia de Joam Gil» que poderá ser uma versão do segundo códice hebraico da Bodleian Library: o De Magia. Embora a autoria deste texto seja um assunto ainda em discussão (Duchowny, 2007), trata-se sem dúvida de uma cópia em português de uma obra astrológica, atestando o interesse da comunidade judaica neste tipo de textos. A existência destes dois códices reforça ainda a ideia de circulação de livros de saber astrológico nos ciclos cultos portugueses. Dentro desta linha de obras judaico-portuguesas é também importante referir o Sefer lada'at haye ha-molad, Livro para calcular a longevidade do nativo, que se encontra numa miscelânea de textos da Jewish Theological Seminary Library, MS 2626 e até hoje inédito (Hilty, 2008). Este

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texto, escrito por Moisés ben Abraão de Leiria, rabi-mor e físico de D. João I de 1391 a 1405, aborda a determinação da longevidade através do horóscopo, sendo a única obra astrológica medieval conhecida, escrita em território português. Na segunda metade do século, durante os reinados de D. João II e de D. Manuel, a circulação e o desenvolvimento de temas científicos por parte da comunidade judaica é ainda mais evidente. Muito deste incremento deve-se ao contributo de judeus que vieram para Portugal fugidos das perseguições em Espanha. Entre estes conta-se Judah Ben Verga, que esteve ativo em Lisboa entre 1455 e 1475. Foi autor de vários tratados astronómicos, até hoje por traduzir, assim como de tabelas astronómicas (conhecidas como zij), onde menciona Lisboa como ponto de observação (Goldstein, 2001 e 2004). O mais destacado destes sábios judaicos é sem dúvida Abraão Zacuto conhecido pelas suas obras astronómicas e também referenciado nas crónicas portuguesas. A grande obra de Zacuto é o conjunto de tabelas astronómicas, ha-Hibbur ha-gadol, terminadas por volta de 1478, traduzidas e publicadas em Leiria, em 1496, com a designação de Almanach Perpetuum (Chabás e Goldstein, 2000) (CAT.12). Menos conhecido é o pequeno texto astrológico, Tratado de las influências del cielo, escrito a pedido de D. Juan de Zúñiga y Pimentel em 1486, que sobrevive numa cópia do final do século XV ou do início do XVI (Carvalho, 1928). Nele Zacuto discute os principais fundamentos da astrologia, dando também destaque a vários aspectos da sua aplicação à medicina. Esta é aliás a principal vocação desta obra, tal como é referida nas palavras do próprio autor quando diz que escreve este tratado «para que con este mas se ayudasen los medicos de su señoria sy fueren astrologos» (Carvalho, 1928: 111). Zacuto é também referenciado nas Lendas da Índia de Gaspar Correia (Correia, 1975). O autor refere vários episódios em que D. Manuel terá recorrido a este astrólogo, no mais curioso dos quais o rei teria inquirido sobre a viabilidade do descobrimento e comércio da Índia: «e porque algum tanto era inclinado ás cousas de estronomia, [D. Manuel] mandou chamar a Beja hum Judeu seu muito conhecido, que era grande estrolico, chamado Çacoto, com o qual falou em seu segredo muito lh'encarregando que trabalhasse de saber, se lhe aconselhaua que entendesse no descobrimento da Índia, e se era cousa que podia ser» (Correia, 1975: 10). Embora a exactidão destes relatos seja questionada pelos historiadores, o tipo de prática que descrevem vem mais uma vez reforçar a presença e a relevância da astrologia em Portugal no final do século XV. Também a cópia portuguesa de 1496 do tratado Yesod Olam de Asher ben Yeḥiel, uma obra de geometria, trigonometria esférica e astronomia, atesta para a riqueza e interesses científicos da comunidade judaica portuguesa do final do século. Temos então claras evidências da presença de uma viva cultura judaica na ciência tardo-medieval portuguesa. Esta cultura, caracterizada sobretudo por uma grande versatilidade,

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tocava vários ramos do saber, com especial ênfase na medicina e na astrologia/astronomia. Este conhecimento manteve os seus praticantes próximos dos círculos de poder, e reflectiu-se não só a produção e circulação de textos, mas também na rápida integração das novidades da época. Na comunidade judaica encontramos, sem dúvida, um dos grandes motores da divulgação e desenvolvimento do saber científico em Portugal no século XV.

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