A Ciência Política como vocação

July 6, 2017 | Autor: Christian Burle | Categoria: Political Science
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A CIÊNCIA POLÍTICA COMO VOCAÇÃO: metodologia para o estudo do poder Christian Burle1 Resumo É impraticável fazer Ciência Política de qualidade sem recorrer a certas categorias conceituais do pensamento de Max Weber. Destacam-se o tipo-ideal e o método compreensivo como considerações metodológicas preliminares. Palavras chave: Ciência Política. Metodologia. Tipo-Ideal. Método Compreensivo. Abstract It is impractible to produce good-quality Political Science without appealing to certain conceptual categories from Max Weber´s thought. The ideal-type and the comprehensive method stand out as preliminary methodological considerations. Key-words: Political Science. Methodology. Ideal Type. Comprehensive Method.

1 INTRODUÇÃO2 Reza velho ditado, de origem supostamente britânica, que “necessity is the mother of invention”. A necessidade, no ofício de professor universitário, de produzir um texto que fizesse considerações metodológicas iniciais, dentro do contexto da(s) disciplina(s) de Ciência Política, é a pedra de toque deste trabalho. Seu público-alvo preferencial (embora, por óbvio, não exclusivo) são os estudantes que travam seus primeiros contatos com a Ciência Política, geralmente alunos do primeiro semestre dos cursos de Graduação em Humanidades. Mais especificamente, a precisão identificada consiste em introduzir os conceitos de tipo-ideal e método compreensivo, popularizados nas Ciências Sociais por Max Weber, enquanto pressupostos indispensáveis aos estudos politológicos. A ciência nasce, dentre outras razões, do hábito de classificar e ordenar os fenômenos da realidade a fim de melhor compreendê-los. A taxonomia aristotélica corresponde a uma das primeiras manifestações do espírito humano no sentido de dividir em categorias os dados que se apresentam ao homem no mundo (e de certa forma “fora” dele, no caso da metafísica) a fim de imprimir “ordem ao caos”, ou seja, realizar trabalho de natureza intelectual. Deste modo, cada ciência distingue-se das demais por seu objeto de estudo: a Biologia estuda a vida; a Física, a natureza; a Antropologia, a cultura; a Sociologia, a sociedade; e assim por diante. Mas qual será a proposta de estudo da Ciência Política? O primeiro passo para responder a essa indispensável questão encontra-se na etimologia, ou seja, no estudo da origem das palavras – mais uma ciência para a lista. Para chegar a uma conclusão acerca de qual seja o objeto de estudo da Ciência Política, é preciso primeiro definir “Ciência”, depois “Política” e então verificar se (e 1

Mestre em Ciências Políticas pela Universidade de Brasília (UnB). Professor da Faculdade São Luís. O título deste artigo é uma referência e reverência ao legado politológico de Max Weber, particularmente em Weber (1988).

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como) a soma das partes transcende ou não o todo quando se trata de “Ciência Política”. Adiante-se, desde já, que “Ciência”, “Política” e “Ciência Política” são expressões deveras controversas, cuja definição certamente não está isenta de calorosas divergências conceituais3. A noção de ciência, em primeiro lugar, é ela mesma objeto de uma ciência: a epistemologia, ou “estudo da ciência”. Nessa metalinguagem, discutem-se as condições de cientificidade, ou seja: o necessário para que determinado conhecimento seja considerado científico, e não fruto de outras áreas do saber, tais como o senso comum, a religião ou o mito. Na sociedade contemporânea, como herança iluminista, o conhecimento científico passou a ser visto como a forma mais elevada de saber, sendo, portanto, colocado em posição superior a todos os demais4. Na prática, a ciência apresenta duas características muito próprias e intimamente interligadas: o método5 científico e o controle de cientificidade. O método consiste num conjunto de procedimentos aceitos como legítimos para constatar a veracidade de algo. Em Ciência Política, “legitimidade” tem o significado geral de justiça, razoabilidade, bom senso – o que coloca a pergunta: legítimo para quem? A resposta é: para a comunidade científica. O método científico está, conseqüentemente, condicionado a um controle rígido, porém não infalível, visto que os cientistas são também seres humanos. Neste ponto o leitor pode estar-se perguntando: Mas como? Quer dizer então que a ciência é, em última análise, subjetiva? Sim. Como comprova a História da Ciência, por mais intensos que tenham sido os esforços da comunidade científica no sentido de respeitar as condições de cientificidade, houve momentos de ruptura, de transição de paradigmas. Na História da Física, por exemplo, há o conhecido questionamento da Física Clássica, newtoniana, a partir das descobertas da Teoria da Relatividade – e posteriormente, a própria Teoria do Caos e a Física Quântica. Esses exemplos demonstram que a “verdade” científica de hoje pode não mais o ser amanhã. 2 IDEALISMO E REALISMO Rafael, grande pintor renascentista, foi de rara felicidade em um de seus quadros. Nele, o artista retratou Platão e Aristóteles de modo a enfatizar a principal diferença na filosofia de ambos: a distinção entre realismo e idealismo. Na obra, Platão aparece apontando para o alto e seu discípulo, para o chão. O dedo platônico direcionado às alturas reflete o centro das preocupações do filósofo mais idoso: o Mundo das Idéias. Para Platão, o mundo abstrato, o que está na mente das pessoas, era o que mais importava. Era preciso viajar a esse mundo para, na volta, interagir com o mundo real de modo a torná-lo melhor. Quanto a Aristóteles, 3

Nesta seção se discutirá apenas a ciência. Sobre o debate em torno da política e Ciência Política, ver seção 3. 4 A própria noção de que a ciência seja forma de conhecimento mais válida que as demais encerra juízo de valor. Weber insistia na distinção entre juízo de realidade (fato) e juízo de valor (julgamento), defendendo que, em nome da neutralidade científica, desejável utopia, deveria ser dada preferência ao juízo de realidade. 5 Que não deve ser igualado a “metodologia”, que é ö estudo do método”.- confusão muito comum.

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inobstante Platão ter sido seu mestre, preocupava-se prioritariamente com o mundo real – daí o dedo apontado para o chão, real e concreto. Em outras palavras, de maneira simplificada se pode dizer que, se por um lado a preocupação platônica era com o “dever ser”, a aristotélica era com o “ser”. A listagem de autores idealistas inclui, entre inúmeros outros, o próprio Platão, Morus, Rousseau, Kant, Hegel e Marx. Nas fileiras realistas, o rol não exaustivo inclui, além de Aristóteles, pensadores como Tucídides, Maquiavel, Hobbes, Aron e Gilpin. 3 ESTADO E PODER Com vistas a identificar o objeto de estudo da Ciência Política, um ponto de partida clássico é a frase de ARISTÓTELES (1988, p. 15): “o homem é, por natureza, um animal social” (1253a, grifo acrescentado). Algumas traduções chegam, inclusive, a adotar o termo “político”, em vez de “social”, nesse trecho. O que o filósofo ateniense queria dizer é que é da natureza humana viver em sociedade, interagir com seus semelhantes; segundo o discípulo de Platão, ninguém nasceu para ser ermitão. Na Antigüidade Clássica (Grécia e Roma), por influência do prestígio do próprio Aristóteles, definiu-se a política como o que acontece na pólis (Cidade-Estado). Conseqüentemente, durante séculos se adotou o Estado como objeto de estudo da Ciência Política, definição que permanece válida. Todavia, uma coisa é dizer que o Estado é estudado pela Ciência Política; outra, bem distinta, é afirmar que a Ciência Política ocupa-se exclusivamente dos estudos estatais. Nesse ponto surge a inevitável pergunta: haveria poder fora do Estado? A resposta é “sim”. O poder é onipresente. Definido como capacidade ou possibilidade de obter a obediência de outrem, o poder precisa de apenas três elementos para tornar-se social: alguém que mande, outro alguém que obedeça e uma esfera na qual se dê essa relação (por exemplo, econômica, política, ideológica etc.). Assim, um casal na fila de cinema decidindo a qual filme vai assistir já é uma relação de poder. Ele quer assistir a uma comédia e ela, a um filme romântico. Após negociações, chegam ao veredito e cada qual resolve ceder um pouco em prol do bem comum6, instaurando uma solução de compromisso - deve ser por isso que as comédias românticas fazem tanto sucesso. Pode-se, sem exagero, falar na “política do casal” para referir-se à situação de poder descrita. Resulta claro que “Estado” é subconjunto de “poder”. Ou, em termos aristotélicos mais uma vez, se poder é gênero, Estado é espécie. A Ciência Política tem por objeto geral o poder, dentro do qual está contido o Estado, objeto específico, porém não único. Essa visão abrangente do poder, enquanto fenômeno presente em todas as relações sociais, é particularmente bem trabalhada na obra foucaultiana, em especial em Foucault (1992). 4 WEBER, SOCIÓLOGO DA POLÍTICA 6

Conceito aristotélico, vale lembrar.

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Max Weber é, juntamente com Marx e Durkheim, um dos founding fathers da Sociologia. Nasceu em 1864 em Erfurt, Turíngia, poucos anos antes da unificação alemã, que ocorreria em 1871. Note-se que, tecnicamente falando, Weber não nasceu cidadão alemão, mas faleceu nessa condição. Considerado um dos maiores gênios das Ciências Sociais em todos os tempos, o “Maquiavel de Heidelberg” faleceu em 1920 vitimado por epidemia de gripe espanhola. Descrever a contribuição intelectual de Weber tem sido alvo de muitas biografias e escaparia ao escopo deste artigo. Todavia, aqui interessa identificar a contribuição específica do sociólogo alemão para a metodologia de Introdução à Ciência Política. Nesse sentido, cumpre destacar, ainda que por amostragem, a importância de conceitos weberianos clássicos como o método compreensivo, o tipoideal, os três tipos puros de dominação legítima e a definição de Estado (Moderno). Sobre o tipo-ideal, assunto da próxima seção, ´é difícil imaginar a Ciência Política sem ele. Quanto ao método compreensivo, sua válidade é teórica e prática, na resolução de conflitos. Já os três tipos puros de dominação legítima relacionam as lideranças políticas às respectivas fontes de seu poder: a tradição, o carisma e a lei, entendida como fruto da razão humana. Trata-se de categorias que no mundo real podem misturar-se, vez que se trata de tipos-ideais. Exemplos de líderes cuja fonte de poder é predominante tradicional – e aqui o grifo impõe-se para ressaltar que os mesmos líderes podem ter concomitantemente poder carismático e/ou racional-legal - incluiriam nos dias atuais sobretudo os líderes religiosos; os líderes carismáticos, dotados de poder de sedução sobre as massas, incluiriam figuras tão díspares ideologicamente como Getúlio Vargas, Adolf Hitler, Fernando Collor, os Papas João Paulo II e Bento XVI, o Dalai Lama e Lula. Entre os detentores de poder racional-legal podem ser elencadas todas as pessoas legalmente empregadas do mundo, seja na esfera pública ou privada. No que tange à definição weberiana de Estado, historicamente válida do Estado moderno (absolutista) aos dias atuais, sua identificação do Estado com o monopólio do uso legítimo da força permanece, quase um século após a morte de Weber, a mais objetiva das definições do conceito. 5 O TIPO-IDEAL Conquanto a classificação de Weber como idealista ou realista não seja fácil, visto ser ele influenciado por fontes as mais diversas, como Maquiavel e Platão, há uma noção weberiana que remete imediatamente a seu lado platônico: o tipo-ideal, também conhecido por tipo puro. Caracteriza-se este por ser advindo do que Platão chamava à sua época de Mundo das Idéias, ou seja, um mundo feito de abstrações úteis à compreensão da realidade.

5.1 Caricaturas da realidade: “exagerar é minha profissão”.

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Para Weber, as Ciências Sociais deveriam enfatizar, para fins analíticos, a unilateralidade das características sob avaliação. Retoricamente, o sociólogo alemão costumava dizer que sua profissão era o exagero, no sentido de que o papel do cientista social é produzir caricaturas da realidade, ou seja, simplificações que permitam enxergar com maior nitidez os aspectos que estão sendo explanados. Tal qual o chargista, que ao retratar um narigudo o faz aumentando seu já avantajado órgão respiratório em cem vezes, o cientista social deve tornar o mais explícitos possível os aspectos da realidade que pretende sublinhar. Assim, ao se falar em democracia, por exemplo, o tipo-ideal seria o governo do povo em sua plenitude, ou seja, aquele em que as decisões políticas tivessem a participação de todos os cidadãos. Trata-se de utopia, pois na prática mesmo as democracias mais avançadas conseguiram alcançar no máximo o governo da maioria; contudo, ao mirar-se na democracia perfeita, tem-se um referencial teórico importante para a avaliação dos governos do mundo real. O papel do tipo-ideal é justamente esse: construir a ponte entre ideal e real. 5.2 Ideal não é necessariamente bom. Já se disse aqui que Weber dava grande importância à distinção entre juízo de valor e juízo de realidade. Ele assim o fazia porque defendia o ideal da neutralidade científica. Não que o Maquiavel de Heidelberg fosse ingênuo, mas porque, por questão de método, Weber adotava as abstrações como matéria-prima para suas análises, recorrendo a conceitos que pavimentassem a via de mão dupla entre realidade e teoria. Era justamente com tal espírito que o sociólogo alemão aproximava-se do platonismo, do idealismo herdeiro do Mundo das Idéias. Embora para muitos a obra maior de Weber seja A ética protestante e o espírito do capitalismo, para o próprio autor seu legado mais expressivo era justamente a enumeração de tipos-ideias (cf. WEBER, 1992). São exemplos de tipos puros a legitimidade, o próprio poder, as dominações legítimas (carismática, tradicional e racional-legal) e ilegítimas, o patrimonialismo (indistinção entre o interesse público e o privado) etc. Atente o leitor para os dois últimos exemplos de tipos puros: dominações ilegítimas e patrimonialismo. Trata-se de características consideradas indesejáveis nas sociedades modernas e contemporâneas; entretanto, nem por isso deixam de ser tipos ideais. Por quê? O tipo-ideal, se bem entendido, não se limita ao que é bom, desejável, perfeito. A lógica do pensamento weberiano permite concluir-se que um indivíduo 100% bom e um indivíduo 100% mau são ambos tipos puros. “Tipo-ideal” corresponde a 100% de determinada característica, sem embargo do juízo de valor que o analista lhe possa atribuir. Conseqüentemente, são tipos-ideais tanto um país 100% justo como outro 100% injusto; um governo 100% democrático ou 100% autoritário (o que implicaria totalitarismo, que é o autoritarismo em último grau); um anjo, dotado de 100% de bondade, ou um demônio, de maldade infinita; o céu e o inferno. Neste ponto o leitor deve estar a indagar-se: mas para que serve falar de alguém 100% bom ou 100% mau, se tal indivíduo inexiste? A resposta é relativamente simples. Ocorre que, embora nenhum indivíduo seja totalmente bom ou mau, importa saber de qual dos dois extremos ele mais se aproxima. Um carrasco como Stálin, que

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matou nove vezes mais que Hitler7, certamente se aproxima da maldade absoluta, ao passo que uma alma caridosa como a de Madre Teresa de Calcutá estava no caminho da bondade absoluta. A tentativa de quantificar o grau de qualquer característica com base no tipoideal pode levar a constatações curiosas. Por exemplo: por pior que alguém seja, não consegue fazer o mal o tempo todo, e o mesmo vale para o outro extremo, o do bem absoluto. Isso porque há uma impossibilidade até mesmo biológica para o ser humano agir unilateralmente o tempo todo. Assim, tanto bons como maus passam cerca de 8h, ou seja, 1/3 de seu dia, dormindo. Acrescente-se a isso o tempo das refeições e se verá que o homem passa pelo menos cerca de metade de sua vida realizando ações que não são boas nem más em si, e sim indiferentes. 6 O MÉTODO COMPREENSIVO: “entrar na pele”. Nas relações humanas, um dos princípios mais fáceis de entender e mais difíceis de pôr em prática é o de “colocar-se no lugar do outro”, “entrar na pele” de alguém, “walk in one’s shoes”. Exercícios elementares de empatia, se devidamente executados, podem evitar desde discussões domésticas até – quem sabe – guerras. O grande popularizador da empatia nas Ciências Sociais foi Max Weber, mediante o método compreensivo. 6.1 A dança da chuva faz chover. O título deste tópico é uma provocação explícita aos espíritos ocidentais ou ocidentalizados. Embora o senso comum e os conhecimentos metereológicos no Ocidente digam que a dança da chuva nada tem a ver com as precipitações pluviométricas, a aplicação do método compreensivo pode (e deve) levar o antropólogo a acreditar que a dança da chuva funciona. Colocar-se no lugar do outro, absorver uma cultura radicalmente diferente, decerto não é fácil. A dificuldade reside justamente no fato de que, para absorver a cultura alheia, é preciso, ao menos temporariamente e por motivo de método, deixar de lado sua própria cultura. Assim, para acreditar na eficácia do ritual da chuva, é necessário descartar preconceitos que rotulam tal crença como “atrasada”, “selvagem”, “coisa de índio” e expressões semelhantes. O mais difícil, no processo de entrar na pele do outro é “arrancar a própria pele”, isto é, despir-se dos vínculos com a cultura ocidental. Não há, entre os profissionais de Ciências Humanas, ninguém mais habilitado para essa desafiadora missão que o antropólogo. 6.2 Viés antropológico no estudo de políticas públicas: estudo de caso a partir da Tese de Elizabeth Maria Beserra Coelho.

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Obviamente não se está aqui a defender o ditador nazista. O objetivo é apenas ponderar que o número de homicídios de Stálin foi muito superior.

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Com o fito de exemplificar a atualidade da relevância do método compreensivo, escolheu-se para uma breve análise a postura metodológica em estudo recente de uma acadêmica da UFMA. Trata-se da Tese de Doutoramento em Sociologia, pela Universidade Federal do Ceará, da Profa. Elizabeth Maria Beserra Coelho (COELHO, 2002), que ensejou posterior artigo (COELHO, 2005). Em sua interessante Tese, E.M.C. COELHO (2002), já então mestre em Antropologia, fornece ao leitor um exemplo claro de aplicação do método compreensivo a um caso concreto: o da disputa dos índios Tenetehara/Guajajara8 pela terra. Logo no início do livro, ainda nos Agradecimentos, a autora deixa antever a aplicação do método compreensivo, ao esclarecer que a “elaboração de um trabalho como este implica diversos deslocamentos, físicos e intelectuais” (COELHO, 2002, p. 13). Tais deslocamentos trazem consigo a necessidade de sair de si, colocar-se no lugar dos índios, perceber o que a terra significa para eles. Fica evidente, portanto, que embora o trabalho seja de Sociologia, o assunto exige abordagem de viés antropológico, o que também ocorre freqüentemente com pesquisas em Ciência Política. Ponto particularmente rico no livro (COELHO, 2002) é o conceito de nacionalidade aplicado às populações indígenas brasileiras – tanto é que o tema é retomado três anos depois pela autora em artigo (COELHO, 2005). Dependendo da definição adotada para nação, pode-se entender os Guajajara como parte da nação brasileira (entendimento constitucional) ou uma nação à parte (entendimento antropológico). O resultado dessa discrepância é a criação de uma situação potencial e concretamente tensa, levando ao paradoxo da existência de uma “cidadania diferenciada no âmbito de um Estado que se afirma nacional” (COELHO, 2005, p. 7). Isso sem citar as tensões intrínsecas ao próprio ordenamento jurídico dos brancos, com a secular diferenciação entre jus solis e jus sanguinis. (COELHO, 2005, p. 35-36, grifo nosso): O grupo étnico, no sentido considerado por Weber, não é em si mesmo uma comunidade, mas um “momento” que facilita o processo de comunicação. Ele atua fomentando os mais diferentes tipos de comunicação, sobretudo a comunicação política. A desvinculação que Weber faz do fenômeno étnico com relação aos laços de sangue talvez seja sua contribuição mais substancial para a compreensão da questão étnica. A partir dela, o grupo étnico deixou de ser pensado como algo “natural”, ou seja, “dado” para ser percebido como uma construção. Por outro lado, e como decorrência disso, ele pode explicar o grupo étnico como um grupo organizacional com fins essencialmente políticos.

Se o objetivo era demonstrar a relevância da compreensão weberiana para os estudos políticos, o trecho acima não deixa margem a dúvidas.

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O emprego da inicial maiúscula e a não-flexão para o plural justificam-se aqui por uma convenção da ABA (Associação Brasileira de Antropologia) de 1953, que determinou que “os nomes de povos e línguas indígenas serão empregados como palavras invariáveis, sem flexão de gênero nem número” (Coelho, 2002, p. 16).

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6.3 “Democracia” imposta não é democracia. Sem embargo de sua validade acadêmica, o método compreensivo poderia ser utilizado para facilitar o diálogo entre os povos, evitando conflitos desnecessários. O problema é que muitas vezes não se quer evitar tais choques. O exemplo mais recente de repercussão pública mundial ainda é o da Guerra do Iraque, invadido por decisão unilateral do governo de George W. Bush em desacordo com o veto do Conselho de Segurança da ONU. Seria tolo imaginar que o governo estadunidense não aplicou o método compreensivo ao povo iraquiano porque não conhecia tais procedimentos. Os Estados Unidos são o país do mundo que mais valoriza a presença de cientistas sociais nos cargos de governo, em particular cientistas políticos. A maior prova é o fato de que a própria Secretária de Estado9, Condoleezza Rice, é cientista política. Não faltava entre os assessores de Bush, portanto, quem lhe pudesse aconselhar a colocar-se no lugar dos iraquianos e tornar-se clemente. No entanto, os interesses falaram mais alto que o espírito científico quando se decidiu pela invasão. Sob o pretexto de encontrar armas de destruição em massa e de promover a democracia, as tropas americanas adentraram o país de Saddam Hussein provocando guerra que dura até os dias atuais, a despeito da opinião pública mundial contrária. Ambos os argumentos parecem hoje mais injustificados e injustificáveis que nunca: as armas não foram encontradas e o Iraque não apresenta perspectivas democráticas. Isso porque, diga-se o que se disser, a democracia é um regime político que precisa ter lastro social, ou seja, precisa nascer do seio da sociedade para legitimar-se. Querer implantar um governo “democrático”, tal qual os EUA fizeram não apenas no Iraque, mas também recentemente no Afeganistão, e nas décadas de 1960 e 1970 em vários países da América Latina10, é ato tão unilateral quanto pretender impor culturas mais “modernas” e “adiantadas” a povos mais “atrasados”, como fizeram os europeus com os índios no continente americano11. Democracias “afloram de dentro para fora” (CARTA, 2007), pois a democracia “não pode ser plantada, da noite para o dia, em países que não têm essa tradição” (id.). Em suma, instrumentalizar o discurso democrático para encobrir outros interesses é negar-se a compreender a alteridade, pois os povos têm o direito de viver sob o tipo de regime que desejarem, seja democrático ou não. Se os iraquianos estavam insatisfeitos com Saddam Hussein no governo, que acabassem com sua ditadura, à semelhança do que fizeram os países latino-americanos na terceira onda12 (HUNTINGTON, 1994), inclusive o Brasil, com a redemocratização a partir de 1985.

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Para muitos, a Secretaria de Estado dos EUA é o segundo cargo mais poderoso do mundo, atrás apenas da Presidência do mesmo país. 10 Não apenas o Brasil dos 21 anos de ditadura militar (1964-1985), mas também o Chile, a Argentina, o Paraguai e outros países da região, conforme comprovado por estudos sobre a Operação Condor e teses acadêmicas como a Dissertação de Mestrado do autor deste artigo (OLIVEIRA, 2000). 11 Para uma discussão atualizada do tema sociológico recorrente “modernidade e tradição”, vide Horácio de Sant’Ana Júnior (2005, especialmente nota 5, à p. 21) 12 Alguns já especulam sobre a terceira onda reversa (autoritária) na América Latina, o que parece precipitado, a despeito das bravatas de Hugo Chávez.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este texto foi escrito com o propósito de servir como uma grande janela para o mundo da Ciência Política. Antes de passar ao objeto de estudo dessa ciência, que é o poder, o estudioso precisa estar dotado de ferramentas conceituais básicas, e é nesse sentido que aqui se defende que o tipo-ideal e o método compreensivo são o ponto de partida. Todas as seções preliminares às que trataram desses dois conceitos serviram-lhes de suporte. Por sua vez, dotado de ideal-típicas e compreensivas mínimas, o aluno passa a pisar em solo firme para entender a seqüencia de tipos-ideais que vem logo depois no programa da disciplina: poder, autoridade, legalidade, legitimidade, Estado Moderno e assim por diante. Aconselha-se concluir o conteúdo de Ciência Política e Teoria Geral do Estado com uma discussão sobre a justiça, inspirada pela leitura coletiva do Livro I de Platão (1972), vez que a justiça é o ponto de chegada da Política merecedora de “P” maiúsculo.

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REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Política. Brasília: UnB, 1988. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco et al. Dicionário de Política. Brasília: UnB, 1992, 2 vol. CARTA, Gianni. Entre o Islã e o exército. Carta Capital, São Paulo, n. 449, p. 21, 20 jun. 2007. CHACON, Vamireh. Max Weber: a crise da ciência e da política. Rio de Janeiro : Forense, 1989. COELHO, Elizabeth Maria Beserra. Estado nacional e cidadania diferenciada. Revista de Políticas Públicas. São Luís, v. 9, n. 2, p. 7-18, jul./dez. 2005. ________. Territórios em confronto: a dinâmica pela disputa da terra entre índios e brancos no Maranhão. São Paulo: Hucitec, 2002. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro : Graal, 1992. 10. ed. HUNTINGTON, Samuel P. A terceira onda: a democratização no final do século XX. São Paulo: Ática, 1994. OLIVEIRA, Christian Burle de. Direitos Humanos nas relações Brasil-Estados Unidos da América (20/01/1977-15/03/1979): um estudo de caso acerca da percepção brasileira, à luz da Resenha de Política Exterior do Brasil. Brasília : UnB, 2000. PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação C. Gulbenkian, 1972. SANT’ANA JÚNIOR, Horácio Antunes de. Modernidade e tradição: aspectos de um debate sociológico sempre retomado. Revista de Políticas Públicas. São Luís, v. 9, n. 2, p.19-39, jul./dez. 2005. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1988. _________. Economía y sociedad. México: Fondo de Cultura Econômica, 1992.

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