A ciranda, a punição e o perdão: interações entre a burocracia escolar e a docência

September 12, 2017 | Autor: Nicolau Dela Bandera | Categoria: Sociologia, Educação, Ambiente escolar|, Antropologia Da Educação, Sociologia No Ensino Médio
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XVI CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 10 – 13 de Setembro, Salvador (BA) GT 08 – EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

A CIRANDA, A PUNIÇÃO E O PERDÃO: INTERAÇÕES ENTRE A BUROCRACIA ESCOLAR E A DOCÊNCIA

Nicolau Dela Bandera Doutorando Antropologia Social – USP

Resumo: Este trabalho apresenta os resultados de pesquisa sobre as relações entre o trabalho docente e as atividades burocráticas cotidianas em uma escola municipal de São Paulo. A burocracia de nível da rua é analisada a partir de seus efeitos nas relações intraescolares, sobretudo entre os professores, a secretaria e a direção da escola. A observação e descrição das situações de interação, com especial atenção para os encontros entre funcionários – a sala dos professores no intervalo e o atendimento no balcão da secretaria –, permite reconstruir algumas situações sociais que evidenciam a estrutura social da escola, a produção social da indiferença e a divisão dos professores em “panelinhas”, formadas, sobretudo, pelo corte geracional. Busca-se também explorar e descrever o trabalho emocional das relações burocráticas, que azeitam (ou emperram) as engrenagens da ciranda burocrática de papeis, processos e pessoas. Pode-se concluir que o staff burocrático da instituição mantem com os professores uma constante atividade de registro, produzida pelos funcionários para se resguardar das punições que os cercam. Por fim, pode-se afirmar que os professores, após jogarem o jogo das normas escolares, saíram exauridos dos processos disciplinares conduzidos pelo staff burocrático, independente da punição. Alguns passam pelo processo de embotamento, se tornando blasé e indiferentes, no sentido concedido a essas expressões por Simmel e Weber, à dimensão emocional e moral de seu ofício. Palavras-chave: docência, burocracia escolar, conflitos, punição A etimologia da palavra burocracia remete à bureau, palavra francesa que designa escritório ou, de maneira mais abrangente, o trabalho de alguém que desenvolve uma atividade profissional atrás de uma mesa. Kratia, de origem grega, designa, por sua vez, força, poder e dominação. Burocracia, portanto, está diretamente associada ao poder e às formas de dominação tipicamente modernas, que envolvem o emprego

de

determinado

tipo

de

racionalidade,

marcada

idealmente

pela

impessoalidade. Não por acaso, as imagens que as ciências sociais e os nativos utilizam frequentemente para retratar essa forma de dominação são duas: o balcão e a fila. Neste artigo, explorarei as vantagens e os limites dessas pinturas que, observadas em detalhe, revelam pigmentos que um olhar distanciado e demasiadamente teórico não permitiria capturar. A burocracia não será aqui analisada a partir de seus aspectos negativos, nem será definida como um ideal normativo, abordagens que geralmente ressaltam as insuficiências e a perversão da realidade em relação a uma norma inatingível. Sua definição, se é que atingiremos alguma, será dada depois da descrição de algumas situações sociais. As ciências sociais precisam, nesse sentido e seguindo o argumento de Fassin (2012), deixar de ser normativas ao abordar o Estado e as diversas agências que o cercam, buscando compreender e descrever analiticamente seu funcionamento 2

prático, seus efeitos e, sobretudo, seus valores específicos. Tarefa nem sempre fácil de se realizar, uma vez que ao lidar com objetos carregados de valores políticos e sentimentos morais é solicitado constantemente do cientista social colocar sua própria posição moral e política em questão (FASSIN, 2008a). Ao analisar tais temas, o sociólogo não pode se deixar levar pelas inúmeras avaliações e denúncias morais que cercam seus problemas de pesquisa, acusando quer de cinismo ou de boa ou má fé os agentes e as agências devotadas às mais variadas causas. A observação participante e a etnografia possibilitam uma saída relativa para esse impasse: elas permitem descrever situações sociais circunscritas, localizando narrativas e argumentos dentro de quadros de enunciação, e, sobretudo, as hesitações e os paradoxos vivenciados pelos agentes envolvidos na burocracia, suas convicções e dúvidas, seus pontos cegos e sua lucidez, seus preconceitos e sua reflexividade, tudo ao mesmo tempo, em uma pintura que não preza pelo academicismo perfeccionista. Há diferentes níveis de burocracia: desde a “nobreza de estado”, para utilizar o título de um dos últimos livros de Pierre Bourdieu (1989) sobre as classes dominantes na França, formadas nas Grandes Écoles, até a burocracia de nível da rua, para empregar a famosa categoria de Lipsky (1980). Este artigo se debruçará sobre as burocracias desse último tipo, ou seja, aquelas que atendem diretamente os cidadãos, no nível da rua, tornando efetivas (ou não) políticas públicas. No caso específico, irei abordar as burocracias escolares no cotidiano de uma escola municipal na zona norte da cidade de São Paulo1. As interações intraescolares entre funcionários serão o foco dessa análise, distanciando-se um pouco da abordagem da ciência política que privilegia o contato e o atendimento ao público ou as relações interinstitucionais. Trata-se também de explorar e descrever o trabalho emocional das relações burocráticas, que azeitam (ou emperram) as engrenagens da ciranda burocrática de papeis, processos e pessoas. As ciências sociais concederam atenção secundária às dimensões emocionais do trabalho burocrático em organizações porque, dentre outros fatores, prevaleceu a imagem do tipo ideal weberiano da ação burocrática baseada na racionalidade instrumental. A não exposição de emoções por parte dos funcionários é vista, geralmente, como indiferença ou como ausência de sentimentos. A burocracia, portanto, tende a ser visualizada a partir da escassez, da falta e da negação. Abordagens recentes da antropologia que se volta para o fenômeno apresentam uma chave

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Manterei o sigilo da escola por se expor aqui a situação de professores que solicitaram o anonimato.

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alternativa: é pelo excesso, e não pela falta, que os funcionários (e nem todos dentre eles) se tornam inexpressivos (GRAHAM, 2003; FASSIN, 2012). Se há indiferença, ela é produzida socialmente nas interações cotidianas: a sobrecarga emocional em decorrência da exposição contínua a histórias pessoais muito dramáticas e emocionais faz com que o(a) funcionário(a) se torne indiferente às histórias contadas incessantemente. Didier Fassin emprega uma expressão utilizada corriqueiramente nas agências humanitárias internacionais para expressar esse fenômeno, o cansaço da compaixão (compassion fatigue): “o desgaste dos sentimentos morais até eles se converterem em indiferença ou ainda agressividade em relação às vítimas de um desastre” (FASSIN, 2012, p. 3). Os profissionais da ajuda humanitária, segundo o autor, sofrem um tipo de despersonalização e um cansaço que beira a exaustão profissional. Em outro momento, Fassin (2012, p. 35) argumenta que o cansaço característico dos trabalhadores humanitários está também associado ao gap entre as expectativas coletivas de quem decide se dedicar à ajuda humanitária e as condições objetivas aquém da realização dessas pretensões, além do chamado contágio pelo sofrimento do outro. Vale a pena apresentar aqui outra realidade etnográfica para vermos como esse tipo de cansaço é corriqueiramente vivenciado pelos denominados “trabalhadores sociais”. Gabriel Feltran (2011) demonstra como os funcionários e militantes do Cedeca2 do bairro de Sapopemba, em São Paulo, possuem expectativas e intenções que superam as condições objetivas da rede pública de assistência às “crianças e jovens em conflito com a lei”. Frente a essa insuficiência externa, a entidade internaliza o atendimento, aumentando sobremaneira a parte burocrática de sua atuação, exaurindo as energias dos militantes/funcionários. Trata-se, em ambos os casos, de um fenômeno de embotamento e de produção do blasé pelo excesso e diversificação das situações de interação, para empregar uma noção simmeliana, muito mais do que indiferença produzida pelo trabalho monótono e repetitivo do escritório (SIMMEL, 2005). Ao atender a população escolar, com suas múltiplas demandas, muitas funcionárias da secretaria e da direção da escola pesquisada, assim como as professoras(es), se sentiam exaustas e impotentes, sem condições de realizar as tarefas mais rotineiras do trabalho burocrático. A medida utilizada para minimizar esse problema foi restringir o atendimento ao público a períodos menores e pré-estabelecidos. Na entrada do prédio da escola pode-se ler a placa: “Atendimento da secretaria ao público:

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Centro de Defesa da Criança e do Adolescente.

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10h às 12h, 14h às 16h. Procure agendar antes uma reunião com a diretora”. Evidentemente, o agendamento prévio e a limitação do atendimento ao público não se devem apenas ao cansaço e à dimensão emocional do trabalho burocrático. Há uma razão mais utilitária e prática para tal situação: o número reduzido de funcionárias e a grande carga de trabalho interno que precisa ser organizada concomitante o atendimento ao público. A precarização do trabalho burocrático nas secretarias das escolas públicas é um problema conhecido da literatura educacional, ainda que não devidamente explorado em sua dimensão sociológica. A maior parte da literatura aborda tal fenômeno a partir da chave da saúde do trabalhador, iluminando a dimensão psicológica do sofrimento profissional, sem atentar para as dinâmicas políticas e sociais que produziram tal situação. A escola passa a ser vista como um espaço gerador de sofrimento e trauma para quem nela trabalha (cf. BARROS, 1997; BRITO et al. 2001; SILVANY NETO et. al. 2000). Didier Fassin (2012) argumenta que ocorreu o mesmo processo na França nos anos 1990 entorno da questão social nas organizações dos trabalhadores precários e desempregados: a linguagem do sofrimento psicológico e da doença substitui a linguagem da luta por direitos. Na escola pesquisada, das(os) dez funcionárias(os) que trabalham na secretária, três são, como elas(es) mesmas se autodesignam, “concursadas e funcionárias de carreira” que ingressaram no colégio para desempenhar as atividades administrativas. As(os)

demais

são

professoras(es)

designadas(os)

como

“readaptadas(os)

profissionais”. Trata-se de professoras(es) que tiveram que se afastar da sala de aula por problemas emocionais, de saúde, psicológicos. Muitas delas passaram por longos períodos de licença médica, retornando ao trabalho não mais como professoras, mas em atividades burocráticas, que envolvem tanto o trabalho na secretaria da escola, como em outros níveis da burocracia escolar: na diretoria (antiga delegacia) de ensino, na secretaria municipal, nas bibliotecas municipais. A “readaptação profissional” era vista de maneira ambígua pelas(os) ex-professoras(os) da escola em questão: algumas a consideravam como um alívio frente ao trabalho docente em sala de aula, outras se sentiam desvalorizadas, não podendo desempenhar a função de acordo com sua formação e suas expectativas profissionais. A não contratação de funcionárias profissionais, a ausência de políticas de incentivo à requalificação profissional, o desmantelamento da carreira administrativa, o emprego de professoras(es) com problemas de saúde e emocionais, todos esses fatores 5

exacerbam as dificuldades e os obstáculos na lida burocrática cotidiana com o público extraescolar e nas interações intraescolares. Nos próximos itens deste trabalho, abordo algumas situações que envolvem diretamente a relação das(os) professoras(es) com a secretaria e a direção da instituição, com o objetivo de demonstrar em que situações os professores são obrigados a lidar com a burocracia escolar. Registrar e punir para se resguardar Situação 13: Minha entrada na escola foi facilitada por um amigo da universidade, atualmente professor de sociologia na escola. Como o intuito da pesquisa refere-se diretamente à observação do cotidiano escolar, daquilo por vezes designado como o tempo morto do trabalho pedagógico, ou seja, as ocorrências disciplinares, os conflitos no interior da sala de aula, as interações da comunicação pedagógica, resolvi assistir às aulas e participar assiduamente das conversas de corredores e nos intervalos entre professores. Iniciei, portanto, o trabalho de campo acompanhando as aulas de sociologia. O tema das aulas com os segundos anos do ensino médio era a questão urbana, abordada pelo professor de maneira bem acadêmica, tal como uma disciplina universitária. Era possível ouvir certo burburinho entre os alunos, reclamando da falta de didática do professor. Ele também era um novato no colégio, só há dois anos no cargo. Como trabalho final, ele solicitou que os estudantes realizassem seminários sobre “problemas urbanos” enfrentados pelas grandes cidades: poluição, trânsito, violência urbana, moradia etc. A proposta era que os estudantes preparassem os seminários com a ajuda do professor, em aulas específicas, orientadas pela leitura de textos jornalísticos e produzidos por cientistas sociais. Os estudantes deveriam ainda explorar duas dimensões dos problemas: quais eram suas possíveis causas e propostas para solucioná-los. O professor foi enfático ao dizer que as notas seriam atribuídas de acordo com esses dois critérios. Iniciada a apresentação dos trabalhos, tudo corria bem, com alguns seminários surpreendentemente bem preparados, com ampla participação da turma. Até que um grupo de estudantes apresenta seu seminário em tom bem irônico e sem conseguir aprofundar o tema escolhido: a violência urbana. Ao final da exposição, o professor questiona o grupo dizendo que eles não haviam apresentado nenhuma solução para o problema, nem demonstrado suas causas. Como solução, uma estudante do grupo diz de supetão: “Só Deus pode solucionar o problema da violência em São Paulo”. O professor responde, em tom irritado e áspero: “Você está brincando ou falando sério? Não podemos jogar nas 3

A utilização da noção de situação social, concebida aqui muito mais como um método de exposição dos materiais da pesquisa, visa expressar como determinado evento social pode suscitar e apresentar a estrutura social e as relações sociais da escola (Gluckman, 1987).

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mãos de Deus um problema criado pelos homens”. A estudante retruca: “Professor, você não está respeitando minha opinião”. O professor exalta-se e grita: “Como assim não estou respeitando sua opinião. O trabalho de vocês está péssimo!” A estudante, ainda mais exaltada, responde: “Você não respeita minha religião, você é um ateu!”. O professor, extremamente irritado, retira-se da sala para “respirar”. Depois de cinco minutos, enquanto a sala toda discute o que aconteceu, ele retorna, e diz: “O grupo não apresentou uma proposta coerente para solucionar o problema, nem respeitou as regras do seminário, por isso não terá nota”. A estudante fica irritada, questiona os critérios do professor, e sai da sala. O professor fica muito exaltado, não consegue retomar a aula. Ele permanece o restante do período da manhã sentado em sua mesa, enquanto os estudantes conversam baixinho. Tento falar com ele, mas ele me diz que aquele não era o melhor momento para conversa. No dia seguinte, o professor é convocado para comparecer à direção da escola. A diretora havia recebido uma carta do pai da aluna, argumentando que a filha havia sido desrespeitada pelo professor e que ele mesmo se sentia extremamente ofendido por ter sua religião, suas crenças e a educação que oferecia à filha colocadas em xeque. A família da estudante era de uma igreja evangélica neopentecostal. Dizia ainda na carta que o professor não respeitou o princípio do ensino laico, garantido pela Constituição, e que ele não deveria exigir que jovens de dezesseis anos soubessem como solucionar os problemas da cidade, já que nem mesmo os políticos eram capazes disso. O professor, extremamente indignado com tudo que estava acontecendo, não sabia o que fazer. Ele explica para a diretora sua versão do acontecido. Naquele momento, segundo a diretora, havia várias versões do evento: a da estudante, a dos colegas de sala, a do pai da estudante, a do professor. Havia também a minha versão, anotada no caderno de campo, que resolvi não expor para a diretora. Fui convidado por ela na semana seguinte para “testemunhar”, afinal, para ela eu era uma espécie de testemunha ocular, neutra, com autoridade para falar, nas suas palavras, “sobre aquilo que de fato ocorreu”. Com receio de que a minha versão se convertesse na versão oficial da situação e pudesse prejudicar o professor e também a estudante, resolvi, ainda que de maneira atabalhoada, dizer que não consegui acompanhar tudo o que ocorreu. Argumentei que a aula estava muito agitada e que não era possível escutar muito bem do fundo da sala o que o professor e a estudante falaram. A diretora orientou o professor a escrever uma carta explicando ao pai tudo o que ocorreu em sua aula, pois caso contrário se veria obrigada a puni-lo, para o próprio resguardo dele. O professor escreveu, um pouco a contragosto, o documento. Pude ler rapidamente a carta, que se refere basicamente ao planejamento feito por ele no começo do ano, justificando com argumentos pedagógicos e legais suas escolhas curriculares e a adoção de determinadas metodologias de ensino, como o seminário. Havia referências às Orientações curriculares nacionais 7

do Ministério da Educação para a disciplina de Sociologia, assim como à Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A diretora gostou muito dessa resposta, e resolveu, depois de uma conversa com o supervisor de ensino, arquivar o processo e repreender o professor com uma advertência. Ela registrou o evento no livro de ocorrências da escola e advertiu o professor de que aquilo não poderia mais se repetir. (Reconstituição da situação a partir das notas do meu caderno de campo) Situação 2: Uma segunda situação ocorreu nesse mesmo período, em um dia que eu não estava presente. O relato que faço aqui foi construído (e muito transformado) a partir da circulação que tive pelos canais de comunicação e boataria no interior do colégio, principalmente a sala dos professores, durante o recreio. Um dos professores de química do colégio é famoso por ser muito espontâneo. Em suas próprias palavras: “sou alguém sem peias na língua, falo o que penso para quem for”. Os estudantes o definiam como um professor extremamente rigoroso, mas também descontraído: era alguém que falava muitos palavrões em aula. No dia de sua prova semestral, não foi diferente, ele se expressou como sempre costumava fazer. Contudo, um grupo de estudantes, já revoltados por sempre tirarem notas vermelhas em suas avaliações, decidiu gravar a aula do professor com uma câmera de celular e denunciálo à diretora do colégio por “ofender a educação religiosa oferecida por suas famílias com a utilização de palavras de baixo calão”. A diretora, com receio de que aquela denúncia pudesse atingir instâncias superiores, pediu ao professor que escrevesse uma carta, por ele lida em todas as turmas, pedindo desculpas pelo seu comportamento. O professor se sentiu humilhado e se desentendeu com a diretora do colégio, que resolveu seguir com a punição, a despeito do pedido de desculpas feito por ele. Nas palavras da diretora, “eu o puni para o próprio bem dele, pois caso contrário ele poderia ser punido em instâncias superiores e eu não teria mais controle sobre a situação”. Veja como a punição foi publicada no Diário Oficial da cidade de São Paulo: “O Diretor de Escola..., no uso de suas atribuições legais, e com fundamento no Artigo 187 da Lei nº 8989/79, alterado pelo Artigo 5º da Lei nº 10.806/89, RESOLVE: Aplicar ao Sr. professor a pena de REPREENSÃO, por ter infringido o disposto no Artigo 178, inciso V da Lei nº 8.989/79 [Estatuto dos funcionários públicos municipais, que diz, no artigo e inciso citados, ser ‘dever do funcionário tratar com urbanidade os companheiros de serviço e o público em geral’]...”. (Reconstituição da situação a partir das notas do meu caderno de campo) As duas situações nos permitem abordar vários aspectos das relações sociais no interior do colégio e do funcionamento da própria burocracia escolar. Comecemos pela 8

relação com a secretaria e a direção do colégio. Os professores possuem uma relação distanciada com a secretaria. Ela é frequentemente vista como o balcão sobre o qual está o livro de ponto, o caderno de comunicados entre a direção e os professores e um exemplar do diário oficial. Os professores precisam assinar diariamente o livro de ponto. Quando alguém se esquece de assiná-lo, há todo um trâmite de correção, que passa pela comprovação de que alguém da secretaria viu o professor no dia anterior. Em algumas situações, a diretora da escola se utiliza desse momento para cultivar alianças, ou punir desafetos. E não há punição maior para um professor do que ver atribuída falta para um dia trabalhado. As faltas são pedras preciosas no cotidiano escolar, e os professores se utilizam delas para “descansar” ao longo do ano: um professor da rede municipal pode ter dez faltas abonadas, ou seja, faltas sem desconto nos vencimentos, e mais dez faltas justificadas, que não acarretam punição. A secretaria é vista também como um interposto, para não dizer um obstáculo, às solicitações de dispensa, de abono de faltas, de entrega de atestados e laudos médicos etc. O balcão e a fila, nessa primeira abordagem da burocracia escolar, são imagens extremamente adequadas: o balcão é visto justamente como um obstáculo, uma barreira que permeia as relações intraescolares e impede a circulação da comunicação e das solicitações. Em alguns momentos extraordinários, como o relatado nas situações acima, contudo, os professores precisam acionar a secretaria e a direção da escola, para evitar maiores problemas administrativos. São os casos de extrema indisciplina no colégio, mas também casos de intolerância religiosa e de racismo entre os estudantes e professores4. Nesses momentos, a permeabilidade entre o staff burocrático e os professores se torna manifesta, e as duas imagens não são mais suficientes para dar conta das relações intraescolares. O medo da punição ronda os corredores e, sobretudo, as “panelinhas” de conversa na sala dos professores. Dentre as consequências mais temidas e indesejadas da punição, a mais efetiva refere-se à evolução na carreira, já que dificilmente um professor concursado pode ser demitido. Perde-se o dia e os pontos que se acumulam para a evolução quando se é punido, dificultando o aumento de salário e a incorporação de benefícios na aposentadoria. Não por acaso, os professores mais velhos eram mais temerosos que os ingressantes na carreira em relação às punições. O marcador social 4

O único caso de exoneração que ocorreu no colégio, nos últimos anos, foi o do professor de filosofia, denunciado por um grupo de estudantes e pais por racismo durante suas aulas. Infelizmente não consegui acesso ao processo; contudo, os rumores sobre as razões de sua demissão ainda se fazem presentes nos corredores da escola.

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de idade dos professores, como veremos, será muito importante para entender as relações sociais no interior da escola. Aliás, cabe aqui a abertura de um parêntese: já nas primeiras visitas à escola foi possível observar como se estruturam determinados canais de comunicação por meio do boato e da fofoca no colégio. Conversas ocorrem nos encontros ocasionais pelos corredores, principalmente entre professores que possuem uma relação de coleguismo mais antiga, que beira ou atinge a amizade. Há situações em que um professor visita o outro, durante o período letivo, para bater um papo na porta da sala de aula. Contudo, em nenhum outro momento as conversas e os boatos entre eles ocorrem com tanta frequência como no intervalo das aulas na sala dos professores. Por panelinha, ou ainda patota, os professores designam, principalmente, as separações e os distanciamentos entre eles. Diferentemente da sociologia que se volta para a constituição de semi-grupos (Mayer, 1987), que tende a caracterizar esses (potenciais) agrupamentos quer pela integração, quer pela identidade e interesses em comum de seus integrantes, os professores concebem as panelinhas e as patotas a partir das linhas de divisão e de desunião da categoria profissional, fortemente marcadas em períodos de crise institucional: as greves, as situações de violência escolar. Um dos principais fatores na constituição das panelinhas era a idade, tanto concebida a partir da idade biológica, quanto do estágio de maturidade5, ou seja, do tempo de carreira e, sobretudo, de residência no colégio. Na escola pesquisada, houve um agrupamento ao redor daqueles que ingressaram no mesmo período, assim, podemos destacar, grosso modo, três grupos de professores: 1) os mais antigos, há mais de dez anos no colégio com amplo poder de influência nas instâncias decisórias (conselho de escola, diretoria); 2) os intermediários, entre cinco e dez anos no cargo, com trânsito entre os dois grupos extremos e que geralmente assumem o poder de representantes da categoria profissional junto aos sindicatos; 3) o grupo dos novatos, com menos de cinco anos na escola, muitos deles ingressantes na carreira docente, com pouco poder de decisão. Um novato, contudo, não necessariamente é uma pessoa jovem: existem professores ingressantes no colégio há menos de cinco anos que lecionam há mais de trinta na rede municipal de ensino. O professor João é um exemplo: prestes a se aposentar e com mais de sessenta anos, era visto pela patota dos mais velhos como um novato. 5

Sobre as diferentes concepções de geração e idade, ver Meyer Fortes (1984) e Guita Debert (1998). Por estágio de maturidade, Fortes concebe a transmissão de status social, que é independente da idade biológica.

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A disposição das pessoas na sala dos professores evidencia a força das panelinhas. Regra básica e explícita: os estudantes estão proibidos de entrar nessa sala, principalmente no momento do intervalo. Regra implícita: os professores mais velhos têm prerrogativa de ocupar a “cabeceira” da mesa, que possui cinco lugares, todos eles cadeiras cativas de alguns professores há mais de dez anos no colégio, considerados na rede de boatos como “os donos da escola”. Os professores intermediários reúnem-se ao redor dos sofás que ficam no canto da sala, próximos às garrafas de café. Os professores mais novos, por sua vez, ocupam uma sala a parte, onde organizavam um café da manhã coletivo todos os dias. Na fala dos professores mais velhos, “eles [mais novos] não gostam de se enturmar”. Há, é claro, trânsito entre essas posições, alguns professores com competências diplomáticas conseguem ultrapassar limiares e se comunicar melhor com professores dos outros grupos. Essa pequena digressão sobre a estrutura de categorização e de divisão entre os professores, embora seja um pouco impressionista, é necessária para entendermos a posição delicada do professor de sociologia, que estava em seu segundo ano no colégio, e o professor de química, que ingressou há nove anos. Sem estar embotado e com o caráter blasé que caracteriza a atuação dos professores mais velhos cansados de ter compaixão em relação aos estudantes, e sem total respaldo da direção da escola, o professor de sociologia não conseguiu resolver a situação por conta própria em sua própria sala de aula, nem controlar suas emoções, “explodindo” para tentar manter intacta sua convicção na laicidade do ensino de sua disciplina. As(os) professoras(es) mais velhas(os) sabem que a direção e o staff burocrático do colégio valorizam aquelas(es) que lidam intrasala de aula com os problemas disciplinares. Nas palavras de um professor mais jovem do colégio, “a direção valoriza o professor que fecha a porta da sua sala e mantem a turma sob controle, independente do conteúdo e da qualidade da aula”. O mau professor seria aquele que deixa os conflitos transbordarem, chegando à direção e à secretaria. O professor de sociologia sofreu por não ter acesso aos canais de comunicação que ligam os professores as instâncias superiores na hierarquia, sendo repreendido pela direção do colégio, que foi, por sua vez, repreendida pela diretoria de ensino da região norte de São Paulo, acionada pelo pai da menina acusando o professor de “intolerância religiosa” e “desrespeito aos valores familiares”. A cadeia hierárquica do sistema de ensino também pôde ser visualizada a partir dessa situação social, à la Gluckman: o pai da menina, conhecendo os meandros de funcionamento do sistema de

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ensino de São Paulo, não hesitou em acionar a instância superior à escola, que não deixou alternativa para a diretora a não ser a advertência do professor. Como vimos, o pai da estudante enviou uma carta à diretoria de ensino, que encaminhou cópia ao supervisor, que encaminhou nova cópia à diretora do colégio, que, por sua vez, encaminhou mais uma cópia ao professor. Ponto importante, o fato de ser uma cópia, e não a carta original, revela que durante todo esse percurso os dados do processo foram sendo arquivados; o mesmo aconteceu com a carta escrita pelo professor em sua própria defesa, que percorreu o caminho inverso da carta do pai. Trata-se aqui de uma verdadeira ciranda burocrática, onde os papeis vêm e vão, se duplicam e se convertem em arquivos, passam de mão em mão, até chegar finalmente a quem foram endereçados. Nesse processo, cada instância burocrática deve emitir um parecer, a começar pela diretora do colégio, até, por vezes, o secretário municipal de educação, sendo, por fim, publicada a resolução no diário oficial do município. O parecer é fundamentado na legislação educacional vigente; contudo, há grande margem de discricionariedade. As decisões em relação à punição dos professores são descritas por eles mesmos como exercícios de poder, muitas vezes arbitrários e contingentes. Com tais decisões, o staff superior da hierarquia escolar fazia lembrar justamente que a tomada de decisão era sua prerrogativa. Essa discricionariedade na decisão não equivale a uma justiça anômica, entendida durkheimianamente como a ausência de normas e valores estabelecidos; muito pelo contrário, é o jogo com o excesso de normas, sua multiplicidade, que permite aos agentes definir, de acordo com as contingências e a arbitrariedade, as situações passíveis de punição. Dominar o jogo dessas regras é outra tarefa extremamente extenuante para os professores mais novos. Os mais velhos, graças à experiência adquirida ao longo dos anos, sabem mais ou menos como a discricionariedade funciona no cotidiano escolar, e sabem lidar com as diversas interpretações das normas que estão em jogo em cada situação específica, fazendo com que elas funcionem a seu favor. Nas conversas entre as(os) professoras(es), os processos, ofícios e cartas não são descritos como meros objetos e coisas inanimadas. Eles, na verdade, são retratados como realidades tanto objetivas quanto subjetivas. Os papéis movimentam-se constantemente entre as diversas instâncias hierárquicas da administração pública. Na linguagem dos professores, os processos “andam”, “param”, “correm”, “estão na fila”, “se perdem”, “falam”. Além disso, há toda uma relação afetiva com tais documentos: quase 12

todos os processos são vistos como tediosos, porém alguns se sobressaem por serem vistos pelo staff burocrático como “interessantes”, cheios de “emoções”, “quentes” e “perigosos”. Nessas enunciações, não há uma pessoa que os agencia, pois os próprios processos e papéis adquirem agência e mobilizam as pessoas. A ciranda burocrática faz as pessoas circularem em busca e ao redor dos papéis, dos balcões e das filas. Registrar o que se passa no interior da sala de aula e na escola é uma prática frequente desde o surgimento do regime disciplinar, no começo do século XIX, com a invenção dos diários (Foucault, 2010). Contudo, o que nos interessa aqui é que cada vez mais o registro se converte em uma forma de proteção coorporativa ou de punição dos professores. Segundo a diretora do colégio, uma das primeiras orientações que ela faz aos novatos na reunião que inaugura o ano letivo é justamente registrar tudo aquilo que possa se voltar contra eles. Em uma reunião de professores, ela disse: “o professor que tem o diário organizado, todas as ocorrências em sala de aula anotadas, não sofrerá nenhum tipo de punição”. A ameaça fica no ar. A maioria dos professores mais velhos conhece bem os macetes do registro, sobre o que é imprescindível anotar e aquilo que deve ser apagado de seus diários. Nos boatos que rondam a sala dos professores, dizse que alguns dentre eles deixam de dar aula para escrever e preencher seus diários. O professor de sociologia do colégio, por só ter uma aula por semana em cada turma, tinha vinte e cinco diários de vinte e cinco turmas diferentes, totalizando por volta de 900 alunos. Para ele era impossível manter um registro atualizado de tudo que se passava no interior da sala de aula. Por semana, os professores tem uma hora e meia para planejamento e registro das atividades. Contudo, devido ao cansaço visivelmente maior dentre eles, a maioria dos professores novatos aproveita esse momento para “descansar e respirar um pouco”, não tocando nos diários. Nesse caso, o registro só é feito para os casos considerados fora do normal, que fogem do cotidiano dos professores, deixando de lado outros tipos de irregularidades (bagunça na sala, xingamentos, ofensas verbais etc.) que ficam circunscritas a determinadas moralidades que não perpassam o discurso da norma e da regra. Como demonstrou Joelma de Souza Azevedo (2012) para outro campo de estudos – no caso, a guarda municipal de São Gonçalo, no Rio de Janeiro –, no serviço público, boa parte dos registros é feita para resguardar o funcionário das punições que o cercam. Azevedo descobriu que em 2010 foram registradas 117 ocorrências no Talão de Registros da guarda municipal, um número bem menor do que as atividades cotidianas da guarda ao longo do ano. O fluxo de informação na instituição é regulado, segundo a 13

autora, pelas práticas de aplicação de medidas punitivas aos guardas. Segundo Azevedo e Pinto (2011), podemos dizer que existe uma lógica do resguardo que rege o registro das informações na Guarda Municipal de São Gonçalo. Outra situação que demonstra que os registros seguem tal lógica é quando analisamos os livros e observamos que os registros das ocorrências se iniciam com a seguinte frase ‘Informo ao comando que...’. Isso indica que a preocupação do guarda é explicar ao comando como ele procedeu no atendimento da ocorrência, pois esta pode representar questionamentos administrativos a sua atuação. A lógica do resguardo, como foi possível ver nas duas situações descritas acima, também sustenta as práticas de registro no caso dos professores. A solicitação da diretora e da secretaria do colégio para que eles registrem e respondam por meio de cartas às acusações dos pais e dos estudantes revela o predomínio dessa lógica. Kafkianamente, o funcionamento e a dominação cotidiana da burocracia não se voltam mais para uma exterioridade, na relação dos funcionários com o público, mas para o próprio interior das instituições, controlando sobremaneira os comportamentos, os temores e os sentimentos morais das(os) professoras(es). Foucault (2010) argumentou que um dos princípios do regime disciplinar é a interiorização da vigilância e da punição: o próprio indivíduo passa a se interrogar, promovendo exames de consciência para se autocontrolar. No caso da escola pesquisada, temos a interiorização da vigilância e da punição no nível institucional. Ter o processo arquivado, engavetado, é a esperança de todas(os), inclusive da diretora, acusada por muitos professores com quem conversei de temer ser punida por seus superiores caso não puna seus inferiores. Nas palavras de um dos professores: “ela pune porque quer tirar o dela da reta. Ela morre de medo de ser punida, pois está prestes a se aposentar, e quer um cargo de confiança na secretaria da educação”. O caso de punição da situação 2 revela outras nuances nas relações intraescolares. A diretora da escola disse que “puniu o professor de química para protegê-lo”. Nesse caso paradoxal, a punição serve para resguardar o professor de outra punição que poderia ser aplicada em uma instância superior, no caso, na diretoria de ensino ou na própria secretaria municipal de educação. A justificativa da diretora centrase no argumento jurídico de que ao puni-lo imediatamente, além de se resguardar, ela estava protegendo o professor, repreendido no diário oficial com a suspensão de dois dias, sem vencimentos, pois ele não poderia mais ser punido administrativamente, dada 14

a proibição da dupla persecução penal e da dupla punição pelo mesmo fato: ne bis in idem. Nas duas situações acima descritas, podemos também observar um conflito latente entre valores escolares e religiosos. Segundo o professor de sociologia, a diretora repetidas vezes pediu a ele para incluir em sua carta direcionada ao pai da estudante o argumento de que ele não era ateu, tinha uma formação religiosa (católica), respeitava os valores da família da estudante. O professor respondia que a questão não era discutir princípios e sentimentos religiosos, mas sim a concepção de estado e de ensino laico, e também a defesa da inclusão da disciplina de sociologia no currículo nacional de ensino médio, uma conquista recente e ainda instável. Mas afinal o que está em jogo nesses conflitos cotidianos entre religião e estado? Conflito, sobretudo, entre sentimentos morais distintos e imbricados. O professor advoga a crença em um dos princípios fundadores do estado moderno, o princípio de que a modernização levaria à secularização, ou seja, a um declínio da influência da religião na sociedade mediante o seu deslocamento para a esfera privada e a formação de uma esfera pública desvinculada de grupos religiosos, separando as atividades realizadas pelo Estado e pela religião. O professor acredita, portanto, que para se defender das acusações de ‘intolerância religiosa’ deve recorrer a princípios considerados universais e abstratos – as leis, os regulamentos da profissão docente, o currículo da disciplina ministrada, o princípio do estado laico. Frente à acusação de intolerância, o professor advoga uma profissão de fé no Estado e em seus regulamentos. A diretora, por sua vez, tenta, em um primeiro momento, fazer uma mediação, jogando panos quentes sobre o conflito. Em sua visão, se o professor adotasse a própria linguagem religiosa em resposta à carta do pai da estudante e escrevesse que eles pertencem à mesma comunidade moral e compartilham sentimentos religiosos – dizer que não era ateu – e uma concepção de educação familiar essencialmente religiosa, o conflito se apaziguaria e tudo estaria resolvido. Ponto importante: a pacificação desejada pela diretora recoloca o conflito na esfera privada, das convicções pessoais, retirando qualquer dimensão pública de solução coletiva e institucional. As cartas, nesse sentido, são documentos privativos que trazem à baila a pessoalidade, e não uma tomada de posição institucional. Essa visão da diretora se assemelha muito à visão que os juízes possuem dos conflitos étnico-religiosos pesquisados por Miranda (2010, p. 142):

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os juízes entrevistados manifestaram com certo orgulho que a conciliação acontece na maioria dos casos, o que caracteriza um trabalho muito bom, pois seria uma forma de pacificação do conflito, que é uma maneira de as pessoas conversarem e se ‘entenderem’. Tal perspectiva de pacificação reforça a ideia da reprivatização do conflito. Cada vez mais comum no interior das escolas, a política da conciliação e do perdão funciona como uma microjustiça que ajuda na administração dos conflitos que se multiplicaram nos últimos anos; porém, aqui, diferentemente (ou à semelhança) do sistema judiciário, há pouca salvaguarda institucional para a defesa, o recurso e a apelação a instâncias superiores. O poder da diretora do colégio se converte, portanto, em um despotismo brando que, no limite, pode corroer as bases de convivência entre os desiguais na hierarquia institucional, tal como vimos no caso do professor de química, que se sente humilhado ao ter que pedir desculpas em todas as turmas pelo seu comportamento. O professor de sociologia, contudo, adota outra estratégia, que no final das contas convenceu a diretora e o próprio pai da estudante. Ele preferiu explicitar os malentendidos e utilizar sua autoridade especificamente pedagógica para contraargumentar. Seus argumentos encontraram ressonância nas demais instâncias burocráticas: o supervisor de ensino gostou da utilização da legislação educacional feita pelo professor para se defender, justificando teoricamente a preservação do princípio do estado laico. Ao adotar argumentos abstratos e universais, o professor tentou recriar, portanto, uma comunidade moral a partir de valores estritamente escolares: a autonomia pedagógica reforçada por um conhecimento profissional das leis que regem o exercício da sua profissão. Além disso, o professor conseguiu convencer o pai (e a si mesmo) de que a situação foi na essência um mal-entendido: os estudantes do grupo não compreenderam a proposta do trabalho, e o professor não soube como lidar com o conflito manifesto naquele momento. Na carta ainda havia, contudo, um último recurso retórico, exigido desde o início pela diretora, também presente na carta do professor de química: um pedido de desculpas e um compromisso de adequação de conduta. Podemos levantar a hipótese de que o convencimento da diretora do colégio, do supervisor de ensino e do pai da estudante ocorreu pelo casamento entre razão e sentimento, lei e compaixão, promovido pela escrita do professor de sociologia que conseguiu conciliar os contrários: os recursos retóricos mais abstratos com aqueles mais afetivos. Paradoxalmente, a compaixão e o 16

perdão, nesse caso, aparecem como complementos essenciais ao argumento político e pedagógico de defesa da disciplina sociologia e do princípio do estado laico. Profissão de fé política no estado e em seus regulamentos está lado a lado com a manifestação de sentimentos de compaixão e arrependimento. À guisa de conclusão. Abertura de novas (ou velhas) questões Um pedido de perdão e uma promessa. É assim que o professor de sociologia arremata sua carta, tentando convencer o staff superior da burocracia escolar de que sua ação, considerada como de “intolerância religiosa” pelo pai de uma estudante, foi um erro que não mais se repetiria. Mesmo depois desse ritual exigido pela burocracia, a punição não tardou, mais rígida no caso do professor de química, mas também eficaz contra o professor de sociologia. Segundo Arendt (2007, p. 253), o perdão e a punição estão em um mesmo continuum: a punição é a alternativa do perdão, mas de modo algum seu oposto; ambos têm em comum o fato de que tentam pôr fim a algo que, sem sua interferência, poderia prosseguir indefinidamente. É significativo que os homens não possam perdoar aquilo que não podem punir, nem punir o que é imperdoável. No caso específico dos professores, o perdão e a punição servem como mecanismos de dominação e de controle sobre a ação pedagógica. Poderíamos também levantar duas questões: em que medida o pedido de perdão dos professores é realmente sincero? E de que forma poderíamos considerar um termo de ajustamento de conduta como uma promessa? Se entrarmos nessa discussão, novamente iremos recair nos juízos morais que cercam tais situações sociais, julgando os agentes como portadores de boa ou má fé, de cínicos ou sinceros. Esse, porém, não deve ser o objetivo de um estudo antropológico das relações burocráticas. O que se pode afirmar, analiticamente, é que os professores, depois de jogarem o jogo das normas escolares, saíram exauridos dos processos disciplinares, independente da punição. Alguns passam pelo processo de embotamento, se tornando blasé em relação à dimensão emocional e moral de seu ofício e da lida diária com a burocracia escolar. Em casos extremos podem embotar inclusive o que Arendt denominou da capacidade de julgamento, ou seja, de avaliação moral e política das situações sociais, passando a seguir cegamente as regras e procedimentos burocráticos, sem questionamento algum. Podem, no limite, se tornar professores “readaptados funcionais”, passando para o outro lado do balcão. Vimos 17

aqui, contudo, que os dois professores estão longe de serem agentes que passivamente recebem ordens de seus superiores: o professor de sociologia não responde a carta do pai utilizando a estratégia de sensibilização religiosa solicitada pela diretora; o professor de química, por sua vez, demonstra todo seu descontentamento ao pedir desculpas nas turmas onde lecionava, brigando, inclusive, com a diretora por achar aquela atitude descabida e humilhante. Ambas atitudes demonstram o esforço dos professores para manter suas capacidades de agência e de reflexividade em relação aos processos burocráticos. Ambas situações também revelam o ponto cego dos agentes mais diretamente envolvidos na situação: a ciranda burocrática dos papéis não é dominada por ninguém da rede (tampouco pelo antropólogo). Tal conhecimento é impossível, pois é característica da própria lógica de funcionamento desse sistema não oferecer a ninguém a totalidade das informações. Nem mesmo a diretora do colégio, com mais de trinta anos de experiência na administração escolar, conseguiria declinar todas as regras e normas que poderiam ser acionadas nas duas situações. Pontos cegos que iluminam e que fazem o jogo ser tão complexo e tão bem jogado por algumas pessoas dessa rede. Esse desconhecimento prático da totalidade permite, por exemplo, que a discricionariedade espreite as pequenas tomadas de decisão por parte do staff burocrático da instituição. Por fim, mais uma questão em aberto. Quando se pensa nos conflitos morais que envolvem as políticas educacionais e os diversos grupos religiosos, a primeira questão que emerge no debate público refere-se à inclusão (ou exclusão) de determinados conteúdos no currículo escolar nacional. Um exemplo: na eleição realizada em 2012 para prefeito de São Paulo, um ponto debatido exaustivamente pelos candidatos no começo da campanha foi a produção, pelo Ministério da Educação, de um kit informativo a respeito da sexualidade e de combate a homofobia. O material foi apelidado de “kit gay”, sendo engavetado após pressão da bancada evangélica no congresso nacional. Os holofotes da imprensa voltados para a política educacional no alto escalão da nobreza de estado deixam às sombras os conflitos cotidianos entre valores morais e religiosos que existem nas escolas públicas. Nas duas situações que descrevi brevemente aqui, foi possível visualizar tais conflitos em operação no cotidiano, e como os agentes lidam com eles, tentando manter suas convicções morais e políticas resguardadas das injunções burocráticas. Se há uma especificidade da antropologia na discussão sobre o estado e a burocracia, essa especificidade reside nesse olhar aguçado para os paradoxos, os pontos cegos e a capacidade de reflexividade e agência 18

que os agentes carregam nas interações sociais. A antropologia não pode se esquivar das discussões a respeito da nobreza de estado e da formulação de políticas públicas em todas as instâncias administrativas; contudo, não pode deixar também de olhar para o nível da rua, onde as políticas públicas são efetivadas em interação com contextos locais que podem modificar as pretensões iniciais dos formuladores do alto escalão. A dimensão moral e emocional dessas interações, como vimos neste trabalho, é fundamental para sua compreensão, principalmente em um espaço carregado de múltiplas tensões sociais como a escola. Bibliografia ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. AZEVEDO, Joelma de Souza & PINTO, Vinícius Cruz. O registro das informações na guarda municipal de São Gonçalo. Anais do XI Congresso Luso-Brasileiro de Ciências Sociais, Salvador, 2011. AZEVEDO, Joelma de Souza. Registrar para quê? Uma análise das formas de registro dos atendimentos da Guarda Municipal de São Gonçalo. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Rio de janeiro, Universidade Federal Fluminense, 2012. BARROS, M. A transformação do cotidiano. Vias de formação do educador. São Paulo, Edusp, 1997. BOURDIEU, P. La Noblesse d’État: grandes écoles et esprit de corps. Paris: Minuit, 1989. BRITO, J. C. et al. Trabalhar na escola? “Só inventando o prazer”. Rio de Janeiro, IPUB-CUCA, 2001. DEBERT, G. A antropologia e o estudo dos grupos e das categorias de idade. In: LINS DE BARROS, M. M. (org.) Velhice ou terceira idade? Estudos antropológicos sobre identidade, memória e política. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 49-68. FASSIN, Didier. Beyond good and evil?: Questioning the anthropological discomfort with morals. Anthropological Theory, v. 8, n. 4, p. 333-344, 2008a. _____. Compassion and Repression: The moral economy of immigration policies in France. Cultural Anthropology, v. 20, p. 362-387, 2008b. _____. Humanitarian Reason. A Moral History of the Present. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2012. FELTRAN, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão. Política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Unesp/CEM, 2011 FORTES, M. Age, Generation, and Social Structure. In: KERTZER, D. & KEITH, J. (org.). Age and Anthropological Theory, Cornell University Press, Ithaca, 1984. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento das prisões. Rio de Janeiro, Vozes, 2010. GLUCKMAN, Max. Análise de uma situação social na Zululândia moderna. In: FELDMAN-BIANCO (org.). Antropologia das sociedades complexas. São Paulo: Objetiva, 1987, p. 227-305. GRAHAM, Mark. Emotional Bureaucracies: Emotions, Civil Servants, and Immigrants in the Swedish Welfare State. Ethos, 30 (3), p. 199-226, 2003. LIPSKY, M. Street Level Bureaucracy – dilemmas of the individual in public services. Russel Sage Publications Foundation, 1980. 19

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