A circularidade fundamental em ciência cognitiva à luz da filosofia da mente

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A circularidade fundamental em ciência cognitiva à luz da filosofia da mente

Leonardo Felício Vaz de Carvalho

O presente texto refere-se a uma das áreas do conhecimento relativamente recente e de crescente amadurecimento, a ciência cognitiva. De acordo com Varela, Thompson e Rosch, a ciência cognitiva ainda não constitui um rumo perfeitamente definido e ainda não envolve um grande número de investigadores que constitua uma comunidade, trata-se de uma filiação dispersa de várias disciplinas, como a psicologia, filosofia da mente, neurociência, neurobiologia, inteligência artificial etc. Cada uma dessas disciplinas, a seu modo, fornece uma resposta à questão: "em que consiste a mente ou a cognição?". Desse modo, o presente texto pretende explicar de forma breve e clara um dos pontos de partida de uma dessas disciplinas, a saber, a filosofia da mente, especificamente o ponto de partida de Varela Thompson e Rosch na obra "A mente Corpórea".
Merleau-Ponty escreve no prefácio da Fenomenologia da Percepção o seguinte

Quando começo a refletir, a minha reflexão enfrenta uma experiência não reflexiva, ou melhor, a minha reflexão não pode ser alheia a si própria como acontecimento, surgindo assim diante de si a própria à luz de um verdadeiro ato criativo, de uma estrutura alterada de consciência, e contudo tem que reconhecer como tendo prioridade sobre as suas próprias operações o mundo que é dado ao sujeito porque o sujeito é dado a si mesmo. [...] A percepção não é uma ciência do mundo, nem mesmo um ato, um assumir deliberado de uma posição; é o cenário a partir do qual todos os atos sobressaem, e é pressuposta por eles: o mundo não é um objeto tal que me permita possuir a lei da sua criação; é o cenário natural e o campo de todos os meus pensamento e de todas as minhas percepções explícitas. (MERLEAU-PONTY, Maurice p. X-XI apud VARELA, J.A.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. 1991, p. 25)

Segundo os autores, um cientista cognitivo, com um pendor à fenomenologia, ao refletir sobre as origens da cognição poderia raciocinar de modo semelhante ao que Merleau-Ponty. O mundo não é uma projeção nossa, quando nascemos nos deparamos com um mundo já dado. Na medida em que crescemos e vivemos vamos refletindo sobre essa estrutura que é o mundo e essa estrutura dada é a condição de possibilidade para que a nossa reflexão seja possível. Tal é visão de um "cientista reflexivo". Podemos observar, a partir disso, que há um circularidade nesse tipo de investigação. Nas palavras de (VARELA, J.A.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. 1995) "estamos num mundo que aparenta estar ali antes da reflexão começar, mas esse mundo não está separado de nós.". Tal circularidade é o que eles chamam de "circularidade fundamental em ciência cognitiva". Essa visão se torna diametralmente oposta à visão da Idade Média de que um cientista, por exemplo, era uma espécie de olho descorporalizado que estava sobre o mundo, sobre os fatos, fenômenos observando de forma puramente objetiva e sem conexão alguma com o mundo.
Os autores puderam constatar que compreensão dessa circularidade é fator decisivo para o estudo da mente, já que a consequência de ignora-la é a aproximação com extremos: ou supomos que a nossa autocompreensão é falsa, ou supomos que não é possível existir ciência do mundo da vida humana porque a ciência deve sempre pressupô-la. Mas qual a maneira de proceder frente a esse problema? Qual método adotar no estudo da mente? Em busca dessas respostas os autores se voltaram ao Oriente. Foi na filosofia oriental, tão ignorada pelas academias brasileiras de filosofia, que as respostas foram buscadas. Um tipo específico de meditação budista, meditação de atenção, é apontado pelos autores como o método mais adequado de se enfrentar essa circularidade já pontada.
Se faz necessário observar sutilezas no conceito de meditação empregado na meditação de atenção. Meditação é comumente associada à contemplação de realidade mais elevadas, de objetos religiosos; um estado de transe induzido; desprendimento espiritual da matéria; etc. No entanto, a meditação budista de atenção é o contrário desses compreensões. O objetivo dela é nos tornar atentos da mente, fazer com que estejamos presentes com a nossa própria mente, experienciá-la. É bastante comum no cotidiano as preocupações, planos, etc. nos invadir e fazer com que a nossa mente não experiencie o momento presente de forma plena, sempre sendo jogada ao futuro ou ao passado e a consequência disso é nunca estarmos em um estado coordenado (no sentido budista, não estão presentes) entre mente e experiência, havendo uma descorporalização da mente. A meditação de atenção consiste em acalmar ou dominar a mente (shamatha) e o desenvolvimento de uma visão especial interior (vipashyana), pontos que são desenvolvidos com técnicas específicas, como o foco em objetos simples como a respiração. Com vistas nisso, os autores sugerem uma transformação da natureza da reflexão de uma atividade abstrata e descorporalizada para uma reflexão corporalizada e ilimitada.
Vale observar que por corporalizada os autores entendem uma reflexão na qual corpo e mente são postos juntos por meio da meditação de atenção. A reflexão, desse modo, não é apenas sobre a experiência, algo como o já citado anteriormente olho descorporalizado que observa de fora objetivamente a realidade, mas a própria reflexão é uma forma de experiência. Segundo os autores, na prática habitual de filósofos e cientistas, perguntas como: "o que é a mente?" e "o que é o corpo" são feitas e refletidas de forma teórica e científica, mas no decorrer dessas investigações é esquecido quem exatamente faz essa pergunta, os próprios cientistas e filósofos não se incluem nesse quadro reflexivo. A meditação de atenção vem, nesse sentido, como o método pelo qual será adotada uma postura oposta à reflexão típica em relação às questões envolvendo mente/corpo, aqui o meditador se torna consciente dos seus estados mentais, se torna atento a eles de forma a obter melhor conhecimento de si mesmo, o que torna a reflexão corporalizada e possibilita a inclusão de si no quadro reflexivo, não é mais um sujeito no mundo refletindo como se estivesse fora do mundo.
O empenho filosófico de Varela, Thompson e Rosch nas ciências cognitivas possibilitou um dos maiores passos nesse campo ao apontar uma ponte entre a fenomenologia existencialista e o fenômeno de conhecer, ao passo que traz ao debate filosófico a filosofia oriental, mostrando que é possível um diálogo filosófico relevante entre essas duas faces da mesma moeda (a filosofia oriental e ocidental) que por muitas vezes são vistas como díspares. Além disso, em meio a um mundo cada vez mais cientificista, em que a filosofia é relegada ao segundo plano, essa é posta em evidência, mostrando que ela tem sua importância fundamental nos novos empreendimentos epistemológicos e pode sim fazer grandes avanços em áreas que são majoritariamente dominadas pelas ciências.

Referências
VARELA, J.A.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. A Mente Corpórea. Trad. Joaquim Nogueira Gil e Jorge de Sousa. Instituto Piaget: Lisboa, 1991.


Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí – UFPI.



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