A circunscrição histórica das prisões e a crítica criminológica

May 27, 2017 | Autor: Pedro Paulo Bicalho | Categoria: Social Psychology, Critical Criminology, Prisons
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REISHOFFER, J. C.; BICALHO, P. P. G. A circunscrição histórica das prisões e a crítica criminológica In: Punição e Prisão: ensaios Críticos.Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2015, p. 13-26. Impresso, ISBN: 9788584402311

A circunscrição histórica das prisões e a crítica criminológica Jefferson Cruz Reishoffer Pedro Paulo Gastalho de Bicalho “[...] a melhor prisão é, sem dúvida, a que não existe”. (BARATTA, 1990, p. 2) A prisão representa um de nossos maiores paradoxos sociais. Não há alguém que defenda sua manutenção como estratégia punitiva eficaz, mas mesmo assim, em pouco mais de dois séculos, ainda não se estabeleceu uma alternativa que substitua o cárcere como a pena por excelência na sociedade capitalista. Sua história de fracasso não nos indica uma possível abolição, mas sim sucessivas reformas. Dentro do senso comum, é costume ouvir que, além de inútil, ineficaz e perigosa, a prisão nada mais é do que a “escola do crime”. Ou seja, além de não resolver o problema da criminalidade que supostamente ela deveria reprimir, a prisão falha em seus pretensos propósitos ressocializadores. As prisões são nosso óbvio problema-necessário. São hegemonicamente compreendidas como instituições que não nos servem, mas, quando pensamos em punição a alguma infração grave, pensamos nelas. Essa obviedade da fórmula-prisão enquanto penalidade não é ao acaso e tem fundamentos em estratégias historicamente demarcadas no nascimento do sistema capitalista.

A prisão entre as formas e as forças A existência da forma-prisão é anterior à sua utilização sistemática nas leis penais. Embora seja inegável que o encarceramento de criminosos existiu desde os tempos mais remotos, este não tinha o caráter de sanção penal. Até os fins do século XVIII, a prisão serviu apenas aos objetivos de contenção e guarda dos réus, para preservar sua integridade física até o momento de serem julgados e executados. Recorreu-se, durante longo período histórico, fundamentalmente, à pena de morte, às penas corporais (mutilações e açoites) e às infamantes. “Durante vários séculos, a prisão serviu de depósito – contenção e custódia – da pessoa física do réu, que esperava, geralmente em condições subumanas, a celebração de sua execução” (BITENCOURT, 2011, p. 28). A prisão era a “sala de espera” dos suplícios, fundamentalmente usada para custódia, para evitar que os acusados escapassem ao castigo, para garantir que os devedores saldassem suas dívidas ou que os condenados a trabalhos forçados não escapassem de seu castigo (BITENCOURT, 2011).

REISHOFFER, J. C.; BICALHO, P. P. G. A circunscrição histórica das prisões e a crítica criminológica In: Punição e Prisão: ensaios Críticos.Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2015, p. 13-26. Impresso, ISBN: 9788584402311

A partir das Revoluções Liberais do século XVIII, o aparelhamento da instituição-prisão para controle da criminalidade adquiriu características de necessidade e obviedade de forma muito rápida. Segundo Foucault (1997), podemos entender que a detenção como forma prioritária de punição segue em paralelo com transformações nas estratégias do poder de punir que, do século XVIII para o XIX, testemunharam a passagem das sociedades ditas de soberania para a sociedade disciplinar. Em oposição ao poder de punir excessivo, incerto e desigual disponível nas mãos do soberano, tornou-se imperativo realizar uma nova economia do poder de castigar: torná-lo mais regular, necessário e universal, além inseri-lo de forma profunda e extensível a todo corpo social. Dessa forma, os grandes rituais de castigo, os suplícios, destinados a provocar terror e exemplo, “desaparecem diante da exigência de uma universalidade punitiva concretizada no sistema penitenciário”. (FOUCAULT, 2012, p. 33). Foucault (2002) aponta que a própria formação da sociedade disciplinar pode ser caracterizada pelo aparecimento de reformas nos sistemas judiciários e penais, principalmente na Europa e por todo o mundo. Essas reformas,1 mesmo que em cronologia e abrangências diferenciadas em cada país, reuniam princípios básicos que traziam novas concepções sobre crime, punição, criminoso e sociedade. Primeiramente, o estatuto do crime é modificado. Agora, ele não tem mais nenhuma relação com a falta moral, religiosa ou natural da sociedade medieval. O crime é uma infração a uma lei estabelecida internamente pela sociedade através de seu poder legislativo. Para que haja uma infração, é necessário haver uma lei e que essa tenha sido formulada por um poder político constituído. Antes da existência da lei, não há crime possível. Em segundo lugar, a lei não deverá mais retranscrever as leis naturais, religiosas ou morais, mas deverá representar o que é útil para a sociedade, tornando repreensível aquilo que deve ser julgado nocivo a ela. O terceiro princípio será assim deduzido dos dois primeiros: se o crime não é algo aparentado como uma falta moral ou religiosa e é definido como repreensível por uma lei constituída, ele passa a ser entendido como um dano social, uma perturbação, um incômodo a toda vontade da sociedade. Vontade, então, representada pela lei. As redefinições da reforma alcançaram também o sujeito entendido como criminoso e as finalidades da pena. O criminoso será essa figura que prejudica a sociedade, rompe deliberadamente o pacto social e deve ser considerado um inimigo social interno. As finalidades da lei penal irão concentrar-se, basicamente, em duas medidas: reparar o dano causado à sociedade e evitar que novos crimes sejam cometidos – portanto, funções retributivas e preventivas. Contudo, Foucault afirmará que, diferentemente do arsenal de penalidades que os reformadores propunham2, foi a prisão que adquiriu prevalência, mesmo não pertencendo “ao projeto teórico da reforma da penalidade do século XVIII. Surge no início do século XIX, como uma instituição de fato, quase sem

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Entre os reformadores dos sistemas penais, encontramos Beccaria, Bentham, Brissot e os legisladores que são os autores dos 1º e 2º Código Penal Francês da época revolucionária (FOUCAULT, 2012). 2 “Eis, portanto, uma bateria de penalidades – deportação, trabalho forçado, vergonha, escândalo público e pena de talião. Projetos efetivamente apresentados não somente por teóricos puros como Beccaria, mas também por legisladores, como Brissot e Lepeletier de Saint-Fargeau, que participaram da elaboração do 1º Código Penal Revolucionário” (FOUCAULT, 2012, p. 82).

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justificação teórica” (FOUCAULT, 2002, p. 84). Além disso, é primordial entender que não só a prisão não estava entre as penalidades previstas pelos reformadores como também a lei penal sofrerá uma inflexão em suas finalidades (retributivas e preventivas), que deixarão de visar àquilo que é socialmente útil para, cada vez mais, ajustar-se ao indivíduo. [...] a penalidade que se desenvolve no século XIX se propõe a cada vez menos definir de modo abstrato e geral o que é nocivo à sociedade, afastar os indivíduos que são nocivos à sociedade ou impedi-los de recomeçar. A penalidade no século XIX, de maneira cada vez mais insistente, tem em vista menos a defesa geral da sociedade que o controle e a reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos (FOUCAULT, 2002, p. 84). Com as mudanças na estrutura social e nas legislações penais, orientando-se cada vez mais em direção ao homem criminoso e não ao fato previamente definido como crime, a obviedade da prisão encontrou argumentos para solidificar-se. Em sua obra mais célebre, Vigiar e Punir, Foucault faz a análise dos fundamentos que tornaram a prisão a forma entendida como mais imediata e civilizada de todas as penas: fundamentada na forma simples de “privação de liberdade”, como não seria a prisão a pena por excelência numa sociedade em que a liberdade é um bem que atingiria a todos da mesma maneira, para além das diferenças sociais? Sua perda tem, portanto, o mesmo preço para todos; melhor que a multa, ela é o castigo “igualitário” – obviedade jurídica da prisão. Além disso, o aprisionamento permite quantificar a pena segundo a variável do tempo. Há uma forma-salário da prisão que constitui sua “obviedade” econômica. E permite que ela pareça como uma reparação. Obviedade econômico-moral de uma penalidade que contabiliza os castigos em dias, em meses, em anos, e estabelece equivalências quantitativas delitos-duração (FOUCAULT, 1997). Mas a prisão se solidificou, dentro de uma sociedade disciplinar, principalmente por sua função técnica de correção de indivíduos – sua obviedade técnico-disciplinar. E, para cumprir essa função corretiva, seria preciso conhecer não apenas o crime e a lei, mas, necessariamente, o sujeito criminoso, suas paixões, seus motivos, seu ambiente e possíveis enfermidades. A pena deveria ser modulada de acordo com o criminoso e as circunstâncias de seu crime. O julgamento não estaria mais orientado para o resultado do inquérito: conhecimento do autor, da infração e da lei para aplicação de uma sanção penal. Outro tipo de saber foi necessário ser introduzido no mecanismo penal: “o que significa este crime? quem é o criminoso? O que pode se esperar dele?”. “Todo um conjunto de julgamentos apreciativos, diagnósticos, prognósticos, normativos, concernentes ao indivíduo criminoso encontrou acolhida no sistema de juízo penal” (FOUCAULT, 1997, p. 21). A prisão enquanto penalidade inaugura uma forma de sanção que não se refere a uma infração, mas a um comportamento, a uma personalidade criminosa, que deve ser buscada no interior de uma história individual. Ora, dessa forma inaugura-se uma série de saberes, técnicas e discursos ditos científicos que serão incorporados e estarão entrelaçados às práticas do poder de punir. A punição não funciona mais como simples aplicação da lei, mas como técnica corretiva que busca, além de corrigir o sujeito criminoso, estabelecer suas razões, motivações e determinações que engendraram a violação da lei. O poder de julgar foi, em parte, transferido a instâncias e personagens extrajurídicos: psicólogos, criminólogos, psiquiatras, sociólogos,

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assistentes sociais. O lado “humanitário” do sistema prisional consistia em buscar a correção e reinserção do criminoso, afastando-se da pura vingança e retribuição violenta por parte do Estado. A prisão se tornou óbvia e natural, espaço privilegiado dos mecanismos disciplinares que buscavam constituir um saber especializado sobre o sujeito criminoso. Porém, precisamos refinar nosso olhar e perceber que a “estratégia-prisão” adquire uma função central dentro do modelo político-econômico que estava sendo implementado. A prisão nasce com o capitalismo e, desde então, vem sendo utilizada para administrar a pobreza, seja pelo seu lado punitivo, seja pela via da neutralização, transformando as classes populares em classes perigosas. Com a multiplicação das riquezas e da propriedade para poucos e o desenvolvimento da produção, aumenta-se a população miserável, tornando-se imperativo o aperfeiçoamento dos instrumentos de controle social para assegurar a ordem pública. Surgem os primeiros rudimentos da Polícia e passam a constituir-se aparelhos judiciários que, a serviço da burguesia, irão perseguir e punir as ilegalidades diretamente ligadas à propriedade em detrimento aos crimes de sangue e que, nos séculos anteriores, tinham prioridade de penalização. As tecnologias disciplinares atravessarão o corpo social (nas escolas, quartéis, fábricas, hospitais e prisões) para permitir a transformação de multidões confusas e desordenadas em multiplicidades organizadas e manipuláveis (KOLKER, 2004). Técnicas de saber-poder irão constituir a pobreza como a face da criminalidade, indicarão possíveis punições-tratamento e estabelecerão formas de vigilância e controle dessas classes marginalizadas, com o respaldo de saberes técnico-científicos que emergirão no mesmo período.

A prisão no modelo neoliberal e a criminalização da pobreza O Brasil tem hoje cerca de 574 mil pessoas presas, a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos (2,2 milhões), da China (1,6 milhão) e Rússia (740 mil). Dados do Ministério da Justiça (MJ) mostram o ritmo crescente da população carcerária no Brasil. Entre janeiro de 1992 e junho de 2013, enquanto a população cresceu 36%, o número de pessoas presas aumentou 403,5% (AGÊNCIA BRASIL, 2014). A imensa maioria de presos que compõem a massa carcerária são de homens, jovens, pobres, negros/pardos, de baixa escolaridade e moradores das periferias. Tais números podem aparentar impressionantes, porém não são ao acaso, pois podemos afirmar que estão em acordo com a lógica da penalidade neoliberal, dentro do sistema capitalista atual. Wacquant (2001) analisando a sociedade norte-americana constatou o recrudescimento de estratégias de segregação punitiva em face ao retrocesso de políticas sociais, o que levou a população carcerária americana a triplicar em quinze anos, chegando a índices de encarceramento de 650 detentos por 100.000 habitantes em 1997. Essa nova programática penal, que potencializou a hipertrofia do encarceramento, possui motivações e corre em paralelo com a redução drástica do Estado social, a partir da metade da década de 1970, período em que tem início a implementação do modelo socioeconômico neoliberal. O neoliberalismo adotou como diretriz a plena liberdade aos mercados, viabilizados pela globalização das instituições bancárias e financeiras, pelo emprego de novas tecnologias para intensificar as operações globais e pela utilização de tecnologias avançadas de comunicação que têm a potencialidade de duplicar o capital produtivo (ARGUELLO, 2007). O modelo

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capitalista neoliberal passa a impor novas relações de consumo e produção, além de programas de aumento da produtividade que flexibilizam3 e precarizam as relações de trabalho, produzindo uma debilitação dos direitos econômicos, sociais e culturais, com elevação do desemprego, do emprego informal e workfare. Assim, contata-se que uma conjuntura estruturada sob a égide da liberdade de mercado em conjunto com a flexibilização de direitos individuais e sociais produz como efeito colateral a descartabilidade do valor “pessoa humana” e o retorno a um estado pré-civilizatório no qual impera a lei do mais forte (CARVALHO, 2008), no caso aquele com maiores poderes para produzir e consumir. A redução da rede de segurança social nos países centrais, como também os sucessivos cortes orçamentários na assistência social, na saúde pública, na educação e na moradia, trouxe como efeito direto o incremento das funções penais e policiais do Estado sobre aquelas populações antes assistidas, com forte deslocamento de recursos públicos de áreas sociais para a área de “segurança pública”, visando manter políticas basicamente repressivas e punitivas que envolveram e fortaleceram tanto o setor penitenciário como o judiciário e o policial (KILDUFF, 2010). Ou seja, as questões econômicas e sociais perdem a intervenção estatal, saem dos programas de manutenção da ordem pública, instaurando uma insegurança social coletiva em grandes parcelas da população. Aqueles que já dispunham precariamente das mínimas garantias de sobrevivência agora irão compor a imensa lista de desempregados ou subempregados, sendo assim denominados “excluídos”. Entretanto, Forrester, contrariamente, afirmará que, em vez de excluídos, os miseráveis estão totalmente incluídos nas lógicas neoliberais: E como alguns os querem ainda mais apagados, riscados, escamoteados dessa sociedade, eles são chamados de excluídos. Mas, ao contrário, eles estão lá, apertados, encarcerados, incluídos até a medula! Eles são absorvidos, devorados, relegados para sempre, deportados, repudiados, banidos, submissos e decaídos, mas tão incômodos: uns chatos! Jamais completamente, não, jamais suficientemente expulsos! Incluídos, e em descrédito (1997, p. 15). O modelo socioeconômico neoliberal ampliará suas possibilidades de discriminação e marginalização entre os indivíduos. Entre essas formas de discriminação, a principal será a perda do status cidadão por algumas pessoas, não somente em razão das restrições econômicas, mas por qualquer característica que as possa diferenciar socialmente (raça, nacionalidade, religião etc.). [...] certas pessoas (por mais terrível que seja colocar no papel) simplesmente não servem: a economia pode crescer sem a sua contribuição; de qualquer modo que se lhes considere, para o resto da sociedade tais pessoas não representam um benefício, mas um custo (DAHRENDORF apud CARVALHO, 2008, p. 216). Com o enfraquecimento das proteções sociais e aumento do desemprego e do mercado informal, o Estado redefinirá seu papel adotando políticas que fortalecem e hipertrofiam o chamado “Estado Penal”. Os alvos dessa mudança serão as camadas populares agora submetidas a um “mais Estado policial e penitenciário”

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Por flexibilização do trabalho, entende-se a diminuição da intervenção sindical, dos gastos sociais trabalhistas e o abrandamento das regras para contratações e demissão de empregados. É importante ressaltar o afinamento dessas estratégias com as prerrogativas de diminuição de custos para o empregador, bem como com a lógica (neo)liberal de mercado.

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que substituirá o “menos Estado” econômico e social.4 Para essa população pobre, que foi destituída da cidadania possível, será adotada a potencialização de sua marginalização social através do controle penal, principalmente da malha carcerária. [...] o confinamento é antes uma alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou neutralizar uma parcela considerável da população que não é necessária à produção e para a qual não há trabalho ao qual se reintegrar' (BAUMAN, 1999, pp.119-120). A intervenção penal será estratégia de administração e controle dessas massas pauperizadas e órfãs do Estado-Providência. Wacquant (2001) caracteriza cinco condições de possibilidade para a “hipertrofia” do Estado Penal americano, a saber: a expansão vertical do sistema – crescimento da população encarcerada, a expansão horizontal da rede penal –, o aumento das medidas de penalização extramuros através das “liberdades” condicional e vigiada, o crescimento do setor penitenciário no seio das administrações públicas e a política de “ação afirmativa carcerária” – rigor aumentado em relação aos crimes vinculados a drogas e à população negra, e a privatização carcerária –, propiciando um mercado emergente para toda uma rede de serviços de vigilância, alimentos, seguro, serviços, administração, manutenção, arquitetura, financiamento, construção, transporte. O neoconservadorismo penal capitalista necessitará ser justificado com as (incansáveis) campanhas de luta contra o (inesgotável) aumento da criminalidade urbana e com os imperativos, cada vez mais presentes, de restabelecimento de uma ordem social perdida. Assim, a ordem pública passa a se confundir com o controle da criminalidade dos pobres ou com a neutralização daqueles que colocam em risco o sossego dos plenos cidadãos (consumidores), pois, como defenderá Wacquant (2008), a guerra declarada pelas autoridades policiais nunca foi empreendida contra o “crime” em geral. A lógica seletiva das forças da ordem e do sistema penal será perseguir prioritariamente “determinadas categorias de ilegalidades cometidas em um setor bem definido dos espaços físico e social: basicamente crimes de rua cometidos em bairros de classes desfavorecidas e segregadas das metrópoles” (WACQUANT, 2001, p. 10). A retórica da guerra contra o crime e a propagação da insegurança difusa se reveste em uma eficiente criminalização da pobreza em que o Estado passa às forças de ordem “um cheque em branco” para perseguir agressivamente os crimes associados à pobreza, além de reprimir os mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados (WACQUANT, 2001). Essas correlações de forças políticas que vinculam a pobreza ao crime não dizem respeito a uma posição de um governo específico ou limita-se a algum espaço geográfico na atualidade; ao contrário, fazem parte de uma complexa rede de produção subjetiva que incorpora elementos autoritários, clamando por penas 4

Importante destacar é que o desmonte do Welfare State, principalmente a partir da década de 1980, ocorreu nos chamados países de economia avançada, pois, nos países considerados periféricos (como o Brasil), tal Estado social foi apenas uma promessa nunca realizada. Contudo, o controle penal sobre as classes pauperizadas se deu com grande força, tornando inviável, por parte desses países, a aposta em políticas e investimentos sociais que visassem reduzir as desigualdades sociais (distribuição equânime de riqueza, reforma agrária, erradicação da miséria, ações contra as taxas de desemprego e exclusão social etc.). Mesmo que não tenham conseguido acompanhar esse processo, tais países deveriam dividir o ônus e as dificuldades dos países de econômica avançada, importando tais modelos políticos (CARVALHO, 2008).

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mais severas, pela redução da maioridade penal, construindo novos padrões de segregação urbana com o aumento dos muros, instalação de câmeras e circuitos internos e até cercas elétricas (BICALHO; KASTRUP; REISHOFFER, 2012, p. 61). São novos padrões subjetivos que “permitirão a suspensão dos princípios éticos, dos direitos constitucionais e das garantias legais, comprometendo as bases democráticas das sociedades ocidentais” (BICALHO; REISHOFFER, 2009, p. 440), adotando estratégias repressivas na busca de manutenção (ou imposição) de uma determinada ordem social, ainda mais conservadora, do sistema capitalista. A ordem social não será caracterizada, então, como a efetiva consolidação das mínimas condições de cidadania para todos, mas sim como defesa do direito de consumo de alguns. Contudo, apesar de não serem estratégias de governo ou localizadas em espaços geográficos precisos, Wacquant (2001) afirmará que tal estratégia neoliberal será ainda mais funesta em países atingidos por fortes desigualdades de condições de vida e desprovidos de tradição democrática, a exemplo da sociedade brasileira. De forma categórica, nossas questões sociais se tornam casos de polícia e os “inimigos” da ordem serão estes que ousam transpor as barreiras do consumo e estão continuadamente expostos ao próprio controle e violência policial. Tal violência é inserida em nossa tradição nacional secular de controle dos miseráveis pela força, tradição oriunda da escravidão e dos conflitos agrários, que foram fortalecidos por duas décadas durante a ditadura militar, na qual a luta contra a “subversão interna” era disfarçada em repressão aos opositores do regime (WACQUANT, 2001). O controle social brasileiro, por meio do Estado Penal, também adotou as lógicas da “guerra” e do “inimigo interno” em restabelecimento de uma ordem supostamente perdida, mas que, paradoxalmente, necessita ser conservada. Atualmente, a produção subjetiva da insegurança é apoiada por uma criminologia de cunho positivista, que buscou identificar, de forma objetiva e asséptica biologicamente, os negros, ou socialmente, os pobres, como potenciais delinquentes; a figura do jovem, negro e pobre aparece como a figura atual da ameaça (BICALHO; REISHOFFER, 2009). O recorte é feito e o olhar da repressão é recrudescido para os crimes que atentam, obviamente, contra o patrimônio, mas, principalmente, aos que se referem ao varejo das drogas. Sob a insígnia da “guerra contra as drogas”, têm-se empreendido em larga escala a criminalização das populações que moram nas favelas, onde todos são considerados suspeitos por morar em áreas de domínio e/ou influência do tráfico varejista, áreas identificadas como o principal foco e difusoras da violência em toda cidade (CARVALHO; DIAS; RIBEIRO, 2008). Então, segundo essa lógica, “aqueles que estão numa área residencial onde ocorre uma incursão classificada como ‘missão perigosa’ são considerados suspeitos e representam perigo à integridade física dos policiais e à sociedade. São percebidos, dessa forma, como inimigos e, de acordo com uma lógica de guerra, devem ser ‘eliminados’” (BICALHO; JAGEL; REBEQUE, 2008, p. 420). Então, agora, não mais aos comunistas como nos tempos de ditadura, mas aos jovens pobres das periferias, serão atribuídas características como “perigosos” e “infratores”, como se fossem de sua natureza. Tal “natureza” serviria de justificativa para adoção de medidas extremadas de controle social e repressão desses entendidos como “classes perigosas” dentro de uma sociedade que ainda busca consolidar suas bases democráticas. Pois, como afirmará Bicalho: Perigosas porque pobres, por desafiarem as políticas de controle social no meio urbano e, deste modo, mobilizam os mais diferentes setores da sociedade, como a família, a escola, o trabalho e a polícia, que

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indicam e orientam como todos deveriam se comportar, trabalhar, viver e morrer. [...] A modernidade exige cidades limpas, assépticas, onde a miséria – já que não pode mais ser escondida e/ou administrada – deve ser eliminada. Eliminação não por sua superação, mas pelo extermínio daqueles que a expõem incomodando os ‘olhos, ouvidos e narizes’ das classes mais abastadas (2005, p. 15).

O fracasso ou o sucesso da prisão? Foucault (1997) afirma que o sucesso da prisão foi ter difundido no meio social a ideia de que existem categorias de humanos mais perigosos e que, por esse motivo, sua humanidade estaria ameaçada em função da presença de uma delinquência que os transformaria, então, em um sujeito-delinquente. O crime serviria menos para definir um ato e mais para diagramar um sujeito. Substitui-se, assim, o crime pelo criminoso: o ato pelo indivíduo; a transgressão pelo transgressor. Segundo Baratta (2002), entretanto, a finalidade da pena de prisão em promover a ressocialização do autor de um crime fracassou por dois motivos principais: pelo fato de a prisão ter sido originariamente criada para promover a separação entre criminosos e sociedade (como se fosse uma oposição maniqueísta entre o Bem e o Mal), mas também pelos próprios clamores sociais que provocam adoção de políticas contrárias a ideias de ressocialização e tratamento penal. O autor contesta, ainda, a ideia puramente individualista, que aponta que a ressocialização envolveria, exclusivamente, a reforma do indivíduo para uma sociedade considerada sadia e naturalmente boa. Em uma argumentação mais contundente, Karam (2004) vai além, questionando que a própria ideia de ressocialização é absolutamente incompatível com o fato da segregação do indivíduo. A autora sugere a adoção de um mínimo de raciocínio lógico para repudiar a ideia esdrúxula de pretender reintegrar alguém à sociedade, afastando-o dela. Exemplifica que “pretender ensinar uma pessoa a viver em sociedade mediante seu enclausuramento é algo tão absurdo quanto pretender treinar alguém para jogar futebol dentro de um elevador” (KARAM, 2004, p.81). Dessa forma, as propostas penais retributivas que buscam intensificar a segurança e a disciplina terão prevalência sobre as propostas de ressocialização nos objetivos esperados pela sanção penal. Entretanto, de fato, esse “declínio do ideal ressocializador” é apenas a oficialização teórica e discursiva de um projeto que nunca existiu (se é que possa existir através da prisão) e que, nas palavras de Wacquant (2001, p. 119), sempre se limitou a ser um “mero slogan de marketing burocrático”. Reforçar o discurso da “ressocialização” dos presos através da prisão até parece ser o esforço daqueles que ainda alimentam o discurso conservador da “ordem e disciplina” como forma de manter uma espécie de “ideal oposto”, contra o qual possam manter-se permanentemente em conflito, ou ainda, de profissionais do sistema prisional que, na falta de melhores expectativas para sua atuação, empunham a bandeira do tratamento penitenciário como “estratégia de resistência política à mortificação generalizada presente nestes campos” (RAUTER, 2007, p. 46).

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REISHOFFER, J. C.; BICALHO, P. P. G. A circunscrição histórica das prisões e a crítica criminológica In: Punição e Prisão: ensaios Críticos.Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2015, p. 13-26. Impresso, ISBN: 9788584402311

Nesse momento, percebemos a imbricação dessas formas políticas de administração de disciplina carcerária com o discurso da periculosidade e de certa concepção de criminologia de cunho positivista que, dentro da lógica da penalidade neoliberal, definirão os crimes e os alvos privilegiados de tais medidas, garantindo por completo o abandono do ideal ressocializador, pois a prisão já não precisará mais de nenhuma justificativa burocrática ou falaciosa para se sustentar.

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