A cissiparidade - Georges Bataille

July 23, 2017 | Autor: Alexandre Costa | Categoria: Georges Bataille, Sacrifice, Obscenity
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A CISSIPARIDADE Georges Bataille

Tradução: Alexandre Rodrigues Da Costa

I Tomado de raiva e de raiva. Minha cabeça? Uma unha, uma unha de recém-nascido. Eu grito. Ninguém me entende. A opacidade, a eternidade, o silencio esvazia – evidentemente de mim. Eu me suprimiria me esganiçando: esta convicção é digna de louvor. Eu comeria, f..., escreveria, riria, mentiria, temeria a morte, e ficaria pálido diante da ideia de retornar às unhas. II Eu amaria me aderir à ideia cortante de mim mesmo, elevando no ar minha cabeça enrugada e negando o cheiro da morte. Eu amaria esquecer o inatingível deslocamento de mim mesmo ante a corrupção. Eu tenho a náusea do céu cuja doçura estridente tem a obscenidade de uma “filha” adormecida. Eu imagino uma linda puta, elegante, nua e triste na sua alegria de porquinha. Um sol de festa inundava o quarto. Eu me barbeava nu diante do espelho, limitado por um quadro de molduras douradas. De pé, eu virei as costas ao disco solar, mas o espelho, sobre minha cabeça, reproduzia a imagem. Quem sou eu? Eu poderia, sobre o vidro ensolarado, traçar meu nome, a data, em letras de sabão: eu cessaria de acreditar nisso e não mais riria. Este desembaraço comigo mesmo, esta mentira de espelho, a imensidade da luz, da qual eu sou o efeito? Eu teria de mim mesmo uma ideia sublime: na verdade, eu teria a força necessária. Eu igualaria o amor (o indecente corpo a corpo) ao ilimitado do ser – à náusea, ao sol, à morte. A obscenidade oferece um longo momento ao delírio dos sentidos. Esse quem, no meu caráter, é o menos acusado (mais enfim...): o lado gustave (ou porco). 16

III Carta do autor a Sra. E... Recebi de Monsenhor um telegrama: “Êxito. Venha. Situação difícil.” Olhei por muito tempo no espelho e tinha medo de gargalhar. A duplicação de Monsenhor me irrita a ponto de perder a cabeça. O que ele sugere é o fundo das coisas e isso é definitivamente falso. Carta da Sra. E... ao autor. ...finalmente estou com nó na garganta. O estado em que vossa palavra me encontrou é o mais irritante que eu já conheci. Às vezes, eu gargalho. E eu acho que, a partir de agora, esse riso de loucura não vai parar mais. Ele para, e então eu tenho o sentimento penoso, mas voluptuoso de ser assoada, e feito como um rato... IV Encontro com Sra. E... em Paris. Partimos de amanhã para Roma, onde nos espera Monsenhor. Monsenhor ou melhor... Ópera. Grande música. Quantidade de álcool. Esta manhã, ao cair com uma faca afiada na mão, cortei um dedo. A Sra. E... riu muito alto ao me ver cair, mas o sangue que jorrava e o riso muito alto a incomodavam. Eu acabei por incomodá-la rindo: eu era gentil, flutuante, adorável: ela dissimulada, pálida e voluntariamente indecente. Se a inteligencia é feminina... ... Eu gostaria que um movimento fizesse da minha semelhança uma mulher ímpia. Há uma conjugação de verbos da carne da qual a canção cômica é a desinência. Cantarei até a vergonha em uma mesa de banquete: Ravadja la moukère Ravadja bono

Mergulhe teu cu na tigela Tu verás se está quente. Se ela não estava indo ao revadja, a mulher ímpia não teria o poder de apodrecer resolutamente a luz, nem de ser tão decididamente bonita: podridão e raios do sol. Mas esta é a minha maneira de amar a Sra. E..., de rir e, finalmente, de raciocinar. Visita de Alexandrette às duas horas. Eu tremia (álcool de ontem?). Havia o ar rancoroso dessas gaiolas minúsculas para moscas, que as crianças enchiam de insetos odiosamente vivos. Ele partiu e nós ficamos, Sra. E... e eu, em um deserto de f... Ao ataque das estrelas, em um movimento de grandiloquência. Pegamos às duas horas o trem para Roma.

Polichinello nº 15 | Poéticas da Transgressão

e a violência do canto, apesar de mim, fora de mim, saltasse:

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Música na noite passada saltando na cabeça. A chorar, a vomitar alegremente. Fluxos desordenados. Cortesia de Sra. E... Decote, boa educação, mas que indecência! V Quando eu faço amor, hoje, minha alegria é roubada pela sensação de que isso vai acabar – e que morrerei sem ter convulsão. Acontecia-me de, no excesso de felicidade, o prazer escaldante se anular, como em um sonho: eu imaginava um momento em que eu não teria mais meios de renová-lo. Eu perdia a sensação de riqueza exuberante da festa, a malícia ingênua e o riso que se iguala a Deus! O poder em si é fugidio, é verdade: é da mesma natureza que a dor. Eu me abandono ao seu humor? Imediatamente, eu me dou ao impossível e gozo como um monstro que morre. Roma, uma carruagem, Sra. E... Violenta iluminação elétrica. Chuva e lua nas ruas brancas da ópera cômica: desejos, delícias e indolência. Eu aceito a vida sob uma condição. Através do sublime, a eternidade, a mentira, deitado, cantar com toda força, apoiado por um coro de teatro. Um lobo foi comprado para a Sra. E... Eu me coloco em jogo, ávido de insolência, nas festas de Monsenhor. Eu me embebederei pela velocidade insólita. Cantar para a multidão senão aquela que se embebede? Dez mil olhos na noite são o céu estrelado. O mais ansioso, o mais feliz dos homens. Invocar a morte, gritando para ela: – Agarre tuas facas de comédia, afie-as em teus dentes! A dama de decote (indecente, eu já o disse, profundamente): seu decote na medida da morte, a morte na medida do decote. VI Aldeia de mentira! Diante do papelão e da falsificação, tomei a atitude de reunir tudo na noite, de não mais dizer o que nos ocupa, é a única medida do meu desejo. É necessário ir muito longe... Ser estrela e desonrar o alto dos céus. Não escutar nada, gritar ou discorrer nas solidões do céu. Eu telefonei ao Monsenhor. E nós, nós chegamos em uma hora. Alpha, Beta (assim distinguimos nossos sósias resultantes de um desdobramento), Sra. E... e eu. Como eu, Sra. E... na carruagem aberta, bêbado sem álcool, e rindo baixinho: – Mas quem te respondeu? Alpha? Beta? A pertubação dava aos seus traços uma convulsão lenta e voluptuosa. O prelado desce as escadas de pedra e vem até nós, segurando nossas mãos. 18

Sra. E..., embaraçada, disse com um riso de menina: – Bom dia, Beta! Aqui, quando Sra. E... disse: “Bom dia, Beta!” bateu-me (senti-me então feliz como os painéis menos ensolarados onde deusas em vestidos levantados rendiam, como cassolettes de especiarias, uma dissimulada homenagem ao prazer) foi a vulgaridade de meu amigo. Ela beijou, curvando-se, o anel episcopal e esse movimento humilde, como o instante antes de seu riso canalha, acusou sua natureza, sob o alfaiate da vila, deixando entrever o animal. Lembrei-me de ver na atitude de Senhora E. .. apenas a “menina” e, nessas riquezas irreais, eu estava feliz que a miséria verdadeira respondesse às minhas paixões. Sem transição, o tempo tornava-se grave. De repente, eu soube que no topo da escada, em uma confusão obscena, eu veria a outra encosta. Dos palácios de tragédia que parecem vazios, porque a entrada não é mais o sangramento, e os cães de Jezebel fugiram, percebi que, apesar de sua aparência agradável, eles continuam a ser favoráveis aos desejos mais debochados. O que surpreende em um palácio – como em uma rápida transição de teatro – é o ódio dos homens entre nós. O topo da escada monumental, que Monsenhor e Sra. E... subiram rindo, me atraia como se fosse o limiar de uma terrível reino. Eu não podia deixar de ver em contraste – o momento de triunfo da Sra. E..., sua medida e suas melodias, muito ousadas, de grande dama enobrecida pela moldura de pedra – o quadro da mulher lapidada. Então vi nada mais do que uma entrada real. Eu não vi o meu amigo pavimentado no sangue, na lama, no ruído imundo da multidão. (O telhado não sugere o corpo esmagado, mas a vertigem.)

Este texto foi publicado originalmente, em 1949, em Les Cahiers de la Pléiade. A nossa tradução se baseia no texto encontrado no terceiro volume das Obras Completas de Georges Bataille, editado pela Gallimard, em 1971.

Polichinello nº 15 | Poéticas da Transgressão

Aos poucos, o desejo do meu amigo me tomou da maneira mais bestial. Um calor em um sentido gracial me prendeu. Eu tinha a sensação da multidão louvável, que sabe como odiar. Que não pode esperar um momento. Sra. E... rapidamente atravessa o limiar. Alpha abria as portas duplas.

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