A clínica do caso construído em instituições

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[Os números entre colchetes ao longo do documento fazem referência à paginação do texto publicado no livro: Vorcaro, A.; Mendes, A.; Resende, A.; Fidelis, K. (2016). A clínica do caso construído em instituições. In Marcos, C.; Motta, J. (Orgs.). A parceria universidade e hospitais de ensino: os caminhos da pesquisa clínica em psicanálise. Curitiba, PR: CRV, pp. 11-38] A clínica do caso construído em instituições1

Angela Vorcaro2 Aline Aguiar Mendes3 Alice Oliveira Resende4 Kaio Fidelis5

1 – Introdução

Há alguns anos desdobramos uma pesquisa interinstitucional financiada pelo CNPq6 que congrega professores da UFMG e da PUCMINAS, alguns alunos de graduação, mestrado e doutorado atuando em instituições públicas e privadas, em torno da construção de casos de usuários que provocam impasses ao funcionamento institucional.

Seus fundamentos estão sustentados tanto pela pesquisa anterior da

UFMG sobre a Avaliação dos Caps em Minas Gerais7 quanto pelo projeto [12]

1

Agradecemos as contribuições de outros membros do grupo de pesquisa: Maria Fernanda Machado, Giselle Moreira e Maxsander Almeida, que com suas pontuações, também fizeram parte da construção desse texto. 2 Psicanalista. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFMG. Docente do Programa de Pós Graduação em Psicologia/Estudos Psicanalíticos dessa mesma universidade. Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 3 Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. É professora adjunta IV da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/ PUC Minas. Atualmente é Coordenadora de Pesquisa e Pós-graduação da Unidade São Gabriel/PUC Minas e coordenadora do Curso de Especialização da PUC Minas: Saúde Mental: práxis, clínica e política. 4 Graduada em Psicologia pela UFMG, bolsista do CNPq. 5 Graduado em Psicologia pela UFMG, bolsista de apoio técnico do CNPq. 6 A pesquisa é coordenada conjuntamente pelas Profas. Dras. Angela Vorcaro (UFMG) e Aline A. Mendes (PUCMINAS). 7 Cf. “Investigação dos efeitos discursivos da capsização: avaliação qualitativa do modelo CAPS, coordenado por Antônio Teixeira, relatório final, Belo Horizonte, UFMG, 2009, 189 ps.”

extensionista da PUCMINAS Tecendo a rede8, ambos desenvolvendo métodos de construção de casos clínicos em equipes. Tais trabalhos apresentaram modalidades de incidência do discurso psicanalítico em equipamentos sociais por meio de uma prática clínica exterior ao consultório, ou seja, junto a “equipes formais” de trabalho de assistência pública e privada, compreendendo serviços de saúde mental e de educação. Com o título de equipe formal nomeamos os profissionais definidos burocraticamente para compor um serviço, salientando que a distribuição e pertinência destes em cada serviço tem aspectos contingentes que conjugam muitos fatores institucionais, a ponto de o termo equipe servir apenas para designar os profissionais, em geral de diferentes campos, lotados em um mesmo local de trabalho. Na perspectiva da construção do caso clínico ressaltamos que, em franca oposição a qualquer oferta de ação terapêutica ou mesmo de supervisões supostamente detentoras do saber sobre a condução do caso, esta pesquisa interinstitucional privilegia apenas o saber já praticado pelos profissionais do serviço, aí incluído o que tais saberes problematizam, em relação a um caso, por meio de seus agentes. Desse lugar, não nos propomos a doutrinar equipes ensinando qualquer teoria, mas, como veremos, nos restringimos a colocar em jogo algo do cerne do método de construção psicanalítica, para lidar com o que produz mal-entendido, discrepância, fadiga ou angústia em equipes formais institucionais, quando se atingem os confins dos saberes condutores de práticas de saúde. Vale abordar a relação da proposta de construção do caso com a história da saúde no Brasil. A partir dos anos 1980 estabeleceu-se, no Brasil, uma orientação para a atenção [13] democrática à saúde, referida ao ideal de atender a todos. Essa nova política gestora das práticas de saúde mental no Brasil produziu a reforma que criou o Sistema único de saúde (SUS). Um clamor oriundo do período político anterior em que uma ditadura estava em vigência e testemunhava o profundo fracasso da saúde pública, tornava urgente o ideal de saúde como direito de todo cidadão. À premência desse ideal associou-se o debate insistente no plano da causalidade do padecimento psíquico humano, em que se disputava a prevalência entre os saberes neurobiológicos, históricos, culturais, subjetivos e existenciais, a partir de horizontes 8

Tecendo a rede: uma proposta de formação no campo da saúde mental a partir da articulação entre universidade, serviço e comunidade em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPSi), Coordenado por Aline Mendes, Belo Horizonte, Pucminas, 2011, pp. 360-374.

teóricos distintos, todos incluídos como avatares do pathos subjetivo. Assim, a universalização dos serviços de atenção à saúde assimilou outro ideal democrático referido, dessa vez, à relação de poder e ao gerenciamento de atividades dos profissionais que compunham as chamadas equipes formais multidisciplinares, visando à democratização dos saberes. Na medida em que a psiquiatria não tinha em relação à saúde pública a mesma hegemonia das demais áreas da medicina (que por isso orientam o poder decisório nos serviços respectivos), o que aí se colocou em jogo foram os saberes instituídos e veiculados em cada universo profissional (psicologia, serviço social, terapia ocupacional, enfermagem, etc), numa expectativa de composição harmônica de saberes de cada clínico destas equipes. Desse ângulo, idealizou-se o somatório dos distintos saberes oriundos de cada prática profissional como mote das chamadas equipes multiprofissionais ou multidisciplinares. O acúmulo de saberes seria capaz não apenas de promover o sucesso dos tratamentos, mas também de responder por uma gestão democrática (VORCARO, 1999). Enquanto a política de universalização da saúde pública continua ainda hoje a estar impedida devido à insuficiência de verbas governamentais que garantiriam proporcionalidade entre demanda da população e oferta de serviços, o acúmulo dos saberes sustentadores das práticas profissionais evidencia sua impotência a responder a esse ideal, pois, em cada profissional [14] e, especialmente desdobradas nas diversas disciplinas que compõem ramos da psiquiatria e da psicologia, os conceitos fundamentais situam-se em universos epistemológicos diferentes. Por isso, nos termos de Pereira (2000), essa acumulação de saberes resultou em confusões terminológicas e em incompreensões de graus diversos. Desconsiderando a virulência das diferenças entre as bases epistemológicas, tal ideia de universalização dos saberes por acumulação, se coloca em risco a cada vez em que os clínicos provindos de horizontes teóricos distintos são tensionados pela condição de singularidade de cada um dos pacientes, que resistem a propostas terapêuticas padronizadas. Manifestações subjetivas de um usuário desconcertam um aparato aparentemente organizado, constrangendo a ilusão de que a contratação de uma composição de ações de diferentes disciplinas, figuradas no que se convencionou chamar “equipe multiprofissional”, teria ali vigência plena. É necessário esclarecer como consideramos esse ponto, que instiga nossa prática e apresenta o incômodo do qual partimos para a clínica da construção do caso como uma prática clínica possível em equipes formais. Trata-se do princípio de que qualquer

domínio de saber científico leva em conta os fatos que perturbam seu sistema, pois mesmo oculto pelo que o próprio discurso até então formaliza, esses fatos incidem e interrogam seus agentes, que assim chegam a equacioná-los. Entretanto, o que não é do sistema de um discurso mantém-se em exterioridade e é inabordável por não ser capturável por aquela forma de discurso, nem como questão. É exterior ao que os agentes do discurso consideram ser seu universo e, por isso, é inapreensível por este discurso (LACAN,1973-4,inédito). Considerando essa constatação, o espaço a que nos propomos na clínica da construção do caso em equipes formais institucionalizadas é o de uma exterioridade íntima (LACAN, 1959-60/1988), ou seja, uma localização própria para distinguir vácuos de saber, ou seja, vãos lacunares entre os saberes dos agentes, onde se deposita o que, do caso, [15] escapa aos saberes instituídos e pode ser tomado como ponto de manifestação da singularidade do sujeito em relação a generalidade de sua categorização pelos discursos estabelecidos. A proposta de clínica da construção visa a localizar e recolher – para assim abordar – o que se mantém inaudível pela equipe por estar excluído do discurso interdisciplinar em que esta se edifica. Partimos da concepção de Foucault (1986) de que o saber clínico não contempla critérios formais da ciência, a despeito de ser uma prática discursiva regular. Tal prática apenas organiza um conjunto de observações empíricas, tentativas e resultados, prescrições terapêuticas e regulamentações institucionais. Portanto, sem condições de preconizar uma conduta terapêutica, só o recolhimento de suas ocorrências perturbadoras discerníveis por seus detalhes podem estabelecer direções de tratamento do caso. Ao constituir obstáculo à decisão interpretativa imediata dos clínicos que testemunham essas ocorrências, pode-se problematizar a estabilidade de conceitos já categorizados, e ainda, seus modos de apropriação, para impedir que a clínica se limite a um dispositivo de exclusão do desconhecido (VORCARO, 1999). Consideramos como necessário o enfrentamento da dialética singular/universal nos equipamentos clínicos para que os diferentes campos disciplinares presentes nas práticas de seus agentes se coloquem a trabalho. Interrogar a experiência e deslocar questões a partir do esforço de transmissão do detalhe daquilo que, do caso, emperra o mecanismo disciplinar, franqueia a aposta de constituir os meios para que a singularidade do caso possa ser apreendida numa re-elaboração do saber clínico. A partir do método da construção esperamos considerar o caso clínico como constituindo

um método próprio de inscrição de um sujeito no laço social, conferindo dignidade à estranheza e à resistência que a clínica impõe à compreensão imediata. O conceito de repetição desvendado pela psicanálise fundamenta a hipótese da incidência de uma presença insistente e determinante no modo de orientação do sujeito em relação ao [16] laço social, que é, entretanto, desconhecida por ele e inapreensível ao Outro. Esse saber do qual não se sabe escapa, por isso, à dimensão simbólica, sendo discernido por Lacan (1972-3/1982) como incidência do real, de impossível apreensão, que podemos, no máximo, bordejar por meio da linguagem. Entretanto, é nesse saber insabido e insistente que podemos localizar o que o sujeito tem de mais próprio. Devido à incidência da dimensão imaginária sobre o limite do impossível do sujeito, este impossível é facilmente tomado pelo campo social (aí incluída a equipe formal institucional) como causa de impotência, pois amplia o que há de impossível até tornála inabordável. A redução simbólica da sensação de impotência até sua borda de impossibilidade efetiva poderá produzir efeitos de concernimento, seja sobre o sujeito do caso clínico, seja sobre a equipe que o constrói. Viganó (1999) esclarece a importância de ultrapassar essa impotência para sustentar a manutenção de um vazio de saber que franqueia a qualquer um a passagem à posição de trabalho de um analisante. Assim, em vez de trabalharmos com o paciente supondo o que podemos fazer por ele, nossa interrogação deve dirigir-se ao que ele vai fazer para sair daqui. Isto porque, para o autor, a construção do caso clínico deve restaurar o furo da falta que causa o desejo, sendo o discurso mesmo do psicanalista. Desse modo, o objeto do paciente é destinado ao interventor, em posição do sujeito barrado. Assim, a construção do caso é trabalho que pode trazer luz à relação do sujeito com o seu Outro, tendendo a construir o diagnóstico de discurso naquele momento da construção, e não o diagnóstico do sujeito. A construção serve para operar o deslocamento do sujeito dentro do discurso, em que é preciso reativar a relação do sujeito com o Outro, de tal forma que essa relação possa se sustentar na realidade. Viganó (1999) salienta ainda o corte transversal operado pela construção em todas as categorias profissionais. Na medida em que ocupar o lugar de membro do grupo não é garantido [17] pelo papel profissional, mas implica nos sujeitos se arriscarem a dizer, tal corte é o que ativa o desejo, evita segregações profissionais, pois a partilha do esforço comum em produzir a verdade do paciente recruta uma transferência de trabalho.

Construir um caso clínico em saúde mental é operar no tempo de compreender, o que convoca a atenção aos movimentos, palavras, repetições do paciente que possam dizer de sua relação com a instituição. O vazio de saber a ser suportado não é vazio da assistência, mas um vazio de saber que possa acolher a palavra do paciente para orientar a condução do caso. Esse ponto de orientação pode permitir à equipe tomar uma decisão. Esta outra lógica do caso foi nomeada por Viganó (1999) como autoridade clínica que, ao vir à luz, produz uma torção subjetiva naqueles que o acompanham, franqueando ao caso um lugar inédito, permitindo mudanças de posicionamento na equipe e seus efeitos na evolução clínica do paciente. Assim, a construção do caso restaura o furo no simbólico que o usuário põe em causa sendo, como tempo de compreender, o preliminar lógico ao ato clínico. Quando o jogo que articula paciente e instituição já se estabilizou, a construção do caso atua evidenciando o golpe que fez cair o caso, mostrando um furo no saber instrumental. As bases para o ato clínico são construídas por meio do rastreamento do trabalho que o usuário realiza com seu sintoma, para que uma intervenção aí incida e possa, a posteriori, ser localizada e diferenciada. O saber depreendido é posterior à construção, sendo extraído do paciente para permitir a imposição de uma decisão. Por isso, importa re-sublinhar que a construção do caso prescinde do sujeito suposto saber, diferindo por isso da supervisão, que é constituída a partir da suposição prévia do expert. Estes fundamentos da psicanálise orientam a clínica da construção do caso. Apostamos, portanto, na potência do método psicanalítico como modalidade de orientação de uma prática que sustenta a tensão singular/universal, partindo da escuta dos agentes da clínica, em instituições. Ao praticar junto a [18] equipes formais a clínica da construção mantemos interrogada a questão de ser possível construir uma forma de transmissão da psicanálise capaz de incidir na direção do reconhecimento do saber/nãosaber e da responsividade9 de técnicos ao seu saber-não-saber. Ao contrário de buscar uma “psicanalização” de instituições, a clínica da construção do caso espera fazer com que o espaço institucional possa reconhecer a modalidade pela qual o usuário responde singularmente ao serviço. Essa proposta de trabalho se restringe a tomar a construção em psicanálise como ensinamento de método para estabelecer um dispositivo de construção do caso clínico junto a agentes 9

O termo responsividade, cunhado pela psicanalista Cláudia Fernandes, é aqui utilizado na acepção de possibilidade de deixar-se afetar, concernir-se e responder. Pretende diferenciar-se de responsabilidade, no ponto em que esse termo denota culpabilidade.

responsáveis pelo tratamento de pacientes, que estão embaraçados em seu savoir-faire, em serviços de saúde mental. Problematizando a prática de supervisão nos serviços de saúde mental, Zenoni (2012) considera a transmissão possível da psicanálise em um trabalho com equipes de diferentes profissionais, em que nem todos, ou muito poucos são iniciados na psicanálise. Afinal, o objetivo não é o de fazer da prática na instituição uma habilitação de um exercício da psicanálise, mas o de elaborar consequências da clínica psicanalítica para essa prática. A assertiva fundamental do autor é que os fenômenos do caso, que chamamos singulares, podem estabelecer uma forma paradigmática de solução. Nesse sentido, ao contrário de tomar tais fenômenos como um déficit, eles devem ser encarados a partir de um impossível da estrutura em que todos são confrontados: o real do ser falante. Aí, o foco é a causa que o faz necessitar da instituição e não o objetivo que leva o paciente a procurá-la para tratar-se. Assim, cada interventor pode ser intimado a achar a modalidade de intervenção que lhe convém sem que seja dedutível da disciplina em que se habilitou. O que faz apelo aos [19] profissionais não se restringe a um saber aprendido. Trata-se de interrogar-se sobre o uso que o paciente pode fazer dessa instituição em seu percurso. (ZENONI, 2012). A

transformação

da

supervisão

clínica

em

reunião

clínica

permite

desespecialização, pois todos estão convocados a um mesmo real. Por isso, a construção do caso clínico permite um outro encontro com o saber, a partir do impasse do que aparecia como intratável, que não é aquele da aplicação mecânica, mas de uma elaboração viva; um outro encontro com o saber que supõe uma certa transferência de trabalho. Portanto, não é enquanto analista que um operador intervém, mas enquanto analisante, na medida em que a elaboração desse saber se efetua em torno de um não saber central. Assim, também Stevens (2007) considera que não se pode acrescentar a psicanálise na equipe formal como mais uma especialidade. Ao contrário, trata-se de uma “desespecialização” em sua articulação com a construção do caso. Ele salienta que o psicanalista não é um especialista do sujeito ou do gozo. Ele é “desespecializante” na medida em que fura a instituição com a construção do caso clínico que atravessa o ponto de vista de todos os especialistas. Não é a síntese do caso a partir das várias especialidades o que se busca nas reuniões clínicas, mas sim as invenções do sujeito, ou seja, trata-se da clínica do caso.

2 – Dos procedimentos 2.1. Apresentação da proposta ao serviço Trata-se do primeiro passo para a instalação do dispositivo de clínica da construção, consistindo em nos dirigir ao equipamento (ou serviço institucional) a partir de nosso vínculo à universidade, para oferecer a possibilidade de abordar os casos que a equipe considera de difícil manejo. Para tanto, apresentamos a função do estagiário (nomeado nesse contexto como AT, como veremos) que acompanhará o caso escolhido [20] pela equipe e a necessidade de estabelecermos duas reuniões com a equipe envolvida no caso, os coordenadores e o estagiário, com intervalo entre 1 e 2 meses, a depender da situação. 2.2. Solicitação do serviço É o serviço que deve solicitar a construção do caso, a partir do recolhimento do que faz caso nessa instituição. É a partir daí que nos reunimos com os gerentes da equipe, com vistas a nomear o caso a ser construído, garantir o aval dos membros da equipe para acionar o dispositivo e estabelecer seus procedimentos, em que nos comprometemos (os responsáveis pela construção e toda a equipe concernida no caso) a nos reunirmos duas vezes para discutir o caso e seus impasses a partir da exposição do material coletado pelo AT. 2.3. A entrada da função AT no serviço Um estagiário recém-formado ou prestes a formar-se, em função de apoio técnico ou em atividade de iniciação científica (em ambos os casos financiado por agências governamentais de fomento) passa a freqüentar sistematicamente o espaço do serviço. Sua função é a de sistematizar os registros escritos do caso escolhido pela equipe para a construção, bem como reunir-se com cada profissional que atua neste caso, com o intuito de recolher as principais impressões e/ou justificativas diagnósticas e terapêuticas. O estagiário (AT) poderá também – quando assim decidido junto à equipe – acompanhar o usuário em atividades internas ou fora da instituição (escola, cursos profissionalizantes, etc) e entrevistar profissionais exteriores à instituição (professores, outros agentes) e mesmo familiares. Assim, será sistematizado o conteúdo do material a ser, posteriormente, apresentado para a equipe, quando da primeira reunião de construção, diante da equipe e juntamente com a coordenação da pesquisa.

Fora da instituição, o AT participa das reuniões semanais do grupo de pesquisa, lugar onde [21] este aprendiz é supervisionado pelos coordenadores e onde registra o trabalho efetuado neste encontro. O tecido discursivo recolhido pelo estagiário será apresentado nesta reunião. Trata-se do registro do histórico, do prontuário e dos dizeres dos elementos da equipe formal, ouvidos durante o período em que o estagiário permaneceu no espaço institucional. Utilizando recursos visuais e projeção, o estagiário mostra os recortes destacados do que circula com relação ao saber sobre o caso e seus embaraços. Salienta-se a importância desse agente – que nomeamos AT – estar em posição exterior em relação à equipe e, ao mesmo tempo, estando em condições de formalizar as questões que o caso lhe suscita. Por outro lado, a posição provocante de interrogação e de problematização deve poder ser sustentada, e por isso, alçamos aquele que seria considerado desprovido de experiência – o estagiário universitário – como tal agente. Afinal, é legitimamente que, como aprendiz, o estagiário questiona e a partir de uma posição menos confrontatória à equipe, que assim se obriga a esclarecê-lo quanto às concepções com as quais trabalha e quanto às decisões sobre as direções dadas ao tratamento. O estagiário tem outro fórum – a supervisão dos coordenadores – para conduzir suas questões e torná-las formuláveis. Por isso ele está em posição de aprendiz, mas advertido. Obviamente esperamos, ao alçar o estagiário a essa importante função, que o discurso universitário que sustenta o aluno possa ultrapassar a mera reprodução do saber de um mestre. Nesta função de agente fomentador da construção, nomeamos o estagiário como AT – À Trabalho – ou seja, aquele que, ao se colocar a trabalho, convoca os demais a concernirem-se no caso. Em seu caráter provocador, o AT introduz seu desejo de saber como causa da construção, para que os saberes diversos e suas interrogações se manifestem por meio de seus agentes institucionais. A condição de estagiário como aquele que quer aprender, mas que está avisado, advertido quanto à lógica do inconsciente, engendra a aposta no saber [22] do paciente que, a despeito de ser desconhecido de todos, o orienta. Portanto, a suposição de saber localiza-se no paciente, movimentando a equipe em direção a outro modo de saber que exigirá a formulação tanto dos próprios pontos de embaraço como das respostas do sujeito a tais embaraços. A apresentação com este material que reapresenta o caso para a equipe, convoca, cada um dos demais participantes do serviço a aderir à construção para completar, divergir ou concordar, enfim, falar sobre o que, desse paciente, faz caso.

Assim rasgando o saber anterior, passa a fomentar-se, um saber que implica os profissionais. 2.4. Primeira construção clínica Trata-se, como vimos acima, da formalização da construção do caso clínico. Por isso, nosso direcionamento é tributário das práticas de presentation de malades de Lacan (PORGE, 1996, 2009), bem como daquelas nomeadas como conversação clínica (MILLER, 2005; LACADEÉ, 1999/2000), mesmo que delas difiram em seus objetivos e procedimentos. Compomos uma sessão clínica com aqueles que estão concernidos no diagnóstico, no tratamento e no cotidiano de um paciente considerado de difícil abordagem, ou seja, os que participam do caso, em seus diversos modos de manejo específicos. A sessão clínica é orientada pela consideração de que podemos bordear o que o caso traz de real procedendo a uma recuperação daquele caso, a partir da recordação dos vários técnicos. Dessa forma, trata-se de favorecer uma construção, induzindo os técnicos a recordar o que experimentaram e efetivaram em relação ao paciente, considerando ainda o que insiste em surpreender. Assim, são os traços do que a experiência deixou que se tenta recuperar, localizando e demarcando o que causa estranheza – elevando-a ao estatuto de algo recalcado que se expõe à elocubração do saber. A própria equipe ensaiará completar o que foi esquecido a partir dos traços presentes. [23] Assim, a construção do caso prescinde da presença física do paciente, para trazer à luz o que ele singulariza. Esperamos que algo de real do encontro do usuário com cada componente da equipe formal se presentifique como discurso do Outro, composto sem que seu autor esteja presente a não ser pelo legado que ele deixou na própria equipe. Ao falar sobre os impasses do caso, os membros da equipe presente fornecem com seu corpo e sua fala o material para o alfabeto do discurso (LACAN 1958-9/2002, VORCARO et al, 2015, MENDES, 2014). Sem a presença do paciente, compondo a construção, sustenta-se “uma submissão completa, ainda que advertida, às posições propriamente subjetivas do sujeito” (LACAN,1998, p.540). A coordenação da sessão clínica é sustentada pelo AT. Presentes, mas mantendo-se à parte de qualquer discurso doutrinário, os coordenadores da pesquisa, avalizam a aposta e a transferência de trabalho. Assim, longe dos coordenadores se posicionarem a partir de um lugar de

saber, estão em silêncio, mas advertidos quanto a necessária distinção e focalização dos impasses colocados no dizer dos profissionais, e o ponto em que eles encobrem o sujeito do caso. 2.5. Segunda Construção Tendo transcrito, analisado e debatido o conteúdo da primeira construção, acrescido da continuidade do acompanhamento do caso e da equipe, uma nova sessão clínica é estabelecida, repetindo o procedimento da primeira. Com um intervalo suficiente para a reconstrução do texto que relata o caso a partir dos pontos opacos e das respostas do paciente depois da primeira sessão clínica, uma nova escrita do caso é apresentada e posta em discussão. Posicionados como aprendizes da experiência dos profissionais da equipe formal com o paciente, o AT e os coordenadores da pesquisa solicitam esclarecimentos que desdobrem a consistência das narrativas. Especialmente naquelas voltadas a justificar procedimentos, tenta-se localizar em reação a que [24] elas se desencadeiam, de modo a recrutar o testemunho de cada participante sobre as posições do sujeito, em situações que eles julgam significativas de seus enigmas. Assim, alguém que estava em posição de mero assistente toma a palavra, seja para relatar o efeito do sujeito sobre ele ou para esclarecer a lógica que motivou uma ação clínica relatada anteriormente, estabelecendo as distintas posições (clínico/paciente/assistentes), que, desse modo, circulam entre os presentes. O lugar do paciente, a casa vazia nesse jogo de posições, produz efeitos inusitados: desde uma identificação e interpretação imaginária de suas razões, até um acontecimento que recupera algo até então desconsiderado por ser aparentemente banal mas que enfim, ao ser posto em jogo, delimita simbolicamente um ponto de real. Ao trazer um relato histórico do caso por meio do AT, adiantamos uma aposta que permite a cada um dos presentes fazer a sua, nessa sincronia de lugares que cada um pode ocupar: palavra dirigida a um e destinada a outro, objeto em nome do qual se fala quando se dirige a alguém. Temperando a urgência em problematizar com a lentidão que a escuta exige para tornar possível um diálogo entre vários, um efeito de pressa pode emergir da fala de alguém, ou de um assentimento de alguns. Diversas pessoas em três posições diferentes, alternadas, onde algumas facetas que visam à posição do paciente se deixam notar, inventam novas possibilidades de localizá-lo. Surpresas da linguagem podem manifestar a presença de sujeito, onde a urgência em falar gera a

superação da impotência, para delimitar um ponto de impossibilidade, a partir do qual uma nova direção de tratamento pode ser suposta.

3 – Sobre o método Além de recrutar alguns dos fundamentos da psicanálise, em especial o fundamento real da repetição, o método da clínica de construção do caso convoca distintos aportes, desde a concepção freudiana de construção e da presentation de malades de Lacan. Entretanto, são grandes as contribuições [25] da ideia de conversação clínica, por terem operado e sistematizado muitas das práticas de construção. Faremos, a seguir, um breve percurso para estabelecer a relação entre o dispositivo aqui proposto e as considerações para com os meios de encenação que a estrutura do chiste coloca em jogo para articulá-la a sua idéia de construção e ainda, a leitura lacaniana do dispositivo do Banquete, de Platão em sua articulação à presentation clinique. 3.1.Do chiste à construção Ao se deter na consideração freudiana do chiste como processo social, Lacan (1957-8/1999) nos ensina a considerar a modalidade privilegiada pela qual algo de desconhecido é transmitido. Para Freud, o processo psíquico implicado na construção do chiste (ou tirada espirituosa) só se conclui quando encontra a comunicação da ideia (FREUD, 1905/1975). A primeira pessoa do chiste é o sujeito que o produz, e a segunda pessoa é aquele a quem é absolutamente necessário comunicá-lo. Portanto, não existe chiste solitário: “A tirada espirituosa é solidária do Outro que está encarregado de autenticá-la” (LACAN, 1957-8/1999, p.102). Não há prazer na tirada espirituosa sem esse outro, que também está ali como sujeito. Enquanto no processo cômico uma pessoa constata na outra algo de cômico, “essa segunda pessoa, no caso dos chistes, não corresponde à pessoa que é objeto, mas à terceira pessoa”(FREUD, 1905/1975, p. 167), por estar preso à condição de inteligibilidade: “pode utilizar apenas a possível distorção no inconsciente, através da condensação e do deslocamento, até o ponto em que possa ser reconstruído pela compreensão da terceira pessoa”(FREUD, 1905/1975, p. 204). No chiste, o que é comunicado pelo sujeito surpreende, pois articula-se astuciosamente com a dimensão do pouco-sentido. O sujeito demanda um sentido mais

além, interrogando e intimando o valor verdadeiro posto em jogo no dito: que quer dizer? O chiste acontece na medida em que, sendo [26] atingido por ele do lugar do Outro, o outro acusa seu recebimento e reage a ele, autenticando-o. Assim, esses dois sujeitos correlatos em cena, se dirigem e se referem um ao outro por intermédio da cadeia significante, terceiro termo, terceira pessoa quase anônima, o Outro, ou seja, a paróquia comum aos eles, que conheceria a multiplicidade de combinações significantes empilhadas e comprimidas na linguagem em estado latente. O Outro se constitui como um filtro que põe em ordem e cria obstáculos naquilo que pode ser aceito ou simplesmente ouvido. Entretanto, “o pequeno outro... participa da possibilidade da tirada espirituosa, mas é no interior da resistência do sujeito... que se fará ouvir algo que repercute muito mais longe, e que faz com que a tirada espirituosa vá ressoar no inconsciente” (LACAN, 1957-8/1999, p.125). Em distintos trabalhos, Freud aborda a construção como uma operação necessária para a aproximação ao núcleo recalcado inconsciente. A despeito de só tê-la formalizado em 1937, ele recorre a tal operação desde que tratou da técnica de produção dos chistes (1905/1975), mas também quando abordou o método presente no delírio (1937/1975, p. 302-3), e ainda a tarefa necessária ao analisante para atingir sua fantasia inconsciente (1918/2010, p.303) ou a sistematização da cena primária a partir da soma de indícios (2010/1918, p.70). Enfim, em 1937, Freud afirma que a construção é, de longe, a descrição mais apropriada da tarefa do analista. Distinguida da tarefa do analisante de recordar, Freud afirma que a tarefa do analista é a de construir, induzindo o analisante a recordar o que foi experimentado e recalcado, tecendo a trama do que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si. Podemos disso concluir que Freud atribui a seu relato o que causaria o retorno do recalcado. No agir alternado do paciente sobre construções do analista não são as asserções conscientes que importam, mas aquilo que indiretamente vem à tona por meio das lembranças de pormenores ultraclaros adjacentes ao tema. A construção do analista ativaria o impulso ascendente do recalcado que [27] se desloca da resistência conduzindo traços de memória de objetos adjacentes. Esse acesso à lembrança “ultraclara” de conexões que a construção recupera, produz a convicção do analisante quanto à construção, substituindo a impossível captura plena do recalcado. A eficácia da construção erguida se deve à recuperação de um fragmento de experiência perdida (FREUD, 1975/1937).

Como vimos, tanto quanto a construção, também no chiste, o que é comunicado surpreende porque algo de perdido na língua vem assim articular-se ao pouco-sentido, intimando um valor verdadeiro porque autenticado pelo reconhecimento desse fragmento perdido na língua comum a eles. 3.2. O banquete e a presentation de malades de J. Lacan Parece-nos ainda esclarecedor dos fundamentos da construção do caso, retomar a idéia presente no Banquete, de Platão, relativa à função da apresentação coletiva de um tema embaraçoso em grupo, conforme Lacan (1960-1/1992) o aborda, evidenciando o que essa formação de grupo coloca em jogo. Trata-se, nesse banquete, de uma cerimônia com regras, um tipo de rito, de jogo de sociedade, no que podemos reconhecer algo das presentations lacanianas de pacientes e mesmo das conversações clínicas. Com o estabelecimento prévio de um regulamento que orienta a sobriedade (abstenção de bebida) e o comprometimento de que cada um com sua cota de contribuição no discurso pautado sobre o tema em jogo no debate, cada um se arrisca diante de: “todos os outros, aqueles que, em seu conjunto, seu corpo, seu concílio, parecem dar o maior peso possível ao que se pode chamar de o tribunal do Outro” (LACAN, 1960-1/1992, p.177). É nesse cenário que tem lugar o inusitado, onde uma revelação irá se confrontar com o que ela, mesmo ao iluminar, mantém de secreto. Vale lembrar que no caso do banquete enfocado por Platão, ocorre a irrupção do alcoolizado Alcibíades em uma confissão pública de sua relação com Sócrates. Este o retorque apontando que [28] a revelação a que Alcibíades acabara de se entregar comportava um algo de secreto, visava a um outro auditor, ali presente. A exemplo desse simpósio, na clínica da construção do caso, todos estão em posição de analisante, pois tendo diante de si um fragmento de sua e da de outras modalidades de articulação ao paciente, pode agir sobre um dos fragmentos, construindo outro fragmento a partir do material lembrado por si e por outros. Nessa alternância da recapitulação do agir de cada um sobre o caso, algo pode se decantar para além do dito e de asserções conscientes diretas. Pormenores e fragmentos indiretos serão recolhidos e poderão se reordenar permitindo uma constatação do ensinamento do caso. Esta constatação surgirá por meio da aparição de uma outra lógica que não a de uma suposta democracia de saberes da equipe, mas da convicção do tratamento que o próprio sujeito se propicia em seus modos privilegiados de endereçamento.

Uma antiga prática médica de apresentação “didática” do paciente para uma demonstração teórica a alunos foi radicalmente transformada por Lacan sustentando, por mais de trinta anos, o dispositivo da cena clínica diante de uma assistência. Ao contrário de uma demonstração de saber, Lacan se dispunha a “uma submissão completa, ainda que advertida, às posições propriamente subjetivas do sujeito” (LACAN,1957-58/1998, p.540). Esta submissão advertida trata de recolher o que se escuta, da posição de aprendiz, sem entretanto encobrir os impasses discursivos que uma dialogia entre “eus imaginários” colocaria em jogo (LACAN, 1955-6/1988, p.68), franqueando a afirmação de um “ensino dos pacientes nas apresentações de Lacan” (MILLER,1996, p.146). Essa posição declarada por Lacan diante do paciente é elemento da lógica do dispositivo criado por Lacan da presentation des malades10 e sistematizado posteriormente por alguns de seus assistentes, já que o próprio Lacan apenas fomentou que seus alunos teorizassem sobre o tema. [29] Assim, especificando que os casos apresentados a Lacan eram pacientes que colocavam problemas particulares, ou que eram particularmente demostrativos, Dorey (1996) explica o dispositivo em termos de testemunho, apreendido sob três incidências diferentes: o testemunho do paciente de si mesmo com sua história e a problemática que subtende e organiza seu modo de funcionamento. O testemunho do analista, pelo estilo com que conduz a entrevista, atesta sua relação com o inconsciente e com a teoria, num risco assumido de, em pouco tempo, construir uma ideia e o compromisso de transmitir algo à altura de sua tarefa (PORGE, 1996). O público silencioso testemunha sua receptividade e investimento. Ao se fazer testemunha desse drama, o analista o revela, dando-lhe existência e permitindo ao sujeito se reconhecer autor/ator. Os que escutam introduzem um outro olhar que, mediando e obstaculizando a parte imaginária da troca entre paciente e analista, impõe-se como representante da ordem simbólica. Há uma dimensão transferencial de intensidade particular nessa combinatória diferenciada, implicando cada um em diferentes graus e modos. A presentation des malades inscreve-se na categoria de chiste definida por Freud como aquela que se dirige à certeza de nosso próprio conhecimento e não a uma pessoa ou situação (PORGE,1985/1996). As condições estruturais da apresentação e de seu efeito sobre a assistência define uma cena teatralizada demarcada pela linha invisível 10

O termo em francês é mantido porque informa a presença do paciente da cena, o que difere sobremaneira da apresentação deste por outros, situação que pretendemos aqui aprofundar.

que separa o público que participa da criação da cena como limite não representável “mas que tem tanta realidade quanto uma corrente de cem mil volts” (PORGE, 1985/1996, p.31-2).

Limitando a onipotência de quem interroga, atenua, para o

paciente, a onisciência do interlocutor, encarnando um terceiro que se interpõe na relação dual. Como no chiste, o público será lugar de realização de uma intenção, a partir de algo tomado pela palavra, sem controle prévio de nenhum dos interlocutores. Sua função principal é, para Porge, a de reconhecimento do dizer como acontecimento teatralizado, sem função de [30] decifração, entretanto ligados pelo tempo. “A teatralização é o escrito na fala” (PORGE, 1985/1996, p.32). Assim, ao contrário da lógica da exaustão do quadro clínico, a lógica da apresentação de pacientes é uma lógica do jogo que introduz uma aposta, e nisso ela se assemelha ao dispositivo grego do banquete. O apresentador adianta a aposta para permitir ao paciente uma aposta, em que participam os tempos de cada um. O instante de ver distingue o que se troca nos olhares entre apresentador, apresentado e público. O tempo para compreender é definido pela duração da apresentação. A sincronia dos três lugares instaura o corte da cena, na medida em que cada um age sobre o outro simultaneamente. “É a sincronia da clivagem da mensagem na qual a mesma palavra é dirigida a um e destinada a outro ou ainda entre a fala que dirijo e o objeto em nome do qual falo” (PORGE, 1985/1996, p.32). Sob formas diversas, a pressa do dizer como ato emergirá a cada vez que aconteça esse jogo. Porge (2009) a nomeou como a clínica das apresentações de paciente, pelo que nos ensina quanto aos movimentos que provocam numa equipe.

Com Lacan as

presentations des malades se transformaram num modo de acolhida clínica original, em que “diversas pessoas estão situadas em diferentes posições. Elas escutam ao mesmo tempo um discurso, cada qual em sua distinção [façon] ou sua “extinção [effaçon]” (PORGE, 2009, p.224). É devido a essa pluralidade de lugares de escuta que os ditos do paciente podem refratar-se, abrindo lacunas antes desapercebidas. Desse lugar, a transmissão da clínica pode ter sincronia ao que é transmitido, tornando a transmissão uma parte integrante da clínica. (PORGE, 2009) Todos se submetem às posições do paciente visando a posição do sujeito, e não a um eu imaginário. Assim submetem-se também às surpresas da linguagem que, quando aparecem, manifestam a presença do sujeito, sem que ele seja localizável em alguém, mesmo que ele esteja representado nas passagens discursivas entre os participantes.

[31] A audiência que vê e escuta em silêncio configura a cena distinguindo-se dela para estabelecer um espaço simbólico regido por regras onde espera-se

um

encontro com o inédito. Nem o paciente, o clínico ou os assistentes sabem de antemão o que a cena permitirá recolher: é uma aposta. O público assistente funciona como um terceiro, um Outro: lugar onde o chiste se realiza. Como destinatário o público está também, por vezes, em posição de analista. Seu silêncio expectante do diálogo convoca os dois a falar. Entretanto, também, todos funcionam como público na medida em que é desse lugar que recolhem a transmissão de um intransmissível em ato, antes incapturável pela transmissão apenas simbólica. Os três lugares entrevistador/paciente/público são enodados na medida em que de cada posição incide-se sobre a outra como agente, fazendo efeitos simultâneos uns sobre os outros, de modo a poder produzir um encurralamento do real. Há um além do saber ao menos esperado, suposto. Um quarto termo, o real como efeito comum a todos. O real imiscuído nesse dispositivo é, assim, constringido. O dispositivo cria a função do tempo em que a criação da urgência tem a função de gerar uma ultrapassagem por via da fala, como diz Lacan (1953/1998). Efeitos do público sobre os que dialogam e sobre o público mostram que o dispositivo pode produzir efeitos, que por vezes aparecem diretamente numa melhora do paciente, podem ser indiretos, comparecendo nas maneiras de escutá-lo no serviço em que ocorreu a apresentação. Dessa forma, podemos pensar a apresentação de pacientes como ato analítico, onde comparece uma afinidade de estrutura entre o dispositivo e seu objeto: “um dispositivo afim à loucura, no qual a transmissão da clínica é síncrona ao momento da construção de seu objeto.” (PORGE, 2009, p. 235). Na construção do caso em instituições, nossa aposta é que a disposição desses três lugares que circulam entre os presentes ora como analisante, ora como analista, ora como Outro, ou seja, podendo ser ocupados por todos e sendo regido [32] pelas regras propostas, agenciarão efeitos, sem que se saiba, de antemão, o que será recolhido. É nesse jogo de lugares enodados simultaneamente uns sobre os outros, que aposta-se na produção de um encurralamento do real. Na composição dessa cena, está suposto que algo inominado, mas esperado, pode ser suposto: um quarto termo como efeito comum a todos: algo de real do sujeito, que já causara efeitos até então indizíveis nos partícipes, mas que agora se decanta, construindo seu objeto ao transmitir a clínica (PORGE, 2009).

A certeza do próprio conhecimento sustenta as narrativas de cada um, na resposta a uma interrogação, diante de um público que delimita a cena, a cria como limite não representável que, entretanto, configura a realidade, convocando uma teatralização do dizer. Encarnando o terceiro que se interpõe na relação entre o narrador e aquele que o interpela, os auditores reduzem os efeitos imaginários dessa dialogia, reconhecendo um dizer não antecipável.

4 – Conclusão: o efeito-equipe na clínica da construção do caso Freud introduz a noção de construção questionando e legitimando o saber extraído da experiência analítica, sempre incompleto. Considerando que, como um arqueólogo, o analista só conta com fragmentos e restos, Freud (1937/1975) distingue “fragmentos de verdade histórica”: algo (traços, fragmentos) que a criança viu e ouviu quando ainda mal conseguia articular palavra. Ele ressalta, assim, a presença de inscrições que resistem a entrar no simbólico. Diferentemente do critério científico de refutabilidade, Freud escolhe situar a verdade de uma construção no que ela pode produzir como efeito na fala do paciente. (LACAN, 1958). Além da composição de elementos da fala do paciente ser importante em uma construção, a decantação do fragmento de verdade histórica é fundamental, pois, é seu efeito sobre o paciente que a amplifica, obtendo valor de verdade. Assim, o [33] detalhe que o paciente recorta ao desdobrar a decantação desses elementos numa lembrança que confina lateralmente com ela, remissões imediatas a restos do que foi visto ou ouvido, proveniente do Outro, é esta ressonância que decide sobre a pertinência da construção, muito além de uma decisão do registro da consciência. Assim, a construção nos conduz não para um sentido possível, mas para um ponto de opacidade no simbólico, cingindo um buraco no saber. Portanto, o que Freud introduz como construções em análise nos remetem a um real, que não podendo ser sabido, convoca-nos a uma construção. Nos termos de Mendes (2014), esse encontro com a evidência-opacidade dos restos decantados a partir da leitura de Construções em Análise, permitiu elaborar o achado de que uma equipe não existe previamente a um caso, ao contrário, é a construção do caso que faz existir uma equipe. Implicando os profissionais na construção do caso clínico uma equipe pode existir, fazendo valer que ali há sujeitos concernidos pelo caso.

Diferenciamos, portanto a equipe formal, ou seja, os profissionais burocraticamente definidos na composição de um serviço, do que entendemos por efeito-equipe. Na medida em que consideramos que, ao demarcar o não saber pode-se ir ao encontro com o saber (ZENONI, 2014), sustentamos a aposta em uma equipe concernida. Essa aposta exige a proposição de que a equipe não existe previamente, a despeito de sua denominação formal como equipe. A construção do caso clínico pode produzir pontualmente um efeito-equipe, em que um ou mais profissionais se orientem pelo concernimento que a clínica do caso produziu. Portanto, a aposta de trabalho é a de que a clínica da construção do caso permita fazer uma objeção à perspectiva massificadora, atravessando o que convencionalmente é nomeado como “equipes”. Assim, em vez de situarmos a equipe no agrupamento de diferentes profissionais designados para operarem num mesmo lugar e com os mesmos casos, [34] introduzimos uma prática cernida pela opacidade do caso, para assim polimerizar distintas leituras que comprometem os praticantes, concernindo-os no que faz caso. Apenas nesse instante, pode-se localizar o que nomeamos como efeito equipe. A incidência desses restos sobre os profissionais pode ter a consequência de recrutá-los à urgência de inventar modos de intervenção. Pontual, mas não sem importantes conseqüências quanto à responsividade dos sujeitos implicados, o efeito equipe pode desdobrar-se em modos de concernimento singulares, mas jamais garantidos de antemão. A aposta na possibilidade de cernir algo do até então suposto inapreensível é o único investimento mobilizador do trabalho de construção. Portanto, o efeito-equipe não é o estabelecimento de uma coesão em torno do caso, tampouco que todos os profissionais se impliquem. Trata-se de que, ao serem tocados cada um em seu modo pelo impasse, um ou mais profissionais, se torne(m) um aprendiz do caso, o que reorienta suas intervenções que antes eram dirigidas pelos significantes mestres normatizantes da instituição. Diferindo também da supervisão constituída a partir da suposição do expert, a construção prescinde do sujeito suposto saber. Trata-se de construir as bases para o ato clínico: rastrear o trabalho que o usuário realiza com seu sintoma para que uma intervenção aí incida. Esta poderá – a posteriori – ser localizada e diferenciada. O saber depreendido é, nesse caso, fruto da construção, posterior à ela: é o saber extraído do paciente que permite a imposição de uma decisão.

Nessa perspectiva, as reações do paciente ao trabalho terapêutico até então estabelecido são tomadas como enigma que “faz caso” e exige construção, na medida em que faz cair a certeza de que a aplicação do saber, ou da soma de saberes legitimados cientificamente, seria suficiente para abarcar a especificidade daquele sujeito. Faz caso também porque interroga e recruta os técnicos a retornar a ele, a retomá-lo e, assim, a construí-lo a partir desse furo que ele causou na rede de saber que tentava abarcá-lo – mas que foi ele que fisgou a todos. [35] Sobre esse ponto vale lembrar que o caso não se limita ao paciente. O caso inclui o paciente e seu tratamento pela equipe (PINTO, 2010). Esse aspecto nos mostra que é quando a capacidade operatória de um saber se esgarça que mobiliza aqueles que estão concernidos numa equipe de tratamento formalizada institucionalmente. O modo de manter essa mobilização é evitando o esquecimento ou o tamponamento imediato desse furo com algum saber-clichê. Tal afetamento efetuado pelo vão que separa o saber do fazer, produz geralmente uma impressão partilhada de impotência, neutralizando a invenção de práticas. Entretanto, o recrutamento simbólico que a construção do caso implica, pode reduzir tal impotência imaginária ao que dela resta de impossibilidade real, liberando a invenção de atos clínicos possíveis. Por isso, destacamos a importância da sustentação da interrogação viva e a objetivamos por meio da função de um agente (AT) que perseguirá essa interrogação para recolher, articular e problematizar junto a cada profissional do serviço as estratégias até então levadas a cabo e o ponto de fracasso que elas atingiram. Fazendo do legado de Freud o ensinamento clínico da psicanálise, Lacan (1977) reafirma que clínica psicanalítica não é assegurada e que ela deve consistir em interrogarmos não somente a psicanálise, mas os analistas para que eles prestem conta do que sua prática tem de arriscada. Por isso, fazemos da construção do caso clínico uma aposta de que a responsividade de um grupo de profissionais em relação a um sujeito, pode decantar o ponto desde o qual ele se posiciona singularmente.

[36] Referências

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