A clonagem na mídia e na visão de estudantes do ensino médio

July 13, 2017 | Autor: Acr Amorim | Categoria: Jornalismo, Jornalismo Científico
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A clonagem na mídia e na visão de estudantes do ensino médio Carolina Ramkrapes1 Enio Rodrigo Barbosa2 , Flavia Natércia da Silva Medeiros3 e Antonio Carlos Rodrigues Amorim4. Resumo Este artigo se propõe a analisar semelhanças e diferenças entre as informações sobre clonagem e células-tronco veiculadas na mídia impressa e as percepções que estudantes do ensino médio expressaram em duas sessões de grupo focal realizadas numa escola pública da cidade de Campinas. Como acontece na mídia, a discussão sobre células-tronco pareceu caminhar por um fio tênue, uma “corda bamba” entre a necessidade de proteger a vida humana e as promessas médicas de regeneração, cura ou imortalidade. Já na discussão da clonagem, os alunos abordaram dimensões como a social e a afetiva, pouco exploradas pela mídia. O fato de as biotecnologias entrarem no currículo escolar contextualizadas como ‘tema polêmico’ pode explicar as tendências das tomadas de decisões pelos estudantes. Introdução As biotecnologias ditas “modernas” nasceram na década de 1970, durante a qual foram predominantemente encaradas como áreas de pesquisa promissoras. Exceção feita aos anos de controvérsia sobre o DNA recombinante e o nascimento do primeiro bebê de proveta, na cobertura midiática também prevaleceram aspectos positivos ligados a aplicações das biotecnologias (Nisbet & Lewenstein, 2002; Grabner et al., 2001). Essa tendência se estendeu à década seguinte, na qual diversos produtos de finalidade terapêutica foram lançados por empresas de biotecnologia. Na segunda metade da década de 1990, porém, a situação mudou com a introdução da soja Roundup Ready na Europa (1996) e o anúncio do nascimento da ovelha Dolly (1997), clone genético de uma célula adulta – considerado primeiro feito biotecnológico a suscitar uma cobertura global e simultânea–. A partir de então, algumas das aplicações das biotecnologias têm sido objeto de duradouras controvérsias públicas, dentre elas a clonagem reprodutiva, a clonagem terapêutica e as células-tronco – as duas últimas introduzidas no noticiário e no debate público como aplicações potenciais e benéficas da transferência nuclear de célula somática–. Essas controvérsias tendem a girar em torno de três aspectos principais: regulação, segurança e estatuto moral (Grabner et al., 2001) Depois do anúncio por duas equipes do cultivo bem-sucedido de células-tronco embrionárias humanas, esses artefatos biotecnológicos atraíram atenção crescente por parte da imprensa e do público. No mundo, um pico de atenção em torno delas foi atingido em 2001, outro em 2004. No Brasil, elas também ganharam proeminência dentre as biotecnologias no debate sobre a Lei de Biossegurança em 2004 e em 2005, quando a lei foi sancionada e a fraude do veterinário coreano Woo-suk Hwang descoberta. Como acontece em relação a outros frutos das biotecnologias – por exemplo, os transgênicos –, a cobertura da clonagem e das células-tronco tende a ser polarizada, oscilando entre promessas de revolução ou milagre e pesadelos: exércitos formados por clones de Hitler, cura de doenças, pessoas criadas como depositórios de peças sobressalentes, instrumentalização da vida humana. 1

Laboratório Avançado de Estudos em Jornalismo (Labjor)/Unicamp. Laboratório Avançado de Estudos em Jornalismo (Labjor)/Unicamp. 3 Laboratório Avançado de Estudos em Jornalismo (Labjor)/Unicamp. 4 Faculdade de Educação e Laboratório Avançado de Estudos em Jornalismo (Labjor)/Unicamp. 2

Mas a mídia não esgota as fontes a informar e contribuir para moldar essas discussões. Além da TV, dos jornais, das revistas, do rádio e da internet, as percepções que o público geral têm das biotecnologias se nutrem de outras fontes. Espaços como a escola, as faculdades, os hospitais e o próprio seio da família também contribuem com informações, imagens, analogias, metáforas que se articulam com as formações e visões de mundo de cada pessoa. Este artigo se propõe a analisar semelhanças e diferenças entre as informações veiculadas na mídia impressa e as percepções que estudantes do ensino médio expressaram em duas sessões de grupo focal realizadas numa escola pública da cidade de Campinas. Metodologia O presente estudo faz parte de uma das ações do projeto de intervenção e pesquisa “Biotecnologias de Rua5” (CNPq), desenvolvido por uma equipe multidisciplinar de artistas e pesquisadores ligados ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e à Faculdade de Educação (FE) da Unicamp desde novembro de 2006. Envolve duas etapas. A primeira consiste numa análise de conteúdo preliminar da cobertura pela imprensa brasileira da clonagem e das célulastronco. Foram coletadas matérias publicadas entre 1997 e 2007 nos seguintes jornais: O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo. A segunda consiste numa análise de duas sessões de grupo focal com estudantes do ensino médio. Para conhecer de modo mais aprofundado algumas das percepções sobre a clonagem e as células-tronco expressas pelo público geral, foram realizadas duas sessões de grupo focal com estudantes do ensino médio no mês de novembro de 2008. Um grupo era do ensino regular e outro de Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Escola Estadual Hilton Federici, Vila Santa Isabel, em Barão Geraldo – distrito da cidade de Campinas, São Paulo–. No grupo focal desenvolvido com o ensino regular, estiveram presentes sete alunos; no grupo focal desenvolvido com EJA, estiveram presentes seis alunos. As sessões duraram em média uma hora cada e, para o registro, foram feitas gravação em vídeo e anotações pelos pesquisadores envolvidos. Os participantes foram escolhidos pela coordenadora pedagógica da escola, orientada a não selecionar os alunos por desempenho escolar, e sim por disposição para se colocar numa situação de debate com seus colegas. Resultados Na imprensa, não há condenação das biotecnologias per se. Elas tendem a ser apresentadas de modo positivo, no Brasil e no mundo, exceção feita às aplicações controversas, como os organismos transgênicos e a clonagem reprodutiva. No entanto, entre os estudantes prevaleceu um senso negativo atrelado à tecnologia, ao “biotecnológico”, que em parte pode resultar da própria introdução das biotecnologias no ensino médio sob a rubrica dos “temas polêmicos” e da profusão de bioprodutos no mercado. O “biológico” para eles parece se confundir com o “biotecnológico”. 5

Esse projeto (Nº do processo - 553572/2006-7. Edital MCT/CNPq n. 12/2006 – Difusão e Popularização da C&T) é coordenado por Carlos Alberto Vogt. Participa do projeto um coletivo vinculado ao Labjor e à Faculdade de Educação da Unicamp: Carolina Cantarino, Flavia Natércia, Germana Barata, Susana Oliveira Dias (Pesquisadoras do Labjor-Unicamp); Elenise Cristina Pires de Andrade, Antonio Carlos Amorim, Wenceslao Machado de Oliveira Júnior, Alik Wunder e Gustavo Torrezan (FE/Unicamp); Thiago La Torre e Fernanda Pestana (Bolsistas PIBIC); André Malavazzi, Glauco Roberto, Carolina Ramkrapes, Sheyla Macedo (Bolsistas SAE-Unicamp).

O sobressalto moral gerado por Dolly ― na verdade, o horror à criação de “réplicas” de seres humanos ― não impediu que fossem anunciados e defendidos na arena midiática por cientistas, autoridades governamentais e representantes da indústria biotecnológica os benefícios potenciais da clonagem. Primeiramente, por meio de vagas promessas, que foram paulatinamente ganhando nome e substância: avanços na medicina, progresso científico, revolução; extensão da vida, aumento da produtividade; animais feitos biofábricas; manipulação genética do gado; xenotransplante; ressurreição de espécies extintas; produção de animais idênticos ou modelos animais transgênicos para pesquisa; cura de doenças hoje incuráveis; criação de bancos de células individuais para regeneração de tecidos. Dentre os estudantes do ensino médio, essas promessas de benefício parecem ter surtido pouco efeito. Eles rejeitaram ou questionaram a utilidade da maioria das aplicações da clonagem, mesmo em relação a animais. Na imprensa, foram apresentadas sucessivas distinções entre o que seria correto/ legítimo/moral pesquisar e aplicar: clonagem animal x clonagem humana; clonagem reprodutiva x clonagem terapêutica; clonagem animal para pesquisa ou a indústria x clonagem para salvar animais de extinção; clonagem humana narcisista x clonagem para casais estéreis; células-tronco adultas. A clonagem como “cura” para esterilidade sensibilizou um dos alunos – caindo no terreno do “direito a ter um filho próprio”– e a maioria achou correto usar a clonagem para salvar animais da extinção, uma vez que sua extinção foi provocada pelo homem. Já a clonagem “reprodutiva” para fins narcisistas é rejeitada por todos. Apesar da rejeição, os estudantes não defenderam a proibição, e sim o controle da pesquisa com clonagem. Quanto ao uso da técnica para criar células-tronco, os alunos se mostraram divididos entre a instrumentalização da vida/ industrialização da natureza e a promessa médica, tensão presente também na cobertura do tema pela mídia. Como acontece na mídia, a discussão sobre células-tronco pareceu caminhar por um fio tênue, uma “corda bamba” entre a necessidade de destruir embriões para retirar células-tronco embrionárias e as promessas médicas de regeneração, cura ou imortalidade. Essa tensão é pervasiva, perpassando também o ensino de conteúdos de biologia pela escola e diversas manifestações sociais e culturais da contemporaneidade. Mas, uma vez também que os estudantes vêem a concepção como início da vida – convergência entre a crença católica e a “junção dos gametas” das aulas de genética–, a destruição dos embriões fala mais alto que as promessas de cura. No início da cobertura, foi enfatizada a semelhança entre os clones e os doadores de núcleo; a clonagem seria uma espécie de xerox biotecnológico para fabricar cópias de entes vivos. O próprio termo clone, usado no lugar de “clone genético”, foi escolhido para enfatizar a grandeza do feito. Os cientistas também são ambivalentes quando tratam do tema, ora chamando atenção para a semelhança, ora ressaltando as diferenças. No entanto, parte do mal-estar com a clonagem vem justamente dessa semelhança tão amiúde explorada em filmes, peças, livros, refletindo o horror ao “duplo”, anterior à clonagem. Então, com o tempo a cobertura passou a enfatizar o papel do ambiente sobre o desenvolvimento. Nas aulas de genética, são afirmadas a unicidade de cada pessoa (ninguém tem o mesmo DNA) e a diferença entre genótipo e fenótipo; no ensino da ecologia, não somente a natureza ganha proeminência, mas também a diversidade de seres vivos adquire o estatuto de um valor. Para os participantes do grupo focal em questão, clones seriam iguais na aparência, mas não na personalidade ou no comportamento. No plano afetivo, não haveria “substituição” da pessoa clonada, e sim a “lembrança” desta, mas

essa semelhança abre a possibilidade de doações de sangue, medula, órgãos. A criação de seres humanos como depositórios de peças sobressalentes para usufruto de outros causa repulsa entre os participantes. Para ilustrar, um dos alunos evocou o filme A ilha, apresentado por um dos professores como atividade escolar. Ao se referirem aos clones e ao uso feito deles, os alunos se mostram contrários a uma prática individualista como esta. Discussão Um sentido geral negativo associado às intervenções humanas sobre a ordem natural se depreende das falas dos alunos. Segundo Luna (2007), a ênfase na natureza como base da realidade e fundamento epistêmico para questões de ordem social surgiu no Iluminismo e, “associada ao desenvolvimento biotecnológico do final do século XX, levanta um paradoxo. Se o dualismo cartesiano esvaziara o corpo de qualidades morais, a emergência de entes de laboratório (embriões, DNA, gametas) vem cercada do esforço de definir seu estatuto moral a partir de atributos biológicos.” Com isso, valores transcendentes como a dignidade humana se deslocam para o genoma e para os embriões. Sobre as falas dos estudantes também pode haver influência da ecologia – com certa valorização do natural, do equilíbrio e da harmonia–, um tema transversal no currículo escolar (por meio da Educação Ambiental) e uma preocupação global devido ao fenômeno das mudanças climáticas induzidas pelo homem. Outra questão que levantaram é que tem gente demais no planeta e a clonagem humana só traria mais gente para consumir, desmatar, poluir. Diversas falas se mostraram atravessadas por uma atenção com a ecologia: uso de recursos renováveis e não-renováveis (petróleo), desperdício, poluição, contaminação, desmatamento, extinção de espécies. Para a construção dessas percepções negativas podem também concorrer outros elementos. Além do movimento ecológico e da mídia, os conhecimentos tradicionais e a cultura socialmente compartilhada por meio de livros, filmes, panfletos, conversas com colegas, amigos, parentes, debates, obras de arte, exposições (Guimarães, 2008). O participante “A” diz: “Não adianta quebrar a lei da natureza.” E “B” reforça: “Isso vai acabar virando uma indústria”, sendo que para ele a industrialização cria organismos artificiais a serem consumidos maciçamente. Os estudantes mostraram fazer distinção entre as diversas aplicações da clonagem, mesmo assim se opuseram à maioria, e não somente à clonagem reprodutiva humana. No mundo é esta aplicação que encontra forte oposição, enquanto em geral as biotecnologias médicas ou “vermelhas” costumam ser apoiadas (Einsiedel, 2000; Gaskell et al. 2000). Segundo Bauer (2005, 2002), controvérsias sobre tecnologias são marcadas por disputas por distinções. No Reino Unido, Bauer observou que a distinção entre as biotecnologias vermelhas e verdes, cultivada pelos jornais de elite, surtiu, com o tempo, efeito sobre as percepções do público, tornando-o mais disposto a aceitar as aplicações médicas ou vermelhas. No caso da clonagem, uma série delas foi introduzida no noticiário como tentativa de estabelecimento de fronteiras entre o que é lícito ou legítimo fazer e o que não é. Dentre os estudantes, essas distinções parecem não ter surtido o efeito esperado, porque até as aplicações da clonagem apresentadas como legítimas, desejáveis ou úteis são rejeitadas, como a clonagem animal (em oposição à humana) e a clonagem terapêutica (que se contrapõe à reprodutiva). Em relação à clonagem terapêutica e às células-tronco, os estudantes se opõem devido à necessidade de destruir embriões para obter células-tronco embrionárias,

sejam eles produzidos para esse fim, sejam eles embriões excedentes de clínicas de reprodução assistida. Na Europa, o Eurobarômetro constatou no final dos anos 1990 que a clonagem de células humanas, mesmo sendo considerada arriscada, era vista pelo público como útil e moralmente aceitável; assim, os europeus em geral apoiavam o investimento nesse tipo de pesquisa (Gaskell et al., 2001). Mesmo tendo rejeitado a maioria das aplicações da clonagem, os estudantes não propuseram a proibição das pesquisas, o que está em consonância com os resultados de outros estudos. Massarani e Moreira (2005), por meio de questionários e grupos focais feitos com estudantes do ensino médio, constataram que muitos eram favoráveis a restrições à própria atividade científica, enquanto outros acreditavam que somente algumas aplicações deveriam ser controladas. Referências bibliográficas Bauer, Martin W. Distinguishing red and green biotechnology: cultivation effects of the elite press. International Journal of Public Opinion Research, vol.17, n. 1, pp. 63-89, 2005. Bauer, Martin W. Controversial medical and agri-food biotechnology: a cultivation analysis. Public Understanding of Science, vol. 11, n. 2, pp. 93-111, 2002 Einsiedel, E. Cloning and its discontents: a Canadian perspective. Nature Biotechnology, vol. 18, pp. 943-944, Sep. 2000. Gaskell, George and Bauer, Martin. Biotechnology in the years of controversy: a social scientific perspective. In: Gaskell, George and Bauer, Martin W. (eds.) Biotechnology 1996-1999: the years of controversy. Science Museum Press, London, 2001, pp. 314. Gaskell, George et al. 2000. Biotechnology and the European public. Nature Biotechnology, vol. 18, pp. 935-938, Sep. 2000. Grabner, Petra et al. Biopolitical diversity: the challenge of multilevel policy-making. In: Gaskell, George and Bauer, Martin W. (eds.) Biotechnology 1996-1999: the years of controversy. Science Museum Press, London, 2001, pp. 15-34. Gaskell, George et al. In the public eye: representations of biotechnology in Europe. In: Gaskell, George and Bauer, Martin W. (eds.) Biotechnology 1996-1999: the years of controversy. Science Museum Press, London, 2001, pp. 53-79. Guimarães, Leandro Belinaso. A importância da história e da cultura nas leituras da natureza. Inter-Ação, vol. 33, n. 1, 2008. Luna, Naara. A personalização do embrião humano: da transcendência na biologia. Mana, vol. 13, n. 2, p. 411-440, 2007. Massarani, Luisa & Moreira, Ildeu. Attitudes towards genetics: a case study among Brazilian high school students. Public Understanding of Science, vol. 14, pp. 201-212, 2005. Nisbet, Matthew and Lewenstein, Bruce. Biotechnology and the American Media: the policy process and the elite press, 1970 to 1999.

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