A cognição corpórea como continuidade crítica das ciências cognitivas T L Silva Neto - tese de Doutorado

Share Embed


Descrição do Produto

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Thompson Lemos da Silva Neto

A cognição corpórea como continuidade crítica das ciências cognitivas

Rio de Janeiro 2015

ii

Thompson Lemos da Silva Neto

A cognição corpórea como continuidade crítica das ciências cognitivas

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Filosofia Moderna e Contemporânea.

Orientadora: Profª Drª Karla de Almeida Chediak

Rio de Janeiro 2015

iii

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A

D348a Silva Neto, Thompson Lemos da A cognição corpórea como continuidade crítica das ciências cognitivas \ Thompson Lemos da Silva Neto – 2015. 348 f. Orientadora: Karla de Almeida Chediak. Tese (Doutorado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Bibliografia. 1. 2. 3. – Sec. XX – Teses. I. Chediak, Karla de Almeida. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título. CDU 1(44) “19”

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Tese. _____________________________________ Thompson Lemos da Silva Neto

___________________________ Data

iv

Thompson Lemos da Silva Neto

A cognição corpórea como continuidade crítica das ciências cognitivas

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração: Filosofia moderna e Contemporânea. Aprovada em 06 de janeiro de 2015. Orientadora: __________________________________________ Karla de Almeida Chediak (Orientadora) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ Banca Examinadora: __________________________________________ Antonio Augusto Passos Videira Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ __________________________________________ Elika Takimoto Centro Federal de Educação Tecnológica “Celso Suckow da Fonseca” __________________________________________ Osvaldo Pessoa Jr. Universidade de São Paulo __________________________________________ Fernando Fragozo Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2015

v

DEDICATÓRIA

Ao Flávio, meu filho muito amado, que é minha principal motivação para tudo – e em especial para o (acon)tecer deste trabalho.

vi

AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, à minha orientadora, Professora Karla Chediak, pela dedicação, sabedoria e estímulo com que me apoiou neste empreendimento, dando luz à minha caminhada. Sou também extremamente grato aos outros membros da banca pela contribuição inestimável à confecção desta tese. Ao Professor Antonio Augusto Passos Videira, em especial, por me ajudar, com tanta generosidade, a compreender questões da Filosofia da Ciência fundamentais para este trabalho. À Professora Elika Takimoto expresso minha enorme gratidão por me oferecer questionamentos importantíssimos para que esta tese pudesse se concretizar, e pela disposição permanente em exigir de mim o melhor, dando sugestões que me foram essenciais. Ao Professor Fernando Fragozo devo em grande parte o enfoque escolhido para o presente trabalho, em especial no que se refere às questões decorrentes da relação entre cognição e tecnologia – pelo que sou imensamente grato. Sou também muitíssimo agradecido ao Professor Osvaldo Pessoa pela extrema paciência e dedicação com que me apresentou inúmeros questionamentos valiosos para este trabalho. Manifesto meu agradecimento a todos meus queridos companheiros do Grupo de Estudos Sociais e Conceituais de Ciência, Tecnologia e Sociedade, assim como a muitos amigos que me fizeram perseverar nesta jornada. E declaro imensa gratidão à minha família – em especial à Katia –, por todo o apoio e carinho que me deu ao longo desse caminho, que não tem fim.

vii

RESUMO SILVA NETO, Thompson Lemos da. A cognição corpórea como continuidade crítica das ciências cognitivas, 2014. 200 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,2014. Esta pesquisa se dedica a investigara orientação das ciências cognitivas denominada cognição corpórea, em sua tentativa de criar uma alternativa ao modelo lógico-proposicional, computacional, da cognição humana, através da valorização de experiências corpóreas individuais na explicação desta última. Defende-se no presente trabalho que a cognição corpórea tem buscado manter a unidade das ciências cognitivas mediante esforços ao mesmo tempo científicos e políticos, e que, assim, tem apresentado questões que afetam não apenas o campo multidisciplinar que estuda a cognição, mas também a filosofia, a cultura, as terapias, a educação e outras atividades sociais. Também se postula nesta tese que a cognição corpórea constitui um todo coeso graças à articulação de três principais frentes de pesquisa: a corpóreoenativista, a corpóreo-conceitual e a corpóreo-afetiva, e que, embora ainda seja uma corrente nova, suas teses são fortes o suficiente para gerarem consequências nas ciências da cognição e em suas aplicações. Palavras-chave: Cognição. Corpórea. Inteligência. Enação. Experiência.

viii

ABSTRACT

This research is dedicated to investigate the orientation of cognitive science called embodied cognition, in its attempt to create an alternative to propositional logic, computational, model of human cognition through the enhancement of individual body experiences in explaining the latter. It is argued in this thesis that the embodied cognition has sought to maintain the unity of the cognitive sciences through efforts at the same time scientific and political, and thus has presented issues that affect not only the multidisciplinary field that studies cognition, but also Philosophy, Culture, therapies, education, and other social activities. Also this thesis postulates that the embodied cognition constitutes a cohesive whole through the articulation of three main research fronts: enactivist, conceptual and affective and, and that, although it is still a new approach, their theses are strong enough to generate consequences in cognitive science and their applications. Key words: Cognition. Embodied. Intelligence. Enaction. Experience.

ix

LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 ...........................................................................................................................................73 Figura 2……………………………………………………………………………………………92 Figura 3……………………………………………………………………………………………93 Figura 4……………………………………………………………………………………………93 Figura 5……………………………………………………………………………………………94 Figura 6…………………………………………………………………………………………..259

x

SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1. 1.1

A GÊNESE DAS CIÊNCIAS COGNITIVAS E DO MODELO LÓGICOPROPOSICIONAL............................................................................................... A formação histórica das ciências cognitivas através da criação de um modelo unificador da cognição............................................................................

01 22 22

1.1.1.

A noção de modelo científico tal como aplicado à cognição humana....................

25

1.1.2.

Antecedentes históricos das ciências cognitivas.....................................................

38

1.1.3.

Estabelecimento institucional das ciências cognitivas como programa unificado.

51

1.1.4.

O caráter analógico do modelo lógico-proposicional.................................

76

1.2.

Descrição do modelo lógico-proposicional e suas principais utilizações nas diversas disciplinas das ciências cognitivas........................................................

82

1.2.1

O modelo lógico-proposicional na inteligência artificial......................................

82

1.2.2.

O modelo lógico-proposicional na psicologia cognitiva: o caso do processamento de informações............................................................................... Características gerais do modelo lógico-proposicional e sua aplicação nas demais disciplinas das ciências cognitivas..........................................................................................................

103

1.2.3.1.

A linguística gerativa........................................................................................

103

1.2.3.2.

Marr e os três níveis cognitivos........................................................................

110

1.2.4.

A questão da representação mental nas ciências cognitivas clássicas: a busca de uma teoria da cognição a partir do modelo lógicoproposicional...........................................................................................................

113

2.

A COGNIÇÃO CORPÓREA.............................................................................

129

2.1.

Antecedentes histórico-conceituais......................................................................

129

2.1.2.

A evolução das características da noção de sistema...............................................

138

2.1.3.

A Teoria Geral dos Sistemas e a noção de auto-organização.................................

152

2.1.4.

A noção de emergência...........................................................................................

170

2.1.5.

A noção de complexidade.......................................................................................

176

2.1.6.

Autopoiese e autonomia.........................................................................................

187

2.1.7.

A fenomenologia da percepção..............................................................................

198

2.1.8.

Linguística e psicologia..........................................................................................

204

2.2.

A orientação corpórea como conjunto integrado de abordagens da cognição

211

2.2.1.

Características gerais da cognição corpórea.............................................................

211

2.2.2.

A ontologia crítica da cognição corpórea................................................................

223

1.2.3.

91

xi

2.2.2.1.

A crítica corpórea ao objetivismo.............................................................................

223

2.2.2.2.

A crítica corpórea ao realismo estrutural..................................................................

231

2.2.2.3.

Observações finais sobre a ontologia da cognição corpórea como crítica à ontologia do cognitivismo........................................................................................

243

2.3.

A abordagem corpóreo-enativista.......................................................................

246

2.3.1.

O enativismo inicial................................................................................................

246

2.3.2.

Breves considerações sobre o enativismo contemporâneo.....................................

263

2.4.

A abordagem corpóreo-conceitual......................................................................

266

2.4.1.

A linguística e a gramática corpóreas.....................................................................

267

2.4.2.

A questão da fundamentação dos conceitos...........................................................

279

2.5.

A abordagem corpóreo-afetiva............................................................................

286

2.5.1.

Afetividade, evolução e cognição...........................................................................

286

2.5.2.

Sentimentos, emoções e a hipótese do marcador somático....................................

291

3.

A ORIENTAÇÃO CORPÓREA COMO PROJETO UNIFICADOR............

298

3.1.

A articulação conceitual-enativa.........................................................................

302

3.2.

A articulação enativo-afetiva...............................................................................

309

3.3.

A articulação conceitual-afetiva.........................................................................

311

CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................

313

REFERÊNCIAS....................................................................................................

323

1

INTRODUÇÃO Este trabalho investiga um conjunto de atividades científicas que tem se proposto a desafiar a tradição não apenas de parte da própria ciência, mas também da filosofia, e de atividades humanas por estas influenciadas. Ao desenvolver pesquisas empíricas e apresentar teorias sobre a cognição humana com forte ênfase em questões ontológicas e metafísicas, a corrente das ciências cognitivas chamada de cognição corpórea1contesta a hegemonia do ponto de vista epistemológico na abordagem dos processos de percepção, pensamento, conhecimento e ação. Uma atitude como esta pode parecer paradoxal. Afinal, a epistemologia é, em sentido lato, o estudo filosófico do conhecimento – ou do conhecer. Como se poderia admitir um estudo do conhecimento, ou da cognição, que fugisse de sua própria definição? A resposta a esta questão – ao menos como se pretende seja explorada na presente investigação – exige que se pense a epistemologia, ou os estudos sobre o conhecimento, não com base em sua definição corrente, apenas, mas considerando sua prática. Isto quer dizer, de fato, que a cognição corpórea se opõe aos modos como os estudos sobre o conhecimento e a cognição têm se dado no último século – criticando, mais especificamente, os estudos que consideram o conhecimento humano como essencialmente proposicional e representacional. Embora a cognição corpórea se dedique, preferencialmente, a promover um sistemático questionamento das ciências cognitivas tradicionais, ultrapassa frequentemente este objetivo central – o que é proposital e necessário, como será argumentado. Ao fazê-lo, abarca em suas objeções o racionalismo e as tendências filosóficas que valorizam os aspectos formais da linguagem. Entretanto, tal oposição atinge também os realismos de feição objetivista – e sua vinculação com as posturas representacionistas –, o que começa a explicar o porquê de a cognição corpórea consistir em uma crítica fundamentalmente ontológica, metafísica e materialista às tradições da epistemologia do século 20. Deste modo, percebe-se o radicalismo desta corrente das ciências cognitivas, que excede seu objetivo mais imediato, para melhor alcançá-lo.

1

Em inglês tem sido usada a expressão embodied cognition para designar a abordagem das ciências cognitivas que valoriza o papel do corpo na cognição. Dentre as traduções de embodied já feitas para o português, encontrase – para o caso da cognição –, além de “corpórea”, “incorporada” e “corporificada". Neste trabalho optou-se por não adotar o adjetivo “incorporada”, por este induzir à ideia de que a cognição possa ser pensada como algo que passa a integrar o corpo – se incorpora --, a partir de um certo momento, mas que antes poderia ser concebida como separada do corpo. Já a qualificação “corporificada” não foi escolhida por denotar algo que não constituía um corpo, mas passou a constituir a partir de um dado instante. A expressão cognição corpórea foi eleita nesta tese por ser mais capaz de traduzir, em português, a ideia da cognição como desde sempre sendo realizada com o corpo, sendo dele sempre inseparável.

2

Se, de um lado, a cognição corpórea se dedica a contestar a imagem computacional da cognição humana – de matriz eminentemente tecnológica –, de uma série de outros deixa patente que esta imagem tem raízes também na filosofia e produz efeitos no modo de pensar da sociedade. Por isso seu empreendimento se revela tão rico e intrigante, quando se consegue divisar trajetos de sua atividade não evidentes a uma apreciação mais desavisada. Indicada a questão ontológica suscitada pela cognição corpórea, não se pode deixar de tentar, ainda que no momento com brevidade, esclarecer o que seria a dimensão metafísica desta corrente científica. Como haverá ocasião de se aprofundar adiante, o que aqui se caracteriza como sendo de ordem metafísica são as posições assumidas pelos autores da cognição corpórea, em um nítido desafio ao mandamento antimetafísico do Positivismo Lógico. Mas, neste caso, tal desafio se bifurca. Se, de um ponto de vista, os cientistas de orientação corpórea admitem que seu esforço não se limita aos argumentos exclusivamente científicos – compreendidos como estritamente obedientes ao método que a tradição positivista prescreve –, de outro se rendem à sua própria tese de que nenhuma forma de conhecimento é passível de ser contida em um esquema lógico-proposicional. De certo modo, invertem a hierarquia em que o conhecimento científico seria modelo da racionalidade desejável e, assim, buscam derrubar as paredes que tão somente ocultariam, sem impedi-lo, que o conhecimento humano comum não difira em natureza do saber classificado como merecedor do status de ciência. Em outros termos, os cientistas da cognição corpórea assumem suas inclinações subjetivas como inevitáveis – o que confere, ao metafísico, teor já mesmo político. Isto porque preferem explicitar suas intenções de transformação das práticas sociais, às quais atribuem terem acolhido influências das ciências cognitivas em sua vertente original e, assim, renunciar a qualquer sonho de neutralidade. Feitas estas advertências preliminares, já cabe mais adequadamente afirmar, em suma, que o objetivo primordial desta tese é contribuir para a compreensão da construção teórica que uma determinada orientação das ciências cognitivas – aqui denominada cognição corpórea – vem realizando. Visando às intenções do presente trabalho, a cognição corpórea deve ser definida, face à sua participação no contexto das ciências cognitivas, como o conjunto de abordagens críticas aos pressupostos, conceitos e modelos da orientação cognitivista – corrente também chamada de cognitivismo ou computacionismo. A cognição corpórea expressa sua discordância do cognitivismo ao afirmar que a cognição não se reduz à mera operação de uma sequência ordenada de símbolos discretos, mas, em vez disso, consiste em um processo complexo de transformação dos seres humanos e de seu mundo, no qual são elementos

3

centrais a experiência e o corpo individuais. Esta é uma definição que se baseia na atitude dos autores da cognição corpórea no ambiente atual das ciências cognitivas. Porém, ao considerar o conteúdo particular de suas teses, a cognição corpórea se caracteriza: 1) Pela intenção em discutir qual a origem dos significados que as experiências humanas utilizam e produzem; 2) Por advogar que tais significados dependem de experiências passadas e das estruturas dos organismos individuais, julgando que estas estruturas também se modificam ao longo do tempo através da ocorrência de novas experiências que produzem novos significados – e assim por diante. Sendo desta forma, sua divergência em relação à orientação cognitivista decorre, principalmente, do fato de que, para esta última, os significados cognitivos são objetivos, literais e impessoais, e não podem, assim, depender das estruturas dos organismos que os utilizam e produzem, e tampouco de experiências individuais. No contexto desta tese, chama-se de construção teórica da cognição corpórea à articulação de conceitos, modelos, métodos de investigação e noções gerais que a constituem, entendidos na forma de uma rede de ideias que se reforçam mutuamente. Isto quer dizer que, embora cada um dos conceitos, modelos e outros elementos teóricos da cognição corpórea possa ser estudado em sua particularidade – e este tipo de estudo particular será um dos propósitos do presente trabalho –, aqui também frequentemente se necessitará invocar as relações entre tais elementos para que haja uma compreensão de seu papel e sentido geral. Tal estudo relacional e global, por outro lado, deverá contribuir também para a compreensão particular dos diversos elementos teóricos. Com a finalidade de se realizar a investigação que aqui se propõe, adota-se como ponto de partida a hipótese de que as ciências cognitivas nasceram na forma de um campo multidisciplinar graças à formulação de um modelo geral dominante – denominado nesta tese de modelo lógico-proposicional –, que permitiu a unificação dos estudos sobre a cognição mediante a colaboração de disciplinas diferentes, sob liderança da inteligência artificial e com a predominância da ideia de transformação lógica de símbolos. Tal unificação, todavia, não deve ser entendida como a constituição de uma unidade acabada, seja de objeto, seja de programa de pesquisa. Trata-se, antes, de um contínuo processo de unificação que não chega a constituir uma ciência dotada de fronteiras claras ou voltada para um objeto de estudos – no caso, a cognição humana – conclusivamente demarcado. Por outro lado, este processo de unificação deve ser avaliado através do grau de sua penetração e disseminação na sociedade.

4

Sendo assim, ao postular que as ciências cognitivas tradicionais se unificaram em torno de um dado modelo o que se deseja afirmar, mais propriamente, é que elas se fortaleceram em seu processo de unificação mediante a disseminação de seu modelo no contexto social – o que, em parte, corresponde ao seu reconhecimento pela sociedade. Através de outra perspectiva, uma das formas de evidenciar este processo unificador em torno de um modelo dominante para a cognição é justamente atentar para o modo como tem sido combatido. Vale dizer, ao recusar tal modelo em si, a orientação corpórea acaba por rechaçar teorias de diversas disciplinas, sem que necessite se referir direta e separadamente a cada uma delas. Neste curso, o que se toma como processo de unificação deve ser compreendido, sobretudo, como a influência que alguns compromissos comuns exercem em diversas atividades científicas diferentes, ou como um esforço permanente de coesão que exige atitudes colaborativas de cientistas e envolve uma relevante sustentação institucional. Porém, do embate entre o modelo unificador cognitivista e a orientação corpórea surgem algumas questões a serem enfrentadas. Aceita a suposição inicial deste trabalho, de que as ciências cognitivas tradicionais devem sua coesão ao uso de um determinado modelo geral da cognição, a primeira questão a ser examinada no confronto entre as orientações corpórea e cognitivista – por ser logicamente mais básica – é: a crítica corpórea ao cognitivismo poderia ter como consequência o enfraquecimento da coesão das ciências cognitivas, com o abalo de seu modelo fundador? Ocorre que esta questão exige a resposta a outra anterior: a cognição corpórea de fato abala o modelo dominante no cognitivismo? Caso as teses corpóreas não sejam capazes de contestar a utilização do modelo cognitivista, evidentemente deixa de ter sentido qualquer consideração acerca de seu papel no enfraquecimento das ciências cognitivas como todo coeso. Ou a crítica não é forte o suficiente para ameaçar o processo unificador anterior? Ou, ainda: independentemente da eficácia da crítica corpórea, no sentido de enfraquecer o paradigma cognitivista, que proposta de unificação apresentam os autores da cognição corpórea para o que consideram serem as ciências cognitivas? Mas destas decorrem ainda outras questões. A crítica realizada pela cognição corpórea ao cognitivismo viria acompanhada, implícita ou explicitamente, de novos instrumentos de unificação multidisciplinar deste campo de estudos? Estes supostos instrumentos novos tomariam ainda a forma de um modelo dominante? A crítica e as argumentações da orientação corpórea ainda se fariam a partir do interior de um campo científico coeso, que assim pretende se manter? Ou, por fim: são as próprias ciências cognitivas que buscam se renovar, para prosseguir seu projeto multidisciplinar, ou o alegado

5

enfraquecimento de seu modelo principal seria parte de um processo de dissolução de tal projeto, provocado quer interior ou exteriormente? Ainda que não possa apresentar respostas claras e definitivas a estas indagações, haja vista que a orientação corpórea é uma tendência não suficientemente sedimentada e investigada, sugere-se aqui que já podem ser identificadas algumas tendências, que apontam para uma nova forma de unificação das ciências cognitivas em sua guinada corpórea. Reiterando a advertência de que a unificação das ciências cognitivas consistiria antes num processo do que na formação de uma totalidade acabada, advoga-se que, malgrado numerosas divergências entre si e a falta de um direcionamento unívoco, os cientistas cognitivos e filósofos de orientação corpórea ainda procuram uma atuação unitária, sobretudo através de suas posturas ontológico-políticas. Embora não se possa afirmar se esta busca terá sucesso, ela já se mostra suficientemente intensa, difundida e estabelecida para justificar uma investigação que acompanhe seus passos – independentemente de seu destino futuro. Em resumo: a hipótese que, neste trabalho, busca responder a todas estas questões é a de que a cognição corpórea já constitui hoje uma continuidade crítica das ciências cognitivas, com um distinguível caráter de unificação. Além disso, mesmo que não chegue a constituir um novo paradigma, e ainda que não se possa prognosticar qual será sua importância no futuro, a cognição corpórea já se estabelece como uma forte vertente das ciências cognitivas, produzindo efeitos também no ambiente social. Para favorecer tanto a suposição fundamental sobre a coesão inicial das ciências cognitivas, quanto à hipótese de resposta às questões acima formuladas, se fará uma análise do desenvolvimento histórico da construção teórica das ciências cognitivas, procedendo-se a um exame das principais questões e problemas filosóficos envolvidos. Contudo, dado seu caráter de apreciação geral da orientação corpórea como um movimento crítico, esta tese se debruçará sobre as questões conceituais desta corrente de forma menos aprofundada, sem se deter, por exemplo, em controvérsias mais detalhadas. Alternativamente, aquelas discussões cujo valor para a investigação aqui desenvolvida for detectado serão ao menos indicadas. Ademais, se precisarão avaliar também as controvérsias quanto ao seu poder de enfraquecer as hipóteses que aqui serão adotadas. Retomando-se agora o sentido da crítica que elabora, ressalte-se que a perspectiva corpórea afirma que conceber a cognição através do modelo computacional – ou, como aqui será preferencialmente denominado, modelo lógico-proposicional – conduz a limitações. Para a cognição corpórea, deve ser dada importância primordial aos elementos que o cognitivismo teria insistido em eliminar da cognição, tendo como parâmetro sua imagem lógico-

6

proposicional. Este entendimento se origina de pesquisas sucedidas especialmente a partir da década de 1970. Os cientistas de orientação corpórea das ciências cognitivas sustentam ter descoberto que, diferentemente do que preconiza o modelo lógico-proposicional: a) Os seres vivos não funcionam como máquinas – que têm por característica não serem capazes de se transformarem a si mesmas –; mas, ao contrário se autoproduzem e autotransformam continuamente para se adaptarem ao ambiente, sendo o processo cognitivo parte desta atividade vital e, portanto, também uma atividade de transformação material, corpórea, e não apenas simbólica ou mecânica; b) Os corpos, os ambientes e os contextos sociais produzem na cognição significados inexatos, flexíveis, implícitos e não conscientes, que não cabem completamente em formalizações abstratas, lógicas ou matemáticas; e c) Os conceitos são produzidos também com as emoções e os sentimentos, as diferenças individuais dos corpos e as experiências fundamentais na geração dos significados imanentes, o que se opõe a qualquer imagem padronizadora e transcendente da cognição e a toda concepção de mente e corpo como sendo substâncias distintas ou separadas. Estas alegações decorreram de resultados de pesquisas empíricas como as exemplificadas a seguir: 1) O conceito de autopoiese, criado por Humberto Maturana e Francisco Varela (MATURANA & VARELA, 1974) para responder a indagações sobre a natureza dos processos vitais, desafiou profundamente o modelo lógico-proposicional da cognição, ao defender que os seres vivos são sistemas que se auto modificam e autoproduzem continuamente, para garantir sua sobrevivência, diferenciando-se e promovendo continuamente trocas de substâncias e energia em acoplamento com o ambiente. Nesta abordagem anti-mecanicista, sistemas cognitivos não são simples processos mecânicos passivos, baseados nas relações fixas entre informações (input) e comportamento (output), mas sistemas operacionalmente fechados, em que dos processos vitais se exige que sejam capazes de transformar a si mesmos -- ao contrário do que ocorre com as máquinas, que serviram de imagem capital para o modelo lógico-proposicional. Com isso, recusa-se a noção ortodoxa da cognição controlada por mecanismos externos, que corresponde ao princípio de heteronomia presente nas ciências cognitivas tradicionais. Caracterizada pela ideia de autonomia, a cognição passa a ser compreendida como parte dos processos internos de auto-organização e autoprodução dos seres vivos. Reforçando a ideia de autonomia, a cognição corpórea acrescenta a noção de homeostasia que, a partir das pesquisas de Claude Bernard (BERNARD,

7

1879) e Walter Cannon (CANNON, 1932), defende que os seres vivos mantêm seus processos vitais de acordo com parâmetros de sobrevivência. Isto, segundo António Damásio (DAMÁSIO, 2011 [2009]), inclui o próprio raciocínio e a consciência humanos, como processos essencialmente orgânicos e vinculados à sobrevivência individual e da espécie. 2) Descobertas científicas têm reforçado a noção de percepção corpórea, que concebe as imagens que dão significado à cognição não como representações do mundo na forma de ideias simbólicas abstratas – como defende o modelo lógico-proposicional – e sim como processos complexos nos quais os sentidos não são isolados entre si e nem da ação sensório-motora. Um caso característico é o do experimento de Paul Bach y Rita (BACH Y RITA et al, 1969), de “substituição tátil da visão”, no qual imagens de uma câmara de vídeo geraram estímulos na pele de cegos, e os padrões produzidos somente foram identificados como “visuais” pelos indivíduos a partir de movimentos realizados por eles, direcionando a câmara com a cabeça, as mãos e o corpo. Assim, os significados nasceriam da percepção, por parte do sujeito, daquilo que ocorre no seu corpo, de modo global e interativo, e não de inputs proporcionados por informações já de antemão presentes e prontas no mundo. Dito alternativamente, as informações a serem conhecidas seriam produzidas também com intervenção das características do organismo como um todo, e graças à qualidade da experiência corpórea; 3) Outra importante hipótese empírica na cognição corpórea é a do marcador somático, apresentada por António Damásio (DAMÁSIO, 2004 [1994]; 1996). Segundo ele e sua equipe os marcadores-somáticos decorrem de sentimentos gerados a partir de emoções. Essas emoções e sentimentos são continuamente vinculados, pela aprendizagem, à previsão de resultados futuros de decisões, com base na marca afetiva que experiências passadas deixaram em nossos corpos. Assim, ao invés de as decisões humanas serem produzidas pela avaliação computacional de opções de ação, supostamente disponibilizadas em nossa memória como se fossem informações abstratas formalizadas simbolicamente, elas decorrem de marcas emocionais, cenários corpóreos já vividos e redisponibilizados organicamente, que são comparados, no momento de decidir, com os cenários novos com que os organismos se depara. 4) O também neurocientista Gerald Edelman advertiu, com base em suas pesquisas, sobre dois pontos, que alertam para graves limitações do modelo lógico-proposicional: o desenvolvimento do cérebro na história do indivíduo é acompanhado de grande variabilidade, o que dificulta sua comparação com o hardware de um computador; e

8

os sinais que o mundo oferece à cognição não são inequívocos como devem ser os sinais de entrada de um computador, cujos softwares exigem definições exatas (GRECO, 2001, p. 75). Isto é, a variabilidade do cérebro e a imprecisão dos significados seriam características inevitáveis da cognição humana, o que reduz seriamente as aplicações do modelo computacional da cognição. Quanto ao método de investigação empregado neste trabalho, é preciso destacar duas características. A primeira diz respeito ao fato de compreender as orientações cognitivista e corpórea como partes de um contexto e, além disso, inseparáveis uma da outra. Isto significa que não se ambiciona aqui definir uma imagem das ciências cognitivas clássicas, ou do modelo lógicoproposicional, isolada do contexto de suas diferenças para com a orientação corpórea, desprezando o fato de que vêm sendo alvo de críticas. O presente intuito, em vez disso, é identificar que características das ciências cognitivas tradicionais, em conjunto, constituem o foco principal das objeções a elas apresentadas pela orientação corpórea, de tal modo que se possa compreender o que justifica estas objeções serem extensivas a cada uma das disciplinas que integram aquele conjunto. Dito de maneira alternativa: assim como a orientação corpórea, em grande parte, deve ser compreendida como uma reação ao cognitivismo presente em diversas disciplinas, este será aqui definido prioritariamente em função desta reação. No mesmo sentido, o que se chama aqui de modelo lógico-proposicional não deve ser compreendido como uma suposta formulação pura do cognitivismo, mas como uma imagem que emerge da crítica que é feita a este último pela cognição corpórea. A segunda característica concerne às partes internas da orientação corpórea, às quais se atribui complementaridade mútua. Quanto a este ponto, o propósito da tese é demonstrar que a unidade da orientação corpórea é constituída pela articulação de três principais abordagens identificáveis, que recebem contribuições de diversas disciplinas, e que são consideravelmente profundas e radicais na valorização e reconceituação do corpo na cognição, sendo por este motivo mais cabalmente adversárias do cognitivismo: •

Corpóreo-enativista: voltada especialmente à inseparabilidade de percepção e ação, sujeito e objeto, vida e cognição, através da ideia de enação – com ênfase em processos evolutivos;



Corpóreo-conceitual: que se dedica predominantemente ao caráter corpóreoexperiencial da formação dos conceitos – com ênfase em processos linguísticos;

9



Corpóreo-afetiva: que se volta prioritariamente ao papel das emoções e dos sentimentos como atividades corpóreo-experienciais da cognição – com ênfase na integração fisiológica entre cérebro e corpo.

Para defender a unidade teórica da cognição corpórea, serão propostas, também na qualidade de hipóteses, articulações que estas três abordagens principais possuem entre si, assim como pressupostos e motivações de ordem ontológica e política que elas demonstram compartilhar. As construções teóricas que cada uma das abordagens realiza se fortalecem quando compreendidas em associação com as desenvolvidas pelas outras, o que deve ser avaliado em consonância com o fato de que elas possuem propósitos ontológico-políticos convergentes. Por meio da associação das três principais abordagens acima reportadas, bem como de conexões e confluências que se aventa ocorrerem entre elas, se defende neste trabalho que a orientação corpórea das ciências cognitivas tem se distinguido por evidenciar três dimensões basilares para a cognição, que designariam mais rigorosamente esta última como corpórea: a) A dimensão ontológica, baseada na noção da cognição como codeterminação entre indivíduo e mundo; b) A dimensão vital e evolutiva, apoiada na hipótese de que a cognição consiste em um processo de biorregulação do ser humano, fundamental para a sua sobrevivência; c) A dimensão temporal, proveniente da suposição de que a cognição articula, ao longo do tempo, as experiências individuais do corpo, que advêm da estrutura deste, mas também contribuem para sua transformação. Com base no que acima foi exposto, torna-se mais clara a objeção da cognição corpórea ao modelo lógico-proposicional, a partir do qual o conjunto das características individuais próprias de cada ser humano é afastado dos processos cognitivos pelas ciências cognitivas tradicionais – mas não se deixaria efetivamente eliminar. Todavia, além de formular tais críticas, a cognição corpórea se propõe a apresentar uma imagem da cognição e do ser humano que respeita a sua capacidade de autotransformação e as diferenças inevitáveis entre os indivíduos. Para tal, lança mão de instrumentos e conceitos como de emergência, complexidade e sistemas dinâmicos não lineares. Por outro lado, é ao argumentar por uma imagem de ser humano anti-mecanicista que na cognição corpórea se evidencia uma posição mais claramente política. Mas é preciso salientar que esta posição na maior parte dos casos se faz apoiar em teorias científicas. Melhor dizendo, quando os autores da cognição corpórea defendem uma nova imagem do ser humano, do pensamento, da cognição, da razão – e mesmo da realidade, inclusive a social –, o

10

fazem alegando que esta imagem decorre de achados empíricos do que chamam de “segunda geração das ciências cognitivas” 2. Porém, esta dimensão política da cognição corpórea somente se caracteriza mais nitidamente quando se evidencia sua atitude de utilizar a ciência como instrumento de transformação social. Tal fato se dá na medida em que alguns dos principais pesquisadores de orientação corpórea pretendem, por intermédio de suas afirmações de natureza empírica, mudar crenças, conceitos, modos de pensar – e, por conseguinte, comportamentos – sociais. Mais: isto é frequentemente acompanhado, na orientação corpórea, da manifesta intenção de que uma nova concepção científica – ou um paradigma – deva ser utilizada para promover novos modos de se viver coletivamente. Tomemos três exemplos, escolhidos dentre afirmações das principais lideranças da cognição corpórea, de tal posicionamento político alegadamente ancorado em achados empíricos e voltado contra o que é então chamado de cartesianismo: 1) A atitude de Francisco Varela, expressa no artigo The early days of autopoiesis: Heinz and Chile3, de 1996, de defender o que chama de guinada ontológica como sendo uma mutação progressiva do pensamento que termina uma longa dominação do espaço social do cartesianismo e que se abre para a consciência nítida de que a humanidade e a vida são as condições para a possibilidade de significado e para os mundos em que vivemos. Que conhecer, fazer e viver não são coisas separadas e que a realidade e a nossa identidade transitória são parceiros em uma dança construtiva (VARELA, 1996, p. 415 – grifo meu).

Porém, no contexto deste posicionamento de Varela, a guinada ontológica não seria apenas uma tendência espontânea de transformação do pensamento. Mas, especialmente no caso da teoria da autopoiese (desenvolvida no início dos anos 1970, no Chile), seria o resultado de pesquisas científicas realizadas senão com o intuito declarado, ao menos com a inspiração de mudar os paradigmas sobre a vida e a cognição. Este entendimento se justifica nas palavras de Varela sobre o período referido: Eram tempos de pesquisa e discussão com foco no que parecia uma insatisfação, uma anomalia. A insatisfação básica era a noção de informação como a chave para a compreensão do cérebro e cognição; a ideia não parecia desempenhar um papel explícito no processo biológico (Ibid., p. 410).

Contudo, a postura política do autor se revela mais propriamente no artigo mencionado acima. Porque nele Varela demonstra a intenção de defender uma atitude 2 3

LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 77. Será feita uma análise mais aprofundada deste artigo na seção 2.1.

11

transformadora da ciência sobre comportamentos sociais – e sobre a própria ciência e a filosofia. Ademais, o autor revela, ao escrever e publicar o texto em exame, uma ação afirmativa de suas conclusões empíricas que lança mão de argumentos políticos. Com isso, não se limita à defesa das teorias científicas em si – mas se expressa a partir delas e procura advogar seu papel transformador, para favorecer sua aceitação em virtude deste atributo. 2) A forte objeção à tradição racionalista, que se encontra na obra de George Lakoff e Mark Johnson, deve ser abordada, inicialmente, pela afirmação deste último de que uma crise no pensamento ocidental tem exigido novas respostas. Na última década, uma crise surgiu. O ponto de vista objetivista do significado e da racionalidade tem sido seriamente questionado, tanto por motivos lógicos, quanto por uma ampla gama de estudos empíricos. A expressão mais notavelmente contundente do argumento lógico foi dada por Hilary Putnam4. (...) A evidência empírica vem de estudos em muitas disciplinas diferentes, todos compartilhando um interesse comum, ou seja, eles se concentram em fenômenos onde a compreensão humana é necessária para uma explicação do significado e da razão (...). A chave para uma resposta adequada a esta crise é concentrar-se em algo que tem sido ignorado e subvalorizado nas explicações objetivistas do significado e da racionalidade – o corpo humano e, especialmente, aquelas estruturas da imaginação e da compreensão que emergem de nossa experiência corpórea. O corpo foi ignorado pelo objetivismo porque se julgou que introduziria elementos subjetivos alegadamente irrelevantes para a natureza objetiva do significado. O corpo foi ignorado porque a razão tem sido considerada abstrata e transcendente, isto é, desvinculada de qualquer aspecto corpóreo da compreensão humana. O corpo foi ignorado porque ele parece não ter papel no nosso raciocínio sobre assuntos abstratos (JOHNSON, 1987, p. xi-xiv).

De maneira semelhante a Varela, Johnson sugere uma alternativa ao que chama de crise, adotando um raciocínio que apresenta ecos da teoria de Thomas Kuhn sobre a dinâmica histórica da ciência – mas, do mesmo modo que Varela, aparentemente pretendendo combater conscientemente o que seria o esgotamento do paradigma anterior. Ele e Lakoff acrescentam – também, como Varela, lançando mão de questões ontológicas – que as ciências cognitivas têm um papel transformador do modo de pensar identificado como cartesiano:

4

As referências de Lakoff e Johnson ao anti-objetivismo lógico de Putnam serão aprofundadas adiante – especialmente nas seções 2.2 e 2.4.

12

A corporeidade da razão, como revelada pelas ciências cognitivas, proporciona uma nova compreensão do ajuste entre a mente e a realidade, uma visão que chamaremos de realismo corpóreo. Ele é mais parecido com o realismo direto dos gregos do que com o realismo representacional desencarnado da filosofia cartesiana e analítica, que é fundamentalmente separada do mundo. O realismo corpóreo, rejeitando a separação cartesiana, é, sim, um realismo baseada na nossa capacidade de funcionar com sucesso em nossos ambientes físicos. É, portanto, um realismo baseado na evolução. A evolução nos deu corpos e cérebros adaptados que permitem nossa acomodação ao ambiente, e até mesmo transformá-lo (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 95).

Mas é desde o início de seu principal livro em parceria Philosophy in the flesh (do qual foi também retirado o trecho acima) que estes autores se posicionam de maneira claramente política com base na ciência, isto é, buscando defender uma mudança geral de modo de pensar e da cultura que reputam dominantes, a partir do que consideram serem resultados empíricos da cognição corpórea: A mente é inerentemente corpórea. O pensamento é principalmente inconsciente. Conceitos abstratos são em grande parte metafóricos. Estas são três grandes descobertas das ciências cognitivas. Mais de dois milênios de especulação filosófica a priori sobre estes aspectos da razão estão superados. Devido a estas descobertas, a filosofia nunca mais será a mesma. Quando tomados em conjunto e considerados em detalhe, estes três resultados da ciência da mente são inconsistentes com aspectos centrais da filosofia ocidental. Eles exigem que sejam profundamente repensadas duas das abordagens atuais mais populares, a filosofia analítica anglo-americana e a filosofia pós-modernista. Este livro pergunta: O que aconteceria se nós tomássemos essas descobertas empíricas sobre a natureza da mente e construíssemos a filosofia de novo? A resposta é que uma filosofia empiricamente responsável exigiria que nossa cultura abandonasse algumas das suas mais profundas suposições filosóficas. Este livro é um extenso estudo do que muitas dessas mudanças seriam em detalhe.

A atitude de Lakoff e Johnson é nitidamente radical, e aparentemente mais contundente em seus propósitos do que a de Varela, porque designa como seus alvos de transformação – com apoio em resultados empíricos – a cultura ocidental e as tradições filosóficas que entendem ser predominantes. 3) O posicionamento político de António Damásio é voltado mais especificamente para o que ele considera serem consequências terapêuticas, negativas sobre os seres humanos, do cartesianismo. Ele denuncia uma medicina que ignora o que chama de “dimensão humana” (DAMÁSIO, 2004 [1994], p. 287), e que se limitaria a considerar a fisiologia e a patologia do corpo. Apontando a origem desta deficiência no próprio ensino da medicina, critica o fato de o cérebro e o sistema nervoso serem tratados apenas na qualidade de órgãos, o que revela grande negligência da dimensão emocional dos seres humanos. Para ele, esta limitação decorre da “visão cartesiana da condição humana”, com a qual se reforça “uma amputação do conceito de natureza

13

humana com que a medicina trabalha” (Ibid.) e se ignoram largamente as consequências do corpo sobre a cognição na solução de problemas tanto psíquicos quanto fisiológicos. Deste modo, os problemas identificados como apenas psíquicos ou orgânicos são tratados em separado e, ao menos em parte, solucionados – no sentido de se reduzirem sofrimentos urgentes, mas criando-se, com isso, novos problemas. Assim, também segundo Damásio se identifica uma crise no modo ocidental de conceituar o ser humano: Uma imagem distorcida do organismo humano, juntamente com o crescimento assoberbador do conhecimento e com a necessidade de sub especialização, torna a medicina cada vez mais inadequada. A medicina bem poderia dispensar o acréscimo de problemas que sua dimensão industrial agora lhe traz, mas também esses não param de se avolumar e agravam, por certo, o seu desempenho (Ibid., p. 288-289).

O que seria o efeito do abismo cartesiano entre corpo e mente sobre a medicina exige, segundo o autor, solução para os novos problemas que impõe. Em sua opinião, O êxito de algumas formas da chamada medicina “alternativa”, em especial aquelas que estão ligadas à tradição não ocidental, constitui uma reação compensatória a esse problema. Há algo a admirar e aprender com essas formas de medicina alternativa, mas, infelizmente, e independente de sua adequação em termos humanos, o que oferecem não chega para tratar eficazmente as doenças. Com toda a justiça, devemos admitir que até mesmo a medíocre medicina ocidental resolve um número extraordinário de problemas. No entanto, as formas de medicina alternativa vêm colocar em destaque o ponto fraco da tradição ocidental, que deveria ser cientificamente corrigido dentro da própria medicina. Se, como julgo, o êxito atual dos tratamentos alternativos é um indício da insatisfação do público em relação à incapacidade da medicina tradicional de considerar o ser humano como um todo, é de prever que essa insatisfação irá aumentar nos próximos anos, à medida quase aprofundar a crise espiritual da sociedade ocidental (Ibid., p. 289 – grifo meu).

Na seção 2.1 será explorada a questão do holismo – isto é, o ponto de vista que valoriza o todo, em vez das partes, para explicar os organismos vivos – e sua importância para a cognição corpórea. Mas desde já se percebe que a crítica de Damásio à prática médica – o que inclui tanto a concepção dos médicos sobre os seres humanos, quanto a destes sobre si mesmos – é inseparável da sua recusa à imagem do ser humano como mera soma de partes, e ao cartesianismo, e que esta postura, por sua vez, se vincula a uma posição de questionamento à imagem tradicional, racionalista e mecanicista5, da cognição. Mas sua atitude se reforça em seu sentido político quando ele afirma, sobre o seu livro que está em exame: 5

O sentido de “mecanicista” aqui empregado não se limita àquele tradicionalmente associado à obra de Descartes, mas, como ficará mais claro adiante, corresponde propriamente à imagem de sistemas físicos ou cognitivos como sequências determinísticas mais simples e previsíveis.

14

A voz do cientista pode ser mais do que o mero registro da vida tal como ela é; conhecimento científico pode constituir um pilar que ajude os seres humanos resistir e a vingar. Escrevi este livro convicto de que o conhecimento em geral e conhecimento neurobiológico em particular têm uma função importante desempenhar no destino humano (Ibid., p. 285).

o a o a

Esta passagem parece revelar, ao mesmo tempo, a intenção do autor em colocar determinados resultados empíricos a serviço de transformações sociais, e a sua crença de que a ciência, assim, pode cumprir melhor seu papel na evolução humana. Se esta interpretação estiver correta, mais um aspecto importante se reforça na atitude da liderança da cognição corpórea: sua convicção – de certo modo já presente nas passagens de Varela citadas acima – de que o próprio conhecimento científico sobre o ser humano tem um papel a desempenhar na evolução da humanidade e que, por este motivo, é inevitavelmente político. Não está claro o que cada um dos autores mencionados considera ser o cartesianismo. Veremos ao longo deste trabalho que, em sua crítica predominantemente dirigida ao cognitivismo, há também objeções ao que a cognição corpórea trata como herança cartesiana no pensamento ocidental. Estas objeções ficarão mais claras conforme forem examinadas em particular. Quanto à dimensão política da cognição corpórea devem ser assinalados ainda alguns pontos. O primeiro é que – como se pode notar nos exemplos acima – se manifesta nas lideranças da cognição corpórea uma atitude nitidamente militante, de recusa ao que seria uma imagem limitada de ser humano, e de seu modo de pensar, perceber e agir; contudo, tal atitude vai mais além: trata, também, de defender veementemente o uso da ciência para que não apenas tal imagem seja modificada, como para que o próprio ser humano se modifique. O segundo ponto consiste no fato de que esta atitude se possibilita porque a ciência na qual estes autores se baseiam, para defender suas posições quanto ao ser humano, não é uma ciência qualquer: é uma ciência que, graças ao seu próprio objeto, propõe ao ser humano que ele pode ter, com apoio em pesquisas empíricas, uma imagem radicalmente nova sobre si mesmo. E há ainda um terceiro ponto: criam-se, por meio desta atitude dos líderes da cognição corpórea, condições para que esta corrente possa buscar sua unificação justamente em decorrência de sua projeção para além dos argumentos internos, “exclusivamente” científicos, e alcançá-la através da aplicação social de suas conclusões. Se isto será possível, como se verá, ainda está em aberto. Ao longo do presente trabalho serão examinados os argumentos propriamente científicos das ciências cognitivas em geral – e os da cognição corpórea em particular –, de tal modo que se possa compreender e avaliar se a pretensão de unificação política da cognição

15

corpórea é viável – já que se sustenta nestes argumentos. Porém, como não haverá espaço para uma análise muito detalhada de cada argumento, eles serão discutidos, na maior parte das vezes, quanto ao sentido mais essencial de suas formulações. Ainda que não se chegue a uma resposta conclusiva, tal investigação se impõe e justifica dadas a importância e a ambição do projeto da orientação corpórea das ciências cognitivas. As objeções que a cognição corpórea faz às consequências da imagem mecanicista da cognição também permitem considerações sobre o modo como esta imagem afeta a sociedade, e como estas – a imagem e a própria sociedade – poderiam ser transformadas graças a tais objeções. Pelo que se poderá constatar, embora alguns autores da cognição corpórea ressaltem a importância da intersubjetividade para a cognição, esta dependeria basicamente, segundo a corrente que aqui se examina, das características individuais dos seres humanos. Assim, os efeitos sociais da aplicação da imagem tradicional da cognição devem ser presumidos como dependendo de como afetam os indivíduos. Conforme se pode extrair dos argumentos de Varela, Lakoff, Johnson e Damásio acima descritos, é bastante sugestivo que alguns problemas, decorrentes das influências que concepções da cognição análogas à do cognitivismo, estejam afetando a sociedade, por exemplo, através do ensino e das terapias, médicas ou psíquicas. Isto é, cabe a conjectura de que os pressupostos da cognição como processo lógico, simbólico, abstrato e quantificável tenham chegado à educação e aos métodos terapêuticos, e que isto esteja se fazendo acompanhar de um determinado conceito de ser humano e de pensamento, que estaria sendo reforçado nos estudantes e nos pacientes -mas, antes, nos professores e nos médicos, psicólogos e outros profissionais da educação e da saúde. Deste modo, as limitações do modelo lógico-proposicional apontadas pela cognição corpórea teriam alcançado a sociedade por meio da aplicação e disseminação de seus princípios formais e funcionais em práticas que envolvem a constituição das crenças e hábitos cognitivos individuais. Admitir que o modelo lógico-proposicional tenha traços muito semelhantes às concepções de pensamento e aprendizagem aplicados no ensino e nas terapias atuais requer o reconhecimento de que a imagem simbólica e computacional da cognição seja capaz de explicar esta última em muitos aspectos, além de conseguir prever eficazmente o comportamento humano quando submetido a certas condições, ou desprezadas algumas variáveis -- especialmente aquelas que dizem respeito às diferenças individuais. Sendo assim, a previsão do comportamento se confundiria com a prescrição deste: por se basear em uma imagem abstrata e padronizada das condutas racionais, a previsibilidade comportamental se

16

efetivaria desde que os indivíduos incorporassem as regras de pensamento e ação esperadas e estimuladas pelo modelo. Em apoio a esta ideia, ressalte-se que a orientação corpórea das ciências cognitivas não nega que processos abstratos e racionais ocorram na cognição humana. Ao contrário, sobretudo por serem decorrentes de práticas sociais e da necessidade de comunicação de conhecimento através da linguagem, são amplamente difundidos. De acordo com Mark Johnson, por exemplo, assim como os significados cognitivos são fundados em experiências corpóreas e relações viscerais com o mundo, a razão não é uma coisa “pura”, abstrata ou concreta em si, mas também produto destas interações (JOHNSON, 2007, p. 13, 31, 36, 109, 102, 121). No mesmo sentido, um modo de pensar (e agir) à semelhança do modelo mecânico da cognição pode ser produzido e incentivado. Isto nos leva a considerar, de um lado, que ele não seja natural e inevitável, e, de outro, que possa ser encontrado largamente na sociedade. As suposições sobre os efeitos do modelo lógico-proposicional da cognição na sociedade ainda carecem muito de estudos mais aprofundados que, de todo modo, fogem às intenções deste trabalho. Considerá-las aqui, contudo, é fundamental para ilustrar que tipo de problemas a cognição corpórea busca solucionar. Seriam problemas decorrentes – como haverá ensejo de se explorar mais à frente – de se conceber a cognição como um mero processo simbólico e cerebral de resolução de problemas. E as soluções propostas pela cognição corpórea para os problemas que levanta fazem convergir ciência, política e ontologia, desde que estas sejam concebidas como caminhos para se compreender e transformar a realidade. Em suma, o presente trabalho tem como objetivos: investigar a cognição corpórea em sua tentativa de criticar o modelo lógico proposicional da cognição e algumas de suas inspirações e aplicações; e estudar o esforço desta corrente – além de empírico, também político, metafísico, ontológico – para manter as ciências cognitivas unificadas, justamente por parecer acreditar que somente assim seu intuito crítico pode ser alcançado. A cognição corpórea poderia ser considerada, deste modo, um empirismo radical. Com a finalidade de alcançar tal intuito, esta tese está organizada da seguinte forma. No primeiro capítulo, será estudada a gênese das ciências cognitivas, e do modelo lógico-proposicional, com o propósito de se compreender dois pontos principais: a hipótese que aqui se adota de que as ciências cognitivas se unificaram, em sua fase inicial, em torno deste modelo; e quais são as características do modelo que recebem as críticas da cognição corpórea. Assim, a seção 1.1, denominada “A formação histórica das ciências cognitivas através da criação de um modelo unificador da cognição” se inicia com a explicitação da

17

concepção, adotada na tese, sobre o papel dos modelos na atividade científica, uma vez que a clareza quanto ao sentido de modelo empregado será determinante para a argumentação desenvolvida. Tal explicitação se justifica por três motivos principais. O primeiro deles é a necessidade de se deixar clara que acepção da palavra “modelo” se está usando nesta tese, dada a polissemia do termo nos textos filosóficos e científicos do último século, ao menos. O segundo motivo diz respeito à importância central que parte substancial dos historiadores das ciências cognitivas, das ciências da computação e da psicologia atribui ao fato de ter sido utilizado um determinado modelo dominante, descritivo e explicativo do processo cognitivo, na nova concepção da cognição humana produzida em meados do século 20. E o terceiro motivo é que uma das principais hipóteses a ser defendida nesta tese é de que foi exatamente a criação de tal modelo que permitiu a constituição das ciências cognitivas, ao proporcionar que se aglutinassem diversas disciplinas em torno de uma imagem unificada da cognição. Em suma, somente uma determinada acepção de modelo científico atende aos propósitos dos segundo e terceiro motivos, o que exige sua explicitação. Em seguida, será apresentada uma breve história dos antecedentes das ciências cognitivas, na qual se pretende demonstrar que: a) as ciências cognitivas nasceram como efeito imediato de um debate em que, de um lado, estava a psicologia behaviorista – desinteressada dos processos internos da cognição – e, de outro, uma proposta de aplicação aos processos cerebrais de uma concepção lógico-computacional, com ambições preditivas e prescritivas mais fortes; b) mais remotamente, pesquisas em computação artificial, como as de Charles Babbage, e discussões sobre os fundamentos lógicos das linguagens simbólicas, como as provocadas pelas obras de George Boole, Gotlobb Frege, Bertrand Russell, Alfred Whitehead e Rudolf Carnap, criaram condições para que surgisse um novo conjunto de ciências, com propósito de atuação interdisciplinar, e capaz de compatibilizar o projeto behaviorista, de compreender o comportamento humano, com o de um estudo interno da cognição, ao pretender identificar e descrever os processos cerebrais que produzem comportamentos; c) tiveram importância fundamental na constituição teórica das ciências cognitivas: os trabalhos de Alan Turing chamado de “máquina de Turing”, e de Claude Shannon criando a noção de binary digit, ou bit; a aplicação das ideias oriundas desses trabalhos ao cérebro, feita por Warren McCulloch e Walter Pitts; a analogia entre o comportamento humano e o de máquinas, proposta pelos autores pioneiros da cibernética

Arturo Rosenblueth, Norbert

Wiener e Julian Bigelow; e a separação entre o nível lógico e o físico na computação

18

eletrônica originado da intervenção de John Von Neumann na construção do computador ENIAC. Na subseção que vem a seguir, se defenderá que as ciências cognitivas nasceram de um projeto deliberado de cooperação interdisciplinar nos EUA, com a liderança da inteligência artificial, iniciado com as Conferências Macy (1946-1958), culminado com o programa de financiamento da Fundação Sloan (anos 1970), passando pelo apoio da RAND Corporation a Herbert Simon e Allen Newell na inteligência artificial, e que esse projeto só foi possível porque sustentado em uma concepção unificadora da cognição como processo lógico-proposicional. Em outras palavras, esta subseção pretende mostrar que a criação do modelo lógico-proposicional foi a solução metodológica conscientemente adotada com vistas ao estabelecimento de um estudo da cognição compartilhado por várias disciplinas anteriormente autônomas. Isto implica dizer, entre outras coisas, que os vínculos multidisciplinares das ciências cognitivas mais importantes para esta tese consistem mais no compartilhamento de uma noção comum de cognição do que em atividades de colaboração interdisciplinares propriamente ditas. Nesta subseção também se almejará deixar clara a ideia de que, embora esta não seja uma tarefa em todos os casos trivial, factível ou mesmo necessária, considerar adequadamente uma atividade científica como sendo integrante do programa de pesquisas chamado de ciências cognitivas exige que esta atividade esteja minimamente alinhada com os compromissos metodológicos mais gerais destas ciências, como a multidisciplinaridade e a utilização de certos modelos dominantes ou orientações ontológicas no estudo da cognição. Na sequência, será explicitada a ideia de que os cientistas de uma determinada comunidade compartilham compromissos teóricos e práticos, que unificam suas atividades e produções, a partir de concepções da dinâmica científica como a de Thomas Kuhn, tal como aplicadas às ciências cognitivas por autores como William Bechtel e George Mandler. Também será examinado como o modelo lógico-proposicional foi criado, e como ele pôde servir como referencial comum unificador das ciências cognitivas. Será estudado seu sentido de nível intermediário, sintático e estrutural, que serve de ligação entre os níveis físico e semântico da computação artificial e, segundo o cognitivismo, também da cognição humana. O principal objetivo da seção é descrever a formação analógica e metafórica do modelo, com a apresentação de uma interpretação de como se estabeleceu a analogia entre o programa de computador e a cognição humana, tendo como noção e etapa intermediária a linguagem simbólica comum a ambos.

19

Logo após, no início da seção 1.2, denominada “Descrição do modelo lógicoproposicional e suas principais utilizações nas diversas disciplinas das ciências cognitivas”, será descrito o modelo lógico-proposicional tal como concebido inicialmente na inteligência artificial. Será apresentada a noção de algoritmo e sua utilização nos primeiros computadores eletrônicos. Será descrita sobretudo a noção de solucionador geral de problemas, de Herbert Simon e Allen Newell. Ato contínuo, se mostrará como se configurou, na psicologia cognitiva, o modelo lógico-proposicional, a partir da noção de processamento de informações proposta por autores como Donald Broadbent e George Miller. Será feita uma comparação histórica do processamento de informações com o behaviorismo, e analisados outros aspectos do modelo em psicologia, como a já citada analogia com a produção industrial e a questão das acepções de informação utilizadas pelos autores. Em seguida, na próxima subseção será analisado o conceito de representação mental tal como surgiu nas ciências cognitivas tradicionais, constituindo a orientação cognitivista. Será discutida a Teoria Computacional da Mente, de Jerry Fodor e Zenon Pylyshyn como originária das primeiras formulações do modelo lógico-proposicional e responsável por seu desenvolvimento. Nesta subseção se correlacionará a noção de representação mental com a de processamento de informações, como modos de compreender a cognição na qualidade de transformação simbólica, o que remeterá ao conteúdo do próximo segmento da tese, que se dedicará a apresentar, com brevidade, outras aplicações do modelo lógico-proposicional nas ciências cognitivas, como na linguística, onde será analisada sua influência na linguística gerativa, de Noam Chomsky. Também será feito um balanço de como o modelo lógico-proposicional pode ser reconhecido nas ciências cognitivas em geral, e que características compõem sua feição na neurociência – neste caso, examinando a teoria de Marr do triplo nível explicativo da cognição. O segundo capítulo cuidará da cognição corpórea, iniciando-se com uma seção mais longa em que serão estudados os fatos e as ideias que contribuíram para a formação da orientação corpórea – inclusive ideias de algum modo latentes nas discussões que constituíram ciências cognitivas iniciais. A partir de uma investigação histórica da noção de sistema, se demonstrará como desdobramentos da própria cibernética, sobretudo a partir dos trabalhos de Heinz Von Foerster, W. Ross Ashby, entre outros, fomentaram as críticas internas às ciências cognitivas tradicionais. Como reforço a esta ideia na formação da cognição corpórea, será vista a importância de pioneiros como Kurt Goldstein, Ludwig Von Bertalanffy, G. Spencer-Brown e Paul Weiss na adoção de um ponto de vista holístico, sistêmico, adaptativo e dinâmico da cognição. As noções de auto-organização, emergência e

20

complexidade merecerão atenção especial na seção, uma vez que são cruciais para o estabelecimento do naturalismo antirreducionista que é traço fundamental da cognição corpórea. Será abordada a aplicação dos sistemas dinâmicos não lineares ao cérebro, de algum modo vinculada ao conexionismo e ao processamento distribuído e paralelo (PDP). Na mesma seção será abordada a importância, para a formação da orientação corpórea, dos trabalhos de Eleanor Rosch sobre categorização. Guardando semelhanças com a concepção de categorização de Rosch, os trabalhos de Leonard Talmy e Ronald Langacker na identificação de esquemas sensório-motores comuns em diferentes culturas e idiomas serão destacados. Será feita referência às matrizes filosóficas que contribuíram para as críticas ontológicas ao cognitivismo, como a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. A segunda seção do capítulo, 2.2, com o título de “A orientação corpórea como conjunto integrado de abordagens da cognição”, será dedicada a apresentar, em linhas gerais, uma das hipóteses centrais de trabalho da tese: a de que a orientação corpórea deve ser compreendida como unificável, e mais capaz de perpetrar sua crítica ao cognitivismo, ao ser caracterizada pela articulação de três abordagens ou frentes de pesquisas preponderantes: a) Corpóreo-enativa; b) Corpóreo-conceitual; e c) Corpóreo-afetiva. Estas três abordagens caracterizam-se individualmente, sobretudo, pelos diferentes pontos de partida investigativos, e pelas maneiras próprias como criticam a orientação cognitivista. Suas afinidades residem em quatro aspectos essenciais: a) no fato – aparentemente mais óbvio – de criticarem o cognitivismo6; b) no fato de proporem uma nova imagem da cognição humana; c) no fato de investigarem profundamente o papel do corpo e da experiência tanto nas críticas quanto nas propostas que apresentam; e d) na complementaridade que oferecem para a efetivação da crítica e para a constituição da nova imagem acima consideradas. O primeiro passo da seção será explicar o porquê da delimitação e eleição de três determinadas abordagens como sendo as principais da orientação corpórea, o que levará em conta, principalmente, o caráter mais profundo e completo das críticas que dirigem ao cognitivismo, assim como seus esforços em apresentar um modo alternativo de compreender o papel do corpo no fornecimento de significado para as ações dos seres humanos. Por fim, será empreendida uma análise da crítica da cognição corpórea à representação mental e ao realismo objetivista.

6

Na verdade, não é tão óbvio que as três abordagens compartilhem a crítica ao cognitivismo. Ao menos não no caso da abordagem corpóreo-afetiva. Esta, além de ser a mais recente das três, tem se mostrado menos explícita na crítica às teses cognitivistas, o que, embora aparentemente tenha ocasionado o fato de ser pouco mencionada como fazendo parte do campo da cognição corpórea, a meu ver não reduz a força de sua contribuição, quer crítica ou propositiva, tendo em vista esta abordagem vir demonstrando quão essencial, para o conjunto das teses corpóreas, é a consideração do papel das emoções e dos sentimentos na cognição humana.

21

As seções seguintes (2.3 a 2.5) farão exames das três abordagens da cognição corpórea aqui consideradas, levantando os principais aspectos de suas contribuições particulares à corrente que constituem – concluindo o capítulo 2. No capítulo 3 serão discutidas as articulações entres as três frentes de pesquisa, defendendo-se, com isso, a hipótese de que a cognição corpórea se unifica, também, graças à complementaridade entre elas – no que se evidenciam as três dimensões da orientação corpóreo-experiencial: ontológica, vital e temporal.

22

1. A GÊNESE DAS CIÊNCIAS COGNITIVAS E DO MODELO LÓGICOPROPOSICIONAL 1.1. A formação histórica das ciências cognitivas através da criação de um modelo unificador da cognição Neste trabalho se defenderá ideia de que as ciências cognitivas criam modelos. Ou seja, elas têm criado modelos da cognição para atender à necessidade de compreendê-la. Segundo esta perspectiva, é de se esperar que a cognição seja definida de tantas maneiras quantos os modelos utilizados pelas ciências que dela se ocupam. Podemos, assim, evidentemente, identificar um pluralismo de modelos nas ciências cognitivas. Isto não quer dizer, contudo, que haja equivalência ou indiferenciação entre estes modelos, ou ainda que eles não possam ser compreendidos e classificados segundo afinidades. Para propor sua diferenciação – e classificação – cabe adotar não unicamente critérios formais, lógicos, mas também dois outros: os objetivos que os modelos encarnam e o conjunto de relações sociais em que são desenvolvidos. O motivo de considerar estes critérios é, justamente, o de entender que necessidades os formuladores dos modelos têm enfrentado ao construí-los. Dito de outra forma: a análise dos modelos criados para explicar a cognição tem como intuito compreender que problemas buscam solucionar. Neste sentido, as diferenças entre os modelos deverão ser definidas à luz dos diferentes problemas que enfrentam e, mais do que isto, considerando como uns modelos se dedicam a responder à insatisfação que outros despertam. Com a finalidade de mais propriamente delimitar o alcance deste trabalho, é importante esclarecer que se entende aqui como cognição não apenas funções tradicionalmente associadas ao pensamento lógico racional, mas todos os desenvolvimentos de conhecimento e ação inteligente, inclusive aqueles que envolvem os corpos individuais, processos orgânicos e não conscientes, emoções e sentimentos. Entretanto – porque isto seria paradoxal apenas aparentemente, diante de uma concepção que inclua os corpos e a afetividade na cognição –, não se pode deixar de considerar cognitivos os fenômenos que se observam em dispositivos artificiais, como aqueles que são o objeto da inteligência artificial. Tais dispositivos seriam cognitivos, primeiramente, tendo em vista se tratar de artefatos construídos para funcionarem acoplados à cognição humana, na qualidade de seus virtuais complementos e, assim, não poderem ser, ainda que em última instância, considerados à margem desta. Mas não somente por isso: como será discutido com bastante ênfase mais adiante, a inteligência artificial tem papel histórico decisivo na constituição das ciências

23

cognitivas, e mesmo a orientação corpórea a leva em conta. Isto é, incluir no campo da cognição, além dos corpos e emoções, as questões referentes ao funcionamento de artefatos de pensar é, assim, um movimento de ampliação deste campo e não de sua restrição, já que não se trata de, neste caso, limitar toda cognição à metáfora computacional, mas de admitir um âmbito cognitivo complexo formado pelos seres humanos, as máquinas de inteligência por eles fabricadas e utilizadas, e a interação entre ambos no contexto social. Por outro lado, tendo em vista focalizar neste trabalho polêmicas que envolvem os aspectos propriamente humanos da atividade cognitiva, exclui-se do presente campo de análise – a não ser de maneira acessória – a cognição dos demais seres vivos. Em respeito à perspectiva histórica aqui empregada, propõe-se que a classificação dos modelos da cognição seja realizada considerando o que é aqui chamado de orientações. Utiliza-se na presente investigação o conceito de orientação científica não simplesmente para designar a tendência a certos esquemas formais, porém, e sobretudo, para nomear a inclinação da ação científica de perseguir alguns compromissos ou modos de solucionar problemas. Sendo assim, considera-se neste trabalho que os modelos da cognição podem ser agrupados conforme as seguintes orientações7: a) Orientação cognitivista, que comporta o modelo lógico-proposicional; b) Orientação corpórea, que comporta os modelos corpóreo-experienciais. Não é casual o uso do singular no primeiro caso e do plural no segundo. Uma das hipóteses defendidas nesta tese é de que a orientação cognitivista se constituiu em torno de um modelo fundamental, e que este foi o principal meio pelo qual as ciências cognitivas se viabilizaram como campo de estudos multidisciplinar. Sendo assim, investigar a orientação cognitivista significa basicamente investigar este modelo unificador, aqui denominado lógicoproposicional. Por outro lado, é defendido também nesta tese que a orientação corpórea não apenas dispensa o emprego de um modelo fundamental para sua unificação – já que neste trabalho se 7

Para alguns, as abordagens que propuseram as redes neurais e o conexionismo podem ser consideradas uma orientação à parte das ciências cognitivas. No livro The embodied mind, de Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch, (VARELA et al, 1991), por exemplo, o conexionismo é tratado como uma corrente das ciências cognitivas independente das acima citadas. Porém, neste trabalho o conexionismo e a abordagem das redes neurais não serão tratadas como uma corrente à parte por três motivos principais: a) Não possuem alcance tão difundido nas diversas disciplinas das ciências cognitivas, sendo uma abordagem voltada sobretudo para a neurociência e, em menor escala, para a inteligência artificial; b) São vertentes de estudos que se concentram na investigação do funcionamento do cérebro, dando menor atenção a funções cognitivas que dependem de outros órgãos, como os dos sentidos e os utilizados na ação – em suma, não seriam abordagens abrangentes da cognição como um todo; b) São em muitos aspectos compatíveis com as orientações cognitivista e corpórea, o que se corrobora com o fato de serem modos de conceber o funcionamento cerebral adotado por cientistas de ambas as orientação entendidas neste trabalho como principais e antagônicas – o que enfraquece também sua condição de antagonista de qualquer uma das duas.

24

advoga um outro meio para esta unificação, como já referido na Introdução –, como que uma das suas principais características é exatamente dispor de uma pluralidade de modelos complementares da cognição, que envolvem concepções biológicas, fisiológicas, linguísticas, matemáticas, etológicas e fenomenológicas desenvolvidas para compreendê-la. Neste capítulo, entretanto, o objetivo principal será apresentar e defender a hipótese de que as ciências cognitivas nasceram, em sua versão cognitivista, mediante a construção e o compartilhamento de um modelo geral para a cognição. Isto porque a finalidade da parte inicial deste trabalho é apresentar o quadro que foi alvo das críticas que ensejaram o nascimento da cognição corpórea. Este quadro possuía, segundo a suposição aqui adotada, três características principais: 1) As ciências cognitivas se distinguiram desde o início por seu caráter multidisciplinar; 2) Tal multidisciplinaridade se fez possível graças ao desenvolvimento de uma imagem da cognição que pudesse ser compartilhada por todas as disciplinas envolvidas; 3) Essa imagem da cognição teve origem na inteligência artificial, disciplina que, assim, liderou as demais na constituição da corrente inicial das ciências cognitivas. Todas estas características são importantes para a constituição da cognição corpórea. A primeira, porque essa nova corrente assume e mantém o feitio multidisciplinar das ciências cognitivas. A segunda, porque a imagem da cognição que a orientação corpórea adota não se baseia mais em um modelo fundamental. E a terceira, porque o principal foco da crítica proferida pelos autores da cognição corpórea é justamente o modelo da cognição de origem computacional. Deste modo, é preciso esclarecer como a crítica da orientação corpórea se dirige à imagem da cognição oriunda da inteligência artificial, como ela dispensa um modelo geral para a cognição e como, mesmo assim, pretende manter as ciências cognitivas como um campo multidisciplinar unificado. Para que a cognição corpórea seja mais bem compreendida em relação à sua formação crítica, é necessário que se trace aqui um panorama do desenvolvimento histórico do quadro clássico das ciências cognitivas. Isto se deve a duas razões. Primeiramente, porque, como já foi dito, a primeira configuração das ciências cognitivas coincide com o cognitivismo, que assume o modelo lógico-proposicional. E, sendo assim, compreender o nascimento das ciências cognitivas exige compreender também como e por que elas se constituíram nesta feição cognitivista, que provocou as objeções que deram origem à cognição corpórea, o que é importante para compreender estas objeções. Em segundo lugar, porque é preciso explicitar a maneira como as diversas disciplinas que constituíram as ciências cognitivas compartilharam, de início, compromissos investigativos e teóricos, para que se entenda o novo modo que a

25

cognição corpórea propõe para este campo investigativo se unificar e se relacionar com a sociedade. Nas próximas seções, será discutida a gênese concomitante das ciências cognitivas, do cognitivismo e do modelo lógico-proposicional. Porém, como introdução, serão feitas breves considerações sobre a noção de modelo científico empregada no presente trabalho, tal como referida à imagem cognitivista da cognição. 1.1.1. A noção de modelo científico tal como aplicado à cognição humana Não se buscará, para sustentar as argumentações deste trabalho quanto ao uso de modelos nas ciências cognitivas, uma definição a priori e acabada de modelo científico. Tanto o sentido mais geral, quanto a acepção mais precisa de modelo que aqui se emprega, ficarão patentes ao longo do próprio desenvolvimento da argumentação. Em outras palavras: através das considerações que serão feitas sobre como foram desenvolvidos os modelos nas ciências cognitivas, quais as funções que estes modelos teriam desempenhado, e qual seu estatuto na formação da imagem científica da cognição humana, se evidenciará uma noção de modelo característica das ciências cognitivas, de acordo com a perspectiva adotada na presente pesquisa. Além disso, é preciso reiterar que neste trabalho se considera que os modelos desenvolvidos nas ciências cognitivas possuem diferenças consideráveis entre si, conforme a orientação adotada pelos cientistas, e de acordo com os problemas que procuram solucionar. Essas diferenças, contudo, não são apenas formais. São também diferenças de função dos modelos com respeito às relações sociais entre cientistas ou, mais precisamente, no processo de unificação das ciências cognitivas como campo interdisciplinar. Como será explorado na seção 1.1.4, neste trabalho é defendida a ideia de que um determinado modelo da cognição humana, aqui denominado modelo lógico-proposicional, não apenas serviu para representar o processo cognitivo e, assim, contribuir para a elaboração das teorias respectivas, mas favoreceu a coesão das diversas disciplinas das ciências cognitivas em torno de uma imagem essencial da cognição. Todavia, como já foi dito, não se pode dizer que o mesmo esteja se dando na cognição corpórea. Nesta orientação não se observa o predomínio de um modelo principal, como veremos no capítulo 2. Seria mais correto afirmar que os modelos corpóreoexperienciais – como já se anuncia no plural empregado – são múltiplos, o que se coaduna com as características das ciências cognitivas de orientação corpórea, tal como será explanado

26

adiante. E isto significa, igualmente, que, na cognição corpórea, os modelos não exercem mais o papel de unificação disciplinar. Contudo, embora não se empregue neste trabalho uma definição rígida de modelo, alguns marcos teóricos e pressupostos sobre a criação científica são aqui utilizados, e sua explicitação é necessária para que se compreenda adequadamente a hipótese de que o modelo lógico-proposicional teve papel unificador nas ciências cognitivas. Afinal, por que se fala aqui em modelo? E o que permite afirmar que um modelo científico possa ter sido compartilhado por diversos cientistas, originários de diferentes disciplinas? Antes de mencionar os pressupostos teóricos da noção de modelo aqui utilizada, porém, deve-se salientar que discutilos já envolve algumas concepções sobre a cognição. Isto revela um certo sentido circular destas considerações: aquele que se depreende do fato de que as ciências cognitivas são, elas mesmas, atividades cognitivas. Sendo assim, não é plausível que se investiguem as ciências cognitivas sem a adoção de algum pressuposto, implícito ou explícito, sobre a natureza da cognição. Entretanto, seria também inviável uma explanação extensa sobre que pressupostos sobre a cognição orientam a concepção de ciência que aqui se emprega. A ser longa tal explanação, poderia se chegar à situação despropositada de se ter uma tese – ou quase – dentro da outra, só para explicar uma parte desta última. Para evitar este contrassenso, mas não deixar de registrar alguns aspectos cognitivos relevantes das próprias ciências cognitivas, seguem breves observações sobre o sentido de modelo, na presente investigação, quando aplicado à cognição humana. Para iniciarmos a abordagem da noção de modelo, consideremos a definição que se segue: A palavra "modelo" tem raízes no latim "modulus"; seu significado original era cópia, padrão e parâmetro. Agora sua conotação tem sido mais aberta e tem comumente dois tipos de uso. Em primeiro lugar, modelo significa duplicação ou cópia de um determinado objeto. Este é o tipo de modelo que é obtido através de eliminação ou idealização, de acordo com algumas características de propriedades, configurações e funções típicas. Alguns modelos são utilizados como um análogo ao original, como o modelo de navio, de construção etc. A noção também é aplicada, em estudos experimentais como um substituto para o original, como o modelo de avião no laboratório de túnel de vento, e o de leito do rio no laboratório líquido. Além disso, objetos manufaturados, que são criados para simular as propriedades, configurações, funções ou leis biológicas são às vezes chamados de modelos, como o localizador sonar, concebido em conformidade com a audição do morcego de frequências ultrassônicas e o robô, que simula ações parciais, habilidades ou inteligência dos seres humanos. Em segundo lugar, também pode significar um modelo analógico mental de propriedades, configurações, funções ou leis do referente: este é o modelo mental que estamos discutindo. Estes modelos são criados através da utilização de mecanismos de percepção na cognição. Além disso, o modelo mental reflete apenas algumas características do original: os relacionados com determinados objetivos cognitivos. Outros são eliminados. (YU, 2002, p. 275).

27

A primeira acepção de modelo, na passagem acima, corresponde à imitação física de objetos. Nesse caso, é evidente que se trata da construção de objetos concretos semelhantes, quase sempre em escala muito menor, de outros objetos cujas características se deseja estudar, e que devem ser mantidas de algum modo. A similitude é então literalmente visível. No segundo caso, que interessa mais diretamente à presente pesquisa, a analogia e a semelhança não são sempre evidentes, uma vez que os modelos são abstrações cognitivas, representações, imagens, nas quais o processo de analogia que teria dado origem a elas não se exibe claramente em todas as situações. Para melhor compreender a diferença entre os modelos concretos e os abstratos, recuaremos ao início das preocupações filosóficas mais recentes sobre o tema; mais precisamente, invocaremos a reflexão sobre a física teórica realizada por Ludwig Boltzmann. Boltzmann, um dos principais físicos do final do século 19, foi bastante influente ao longo do século seguinte em razão de seu trabalho na termodinâmica estatística. Nasceu em Viena, em 1844, e trabalhou como professor de física nas universidades de sua cidade natal, de Graz, Munique e Leipzig. Como pesquisador e professor, dedicou-se com especial atenção à física teórica, às relações desta com a física experimental e aos vários problemas daí decorrentes, vindo a morrer em 1906. Porém, o que é de interesse para esta seção é mais propriamente a sua produção filosófica. Para tal, examinemos, a partir do verbete “Modelo”, escrito por Boltzmann para a Enciclopédia Britânica e publicado em 1902, suas concepções sobre a criação do conhecimento científico. O verbete começa com a afirmação de que um “modelo é uma representação tangível” (BOLTZMANN, 1902, p. 1) de um objeto real ou ideal. Em seguida, após ilustrar sua concepção com casos em que o modelo serve para gerar objetos (como na fundição de peças metálicas a partir de modelos de outro material) ou ideias (como no ensino da anatomia), Boltzmann argumenta a favor da necessidade de modelos para a produção científica, afirmando que a “essência do processo é a associação de um conceito que tem um conteúdo definido a cada coisa, mas sem implicar uma similaridade completa entre a coisa e o pensamento” (Ibid.). E acrescenta que Naturalmente só podemos saber pouco da semelhança de nossos pensamentos com as coisas às quais os associamos. A semelhança que há encontra-se sobretudo na natureza da conexão, sendo a correlação análoga à que se obtém entre pensamento e linguagem, linguagem e escrita, as notas na pauta e os sons musicais etc. (Ibid.) 8

Até aqui devemos destacar dois aspectos do verbete, que se relacionam mais intimamente com os propósitos desta tese: o primeiro é o fato de que o uso do modelo responde a uma necessidade – seja fabril, didática ou de representação científica –; o segundo é que 8

Todas as traduções de citações em línguas que não o português foram realizadas por mim.

28

Boltzmann não atribui ao modelo coincidência total com o que busca representar, admitindo que haja apenas similaridade incompleta entre ambos, de tal modo que o modelo possa ser pensado em parte como um símbolo (isto é, em parte um como signo arbitrário) do que representa. Sendo assim, o modelo surge como algo que, mesmo sem reproduzir exatamente aquilo a que se refere, serve a propósitos para os quais parece ser imprescindível. Mais à frente, Boltzmann situa historicamente a questão do modelo, trazendo à tona os problemas próprios da ciência de seu tempo, fazendo referência particularmente ao esgotamento do modelo mecanicista newtoniano na compreensão de fenômenos como o calor e as forças eletromagnéticas. Em relação a este ponto (Ibid., p. 3 e 4), Boltzmann chama a atenção para a necessidade da adoção de hipóteses “um tanto artificiais e improváveis”, com as quais James Clerk Maxwell enfrentou a dificuldade de explicar fenômenos para os quais os modelos mecânicos não eram mais adequados, tendo que, assim, se contentar em manter apenas certa similitude entre os modelos e os fenômenos. Isto, por sua vez, revela, para Boltzmann, que “quando a questão deixa de ser a verificação da estrutura interna real da matéria, muitas analogias mecânicas ou ilustrações dinâmicas tornam-se disponíveis, com diferentes vantagens” (Ibid., p. 4). Ele parece até mesmo acreditar que o realismo dos modelos seja uma crença historicamente ultrapassada ao dizer que Embora antigamente se acreditasse que era tolerável assumir com um grande indício de probabilidade a existência real de tais mecanismos na natureza, atualmente os filósofos postulam que não há nada além de uma semelhança parcial entre o fenômeno visível em tais mecanismos e aqueles que aparecem na natureza. Aqui de novo fica perfeitamente claro que esses modelos de madeira, metal e papelão são realmente uma continuação e integração de nosso processo de pensamento. De acordo com a perspectiva em questão, a teoria física é meramente uma construção mental de modelos mecânicos, cujo funcionamento nós mesmos planejamos por meio da analogia com mecanismos que seguramos em nossas mãos, e que, por terem tanto em comum com os fenômenos naturais, podem nos ajudar a compreendê-los (Ibid., p. 8 – grifo meu).

Mas não é apenas no verbete referido que Boltzmann faz afirmações sobre o sentido das representações na teoria que nos interessam para os propósitos deste trabalho. Em um discurso feito na Universidade de Graz, em 1890, ele afirmou: Sou de opinião de que a tarefa da teoria consiste na construção de uma imagem, em nós existente, do mundo externo, devendo ela nos servir de guia em todos os nossos pensamentos e experimentos. Ou seja, de certa maneira completando o processo mental à medida que executa globalmente aquilo que é executado em pequena escala quando formamos uma representação qualquer. É um instinto próprio ao espírito humano constituir para si uma tal imagem e ajustála continuamente ao mundo externo (BOLTZMANN, 2005 [1905], p. 52, grifo meu).

29

Este fragmento demonstra que, para Boltzmann, além de as teorias científicas serem construídas a partir de imagens, ou representações, que servem de guia para pensamentos e ações, o mesmo ocorre na cognição em geral, naquilo que Boltzmann chamou de “pequena escala” de qualquer representação. Essa ideia também já se encontra no verbete “Modelo”: “Nessa perspectiva, os pensamentos representam coisas na mesma relação que os modelos representam objetos”. Tendo como base, portanto, estas três últimas citações, os aspectos mais relevantes da concepção de Boltzmann sobre os modelos podem ser sintetizados da seguinte forma: 1) Os modelos científicos, embora necessários, podem guardar apenas semelhança com seus objetos; 2) Em grande medida, os modelos são construções dos cientistas a partir de analogias com outros fenômenos; 3) A verificação da realidade, isto é, da “estrutura interna real da matéria”, não pode ser o objetivo da ciência; 4) Resta à ciência compreender os fenômenos mediante representações construídas a partir de analogias e metáforas gerando, assim, uma imagem da natureza; 5) O conhecimento científico não é de natureza diferente do conhecimento humano em geral: modelos do mundo são utilizados no conhecimento comum e no conhecimento científico. Esta concepção cognitiva da ciência possui dois aspectos complementares que devem ser destacados, com vistas ao modelo lógico-proposicional da cognição. O primeiro é, como já foi mencionado antes, o caráter de analogia e similitude do modelo, isto é, o fato de ele ser ao mesmo tempo uma construção com base em analogias com os objetos, e – por este motivo mesmo – também não coincidir completamente com estes. Assim, a analogia e a similitude não seriam características apenas dos modelos concretos, mas também dos abstratos, sendo que estes não exibem os traços analógicos de modo evidente, dado que a analogia pode ser mais complexa – como no caso de Maxwell, destacado por Boltzmann. O segundo é a suposição ontológica de que os modelos não são representações fiéis da natureza, porque estas não são possíveis. Os modelos portanto seriam imagens da natureza, produzidas pelo ser humano, para servir à compreensão daquela. Sendo assim, não caberia uma separação entre a cognição em geral e a cognição científica. Ao compartilharem a mesma natureza, ambas se baseariam em analogias e metáforas e, além disso, seriam incapazes de atingir uma suposta estrutura interna da realidade.

30

É bastante ampla a discussão sobre os modelos na filosofia da ciência nos últimos cem anos. Como já foi advertido, não se busca aqui uma definição prévia de modelo tanto quanto uma compreensão do modelo tal como ocorreu, de maneira bastante particular, nas ciências cognitivas. Mas, para isso, é necessário estabelecer ao menos que concepções de modelo são mais adequadas para o emprego que aqui estudamos. Antes de falarmos mais diretamente no uso de modelos nas ciências cognitivas, cabem ainda mais algumas considerações sobre abordagens filosóficas pertinentes, que se encontram em alguns trabalhos de repercussão, e que devemos registrar com o intuito de tornar mais nítidos os contornos do conceito de modelo para os fins deste trabalho. Uma questão importante a ser considerada é aquela que envolve a distinção entre os modelos formalizados – matemáticos – e os modelos adotados por similitude, tais como os destacados por Boltzmann. Alguns autores têm abordado essa diferença, e examiná-la é importante para a presente investigação. Mary Hesse, por exemplo, discorreu sobre este ponto, com relação à física. Embora nesta tese não se trate de fenômenos físicos, para as suas finalidades é ilustrativo utilizar a análise de Hesse, uma vez que o modelo lógicoproposicional da cognição seria, segundo a hipótese aqui adotada, antes de tudo uma imagem da cognição – embora corresponda a uma formalização simbólica. Isto é, a imagem que o constitui seria justamente a de uma formalização. Vejamos como o que Hesse diz a respeito dos modelos na física pode ser útil para este trabalho. Ela afirma que os modelos fazem parte do método hipotético-dedutivo. Neste, as hipóteses são produtos da “imaginação criativa”, mas também decorrentes da observação de padrões encontrados nos experimentos (HESSE, 1953, p. 198). Os modelos seriam representações das hipóteses, e ferramentas para testá-las com utilização dos dados experimentais. Deste modo, ela entende que modelos matemáticos podem expressar essas hipóteses, mas não são imagináveis – como os modelos mecânicos, entre os quais ela considera o uso de bolas de bilhar para representar moléculas de gases. Dito de outra forma, as construções matemáticas, embora possam expressar analogia entre as grandezas verificadas nos fenômenos – e mesmo permitir, assim, analogias entre fenômenos diversos que possuam estruturas internas similares –, não têm a característica de se assemelharem aos fenômenos, por não serem, a princípio, imagináveis (Ibid., p. 200). Alain Badiou também faz esta distinção, sem deixar de reconhecer – citando Lévi-Strauss – que os modelos têm como característica permitir sua manipulação, em vez da manipulação do real, mas com os mesmos efeitos para o conhecimento. Eles teriam aplicações preditivas, de tal modo que se pode saber como o conjunto do modelo reage ao se alterar um de seus elementos (BADIOU, 1972, p.15), o que seria aplicável ao objeto representado. Porém, Badiou adota

31

uma classificação um pouco diversa daquela de Hesse – embora devamos reconhecer que tem essencialmente o mesmo efeito. Ele afirma que os modelos podem ser “abstratos” ou “montagens materiais” (Ibid.), sendo os primeiros basicamente “escriturais” ou matemáticos, e os segundos visuais. Ele chega a lembrar que gráficos podem ser construídos a partir de dados quantitativos para gerar imagens analógicas dos fenômenos que as quantificações expressam – como no caso das estatísticas ilustradas por figuras. A menção a esta distinção tem por objetivo ressaltar que o modelo lógicoproposicional da cognição, embora tenha uma estrutura expressa simbolicamente – e, assim, possa ser considerado “abstrato” –, esta mesma estrutura é adotada de maneira propriamente analógica para representar a cognição humana. Não teria, portanto, a opacidade própria dos modelos matemáticos, incluindo aqueles utilizados para descrever, por exemplo, o funcionamento de neurônios, circuitos eletrônicos, redes neurais e outros objetos de estudo particulares das ciências cognitivas. Isto quer dizer que, embora as diversas disciplinas das ciências cognitivas tradicionais tenham empregado uma série de modelos matemáticos para investigar aspectos da cognição, a imagem mais geral desta última seria essencialmente formada por analogia – como se buscará justificar adiante. Em outras palavras, o modelo lógico-proposicional seria, embora num certo sentido abstrato, um esquema imaginável – “mecânico”, para citar Hesse, ou uma “montagem”, para utilizar o termo empregado por Badiou – destinado a representar o processo cognitivo com um todo. Tal questão ficará mais clara a seguir, e nas seções subsequentes em que a estrutura deste modelo for analisada – sobretudo quando levarmos em consideração a máquina de Turing como um conceito matemático, mas ao mesmo tempo imagético e mecânico. Porém, antes de tomarmos como foco principal o modelo lógico-proposicional, há ainda duas características dos modelos que devem ser assinaladas, além do papel heurístico já referido – porque são fundamentais no caso das ciências cognitivas clássicas. Ambas decorrem da abordagem de Thomas Kuhn (KUHN, 1978 [1962]), do modo como destacado por Daniela Bailer-Jones (BAILER-JONES, 1999, p. 37). Trata-se das funções pedagógica e de compartilhamento das ideias científicas que os modelos desempenham. Kuhn desenvolveu no livro mencionado uma explicação da dinâmica científica em que confere papel fundamental para os manuais utilizados na educação de cientistas, no sentido em que contribuem para estabelecer um padrão paradigmático de solução de problemas e, assim, fixar o que ele chama de “ciência normal”, própria de uma comunidade científica e de uma conjuntura histórica. Em linhas muito gerais, podemos caracterizar a abordagem kuhniana como tendo significado uma ruptura com a interpretação tradicional do desenvolvimento

32

científico no sentido de acúmulo de conhecimento. Ao invés de conceber a ciência como um processo contínuo, Kuhn propôs que as ciências evoluem através de estágios conflitantes. O primeiro deles seria a “ciência normal”, que se caracteriza por um período em que se observa um conjunto de crenças, compromissos e práticas de uma comunidade de cientistas, capaz de conferir à sua atividade, neste período, uma situação de relativa estabilidade, coesão e firmeza. Estas qualidades são fornecidas pelo que Kuhn chama de “paradigma”, que pode ser conceituado como a adoção de um modelo básico ou uma teoria geral que caracteriza a ciência normal. Tal formulação, obviamente, leva à mútua definição circular dos dois termos. Mas Kuhn não afasta o caráter parcialmente reflexivo desta relação ao dizer que “um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade científica partilham, e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que compartilham um paradigma” (KUHN, 1978 [1962], p. 219). Porém, o autor não nos reserva apenas esta definição circular, uma vez que no prefácio à referida obra afirma que “paradigmas são as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Ibid., p. 13). Esta passagem é especialmente importante para a presente argumentação, em razão de alguns pontos. O primeiro deles diz respeito à característica de recognoscibilidade universal dos paradigmas. Isto nos leva a atentar para o fato de que se exige da realização científica uma forma reconhecível capaz de garantir sua disseminação. O segundo é aquele que assinala a recorrência de problemas e soluções típicos dessa realização científica. E o terceiro refere-se ao fato de que esta tipicidade de problemas e soluções é modelar. Os três pontos convergem exatamente no que Bailer-Jones chama de papel pedagógico ou cognitivo dos modelos. A autora classifica o papel realizado pelos modelos no contexto da abordagem de Kuhn como cognitivo – na medida em que eles servem para estabelecer padrões gerais, “orientar o pensamento científico e determinar a direção do raciocínio científico e da investigação em uma mesma época” (BAILER-JONES, 1999, p. 37). O sentido pedagógico dos modelos já havia sido visto brevemente aqui na referência a Boltzmann, quanto ao ensino de anatomia. Mas o que se torna especialmente relevante para a hipótese aqui defendida sobre o papel unificador do modelo lógico-proposicional é seu caráter de padrão de pensamento compartilhado – sobre o pensamento. E este padrão dependeria, evidentemente, de sua propagação através da educação científica. A partir das colocações de Bailer-Jones, surge uma questão já anunciada anteriormente: de que quando se fala de modelo nas ciências cognitivas está se abordando um aspecto cognitivo das próprias ciências cognitivas. Está se discutindo como os cientistas cognitivos desenvolvem seu conhecimento, o que suscita problemas

33

relativos à própria ciência que fazem. Esta questão, no entanto, não deve gerar maiores dificuldades de análise, desde que deixemos claros os limites em que cabe estendê-la na presente investigação – o que será visto a seguir. Para tal, tomemos agora as considerações de Jean-Pierre Dupuy a respeito de modelo– em um contexto em que ele tem como tema o modelo da cognição desenvolvido pela ortodoxia das ciências cognitivas. Isto porque Dupuy não apenas adota a suposição de que o cognitivismo criou um modelo para explicar a cognição, como se dedica a valiosas considerações sobre o conceito mesmo de modelo, e o sentido de sua utilização pelas ciências cognitivas. Invocando Vico, e sua citação “Vero et factum convertutum”, Dupuy afirma que “só podemos conhecer racionalmente aquilo de que somos causa, o que fabricamos” (DUPUY, 1996 [1994], p. 21). Com isto ele quer dizer que o modelo é uma imitação, uma reprodução, uma fabricação, com vistas ao conhecimento – no que converge com Boltzmann, Hesse e Badiou. Defende ele, citando Jean Ullmo, que o modelo seria uma idealidade (“...) formalizada e matematizada, que sintetiza um sistema de relações entre” elementos cuja identidade e até a natureza é, ate certo ponto, indiferente, e que podem, por conseguinte, ser trocados, substituídos por outros elementos análogos ou diferentes, sem que (o modelo) seja alterado” (Ibid., p. 23).

Embora Dupuy se refira aos modelos como formalizações matematizadas, este aspecto seria relevante sobretudo na medida em que eles serviriam como instrumentos de controle explicativo e preditivo – como já foi visto nas referências a Hesse e Badiou. Mas é muito importante notar que ele caracteriza o modelo na passagem acima como sistema de relações de certo modo independente da natureza de seus elementos, no qual estes são intercambiáveis sem que se perca a essência da estrutura de relações. Neste sentido, seu caráter formal corresponderia mais ao fato de ser uma estrutura relacional, do que a ser expresso em linguagem matemática9. Uma outra razão ajuda a reforçar este entendimento. Trata-se da utilização de analogias na construção dos modelos (Ibid., p. 24). O modelo seria uma estrutura à qual se atribui uma forma análoga à do objeto estudado – o que também acabamos de encontrar nas considerações de Yu, Boltzmann e Hesse. Outro modo de compreender a estrutura do modelo é dizer que ele abstrai da realidade fenomênica o sistema de relações funcionais consideradas por ele as únicas pertinentes, pondo, por assim dizer, entre parênteses tudo o que não depende desse sistema, em particular, como vimos, o número, a identidade, e a natureza dos elementos que estão em relação (Ibid.) 9

Esta, digamos, essência estrutural que Dupuy atribui aos modelos em geral seria, contudo, considerada pelo cognitivismo uma característica do próprio objeto (no caso, a cognição), segundo a crítica da cognição corpórea ao modelo lógico-proposicional – o que será examinado mais à frente, especialmente na seção 2.2.

34

Neste sentido, o modelo seria uma estrutura abstraída dos fenômenos através de um procedimento de analogia formal, relacional. Dito isso alternativamente, o que Dupuy está afirmando – da mesma forma como os autores aqui citados anteriormente – é que o modelo seria um instrumento capaz de substituir o objeto em si, uma vez que os cientistas que dele se utilizam acreditam que ele reúne as características essenciais do objeto e, portanto, é suficiente para as finalidades da investigação científica. Mas nas palavras de Dupuy, “o modelo é tão mais puro, tão melhor controlável do que o mundo dos fenômenos: existe o risco de que ele se torne objeto exclusivo da atenção dos cientistas” (Ibid., p. 25). Mais à frente será discutido em que medida, no caso do cognitivismo, o modelo lógico-proposicional teria substituído a própria cognição. Por ora, façamos algumas outras considerações sobre a noção de modelo tal como aplicada à cognição, a partir de Dupuy. Devemos reforçar a ideia de que quando se fala em modelo da cognição está se considerando uma imagem da cognição como um processo integral. O modelo lógicoproposicional seria, assim, uma representação do esquema geral da cognição, de caráter funcional e de forma semelhante à daqueles utilizados nas noções de processo digestivo, respiratório e urinário – entre outros semelhantes – em animais, em que uma dada função é descrita de maneira consideravelmente independente de sua realização física nos organismos particulares, e na qual se supõe o resultado esperado do processo necessário de transformação a partir não somente da captação inicial de determinados insumos, como do respeito à operação de certas etapas temporais e sequenciais. Como veremos – o que se coaduna com essa imagem produtiva dos processos orgânicos animais –, uma das principais metáforas do modelo funcional da cognição é o processo produtivo fabril. Neste sentido, fica mais claro que, embora a cognição possa ser estudada cientificamente a partir de uma multiplicidade modelos, o que se afirma neste trabalho como sendo o modelo geral da cognição possui características invariáveis e, sobretudo, está vinculado ao caráter multidisciplinar das ciências cognitivas clássicas, que o utilizam em conjunto. Tem como função não apenas representar a cognição, mas representá-la de modo compartilhado por todas as disciplinas que constituem esse campo científico – daí a necessidade de possuir certa estrutura fixa, capaz de ser reconhecida mesmo com as variações exigidas pelas especificidades de cada disciplina. Este reconhecimento exige, por outro lado, que os pesquisadores envolvidos estejam continuamente dispostos a reiterar o que seriam as características invariáveis do modelo. Neste sentido, o modelo não é algo que está fixo em algum lugar de uma vez por todas. Ao contrário, sua estabilidade e permanência dependem a

35

ação continuada de diversos cientistas, que a cada momento buscarão verificar se o modelo com que lidam guarda a estrutura essencial com que concordam trabalhar. Sendo assim, o modelo só é aparentemente uma forma estática. Por esta perspectiva, trata-se do resultado de uma atividade múltipla e dinâmica que, mesmo assim, se mantém, disciplinar e disciplinadamente, de acordo com algumas crenças e apostas formais. Este sentido dinâmico do modelo se coaduna também com o que Bailer-Jones chamou de seu papel pedagógico. É apenas graças à transmissão de certa invariância formal e da convicção de que tal forma é adequada para representar o objeto de estudo – seja em aulas, seja em atividades de pesquisa, considerando que tanto em umas quanto em outras sempre há aprendizado e controle –, que o modelo se mantém. Trata-se portanto de uma atividade social. Acabamos de observar que Dupuy reitera algumas das características do modelo científico também encontradas nas teses de autores que abordamos nos parágrafos anteriores. Mas é fundamental que sublinhemos o fato de que o faz assumindo que estas são características que se encontram no modelo tradicional da cognição – o qual, contudo, possui ainda outras particularidades que devem ser examinadas a fim de alcançarmos o objetivo desta seção. A primeira afirmação importante de Dupuy sobre o modelo clássico das ciências cognitivas é que ele revelaria a crença de que o processo cognitivo em geral é, ele mesmo, produto de modelização. Isto porque “conhecer é produzir um modelo do fenômeno e efetuar sobre ele manipulações ordenadas. Todo conhecimento é reprodução, representação, repetição, simulação” (DUPUY, 1996 [1994], p. 27). Mas é na seguinte citação que esta ideia se desdobra em outras, cruciais para a definição do modelo lógico-proposicional: Seja um sistema cognitivo material: cientista, homem, animal, organismo, órgão, máquina. O que faz que esse sistema conheça por modelos e representações deve ele próprio ser modelizado, abstraindo-se do substrato material, diferente a cada vez, o sistema de relações funcionais responsável pela faculdade de conhecer. O funcionalismo da ciência da cognição situa-se, pois. em (pelo menos) dois níveis logicamente encaixados um no outro: o da representação elementar e o da representação da faculdade de representação. E neste segundo nível que uma ciência da cognição pode ao mesmo tempo declarar-se materialista ou fisicalista e reivindicar a sua autonomia em relação ás ciências da natureza (e da vida). A mente, entendida como o modelo da faculdade de modelizar, reencontrou seu lugar no universo material. (...). As faculdades da mente são sempre apenas propriedades de sistemas de processamento de informação (Ibid.)

Percebe-se que, embora não o justifique, Dupuy defende que os cientistas cognitivos compreendem a cognição em geral como modelização. A falta de justificação não nos permite concluir se ele atribui aos cientistas cognitivos tradicionais, por exemplo, uma concepção não objetivista da cognição, segundo a qual a cognição não seria capaz de atingir a realidade

36

mesma – o que decorreria de uma ideia de conhecimento por modelização como a de Boltzmann, e mesmo aquela que ele, Dupuy, parece defender nas menções feitas à noção de modelo, algumas linhas acima. A questão sobre se o cognitivismo é objetivista ou não será alvo de exame mais à frente (seção 2.2), uma vez que é uma discussão importante proposta pela cognição corpórea. Contudo, se Dupuy advoga o não objetivismo dos cientistas cognitivos tradicionais não vem ao caso em relação às suas colocações subsequentes neste trecho. A primeira delas, bastante importante, é sobre o funcionalismo do modelo cognitivista, que decorre de se abstrair dos corpos e equipamentos materiais uma forma da faculdade de representar. A segunda é também muito relevante para os fins desta pesquisa: trata-se do fato de que, dado este caráter funcionalista, o modelo cognitivista deixa de ser reducionista em relação às ciências da vida. Podemos então concluir que é um modelo de “processamento de informações” que não se explica pelas leis dos substratos em que se realiza, mas possui leis próprias. Entretanto, o ponto talvez mais significativo das reflexões de Dupuy sobre o modelo cognitivista seja o que se expressa no seguinte trecho: Conhecer é efetuar, sobre representações, manipulações ordenadas. Esta proposição é fiel ao espírito do paradigma dominante nas ciências cognitivas e, no entanto, falta-lhe o essencial. O essencial é a natureza lógica das manipulações e das regras em questão. O modelo científico, como dissemos, assume no mais das vezes uma forma matemática -- e, ainda mais precisamente, ele se reduz a um sistema de equações diferenciais que ligam grandezas. A época que antecede imediatamente a história que vamos contar produziu modelos matemáticos tanto do sistema nervoso quanto dos circuitos elétricos. No entanto, foi preciso o gênio de McCulloch e o de Pitts, por um lado, e o de Shannon, por outro, para compreender que a modelização pertinente era, na realidade, de tipo lógico – portanto, que se podia descrever em termos lógicos o funcionamento de certos sistemas materiais, mas que, inversamente, esses sistemas materiais podiam ser representados como realizando, ou até encarnando a lógica, essa forma superior do pensamento (Ibid., p. 27-28).

Com o que foi dito neste fragmento, chegamos à principal característica do modelo da cognição construído pelas ciências cognitivas tradicionais: o fato de ele ter uma estrutura lógica. Traduz-se desta afirmação de Dupuy que, embora em período anterior modelos matemáticos tenham sido usados para estudar o sistema nervoso e circuitos eletrônicos, foi apenas com o nascimento das ciências cognitivas que estes objetos passaram a constituir um outro objeto, a cognição, que por sua vez mereceu um novo tipo de modelo: o modelo lógico. Como já foi assinalado acima, trata-se de um modelo ao mesmo tempo analógico e lógico, imagético e abstrato. Isto se explica pelo fato de que sua analogia principal é com a lógica simbólica, que ele abstrai da cognição humana na forma de uma imagem racional desta

37

última. O que Dupuy chamou de “forma superior do pensamento” passa a ser o paradigma, a imagem, o modelo – inclusive no sentido prescritivo – da cognição. Pelo que foi mencionado a respeito de algumas abordagens sobre modelos, percebe-se que eles em geral não coincidem com as teorias científicas. Porém, são importantes para elas sobretudo na construção de seus objetos e suas hipóteses. Assim, na qualidade de representações da realidade, podem até mesmo se antecipar a teorias, ou servirem de base para diversas delas. O que se tem no caso do modelo lógico-proposicional da cognição é que ele serviu como representação geral da cognição para as ciências cognitivas tradicionais. Deste modo, desde o início teve importância central para este campo de estudo, constituindo a imagem da cognição com que trabalharam as disciplinas envolvidas e, portanto, dando suporte às teorias que estas produziram. Antecipando alguns pontos das próximas seções, e tendo em vista o que foi dito, para que o conceito de modelo possa ser aplicado à hipótese aqui defendida – de que ele não apenas foi criado para representar a cognição, mas também serviu como traço de união entre as diversas disciplinas das ciências cognitivas –,ele precisa possuir as seguintes características: 1) Consistir em um sistema de relações formais independentes de seus elementos significativos, quais sejam, os valores semânticos dos símbolos componentes da cadeia lógico-proposicional sintática; 2) Ser uma estrutura lógico-formal que independa também das suas realizações materiais; 3) Constituir-se de um arcabouço básico que comporte variações conforme as necessidades específicas de cada disciplina que o utiliza sem, contudo, deixar de manter invariantes as relações formais internas que garantam as duas caraterísticas anteriores. Conclui-se desta explanação que, como já foi comentado, embora o modelo lógicoproposicional corresponda a uma noção usual de modelo em outras ciências, tem particularidades que desafiam a própria ideia de modelo. Isto ficará mais claro nas próximas seções. Antes de se dar por concluída esta seção, é necessário, no entanto, fazer uma advertência – já de certo modo esboçada acima. O fato de ter se dado ênfase, até aqui, ao modelo lógico-proposicional da cognição não quer dizer que outros modelos não sejam utilizados por outras correntes das ciências cognitivas, ou mesmo pelo cognitivismo, como já assinalado. Importante sublinhar que, como será explorado nos capítulos 2 e 3, a cognição corpórea também se utiliza de diversos modelos da cognição – de vários tipos. Emprega, por

38

exemplo, modelos matemáticos, como os referentes aos sistemas dinâmicos não lineares, e igualmente imagens, como a de emergência – e muitas de natureza biológica e fenomenológica, entre outras. Veremos brevemente, também, a importância dos modelos conexionistas para a transição do cognitivismo para a abordagem corpórea da cognição. Porém, mais importante ainda é deixar patente que na cognição corpórea não se tem um modelo geral unificador. Uma das principais diferenças entre o cognitivismo e a cognição corpórea está justamente na recusa que esta última faz do modelo lógico-proposicional, inclusive de seu aspecto generalizador da cognição, como processo desencarnado; e um dos mais relevantes objetivos desta tese é exatamente discutir como a orientação corpórea ainda pretende manter a coesão das ciências cognitivas não só recusando o modelo lógicoproposicional, como renunciando a qualquer modelo formal unificador. 1.1.2.

Antecedentes históricos das ciências cognitivas Além da pluralidade de modelos da cognição, mencionada na seção anterior – se

levarmos em conta não apenas o cognitivismo, mas também a cognição corpórea –, há outra mais fundamental a ser considerada neste trabalho: a multiplicidade disciplinar das ciências cognitivas. Este traço é importante porque impõe um sentido bastante específico à unidade subjacente à variedade de modelos cognitivos. Vincula-se, seguindo o ponto de vista aqui assumido, ao caráter histórico desta unidade. As ciências cognitivas se caracterizam por constituírem um conjunto de disciplinas – umas mais antigas (como a psicologia), outras recentes (como neurofisiologia e a inteligência artificial) – que já possuíam suas práticas e teorias, e que se uniram através de esforços comuns de cientistas que nelas atuavam, com vistas à criação de uma nova ciência – mas que mantiveram suas individualidades mesmo depois de constituído o campo multidisciplinar. É importante evidenciar que tanto sua multidisciplinaridade, como sua unidade em torno das concepções da inteligência artificial, são inseparáveis da adoção do modelo lógicoproposicional como seu ponto de partida. Serão utilizados como principais fontes desta pesquisa histórica alguns textos dentre os poucos dedicados à história das ciências cognitivas: os livros The mind’s new science, de Howard Gardner, publicado em 1985,Aux origines de sciences cognitives10, de Jean-Pierre Dupuy, em 1994, Mind as machine: a history of cognitive science, de Margaret Boden, publicado em 2006 e Cognitive science: an

10

Este é aqui utilizado em sua tradução brasileira, citada nas referências bibliográficas.

39

introduction to the science of the mind, de José Luis Bermúdez, publicado em 2010, além do capítulo “The life of cognitive science”, de William Bechtel, Adele Abrahamsen e George Graham, do livro A companion to cognitive science, de organizado por Bechtel e Graham em 1998.Todas estas obras dão destaque, de uma forma ou de outra, ao papel das instituições de pesquisa no nascimento interdisciplinar das ciências cognitivas. Elas também demonstram que as ciências cognitivas nasceram moldadas pela predominância do modelo lógicoproposicional da cognição e pela liderança da inteligência artificial. Quanto a estes dois últimos aspectos, a maioria dos autores citados acima assinala como importante ponto de partida, para a constituição do primeiro modelo de cognição, a construção teórica conhecida como máquina de Turing. Trata-se de um determinado modelo de máquina de computar apresentado como formalização abstrata, matemática, por Alan Turing em seu artigo “On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem”, de 1936. Neste trabalho, Turing se propôs a apresentar sua contribuição a uma discussão que remonta aos trabalhos de George Boole, para expressar leis básicas do pensamento em princípios lógicos (GARDNER, 1985, p. 143), e ao projeto logicista e ao cálculo proposicional de Gotlobb Frege. Tal discussão, tendo passado pelas objeções de Bertrand Russell e Henri Poincaré quanto às limitações do projeto de Frege e dado origem ao positivismo lógico (BECHTEL, 1988b; THAGARD,1988, p. 11; CARNAP 2000 e 2003), se prolongou, de certa maneira, até o formalismo de David Hilbert e o Teorema da Incompletude, de Kurt Gödel, proposto em 1931 (SHAPIRO, 1997). Seria excessivo para o escopo deste trabalho detalhar os problemas debatidos ao longo desta série de intervenções – extremamente importantes para a formação do pensamento ocidental no século 20 –, mas é necessário ao menos apontar que, no momento do artigo de Turing, as discussões versavam sobre uma questão central (DUPUY, 1996 [1994], p. 31), derivada, remotamente, da tentativa fregueana de expressar a aritmética através da lógica e, imediatamente, da tentativa de Gödel de expressar lógica através da aritmética: a computabilidade efetiva de uma função. Segundo, Dupuy, o ano de 1936 foi decisivo na busca de solução para este problema. Primeiramente, através de um artigo de Alonso Church chamado “An unsolvable problem of elementary number theory" e, em seguida, pelo artigo de Turing. Contudo, importa para a presente investigação principalmente a estruturada máquina de Turing que, segundo Dupuy,

40

Compreende três órgãos: a máquina stricto sensu, suscetível a qualquer momento (o tempo é discretizado) de se achar num estado, chamado “estado interno”, pertencente a uma lista finita; uma fita ilimitada nos dois sentidos, que representa a memória da máquina: essa fita é dividida em casas, cada uma delas comportando ou não certa marca; e, por fim, uma cabeça de ler-escrever-apagar capaz de realizar as seguintes operações: colocada diante de uma das casas, ela lê se esta contém a marca ou não; pode apagar a marca, se ela existir, ou escrevê-la, no caso contrário; pode deslocar-se de uma casa para a direita ou para a esquerda (DUPUY, 1996 [1994])p. 32)

Ao par desta descrição, seu caráter mecânico é adequadamente explicado do seguinte modo: Turing chamou seu construto de máquina porque uma vez que seu operador tenha recebido as instruções, prossegue mecanicamente, sem intervenções inteligentes posteriores. É claro que, quando as únicas máquinas de computação físicas existentes eram calculadoras que realizaram operações aritméticas simples com engrenagens e alavancas, a concepção de Turing de uma máquina que podia realizar qualquer cálculo algorítmico foi um passo crucial no desenvolvimento dos computadores modernos digitais na década de 1940 (HINMAN, 2005, p. 436-437).

O que é relevante na concepção da máquina de Turing é o fato de se tratar de uma máquina lógica não efetivamente construída, mas imaginada e formalizada matematicamente. De certa maneira, faz lembrar as máquinas idealizadas por Charles Babbage (COLLIER & MACLACHLAN, 1998). Vejamos, por exemplo, a máquina analítica de Babbage, pensada em meados do século 19 e que, tal como descrita por Douglas Hofstadter em seu livro Gödel, Escher, Bach, Iria possuir um “armazém” (memória) e um “moinho” (unidade encarregada de tomar decisões). Era feita de milhares de complicados cilindros dentados, articulados entre si mediante engrenagens com formas incrivelmente complexas. Babbage teve uma visão de números entrando e saindo aos enxames do moinho sob o controle de um programa contido em cartões perfurados. A inspiração para esta ideia surgiu a partir do tear Jacquard, maquinaria controlada por cartões perfurados, e capaz de tecer padrões de desenho assombrosamente complicados (HOFSTADTER, 1979, p. 33).

Assim, duas das mais famosas ocorrências históricas de um dispositivo com instruções mecânicas estão no tear de Joseph-Marie Jacquard (1805), que utilizava cartões perfurados removíveis para definir os padrões a serem tecidos, e na máquina analítica de Babbage. Considerando que a computação é baseada na “ideia de um conjunto de instruções que podem ser aplicadas mecanicamente” (BECHTEL et al, 1998, p. 8), não podemos deixar de nos recordar de que as instruções de Jacquard e Babbage – sendo que estas últimas apenas de maneira idealizada – eram fornecidas literalmente de modo mecânico. É preciso sublinhar que a máquina analítica apresenta uma grande diferença em relação à máquina de Turing, embora fosse, de fato, tão imaginária quanto esta última: não se tratava de uma máquina apenas

41

lógica, ou ideal, como a de Turing, mas de um projeto, ainda que rudimentar e visionário, que se colocava na esteira da evolução técnica das calculadoras artificiais – aquela que levaria à construção efetiva do computador digital eletrônico nos anos de 1950. Vemos que a máquina analítica de Babbage, mais claramente do que a de Turing, se baseia em uma metáfora mecânica e fabril do pensamento. Porém, a máquina de Babbage, embora também nunca construída (mesmo tendo sido pensada para tal, ao contrário da de Turing), tinha outra característica especialmente notável: através da concepção dos cartões perfurados como meios de controle, instaurava a separação entre o nível lógico e o nível físico na computação artificial – já que inspirada no tear de Jacquard. Embora seus cartões não pudessem ser chamados propriamente de programas, eram veículos de instruções eminentemente lógicas, que poderiam ser modificadas sem que fosse alterado o mecanismo físico do artefato (COLLIER & MACLACHLAN,1998p. 81 a 89). Isto é, possuíam uma autonomia ideal, que somente se consubstanciará na inteligência artificial mais tarde, conforme será aqui abordado. Por outro lado, Margaret Boden dá destaque especial a uma obra que teria contribuído, segundo ela, para uma concepção mais adequada de uma máquina de pensar do que aquela proposta por Babbage. Trata-se daquela concebida por Alfred Smee em seu livro Process of thought adapted to words and language (1851), chamada de “máquina relacional”, por seu autor. Seu artefato de raciocínio seria baseado em princípios naturais, processando ideias do mesmo modo que o sistema nervoso humano, baseado no que Smee chamou de “eletrobiologia” e nas ideias de Boole (as quais serão referidas abaixo). Segundo Boden, o projeto de Smee previa uma grande placa de metal dividida em duas partes, sucessivamente, por (uma hierarquia de) dobradiças. Sua posição, aberta ou fechada, representaria a presença ou ausência das propriedades relevantes. Então, disse ele, duas máquinas relacionais podem ser combinadas para fazer uma “máquina diferencial”, cuja tarefa seria a de comparar duas ideias diferentes (BODEN, 2006, p. 121).

Para a historiadora, a importância dessa proposta, em comparação com a de Babbage, seria procurar pensar da “mesma maneira que as pessoas fazem” – em oposição a um modo estritamente lógico, como o da máquina de Babbage (Ibid., p. 122). Contudo, o próprio Smee teria reconhecido as limitações de seu projeto, uma vez que o tamanho de seu engenho – mecânico, como é óbvio para a época –, para se adequar aos fins propostos deveria cobrir uma área maior do que toda a cidade de Londres (Ibid., p. 121) e ser operacionalmente inviável. Deste modo, ainda que supostamente inspirada no que seria um modo humano de raciocinar, ela não seria viável a não ser com outra tecnologia, indisponível então.

42

Ao examinarmos a concepção das máquinas de Babbage e de Turing (e de Smee), nos preparamos para tratar da comparação entre os modelos lógicos e os modelos corpóreos da cognição, no interior de uma dinâmica histórica em que se alternam tendências de incorporação e desincorporação da cognição – mas com vantagem preliminar desta última. Os modelos lógicos aparentemente obtiveram uma vitória inicial, ao se tornarem o padrão no advento das ciências cognitivas, e resultaram do encontro – mas que manteve a segregação entre o nível lógico e o físico – entre o desenvolvimento das calculadoras físicas e o das máquinas lógicas, cuja forma essencial foi estabelecida não apenas por Turing, mas também por Claude Shannon. Este último abriu caminho para futuro descolamento do nível lógico da sua base física, paradoxalmente propondo uma coincidência entre ambos, a partir de seu artigo “A symbolic analysis of relay and switching circuits”, de 1938. Este trabalho teria sido, segundo Gardner, também influenciado pelo cientista da computação e posterior líder político da institucionalização da ciência no período imediatamente anterior à eclosão das ciências cognitivas, Vannevar Bush (GARDNER, 1985, p. 144). Nele, a princípio em busca de solucionar problemas oriundos da engenharia de comunicação, Shannon propôs a correspondência entre as alternativas verdadeiro/falso da lógica formal e as posições de ligado/desligado de circuitos eletrônicos, no que veio a constituir o princípio fundador da computação digital, mediante o conceito de binary digit, ou “bit” e à possibilidade de associação dos algarismos 0 e 1 a cada uns dos termos dos pares sim/não e ligado/desligado. A proposta de Shannon era essencialmente a de reunir a máquina lógica – a partir lógica booleana – à máquina física, incorporando a primeira à última, ou nela “corporificando mecanismos fundamentais de pensamento” (GARDNER, 1985, p. 21 e 159). Deste modo, Shannon possibilitou um acoplamento entre a camada de cálculo lógico e a camada de realização física deste cálculo. De fato, a se manter este acoplamento, a corporeidade da inteligência artificial estaria fixada. Mas não foi o que ocorreu. Como veremos adiante, graças também à analogia explicitada por Shannon, o encaixe entre lógica e circuitos físicos seria tornado móvel, reversível, com a autonomização do nível lógico poucos anos depois, quando da construção de um dos primeiro computadores eletrônicos. Essa autonomização é indissociável da concepção dos modelos lógicos, mas também irá ter correlação com pressupostos ontológicos de existência do nível lógico independentemente de substratos físicos. A solução de Shannon também teve impacto prático considerável, na viabilidade da construção de máquinas de computar eletrônicas, o que, posteriormente, possibilitou a inteligência artificial. Quanto a esse aspecto, Bechtel, Abrahamsen e Graham chamam

43

atenção para um fato que leva em consideração Babbage, Turing e Shannon (BECHTEL et al, 1998, p. 8-9). Eles argumentam que Babbage não teria conseguido construir a máquina analítica devido a limitações técnicas da época (o que se aplicaria, como vimos, também a Smee), que foram superadas apenas no século seguinte graças ao achado de Shannon. Este, por sua vez, possibilitou o surgimento de equipamentos eletrônicos de computar cuja fabricação contou com a participação de Turing, na Inglaterra, durante a Segunda Guerra Mundial. Tais equipamentos eram destinados a decifrar mensagens criptografadas pelos militares alemães, que utilizavam um equipamento mecânico para ocultar o sentido das mensagens. O uso de máquinas eletrônicas valvuladas, por Turing e sua equipe, possibilitou a rapidez de processamento necessária para decifrar o que havia sido criptografado mecanicamente. Este foi um dos impulsos na inteligência artificial propiciado pelas pesquisas militares durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo o que se defende neste trabalho, o desenvolvimento da crença –originada em trabalhos na filosofia e na matemática – de que a lógica pode ser identificada à estrutura do pensamento foi um processo fundamental para o nascimento da inteligência artificial, do modelo lógico-proposicional e, juntamente com estes, das ciências cognitivas. Este processo teria correspondido à autonomização da lógica em relação a outras formas de pensamento, culminando com sua desincorporação – o que decorre da concepção de que independe das características, corpos e experiências dos sujeitos particulares que raciocinam e a faz ser entendida como estrutura transcendente e anterior ao pensamento. Ao se referirem à evolução histórica da representação do pensamento humano em termos lógico-numéricos, Bechtel et al, por exemplo, apontam em Gottfried Leibniz uma das origens do que podemos chamar de movimento de autonomização do formalismo lógico, ao afirmarem que o filósofo do século 17 “propôs que números poderiam ser atribuídos aos conceitos, e que as regras formais utilizadas para manipular esses números serviriam também para manipular os conceitos aos quais os números foram atribuídos” (Ibid., p. 9). Os mesmos autores destacam a importância de George Boole neste processo histórico – embora sua preocupação com isso seja identificar as origens da inteligência artificial, e não do modelo lógico-proposicional, uma vez que este não é um objetivo destes autores. De qualquer modo, segundo eles Boole, em seu livro de 1854 The laws of thought defendeu a utilização dos operadores lógicos “e”, “ou” e “não” para expressar proposições, e que as leis das operações lógicas assim realizadas poderiam ser consideradas leis do pensamento. No entanto, entendem que a proposta de Boole se limitava a “operações sobre proposições completas (por exemplo: ‘A mulher é uma advogada’) e não podia lidar com a estrutura interna à proposição (por exemplo, o fato de que o predicado ‘é

44

um advogado’ está sendo relacionado com ‘a mulher’)” (Ibid.). De acordo com Bechtel e coautores, foi somente Gottlob Frege quem obteve sucesso em traduzir logicamente as proposições, com seu cálculo proposicional: Frege, porém, expandiu o sistema em 1879 para lidar com tais predicações (permitindo representações de argumentos a partir de premissas como "Todos os advogados passaram no exame da Ordem” e “Esta mulher é uma advogada" até "Esta mulher passou no exame da Ordem"); o sistema resultante do cálculo de predicados proporcionou uma maneira de formalizar inferências que tem sido extremamente influente. A ideia de representar formalmente informação em notação simbólica e usar operações formais para transformar esta informação forneceu um meio crucial para a utilização de computadores a fim de simular raciocínio (Ibid., p. 10).

Entretanto, a argumentação destes autores se dirige, como foi assinalado, ao papel da representação formal da lógica no nascimento da inteligência artificial. Nesta tese, por outro lado, há a intenção de se investigar, ainda que com brevidade, o que deve ser chamado mais propriamente de autonomização da lógica – o que teria contribuído não somente para a eclosão da inteligência artificial, mas também para a elaboração do modelo lógicoproposicional da cognição. Em outras palavras, trata-se aqui também de defender a hipótese de que o desenvolvimento de uma imagem lógica do pensamento humano foi crucial para a constituição do modelo lógico-proposicional, o que teria possibilitado a adoção da metáfora computacional da cognição – mas através da identificação da cognição à própria lógica simbólica que nela se faz presente, ou que ela também produz, como será examinado adiante. Assim, neste processo histórico o papel do cálculo proposicional fregueano deve ser reconhecido, mas também teria sido fundamental sua defesa da axiomatização de uma lógica abstrata e universal independente dos indivíduos que a operam11(FREGE, 1974 [1884]; MANNO, DUMMETT, LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 440; SHAPIRO, 2000, p. 96 e 108 a 115). Margaret Boden sintetiza da seguinte forma a importância de Frege neste processo de recusa à psicologicização da lógica:

11

O papel de Frege na formação da orientação cognitivista será analisado, na seção 2.2., também quando à hipótese de sua influência mais propriamente filosófica sobre os cientistas e filósofos que a desenvolveram, quando estivermos abordando aspectos ontológicos desta orientação.

45

Em sua crítica do psicologismo, Frege introduziu novos padrões de rigor lógico e contribuiu com uma série de novas ideias em lógica e filosofia da linguagem. Por exemplo: • Ele definiu a noção de um “valor de verdade”; • Ele foi pioneiro no cálculo proposicional de verdade funcional; • Ele forneceu um formalismo, o cálculo de predicados, que poderia representar a estrutura interna das proposições, e trabalhar com quantificadores como “todos” e “alguns”. • Ele definiu funções de ordem superior, ou funções compostas de funções (uma ideia que mais tarde iria alimentar a linguagem LISP). • E ele fez distinções importantes entre os vários significados de “significado” – como sentido e referência. As frases "a estrela da manhã" e "estrela da noite" têm sentidos diferentes, de modo que seriam traduzidas de forma diferente; mas, como os astrônomos descobriram, elas têm a mesma referência: ou seja, o planeta Vênus. Como resultado do trabalho de Frege, que se tornou amplamente influente com a publicação dos Principia mathematica, por Bertrand Russell e Alfred North Whitehead, em 1910, a lógica e a psicologia foram deslocados para mais distante ainda uma da outra. As pessoas só veriam máquinas lógicas como tendo relevância psicológica em meados do século XX,. Ironicamente, elas o fizeram, em grande parte, por causa de Frege – através de Russell (1872-1970) do aluno de Russell Rudolf Carnap (1891-1970) (BODEN, 2006, p. 123).

O tema do antipsicologismo de Frege, assim como a aparentemente paradoxal “psicologização” da lógica promovida pelo cognitivismo, será alvo de observações no âmbito da crítica da cognição corpórea na seção 2.2. Contudo, por ora devemos apontar para a lógica de matriz booleana e fregueana como extremamente influente na criação do modelo lógicoproposicional da cognição; e assim é que, num ambiente tecnológico, cultural e intelectual em que a lógica ao mesmo tempo se autonomizava em relação à sua efetiva corporeidade nos cérebros humanos e era oferecida à incorporação em artefatos de computar, um último elemento vem se juntar para possibilitar, em termos de formulações teóricas, a gênese das ciências cognitivas: a neurofisiologia. E a chegada deste elemento veio com uma proposta de reincorporação da lógica ao cérebro – que, como veremos, não significou exatamente isto. Trata-se do artigo “A logical calculus of ideas immanent in nervous activity”, de Warren McCulloch e Walter Pitts, publicado em 1943, que aponta a lógica como base conceitual adequada para compreender a cognição do ponto de vista do funcionamento cerebral, uma vez que os componentes elementares do cérebro, os neurônios, teriam seu comportamento não apenas individual, mas também coletivo na forma de redes neurais, conduzido por princípios lógicos, comparáveis aos dos modelos de Alan Turing e Claude Shannon. Dupuy afirma que o artigo de McCulloch e Pitts “demonstra [no cérebro], em princípio, a existência de uma máquina lógica equivalente à de Turing” (DUPUY, 1996 [1994], p. 59). Mas essa máquina não obedece a uma lógica qualquer: trata-se de uma máquina de lógica proposicional. É o que diz o próprio artigo:

46

A lei de tudo ou nada das atividades do sistema nervoso é suficiente para assegurar que a atividade de qualquer neurónio possa ser representada como uma proposição. As relações fisiológicas existentes entre as atividades nervosos correspondem, evidentemente, às relações entre as proposições; e a utilidade da representação depende da identidade destas relações com as da lógica das proposições. Para cada reação de qualquer neurônio há uma asserção correspondente a uma proposição simples (MCCULLOCH & PITTS, 1943, p. 117).

Gardner reforça esta concepção, salientando certo aspecto da proposta de McCulloch e Pitts: “a propriedade de tudo ou nada dos impulsos (ou não impulsos) nervosos poderia ser comparada à operação do cálculo proposicional (onde uma operação ou é verdadeira ou é falsa)” (GARDNER, 1985, p. 18 – grifo meu). Com esta constatação de correspondência entre o funcionamento binário de um dispositivo (no caso, o neuronal) e a dicotomia do cálculo proposicional – entre as alternativas “verdadeiro” ou “falso”, que não admitem a contradição que qualquer terceira opção geraria –, estamos diante de um mecanismo análogo ao proposto por Shannon, o que pode ser entendido já como uma metáfora computacional. Assim, embora McCulloch insista que seu trabalho significou a corporificação da mente no cérebro – sua coletânea de artigos de 1965, em que consta o artigo citado, chama-se Embodiments of mind12, fato que demonstra essa convicção–, o que encontramos em sua formulação com Pitts ainda é basicamente um modelo que pode ser chamado de lógicoproposicional, mesmo que aplicado ao cérebro. Isto porque, se os substratos físicos podem variar entre os modelos de Shannon e de McCulloch-Pitts, mas o processo cognitivo se mantém constante em ambos graças à presença de um esquema lógico-proposicional a eles comum, constata-se que o essencial no modelo é este esquema, e não o substrato – como já foi dito na seção anterior. Além disso, no caso do modelo de McCulloch-Pitts, o corpo, restrito então ao cérebro, não tem nenhum papel insubstituível na cognição, não gera nenhum efeito que somente ele possa gerar. Numa avaliação que tende a corroborar esta compreensão, Boden identifica no modelo de McCulloch-Pitts influências do atomismo lógico de Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein, através de uma noção proposta por McCulloch anteriormente (BODEN, 2006, p. 187). Trata-se da ideia de psychon, o ato psíquico mais simples, concebida por ele duas décadas antes de seu trabalho mais conhecido com Pitts. Em sua narrativa autobiográfica, McCulloch afirma:

12

Proponho a tradução deste título como “Corporeidades da mente”.

47

Em 1923 eu desisti de tentar escrever uma lógica dos verbos transitivos, e comecei a ver o que eu poderia fazer em relação à lógica das proposições. Meu objetivo, como um psicólogo, era inventar um tipo de evento psíquico mínimo, ou “'psychon”, que teria as seguintes propriedades: primeiro, deveria ser um evento tão simples a ponto de acontecer ou não acontecer; em segundo lugar, era para acontecer somente apenas ocorrida sua causa estreita... ou seja, ele deveria implicar seu antecedente temporal; em terceiro lugar, o mesmo deve ser proposto para psychons subsequentes; e em quarto lugar, os psychons deveriam ser compostos para produzir os equivalentes a proposições mais complexas, relativas aos seus antecedentes (MCCULLOCH, 1988, p. 5).

Reforçando a questão temporal, Boden sublinha que o psychon deveria ser o equivalente para a psicologia ao átomo para a química e o gene para a genética, mas, ao contrário do átomo e do gene, o psychon seria um evento, com um lugar no tempo e uma história temporal. Como uma unidade psíquica, tinha que ser intrinsecamente capaz de conectar conhecimento e ação (ou percepção e movimento, ou mesmo crença e inferência) assim como um gene, como uma unidade hereditária, é intrinsecamente capaz de conectar as gerações. Ele tinha que ter uma semiótica, ou aspecto significativo; isto é, tinha que corresponder a uma proposição. E, para McCulloch, tinha que possuir algum equivalente no cérebro (BODEN, 2006, p. 188).

A partir desta descrição, percebe-se que a qualidade de “partícula elementar” do psychon – ainda que este conceito não tenha sido mantido posteriormente nas formulações das ciências cognitivas – auxilia na compreensão do modelo lógico-proposicional da cognição, ao ser associado a algumas das características deste último, uma vez que permite clarificar a contribuição pioneira de McCulloch e Pitts às ciências cognitivas. O primeiro ponto a ser ressaltado neste sentido é o fato de o psychon ser uma unidade proposicional. Este aspecto ajuda a esclarecer a concepção do modelo cognitivista como uma sequência lógica formada por elementos proposicionais discretos. O segundo é o seu caráter temporal. Isto ajuda a destacar a condição de que os elementos do modelo lógico-proposicional se articulam num de maneira causal numa sucessão de eventos, em que a ocorrência de um elemento somente pode se dar após a ocorrência de seu antecedente, sob pena de que não apenas se comprometa a transformação simbólica esperada em cada um de seus passos, mas também a produção do output do sistema. Por fim, a característica do psychon de elemento cognitivo discreto, associada à de evento sequencial, favorece que se pensem os “átomos” proposicionais apresentados no artigo recém-mencionado de McCulloch e Pitts como articulados aos eventos e elementos discretos neuronais. Assim, embora o psychon não tenha recebido uma descrição precisa – nem mesmo no artigo mais conhecido de McCulloch com Pitts, onde é mencionado apenas de passagem (MCCULLOCH & PITTS, 1943, p. 131) –, é uma imagem útil para se compreender o caráter binário e proposicional da cognição tal como concebida nos antecedentes do cognitivismo – e que nele perduraria.

48

Mas, segundo Dupuy, não seria o artigo de McCulloch-Pitts bastante para desencadear o que é aqui chamado de liderança da inteligência artificial na gênese das ciências cognitivas, da orientação cognitivista e do modelo lógico-proposicional. Afinal, ele nem mesmo versava sobre inteligência artificial. Um fato tecnológico teria sido o grande divisor de águas neste processo histórico, devendo seu acontecimento às pesquisas militares norte-americanas durante a Segunda Guerra Mundial, no chamado Projeto Manhattan – o que vem a ser o segundo fato militar anunciado acima. Trata-se da participação de John Von Neumann na concepção dos primeiros computadores eletrônicos de grande porte construídos, e cuja concretização se iniciou em 1943. O primeiro deles, batizado de ENIAC (Electronic Numerical Integrator e Calculator), foi desenvolvido para calcular tabelas de artilharia de modo a se atingirem alvos em uma diversidade de terrenos. Sua construção se iniciou na Universidade da Pensilvânia, por J. Presper Eckert e John Mauchly, mas permaneceu incompleta até 1946, quando John Von Neumann projetou sua arquitetura básica – a chamada "arquitetura Von Neumann". Foi somente no sucessor do ENIAC, o EDVAC (Electronic Discrete Variable Computer), que esta arquitetura se implementou. Segundo Bechtel, Abrahamsen e Graham, O coração da arquitetura Von Neumann é uma distinção entre a memória de um computador e sua unidade de processamento central (CPU). Uma das inovações de Von Neumann foi reconhecer que as instruções que constituem um programa podem ser armazenadas na memória do mesmo modo que os dados a serem operados. As operações do computador são executadas em ciclos na CPU; em cada ciclo os dados e as instruções são lidos na memória pela CPU, que executa as instruções e retorna os resultados para a memória (BECHTEL et al, 1998, p. 9).

O contexto destas pesquisas deve ajudar a esclarecer, também, importantes aspectos relacionados à necessidade de colaboração interdisciplinar nos antecedentes das ciências cognitivas, que teriam se mantido presentes em sua prática. Para lançar luz sobre este tema, será mencionado brevemente, na próxima seção, o episódio da reunião de pesquisadores de diversas origens no Projeto Manhattan, destinado à confecção das bombas atômicas nos EUA durante a Segunda Guerra, no âmbito do qual se inseriu as pesquisas que geraram o ENIAC e o EDVAC. Mas, ainda sobre o ENIAC, acrescenta Dupuy,

49

Esse dinossauro informático foi realizado sem que se dispusesse da ideia de que a concepção lógica de uma máquina de calcular é separável da concepção de seus circuitos, (...) ou, para dizê-lo em termos atuais, sem que fosse feita a distinção entre o “equipamento” (o hardware) e o “programa” (o software). Essa ideia foi formulada por John von Neumann, quando, chamado para consulta pelos construtores do ENIAC, já elaborou os conceitos da nova geração de computadores. Ora, de onde ele a tirou senão da leitura do artigo de McCulloch-Pitts? Ante esse recém-chegado no mundo material que é o computador, von Neumann adota exatamente a mesma atitude que estes últimos ante o cérebro biológico: dele abstrai uma máquina lógica – e, o que é mais, a mesma máquina lógica (DUPUY, 1996 [1994], p. 77 –grifo em negrito meu).

O que Dupuy chama de máquina lógica abstrata é o que, de acordo com o que aqui se defende, constitui a essência do modelo lógico-proposicional, que será desenvolvido a partir de eventos institucionais que serão destacados adiante, com a adoção das noções de processamento de informações e de representação mental (como manipulação incorpórea e autônoma de símbolos). É fundamental assinalar que o que aqui está sendo considerado como germe do modelo lógico-proposicional é o advento da separação entre equipamento e programa, nos computadores. Para Dupuy, teria sido necessário que o programa se autonomizasse nos computadores para que a ideia de máquina lógica abstrata surgisse e inspirasse sua aplicação à cognição. A influência de McCulloch e Pitts sobre a “arquitetura Von Neumann” é corroborada por Boden (2006, p. 160) e por Gardner: Os inventores das novas máquinas computacionais ficaram intrigados comas ideias apresentadas por McCulloch e Pitts. Graças à sua demonstração, a noção de uma máquina de Turing apontava agora cm duas direções - para um sistema nervoso, composto de inúmeros neurônios tudo-ou-nada; e para um computador capaz de realizar qualquer processo que possa ser descrito de forma inequívoca (GARDNER, 1985, p. 18-19).

Mas esta teria sido, segundo a interpretação aqui adotada, a opção de entendimento do artigo de McCulloch-Pitts efetivada pelas condições históricas. Porque, de fato, o artigo possuía o germe não apenas do modelo lógico, mas também do modelo conexionista e dos modelos corpóreos. A ideia das redes neurais, que será a base para a orientação conexionista, estava presente no artigo. Já a orientação corpórea parte da contestação à separabilidade entre a cognição, o corpo e o ambiente em que ela ocorre. O que esta orientação diz é que a cognição não é destacável dos neurônios, e tampouco é adequado, para a compreensão destes, idealizálos como células cujo funcionamento seja independente do restante do corpo humano (entendido como organismo) e do ambiente. Assim, contando também com a influência do desenvolvimento das neurociências nos anos posteriores, os modelos corpóreos rejeitam a operação de desincorporação imposta pela inteligência artificial ao modelo de McCullochPitts. Isto é, consideram que a neurofisiologia, como foi dito, veio ao encontro da gênese das

50

ciências cognitivas, mas foi então subutilizada, sendo de imediato reduzida a uma disciplina dedicada a um subalterno suporte neural para as operações simbólicas. Sob o ponto de vista cognitivista, as características importantes dos neurônios são exclusivamente a de eles serem bons veículos para manipulações lógicas de símbolos. O que a orientação corpórea pretende é chamar de volta a neurofisiologia, a fim que agora faça diferença mais efetiva, ao ajudar a compreender a cognição como essencialmente encarnada. Todavia, o artigo de McCulloch-Pitts foi apenas um precursor bastante nítido de um programa interdisciplinar de pesquisa. Autores, como Michael Arbib, afirmam não se sustentar a ideia de que o funcionamento do neurônio individual podia ser admitido como ocorrendo em tempo discreto: A teoria moderna do cérebro não usa mais o modelo binário do neurônio, e sim modelos de tempo contínuo que representam a variação na taxa média de disparo do neurônio, ou realmente capturam a evolução temporal do potencial da membrana. É somente através de tais correlações de atividade cerebral mensurável que os modelos do cérebro podem realmente fornecer realimentação para experimentos biológicos (ARBIB et al, 2002, p. 8).

Além disso, há considerações que rejeitam que o cérebro, por ser um órgão finito13, possa ser equiparado à máquina de Turing – por definição dotada de uma memória infinita (DUPUY, 1996 [1994], p. 65). Contudo, não se trata aqui de defender a hipótese de que a neurociência se manteve fiel à teoria do neurônio de McCulloch-Pitts, de tal maneira que esta disciplina somente poderia se integrar às ciências cognitivas caso adotasse esse pressuposto. Como já foi dito, o neurônio de McCulloch-Pitts serviu muito mais para inspirar um modelo desincorporado de cognição a ser proposto pela inteligência artificial às demais ciências cognitivas, do que para promover uma imagem dos processos cognitivos em que necessariamente a tese da manipulação de símbolos deveria se encarnar intimamente nas unidades e redes neuronais. Veremos na seção 1.2 como a neurociência pôde dispensar esta incorporação e, assim, não depender da aceitação do neurônio de McCulloch-Pitts para se integrar às ciências cognitivas. Estes foram, em linhas gerais, os fatos científicos, tecnológicos e filosóficos que antecederam e criaram as condições para a eclosão das ciências cognitivas. Não significaram ainda ações conscientes e organizadas de diversos cientistas com um objetivo comum. Porém, para deixar mais claro o processo de consolidação do modelo lógicoproposicional, levemos em conta, na próxima seção, alguns acontecimentos institucionais que

13

Para discussões a respeito do que seria um “autômato finito”, no sentido de um dispositivo computacional constituído por redes neurais, v. KLEENE, 1956; ARBIB, 1961 e SIEGELMANN, 1999.

51

ocorreram nos EUA e definiram, como projeto consciente e declarado, a liderança da inteligência artificial nas ciências cognitivas, bem como o caráter interdisciplinar e a unidade destas. 1.1.3. Estabelecimento institucional das ciências cognitivas como programa unificado Os eventos a seguir descritos tiveram influência decisiva na formação das ciências cognitivas e de seu modelo preferencial. O primeiro conjunto de encontros foi o das Conferências Macy, que ocorreram de 1946 a 1953, patrocinadas pela Fundação Josiah Macy Jr. Trataram, a partir de certa altura, de cibernética mas, por contarem com a participação dos principais nomes das futuras ciências cognitivas, serviram como importante impulso para a formação do novo campo científico, desde já afirmando sua feição interdisciplinar e unificadora. Dupuy ilustra esta preocupação explícita, através das palavras de Frank FremontSmith, administrador da fundação: A especialização, a profissionalização e o isolamento crescentes das disciplinas científicas constituem atualmente um dos principais obstáculos ao progresso do conhecimento. Daí a palavra de ordem: derrubar as divisórias artificiais, pôr as diversas especialidades numa relação de comunicação, para permitir uma reunificação da ciência (DUPUY, 1996 [1994], p. 100).

A Fundação Josiah Macy Jr. foi criada em 1930 para se dedicar aos “aspectos fundamentais da saúde, da doença e de métodos para o alívio do sofrimento", com ênfase na integração de “funções nas ciências médicas e da educação médica " (TUDICO, 2012, p. 5). Segundo Christopher Tudico, em seu livro The history of the Josiah Macy Jr. Foundation, a fundação foi criada por Kate Macy Ladd, filha e herdeira do magnata do petróleo Josiah Macy Jr., por inspiração de ao menos três fatores principais: sua formação Quaker, sua vida marcada por doenças, e as tendências filantrópicas comuns a diversos milionários norte-americanos da mesma época (Ibid., p. 5-10). Quanto a este último aspecto, no prefácio do citado livro George E. Thibault arrola empreendimentos semelhantes, iniciados pelas seguintes famílias muito abastadas e influentes: Carnegie (Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, 1905, and Carnegie Corporation, 1912); Rockefeller (Rockefeller Foundation, 1913); Harkness (Commonwealth Fund, 1918); Kellogg (W.K. Kellogg Child Welfare Foundation, 1930); Sloan (Alfred Sloan Foundation, 1934); and Ford (Ford Foundation, 1936) (Ibid., p. 5).

A última fundação da lista esteve presente no apoio à RAND Corporation, que impulsionou a inteligência artificial nos anos 1950 e 1960, e a penúltima no maior

52

financiamento expressamente dedicado às ciências cognitivas, nos anos 1970 – conforme veremos adiante. Dezesseis anos após sua criação – intervalo que coincide em parte com o período da Segunda Guerra Mundial, no qual, como vimos, alguns dos importantes antecedentes das ciências cognitivas haviam ocorrido –, a Fundação Macy se envolveu no apoio às iniciativas de um conjunto de cientistas interessados em atividades interdisciplinares, cujos líderes eram Warren McCulloch, John Von Neumann, Norbert Wiener e Gregory Bateson (DUPUY, 1996 [1994], p. 86-87). Assim, patrocinou em 1946 a primeira das chamadas Conferências Macy. Mas é importante notar que isto se deu no seguinte contexto, de acordo com Tudico: Quando os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial, a necessidade de suporte privado a conferências sobre temas relacionados com a medicina tornou-se cada vez mais urgente. Muitos cientistas que trabalham com problemas relacionados ou em diferentes aspectos do mesmo problema estavam isoladas pelas condições da guerra e necessitavam de oportunidades para compartilhar ideias, pesquisas e dados. A Fundação Macy preencheu essa necessidade através da organização de várias conferências, estabelecendo uma abordagem única que se mostrou particularmente relevante. Dada a eclosão da guerra, os temas de ossos e cicatrização de feridas e lesões hepáticas desde que os temas para as primeiras conferências de Macy. (...) Conferências em tempo de guerra sobre choques e neuroses traumáticas de guerra, por exemplo, também foram altamente produtivas (TUDICO, 2012, p. 35)

Foi no mesmo esforço de promover a interdisciplinaridade científica em prol da saúde, como já assinalado nas citações anteriores – mas visivelmente ampliando as fronteiras iniciais desta intenção –, que a Fundação Macy apoiou os esforços pioneiros dos pesquisadores que já haviam percebido a necessidade de que uma nova ciência deveria surgir da convergência de várias iniciativas localizadas, uma vez que todas tinham como preocupação comum explorar uma nova imagem de ser humano, e de saúde mental. Isto é reforçado na seguinte passagem de Dupuy: A América dos anos do pós-guerra está traumatizada com as loucuras coletivas que acabam tragicamente de dilacerar o mundo. Um conceito ganha importância e se torna a chave que permitirá, segundo creem, abrir a porta de uma nova ordem mundial enfim entregue á paz: a “saúde mental” (DUPUY, 1996 [1994], p. 101).

Assim, A Fundação Macy também patrocinou conferências sobre temas como o nascente campo da cibernética. (...) As Conferências Macy sobre cibernética refletiram bem a convicção da Fundação de organizar conferências interdisciplinares como plataforma para o avanço do conhecimento. Além disso, as Conferências Macy sobre Cibernética demonstraram a capacidade da Fundação para moldar novas áreas provocativas de pesquisa. Os participantes das Conferências Macy sobre Cibernética inicialmente se uniram devido ao seu interesse comum nos "mecanismos fisiológicos subjacentes aos fenômenos de reflexos condicionados e hipnose tais como relacionados ao problema da inibição cerebral”. A cibernética acabou evoluindo nos mais diversos grupos de conferência da Fundação Macy; neles participaram

53

representantes das áreas de engenharia elétrica, matemática, sociologia, antropologia, psicologia, psiquiatria, fisiologia, biologia, anatomia e zoologia (Ibid.)

Embora seja comum afirmar que as Conferências Macy versaram sobre cibernética, é importante assinalar que o termo só foi incorporado a seu título em 1949, e que, ao final da série, elas já se dedicavam, em grande parte, como veremos, ao que receberia o nome de ciências cognitivas. Desta forma, as Conferências Macy se ocuparam propriamente de cibernética sobretudo em seu período médio. Abaixo, a relação das conferências, com seus anos e títulos originais, de acordo com o livro de Dupuy:

Conferência

Ano

Título



1946

“Teleological Mechanisms in Society”



1946

“Teleological Mechanisms and Circular Causal Systems”



1947

“Teleological Mechanisms and Circular Causal Systems”



1948

“Circular Causal and Feedback in Biological and Social Systems”



1948

“Circular Causal and Feedback in Biological and Social Systems”



1949

“Cybernetics - Circular Causal and Feedback in Biological and Social Systems”



1950

“Cybernetics - Circular Causal and Feedback in Biological and Social Systems”



1951

“Cybernetics - Circular Causal and Feedback in Biological and Social Systems”



1952

“Cybernetics - Circular Causal and Feedback in Biological and Social Systems”

10ª

1953

“Cybernetics - Circular Causal and Feedback in Biological and Social Systems”

Fonte: (DUPUY, 1996 [1994]).

54

Ainda de acordo com Dupuy, os registros disponíveis da Conferência Macy consistem, primeiramente, das atas dos cinco últimos encontros. Mas, quanto ás cinco primeiras conferências, não resta nenhum registro delas. No entanto, dispomos de uma carta que McCulloch endereçou previamente a todos os participantes da quarta conferência “sobre os mecanismos teleológicos" (1947), que se apresenta como um minucioso relatório das três primeiras. As atas da décima conferência também contêm um resumo das nove primeiras. estabelecido por McCulloch. As atas da oitava e da nona conferências são precedidas de uma “A Note by the Editors” que fornece indicações úteis sobre a história do ciclo. Encontram-se na introdução de Wiener a Cybernetics (1948) alguns dados sobre as primeiras conferências (DUPUY, 1996 [1994], p. 89).

Mesmo com estas limitações, e também graças ao trabalho de Steve Heims que, com seu livro The cibernetic group (1991) analisou sobretudo o núcleo principal da cibernética, as Conferências Macy foram suficientemente documentadas e conhecidas, o que permite avaliar sua importância para o nascimento das ciências cognitivas. De acordo com Boden, “a cibernética é relevante para as ciências cognitivas porque foi um projeto conscientemente interdisciplinar que estudou organismos, bem como artefatos, e fez com que a ideia do ‘homem como máquina’ abranges senão apenas a mente, mas também o corpo” (BODEN, 2006, p. 200). Nesta afirmação encontram-se dois pontos cruciais para o presente trabalho: a) de que a cibernética já tinha como característica o que transmitiu às ciências cognitivas: o fato de ser um projeto conscientemente interdisciplinar; e b) a cibernética foi precursora das ciências cognitivas no uso da metáfora mecanicista da mente, além ter aplicado a mesma analogia ao corpo humano. Por sua vez, Dupuy destaca que, na cibernética “tratava-se, antes, de alcançar, no domínio das ciências da mente, o mesmo grau de objetividade que na física” (DUPUY, 1996 [1994], p. 98). Estas ideias, agregadas àquelas já destacadas acima, de se promover a saúde mental da humanidade, fornecem a base para que, da cibernética, se consubstanciem as ciências cognitivas como um empreendimento mais viável, porque suportado pela metáfora computacional – ou, como diz Boden, pela metáfora de mente como máquina. Retomemos, neste momento, a questão da saúde mental social. Segundo Dupuy, falando a respeito dos primeiros cibernéticos, é

55

a fé no poder curativo, libertador e pacificador das ciências do homem que anima nossos pioneiros. Mas temos de ser mais precisos. A ciência do homem que recebe seus favores é a psiquiatria, entendida como ciência social. Diversas correntes ou escolas de pensamento contribuem para delimitar um novo campo de investigações, conhecido sob o nome de “personalidade e cultura”. (...)A noção-chave que se depreende desses diversos trabalhos é a de uma causalidade circular entre personalidade e cultura: a personalidade dos indivíduos ê moldada pelo meio social e cultural em que eles vivem, mas inversamente, esse meio é o reflexo da personalidade de base dos que o habitam. Deveria, pois, ser possível agir sobre a psicologia dos indivíduos afim de induzir as mudanças desejadas na sociedade global, com a condição de levar em conta os efeitos retroativos que uma tal intervenção não pode deixar de produzir (Ibid., p. 100).

A convergência entre este espírito e as motivações da Fundação Macy talvez expliquem não apenas a longa duração das Conferências Macy, mas também a arregimentação de tantos cientistas de diversas áreas em torno de um mesmo projeto. Devemos procurar compreender, contudo, como estes propósitos se transformaram em um programa, como o das ciências cognitivas, que partiu da imagem mecânica da mente, defendida pela cibernética até chegar ao modelo lógico-proposicional da cognição. Levemos em conta, ainda, a seguinte fala de Lawrence Frank, um dos líderes das Conferências Macy, na primeira conferência, a partir da ideia de mecanismo teleológico, tal como citada por Dupuy: Podemos ver no conceito de mecanismos teleológicos uma tentativa de escapar às formulações mecanicistas antigas, que agora se mostram inadequadas, e de fornecer concepções novas e mais frutíferas, bem como metodologias mais eficazes, para estudar os processos autorregulados, os sistemas e organismos auto-orientados e as personalidades autodirigidas... É legitimo considerar esta conferência como uma etapa importante, e talvez até capital, na progressão para esse novo clima de opinião que esta surgindo agora nas atividades cientificas, filosóficas e ate artísticas. Não somos meras testemunhas: por estes encontros e discussões, somos os artesãos ativos desse novo clima de opinião... A maneira como vejo as coisas é que estamos comprometidos, hoje, numa dessas transições ou reviravoltas maiores da história das ideias... Quando as ciências sociais aceitarem as condições novas... e aprenderem a pensar em termos de processos circulares, então, provavelmente, farão avanços espetaculares... O novo método já foi aprovado na área psicocultural, na qual começa a esclarecer o fato de que as regularidades socioculturais e os traços específicos da personalidade são aspectos duais de uma mesma realidade (Ibid., p. 103).

Veremos na seção 2.1 que a ideia de autorregulação foi obscurecida pela de autoorganização na Segunda Cibernética, mas devemos examinar como a própria noção de mecanismos teleológicos se esvaziou diante das novas teses apresentadas pelas ciências cognitivas. Frank propunha que as ciências sociais aceitassem novas condições de fundamentação nas ciências do indivíduo. Ele falava em processos circulares, mas não explicava como poderia se dar a articulação entre ciências sociais e psicologia através destes processos, típicos da primeira cibernética. Dupuy discutiu este problema, destacando que havia uma preocupação declarada em evitar as guerras a partir da suposição de que elas

56

nascem “nas mentes dos homens” e, nestas, deve se eliminar as raízes do belicismo (Ibid, p. 104) Mas ele acrescente que havia nas primeiras das conferências Macy, sobretudo por parte da direção da fundação, a intenção de promover, através da colaboração entre física e psicanálise, para que “os princípios da lógica fossem colocados a serviço” (Ibid.) de se encontrar solução para os problemas de comportamento social e em defesa da paz – o que Dupuy chama de programa “personalidade e cultura”. Porém, segundo este autor, a intenção dos cientistas presentes nas conferências – ou dos cibernéticos – seria a de conquistar o terreno da psicologia. Neste sentido, seu propósito seria, mais propriamente, o de “destruir” o obstáculo que a psicanálise poderia significar, no sentido de fazer prevalecerem a matemática e a física. Mas o que teria prevalecido não teria sido a física, e sim a lógica. No mesmo sentido já examinado na seção anterior, o que se deu após as Conferências Macy, de acordo com Dupuy, foi o predomínio do logicismo, que levaria, por sua vez, ao cognitivismo. Deste modo, as preocupações manifestadas pela liderança da Fundação Macy, de cura dos males sociais pela fundamentação das ciências sociais na psicologia, acabaram sendo deslocada sem decorrência da substituição da psicologia tradicional por uma crença na objetividade da lógica em si mesma. Isso se constata na seguinte passagem de Dupuy – na qual ele se refere, a princípio, à filosofia da mente, mas com termos que se aplicam ao cognitivismo. Em outras palavras, Dupuy parece atribuir um importante papel à filosofia analítica na constituição do que aqui está sendo chamado de modelo lógico-proposicional (o que será abordado em maior profundidade na seção 2.2). Tenha-se em mente o formalismo de Hilbert ou o logicismo de Frege, de Russell e de Carnap, para o qual é essencial cortar os laços entre a lógica e a psicologia, devendo a objetividade da primeira fundamentar-se em algo diferente da contingência ou da facticidade da segunda; o positivismo lógico do Círculo de Viena, que concebe a filosofia como uma atividade de depuração da linguagem da ciência, para expulsar dela toda “metafísica”; Wittgenstein e a filosofia da linguagem comum da Escola de Oxford, para a qual não há “linguagem privada” e, portanto, o único acesso aos pensamentos passa pela análise da linguagem como uma atividade pública submetida a normas reconhecidas por uma comunidade intersubjetiva: em todos os casos há ao mesmo tempo recusa determinada de fundar a filosofia na psicologia e prioridade concedida ao estudo da linguagem. A filosofia analítica é, por sua origem, uma filosofia da linguagem. Ao linguistic tum do começo do século teria, porém, sucedido um cognitive turn (Ibid., p. 115).

Mas como esta influência teria se dado nas Conferências Macy, de tal modo a até mesmo substituir, aparentemente, as intenções reducionistas dos gestores da fundação? A hipótese adotada neste trabalho acompanha uma constatação de Dupuy. O que parece mais plausível é que os principais líderes da cibernética convergiram, em direção à autonomização da lógica, também em função de sua formação. Ainda segundo Dupuy:

57

A formação filosófica dos cibernéticos reduzia-se essencialmente à lógica filosófica. Wiener fora aluno de Russell em Cambridge; Von Neumann, discípulo de Hilbert em Göttingen; Pitts estudara a lógica simbólica com Carnap em Chicago, em1938. McCulloch era grande leitor de Russell, de G. E. Moore de Peirce e do Wittgensteín do Tractatus (Ibid., p. 136).

O tema da influência do logicismo e da filosofia analítica sobre os líderes e precursores diretos das ciências cognitivas será retomado na seção 2.2. Mas, como já foi visto na seção anterior, pesquisas científicas provocadas pela necessidade de solução de problemas técnicos – em engenharia de comunicação, na matemática, na indústria bélica, na computação eletrônica – também foram essenciais na constituição das ciências cognitivas, de seu modelo geral inicial e de seu caráter interdisciplinar. Na presente investigação é defendida a suposição de que ambos os fatores – tanto as formações filosóficas e inclinações metafísicas dos autores, de um lado, quanto as demandas técnicas e econômicas predominantes na sociedade, de outro – foram importantes na constituição das ciências cognitivas em sua feição original. Mais do que isto, entende-se aqui que os dois fatores se reforçaram mutuamente, no âmbito mais estrito da solução de problemas. Predomina neste trabalho a noção de que na solução de problemas científicos há influência de modos de pensar e crenças das pessoas dedicadas à sua solução, mas também das demandas de natureza tecnológica que se impõem institucionalmente. Dito de outro modo, na presente investigação os conceitos científicos não são pensados de maneira independente dos fatos históricos que envolvem sua produção, mas o que se procura é elucidar os próprios conceitos e sua dinâmica de transformação, sem o que discutir os fatos históricos subjacentes aos conceitos seria inadequado. Utilizando um outro vocabulário, que, embora usual, não revela muita precisão, neste trabalho se evita uma investigação predominantemente “externalista” ou “internalista”, pelas razões que a própria argumentação nele vai aos poucos demonstrando, e que se impõem graças à natureza do tema. Assim, o que se pode observar no desenvolvimento das ciências cognitivas é uma convergência, e mesmo uma interdependência, entre as questões tecnológicas e as ideias filosóficas predominantes no quadro da época. E fica bastante claro, em alguns momentos – a Máquina de Turing sendo um bom exemplo –, que soluções técnicas acabam reforçando modos de pensar, com base no sucesso social das soluções. Assim como modos de pensar parecem não apenas propiciar, mas acolher com maior favorecimento, algumas soluções técnicas, na direção de sua disseminação. A questão da interdisciplinaridade no contexto da gênese das ciências cognitivas também exige maiores esclarecimentos. Para explorar especificamente o tema da relação entre soluções tecnocientíficas e interdisciplinaridade nos antecedentes das ciências cognitivas,

58

devemos promover um recuo temporal, para examinar brevemente um caso que deve auxiliar a elucidar as necessidades e possibilidades de colaboração multidisciplinar naquele dado momento histórico. Em outros termos, tal episódio demonstra ter muitas semelhanças com a motivação e com a dinâmica interdisciplinar da cibernética e das ciências cognitivas. Trata-se de investigações decorrentes do Projeto Manhattan, que havia sido destinado à confecção das bombas atômicas estadunidenses na Segunda Guerra, já mencionado na seção anterior. Estas investigações tinham como objetivo prosseguir as pesquisas nucleares, e já utilizavam um computador eletrônico – no caso, o ENIAC (METROPOLIS & ULAM, 1949; ANDERSON, 1986; METROPOLIS, 1987; ECKHARDT, 1987). Mais precisamente, corresponderam à criação do Método Monte Carlo, uma simulação computacional que visava a estudar o comportamento de partículas atômicas. Não cabe promover aqui um exame profundo do episódio. Trata-se sobretudo de destacar que: a) As mencionadas investigações exigiram a participação de pesquisadores de diversas origens disciplinares e locais – o que supunha métodos, formações e linguagens diferentes –, mas que deveriam ser colocados em colaboração visando a determinados resultados (GALISON, 1996); b) Para que esta colaboração pudesse ser frutífera, duas condições principais deveriam ser atendidas: i. Haver o patrocínio, o planejamento e a gestão do projeto realizados pela instituição à qual foi confiado o alcance dos resultados dos esforços comuns (ANDERSON, 1986; METROPOLIS, 1987; ECKHARDT, 1987); e ii. Ser estabelecida uma linguagem de interseção ou convergência, capaz de unificar os esforços e eliminar até um nível adequado as diferenças iniciais entre os pesquisadores (GALISON, 1996). Estas condições foram satisfeitas, em primeiro lugar, mediante a coordenação do governo e, em segundo lugar, graças à adoção de uma linguagem ou um modelo comum, que serviu de área de convergência para os diversos pesquisadores envolvidos. Quanto à coordenação, foi realizada, no local específico do Los Alamos National Laboratory, nos EUA, através do exército daquele país. Este laboratório, onde se desenvolveu secretamente a maior parte das pesquisas do Projeto Manhattan, perdurou na chamada Guerra Fria, isto é, o período de conflito não conflagrado entre EUA e URSS após a Segunda Guerra, mantendo o perfil interdisciplinar de investigação.

59

A área de convergência consistiu, basicamente, no Método Monte Carlo, desenvolvido por cientistas como John Von Neumann, Nicholas Metropolis e Stanislaw Ulam. Sobre ele, fala Peter Galison: Em Los Alamos, durante a guerra, os físicos logo reconheceram que o problema central era entender o processo pelo qual os nêutrons fissionam, se dispersam, e se juntam aos núcleos de urânio, profundamente, no centro físsil de uma arma nuclear. Experimentos não poderiam investigar a massa crítica com detalhe suficiente; a teoria levou rapidamente a equações integro-diferenciais insolúveis. Com esses problemas, a realidade artificial do [Método] Monte Carlo foi a única solução – o método de amostragem pôde "recriar" tais processos modelando uma sequência de dispersão aleatória em um computador. Simulações aprimoraram o desenho (mais especificamente, o refinamento) de armas de fissão, mas se mantiveram de certo modo auxiliares para os teóricos da bomba atômica. Quando, no final da guerra, o trabalho com armas nucleares dirigiu-se para a bomba termonuclear, o [Método] Monte Carlo tornou-se essencial (GALISON, 1996, p. 120)

E, referindo-se a Los Alamos e ao Método Monte Carlo, Galison exemplifica o que seria uma “zona de troca”: “Pois foi lá, na busca por armas nucleares aprimoradas, que um novo modo de atividades de coordenação foi construído, em que os cientistas de diferentes disciplinas (diferentes práticas e grupos de linguagens) puderam formar uma zona de troca” (Ibid., p. 153) Assim, vemos que a noção de zona de troca, em Galison, sugere uma solução para dificuldades de interação, ou mesmo comensurabilidade, entre pesquisadores de origens disciplinares diversas. Collins, Evans e Gorman, com base na noção de Galison, procuram caracterizá-la da seguinte maneira: Um modelo mais geral de zonas de troca pode ser desenvolvido considerando duas dimensões ao longo das quais elas podem variar. Uma dimensão é aquela em que o poder é usado para reforçar a troca –tal é o eixo coerção-colaboração. A outra dimensão é aquela em que a troca conduz a uma nova cultura homogénea –tal é o eixo homogeneidade- heterogeneidade (COLLINS et al, 2007, p. 658).

Mesmo sem nos comprometermos integralmente com o sistema de ideias proposto por Collins et al, esta classificação geral que os autores propõem é sugestiva para a dinâmica de colaboração disciplinar das ciências cognitivas. Ela nos auxilia a esclarecer de que maneira se deu a coesão das disciplinas envolvidas neste novo campo científico, em cuja gênese deverá ficar bastante caracterizado que não houve poder coercitivo unificador, e sim uma certa homogeneização a partir de heterogeneidades iniciais. Assim, como veremos, a liderança da inteligência artificial se deu pela adesão voluntária das demais disciplinas, e as instituições de fomento puderam contar com este tipo de acordo para tentar alcançar os objetivos que guiaram suas iniciativas.

60

Ademais, a utilidade da menção às características do Projeto Manhattan e do Método Monte Carlo para a compreensão do nascimento das ciências cognitivas deve-se menos à relação direta entre estas últimas e aqueles fatos, dada a influência das pesquisas utilizando computadores eletrônicos – como o ENIAC, realizadas no âmbito daqueles projetos –, e mais à semelhança entre ambas as condições citadas (patrocínio e convergência disciplinar) e suas respectivas soluções. Embora esta semelhança possua limitações, serve para ilustrar como soluções análogas ocorreram em programas que se deram no mesmo local e em um momento histórico bastante próximo, sugerindo que a possibilidade da eclosão das ciências cognitivas como atividade multidisciplinar seja compreendida à luz de um fato como o Projeto Manhattan e seu desdobramento mediante o Método Monte Carlo. Evidentemente, não se pode deixar de considerar a importância do ambiente e dos conflitos geopolíticos da época para esta série de pesquisas e iniciativas, considerando sua origem, ao menos em parte, governamental, e seu caráter multidisciplinar14. Da comparação entre os dois eventos históricos, devemos destacar as seguintes, como diferenças principais, quanto às duas condições acima destacadas: a) Enquanto no Projeto Manhattan e no nascimento do Método Monte Carlo o patrocínio e a gestão couberam ao governo norte-americano, através das forças armadas – dada a natureza dos objetivos –, nas ciências cognitivas a iniciativa coube a fundações e instituições de ensino; ou seja, no caso das ciências cognitivas não houve um esforço governamental central responsável pelo sucesso do empreendimento científico – embora no caso da participação da RAND Corporation na criação da inteligência artificial, o papel da Força Aérea estadunidense tenha sido importante, como será abordado a seguir; b) Enquanto o Método Monte Carlo, como zona de troca, correspondeu a um programa de computador específico, destinado a promover a simulação do comportamento nuclear, nas nascentes ciências cognitivas o programa de computador em si, como forma ideal, foi o que possibilitou a compreensão comum da cognição, como possuindo determinadas características, pelas diversas disciplinas engajadas. 14

Embora não caiba nos limites da presente investigação, um estudo sobre as relações da Guerra Fria com o impulso dado à ciência no período, com o nascimento daquilo que passou a ser chamado de Pesquisa e Desenvolvimento, com novas formas de racionalidade daí emergentes, e com a interconexão dada a tudo isso pelas então novas tecnologias de produção, seria provavelmente muito proveitoso para a compreensão das ciências cognitivas. Obras como How the Cold War transformed philosophy of science: to the icy slopes of logic (REISCH, 2005) e How reason almost lost its mind: the strange career of Cold War rationality (ERICKSON et al, 2013) seriam fontes inicialmente indicadas para tal estudo.

61

Por fim, podemos extrair da comparação entre semelhanças e diferenças observadas nos dois programas – Método Monte Carlo e ciências cognitivas – as seguintes conclusões: 1) Processos artificiais, quer na forma de simulação computacional, ou na de um modelo geral, podem ter utilidade para a ciência não apenas como a representação do real para uma dada investigação disciplinar, mas também para permitir a convergência, ou “troca”, entre diversas disciplinas; 2) Não devem ser desprezadas as relações mais diretas entre o Método Monte Carlo e o modelo lógico-proposicional das ciências cognitivas – dado que este último nasceu, também, das investigações com utilização de computadores no pós-guerra –, mas devemos perquirir como um papel unificador entre disciplinas pôde ser desempenhado por um programa “ideal” de computador, como no caso das ciências cognitivas, diferentemente de por um programa “real”, como no caso de Monte Carlo; é o que será feito nas próximas seções. Gardner (GARDNER, 1985, p.10), Dupuy, Bechtel et al e Boden destacam três outros eventos, além das Conferências Macy, na gênese das ciências cognitivas: 1) O primeiro teria sido o congresso “Mecanismos Cerebrais do Comportamento”, conhecido também como First Hixon Symposium, ocorrido no California Institute of Technology (Caltech), Pasadena, em setembro de 1948, e financiado pelo Hixon Fund. Segundo Gardner, este congresso deve sua importância a ter sido a primeira oportunidade de combate ao behaviorismo, corrente da psicologia experimental que até então dominava as pesquisas, enfatizando apenas os aspectos comportamentais resultantes da atividade cerebral – e deixando de atentar para esta atividade em si. Contudo, mais relevante ainda teria sido o fato de promover este combate não de forma restrita apenas a psicólogos (embora Gardner e Boden assinalem a importante participação no congresso do psicólogo Karl Lashley, em sua argumentação questionadora do modelo behaviorista – v., além de GARDNER, BODEN, 2006, p. 266-267), mas já com a marca interdisciplinar que se consolidaria nas ciências cognitivas a partir daí. Gardner destaca no encontro a presença de precursores da inteligência artificial como John Von Neumann e Warren McCulloch. Von Neumann teria feito a abertura do congresso propondo a analogia entre o computador eletrônico e o cérebro, conforme Bechtel et al destacam abaixo. E McCulloch teria proferido a conferência seguinte trazendo algo que se torna ainda mais notável para a investigação empreendida no presente trabalho: a primeira proposta do uso do modelo de processamento de informações

62

para o funcionamento do cérebro15. Bechtel et al assim descrevem as participações no Hixon Symposium, de acordo com as origens disciplinares e de orientação dos seus participantes: Dentre os oradores [no evento] estavam neurofisiologistas, como Warren McCulloch e Rafael Lorente de No; psicólogos biologicamente orientados, como Ward Halstead, Heinrich Klüver, e Karl Lashley; um psicólogo da Gestalt, como Wolfgang Kohler; e um cientista da computação como John Von Neumann. Os trabalhos abrangeram uma vasta gama de tópicos, incluindo a análise da semelhança de computadores com o cérebro, feita por Von Neumann, o estudo de Kohler dos potenciais evocados durante a percepção padrão, a comparação de Klüver entre contribuições funcionais do occipital e dos lobos temporais, e a tentativa de Halstead de relacionar a inteligência com o cérebro (BECHTEL et al, 1998, p. 24).

Contudo,

é

fundamental

assinalarmos,

neste

conjunto

de

debates

interdisciplinares, o conflito que Dupuy identificou no evento – além daquele entre behaviorismo e o futuro cognitivismo –, e que teria sido vencido pelos adeptos do modelo lógico-proposicional16, considerados os desdobramentos do simpósio: Durante esse simpósio Hixon, Von Neumann e McCulloch confrontam-se com a critica dos maiores nomes da neurofisiologia (Karl Lashley, Ralph Gerard), da psicologia (Wolfgang Köhler) e da embriologia (Paul Weiss) da época, de uma maneira muito mais viva, ou até tempestuosa, do que nas Conferências Macy, sobre as quais McCulloch exerce a sua influência e o seu controle (DUPUY, 1996 [1994], p. 88).

Esta observação de Dupuy serve para ressaltar, também, o papel de liderança de McCulloch no nascimento das ciências cognitivas, para além de seu artigo seminal, com Pitts. O fato de ele ser um neurofisiologista que aderiu à imagem lógica da cognição – e não um pesquisador de computação, como Von Neumann, que teria motivos mais imediatamente óbvios para fazê-lo – revela o modo como alguns neurocientistas contribuíram, desde muito cedo, para a concepção do cérebro como um dispositivo onde se encarna apenas funcionalmente o processamento de informações. 2) O segundo evento destacado pelos autores citados foi a Dartmouth Summer Research Conference on Artificial Intelligence, no Dartmouth College, em julho e agosto de 1956, na cidade de New Hampshire. Contou com alguns dos principais fundadores da inteligência artificial, como John McCarthy, Marvin Minsky, Allen

15

Vide menção, anterior, ao artigo “A logical calculus of ideas immanent in nervous activity”, de Warren McCullogh e Walter Pitts. 16 Esta divergência, e seu “desfecho”, serão retomados na seção 2.1.

63

Newell e Herbert Simon. Este encontro teria servido para preparar uma nova geração: A reunião em Dartmouth não cumpriu as expectativas de todos: havia mais concorrência e menos livre troca entre os estudiosos do que os planejadores tinham desejado. No entanto, o encontro de verão é considerado crucial na história das ciências cognitivas, em geral, e no campo da inteligência artificial, em particular. A razão é, penso eu, principalmente simbólica. A década anterior tinha visto as idéias brilhantes de uma geração mais velha -- Norbert Wiener, John Von Neumann, Warren McCulloch, Alan Turing --, todos apontando para o desenvolvimento de computadores eletrônicos que poderiam realizar funções normalmente associadas com o cérebro humano. Este grupo sênior tinha antecipado desenvolvimentos, mas não tinha certeza se eles próprios teriam a oportunidade de explorar a terra prometida. Em Dartmouth, membros de uma geração mais jovem, que cresceram em um ambiente semeado com essas idéias, agora estavam prontos (e em alguns casos, além da prontidão simples) para elaborar as máquinas e escrever os programas que poderiam fazer o que Von Neumann e Wiener haviam especulado. (GARDNER, 1985, p. 139 – grifo meu)

Em outras palavras, esta conferência teria sido significativa no aspecto de consolidar a colaboração entre os pesquisadores mais jovens no novo campo da inteligência artificial, permitindo um passo no sentido de aplicar a teoria, desenvolvida pela geração anterior, na prática de construir artefatos. No mesmo sentido, Boden confere bastante destaque à participação daqueles que seriam os maiores líderes da inteligência artificial, mas também das próprias ciências cognitivas: O encontro de meados do século entre Newell (1927-1992) e Simon (1916-2001) levou à parceria mais frutífera das ciências cognitivas. Eles causaram sensação no Dartmouth College (New Hampshire) em 1956, onde relataram o praticamente primeiro programa funcional de inteligência artificial psicológica (...). Na verdade, foi em grande parte graças à sua contribuição que a reunião de Dartmouth foi um dos eventos de formação das ciências cognitivas (...). Após a sua explosão em Dartmouth, eles passaram o resto de suas vidas desenvolvendo uma cada vez mais poderosa artilharia intelectual, e suas armas silenciaram apenas comsuas mortes. Mas as reverberações ainda persistem – na inteligência artificial, em certas áreas da vida artificial, na psicologia e na filosofia. Em suma, seus ecos estão por toda parte (BODEN, 2006, p. 317).

3) E o terceiro evento ocorreu um mês após o final da conferência em Dartmouth: o “Simpósio sobre Teoria da Informação” no Massachusetts Institute of Technology (M.I.T.). Ao Simpósio no M.I.T., mais nitidamente interdisciplinar, acorreram além de Newell, Simon (que então apresentaram, segundo Gardner, o artigo “Logic Theory Machine”) e outros estudiosos na nova geração da inteligência artificial, o linguista Noam Chomsky e o psicólogo cognitivo George Miller, que lá apresentou seu artigo “The magical number seven, plus or minus two: some limits on our capacity for processing information", a primeira utilização nos EUA da

64

noção de processamento de informações na psicologia. Segundo Gardner (GARDNER, 1985, p. 28), Miller atribui a este encontro a fundação das ciências cognitivas. Mas devemos assinalar que isto quer dizer, em outras palavras, a adesão da psicologia à proposta da inteligência artificial, verificada em Dartmouth. De acordo com Boden, Para a psicologia, no entanto, o Simpósio MIT foi ainda mais frutífero do que Dartmouth. Lá Miller apresentou seu artigo “Magical number seven” (...). E ele teve uma epifania intelectual que o levou da matemática para psicologia computacional. Ele logo deu início a uma declaração de intenções em relação ao que é agora chamado de ciências cognitivas (...). Em uma fala autobiográfica apresentada mais de vinte anos depois, ele chamou o segundo dia da reunião MIT como o momento em que – para ele – as coisas de repente fizeram sentido. Naquele dia, foram ministradas palestras sobre o [programa] Logic Theorist por Newell e Simon e sobre gramáticas formais por Chomsky. O primeiro, apresentado em Dartmouth, pouco tempo antes, mostrou que um computador pode provar teoremas em lógica. O segundo mostrou que a linguagem – considerada como frases estruturadas, não apenas sequências de palavras– pode ser formalmente descrita (BODEN, 2006, p. 334).

Tais encontros permitiram que a inteligência artificial estabelecesse sua liderança nas ciências cognitivas nascentes, o que foi reforçado pela criação daquilo que Boden chamou acima de “psicologia computacional”. E esta liderança se expressa na iniciativa que alguns pensadores da inteligência artificial tomaram de considerar a possibilidade de até mesmo substituir os psicólogos, como descreve Hubert Dreyfus: Em 1957 Simon previu que dentro de dez anos as teorias psicológicas assumiriam a forma de programas de computadores, e começou a cumprir essa predição escrevendo uma série de programas que tinham por finalidade simular as fases conscientes e inconscientes pelas quais passa uma pessoa até chegar a um desempenho cognitivo específico. (DREYFUS, 1975 [1972], p. 129).

A esta altura – uma vez identificado o momento em que as ciências cognitivas passaram a ser assim chamadas –, é necessário justamente examinar a contribuição de Simon e Newell ao seu nascimento, e o papel que a RAND Corporation teve no fomento às pesquisas destes dois cientistas. Uma análise dos trabalhos de ambos será feita na seção 1.2.1. Porém é preciso neste momento promover uma visão geral de como se consolidou sua liderança, através de forte apoio institucional. A RAND (acrônimo de “Research and National Development” segundo Simon, em SIMON, 1996) Corporation nasceu do Project RAND, criado, em 1945, na cidade se Santa Mônica, California, pela Força Aérea dos EUA, com apoio financeiro inicial da Douglas Aircraft Company, uma indústria de aeronaves, da qual se desligou em 1948 (ABELLA, 2008; WARE, 2008; JARDINI, 2013). Posteriormente à saída da Douglas Aircraft Company

65

do empreendimento, este foi declarado como uma organização sem fins lucrativos, já com o nome de RAND Corporation, e apoiado pela Ford Foundation, por empresas como aCarnegie Corporation of New York e a Westinghouse Electric Corporation, e por instituições de ensino e pesquisa como o Caltech, o MIT e as universidades de Princeton e Illinois (WARE, 2008, p. 8 e 9). E, assim como as motivações das iniciativas por trás do Método Monte Carlo, a razão de existir da RAND também se ligavam à chamada Guerra Fria, entre EUA e URSS: As prioridades dos EUA sempre definiram a agenda de pesquisa da RAND. Com raízes na competição da Guerra Fria com a União Soviética, a agenda inicial em matéria de defesa evoluiu – em conjunto com a atenção dos EUA – para abranger áreas diversas como assuntos de conquista do espaço, econômicos, sociais e políticos no exterior, assim como o papel direto do governo na de resolução de problemas domésticos nas áreas social e econômica (WARE, 2008, p. 10).

E foi com este perfil estatal e militar de arregimentação – muito diferente, por exemplo, do que se observou na sustentação dada pela Fundação Macy ao início da cibernética, e muito mais semelhante ao do Projeto Manhattan – que a RAND apoiou o nascimento da inteligência artificial e das ciências cognitivas. Antes, porém, de enfocarmos o trabalho de Simon e Newell na RAND, é preciso assinalar a importância da Comissão Cowles sobretudo na trajetória do primeiro – o que teve repercussão nos destinos das ciências cognitivas. A Comissão Cowles – atualmente Cowles Foundation –, criada em 1932 pelo empresário e economista Alfred Cowles na cidade de Colorado Springs17, foi frequentada por Simon quando, nos anos 1950, já funcionava na Universidade de Chicago. Ela reuniu basicamente economistas matemáticos que realizavam seminários regulares sobre econometria, programação linear e dinâmica, e teoria da decisão. Dentre os economistas que chegaram a participar do grupo estavam Kenneth Arrow, Roy Radner, Paul Samuelson, Franco Modigliani, Jacob Marshak, Tjalling Koopmans e Gerard Debreu. Como Simon chegou a dizer em sua autobiografia, sua atividade na Comissão Cowles fez dele “quase um economista tempo integral” (AUGIER & MARCH, 2004, p. 12). E é Simon quem também afirma que “O maior impacto da [Comissão] Cowles em mim foi me incentivar a tentar matematizar minha pesquisa anterior, em teoria da organização e tomada de decisão – especialmente a teoria desenvolvida em Administrative Behavior18” (citado por AUGIER & MARCH, ibid.). A pesquisa anterior de Simon era sobre o comportamento de pessoas no ambiente da administração pública. Este foi o tema de sua tese de doutorado, defendida na Universidade

17 18

V. http://cowles.econ.yale.edu/, Data de acesso 10/08/2014. Trata-se da tese de doutoramento de Simon.

66

de Chicago, em 1943. De um lado, devemos destacar a influência de Rudolf Carnap sobre este trabalho – o que tende a confirmar o que já foi dito acima sobre o impacto do Positivismo Lógico no nascimento do modelo lógico-proposicional; de outro, sublinhar que as ciências cognitivas devem muito à confluência de interesses que se manifestou em Simon: o estudo do comportamento humano explicado e descrito de maneira racional, lógica, quantificada. O próprio Simon afirma, a respeito de sua tese de doutorado, da influência de Carnap e do que seria a “lógica das ciências sociais”: Carnap foi particularmente importante para mim, pois eu tinha um forte interesse na lógica das ciências sociais. Meu projeto de tese (mais tarde publicada como Administrative Behavior) começou como um estudo dos fundamentos lógicos da ciência administrativa. Meus arquivos renderam vários esboços iniciais e prospectos de tal obra, que comecei a planejar em 1937. Teria sido bom se alguém tivesse me mandado sentar e me forçado a acompanhar um curso formal em lógica simbólica, mas eu segui o meu caminho habitual de autoinstrução, com os resultados mistos habituais. Eu não era totalmente ignorante em lógica, no entanto. Um estudo cuidadoso de The logical syntax of language, de Carnap, me convenceu de que sua definição de “analítico”, um termo central em seu sistema, não levava aonde deveria (SIMON, 1996, p. 54).

Simon prossegue afirmando que, por carta, questionou Carnap sobre a imprecisão que atribuía ao uso do conceito de analítico em The logical syntax of language, e que esta atitude teria provocado a correção que Carnap teria promovido no livro Introduction to semantics, de 1942, após os dois terem conversado pessoalmente a respeito. Este episódio é útil para demonstrar que Simon não apenas teve uma relação direta de aprendizado com Carnap, mas também desde cedo demonstrou clara intenção em intervir em discussões centrais, o que o levou à convergência da lógica (ou, se considerarmos as posições e principais interesses de Carnap, ao menos em parte do Positivismo Lógico) com as ciências do comportamento humano. Como foi aludido, o ponto de partida de Simon – representado por sua tese de doutorado – era tentar explicar o comportamento social, e o papel que a razão nele desempenha. A rigor, ele não se afastou deste interesse ao se tornar um dos pais da inteligência artificial, das ciências cognitivas e do cognitivismo, como veremos a seguir. Para melhor compreendermos tal suposição, primeiramente tenhamos em conta a seguinte afirmação de Simon: Minha área original é organização e gestão. Eu abordei organização e gestão do ponto de vista da tomada de decisão. Eu tive formação em economia e entendi o modelo do economista de tomada de decisão. Mas isso me pareceu muito longe do que estava acontecendo nas organizações. Então, eu tentei desenvolver teorias alternativas. (BAUMGARTNER & PAYR, 1995, p. 231).

67

Com o intuito de melhor caracterizar a trajetória de Simon no desenvolvimento de teorias alternativas – associadas à “teoria da racionalidade limitada”19, que o levou a ganhar o Prêmio Nobel de Economia (Ibid.), devemos considerar os seguintes pontos ressaltados por Boden (BODEN, 2006, p. 319). Segundo ela, Simon: •

Como estudante de pós-graduação, participou com afinco especial das aulas de Rudolf Carnap “sobre a lógica ea filosofia da ciência axiomática”, conferindo a elas particular importância;



Foi coautor, no final dos anos 1930, de cerca de vinte artigos sobre como medir o sucesso na administração urbana;



Teve grande interesse na teoria dos jogos, mesmo antes do livro-chave (de Von Neumann e Morgenstern) ter sido publicado em 1944, e dedicou o Natal do mesmo ano a lê-lo dia e noite, de modo a escrever o primeiro comentário sobre a obra, para o American Journal of Sociology. Afirmou que, ao deparar com o título do livro, “Teoria dos jogos e o comportamento econômico”, em um anúncio de revista, chegou a ter um sentimento de inveja, por não tê-lo escrito, que durou décadas;



Descreveu os trabalhadores nas organizações como “máquinas de fazer lógica”, acreditando que a eles se pode aplicar a expectativa de que, uma vez dado a eles um tal conjunto de premissas e objetivos, tomariam determinadas decisões. Esta noção mais tarde evoluiria, em sua obra, para a ideia de que a mente humana é como um computador;



Ao lecionar para engenheiros na década de 1940, esboçou decisões da Suprema Corte na forma de diagramas de circuitos elétricos, com interruptores representando as alternativas sim ou não das escolhas do tribunal – com nítida inspiração em Shannon, e de maneira análoga ao modelo neuronal de McCulloch-Pitts. Simon conheceu Newell, quando, em 1952, chegou à RAND para trabalhar como

consultor em economia. Newell já havia sido admitido ali como empregado em 1950, um ano

19

A respeito da Teoria da Racionalidade Limitada, Bechtel et al afirmam que Simon desafiou “um dos princípios da economia moderna, a suposição de que os agentes são perfeitamente racionais nas escolhas que fazem. Simon, ao contrário, enfatizou que a racionalidade é limitada e que, em vez de examinar todas as possibilidades que enfrentam e, em seguida, escolher uma, os seres humanos geralmente aceitam a primeira opção que atende a um padrão pré-determinado. (...). Ele também extraiu de seu trabalho em organizações humanas o reconhecimento de que os seres humanos muitas vezes dependem de receitas de ações, ou heurísticas, em vez de buscar solução ideal de procedimentos que garantam respostas corretas” (BECHTEL et al, 1998, p. 11). Ou, em outras palavras, desta vez de Erickson et al: “Simon não estava assumindo que os tomadores de decisão fossem irracionais; em vez disso, ele argumentou que os limites de sua capacidade de coleta e processamento das informações necessárias para tomar as melhores decisões para atingir suas metas forçou um novo foco sobre o processo de raciocínio e resolução de problemas” (ERICKSON et al, 2013, p. 75).

68

após terminar a graduação em Física na Universidade de Stanford. Quando ambos se encontraram, Newell fazia pesquisas sobre processos em aviação. Segundo Simon: Em minha primeira visita a RAND no início de 1952, eu conheci Allen Newell. Eu não o conhecia antes, mas estava familiarizado com alguns documentos matemáticos que ele havia escrito, em que tentou formalizar a teoria da organização. Eu estava apenas ligeiramente impressionado com a [sua] matemática, que parecia conter mais definições do que teoremas (sempre um mau sinal para as teorias formais), mas eu estava bem disposto para qualquer um que tivesse disposição e habilidade para aplicar matemática a esses tipos de questões. Em nossos primeiros cinco minutos de conversa, Al e eu descobrimos nossa afinidade ideológica. Entramos de uma vez em uma animada discussão, reconhecendo que, embora nossos vocabulários fossem diferentes, ambos víamos a mente humana como um sistema simbólico de manipulação (expressão utilizada por mim) ou de processamento de informações (termo utilizado por Newell) (SIMON, 1996, p. 168 – grifos meus).

Os destaques conferidos ao fragmento acima procuram chamar a atenção para três pontos que neste trabalho são considerados importantes no nascimento das ciências cognitivas: 1) A crença dos seus líderes na importância da formalização quantificadora do comportamento humano; 2) A afinidade ideológica e filosófica de seus criadores; 3) A imagem da cognição como sistema de manipulação de símbolos ou – o que é equivalente – como sistema de processamento de informações. Aqui se defende que teria sido graças a estes elementos que as ciências cognitivas avançaram. Mais precisamente, quanto à colaboração entre Newell e Simon, caberia ainda ressaltar que ambos foram atraídos pela noção de solução de problemas através de heurísticas, e que isto os levou a desenvolver os primeiros programas de computador eficazes na simulação de parte da inteligência humana. Isto teria sido fundamental para que eles sustentassem a ideia de que a cognição humana seria, na essência, manipulação de símbolos ou processamento de informações, tendo como objetivo a solução de problemas. Sobre os primeiros resultados em programação de Simon e Newell, afirmam Bechtel et al: Quando programado em 1956, o chamado Logic Theorist provou 38 teoremas do Principia Mathematica de Russell e Whitehead, de maneira mais elegante do que os próprios autores do livro. A implementação efetiva do Logic Theorist representou mais do que o primeira aparente sucesso de um programa de computador na execução de uma tarefa que exige inteligência; ela também trouxe o desenvolvimento de uma linguagem de processamento de lista, a IPL (Information Processing Language). Os símbolos de uma lista poderiam ser armazenados na memória de endereços arbitrários no computador, e ligações poderiam ser adicionados entre um produto e outro simplesmente especificando no primeiro local o endereço do item relacionado (BECHTEL el al, 1998, p. 13).

69

Na seção 1.2.1 voltaremos a tratar das criações de Simon e Newell na inteligência artificial, mais precisamente investigando o papel de sua noção de sistema de símbolos físicos para a consolidação das ciências cognitivas. Por ora, foi importante termos identificado a convergência dos dois pesquisadores garantida por suas crenças, preferências, habilidades, formações, produções e, sobretudo, pelo patrocínio da RAND, que deu sustento para que estas últimas não somente fossem possíveis, mas se propagassem. Por fim, deve ser destacada a talvez mais importante iniciativa para as considerações deste trabalho: o programa de pesquisas interdisciplinares financiado pela a Fundação Alfred. P. Sloan, nos EUA, em meados dos anos de 1970, que consolidou a formação das ciências cognitivas e seu projeto declarado. A Fundação Sloan foi criada em 1934 pelo executivo da General Motors Alfred Pritchard Sloan, que, em 1959 fez a seguinte declaração sobre seus propósitos: Exorto a Fundação a empregar seus recursos em ciência e pesquisa econômica nas diversas disciplinas. Gostaria de enfatizar a necessidade de apoiar todos os projetos construtivos em pesquisa básica sobre a qual todo o progresso científico e de pesquisa avançada depende (...). Eu também gostaria de ver a Fundação explorar todas as formas possíveis de expansão da educação, já que esta é a base de todo o progresso. (SLOAN FOUDATION, 2009, p. 2).

No livro Alfred P. Sloan Foundation - A grantmaking History 1934-2009(SLOAN FOUDATION, 2009), volume comemorativo dos 75 anos da fundação, a história da Iniciativa Sloan é contada brevemente em suas etapas principais, e em aspectos importantes para o presente trabalho. Segundo o livro (Ibid., p. 25-28): 1) Antes do programa, os cientistas cognitivos trabalhavam em diversas universidades, na maior parte sem o “adequado” contato com colegas de outras disciplinas e outras instituições; 2) Em 1977, a partir de discussões com “consultores especializados” a fundação iniciou um programa multianual de apoio ao campo emergente das ciências cognitivas; 3) Inicialmente foram convocados cientistas de diferentes disciplinas para que se avaliasse em que ponto estavam as investigações e explorar as possibilidades de colaboração; 4) Os recursos foram direcionados para workshops, seminários e conferências, assim como para a promoção de visitas de uns cientistas às universidades de seus colegas; 5) As subvenções foram então destinadas às seguintes universidades:

70



Universidade da Califórnia, San Diego



Universidade do Texas em Austin



MIT



Universidade de Yale



Universidade de Brown



Universidade de Stanford



Universidade da Califórnia, Irvine



Universidade de Chicago



Faculdade de Medicina da Universidade de Cornell



Universidade de Massachusetts, Amherst

6) Em torno de 1979, um número crescente de universidades desenvolviam significativos projetos de pesquisa e estavam em condições de iniciar programas de treinamento para pós-doutores e cientistas mais jovens preparados para dominar duas ou mais disciplinas envolvidas nas ciências cognitivas; 7) Neste segundo biênio as principais bolsas da fundação foram para: •

Universidade da Califórnia, San Diego



MIT



Universidade Carnegie Mellon



Universidade da Pensilvânia



Universidade do Texas, Austin



Universidade de Yale



Universidade de Chicago



Universidade de Michigan



Universidade de Stanford



Universidade de Brown



Universidade de Massachusetts, Amherst



Universidade de Cornell



Universidade da Califórnia, Irvine

8) A fase final do programa concentrou-se no desenvolvimento institucional. Foi dado apoio para o desenvolvimento de um centro, instituto, departamento ou outra entidade administrativa autossustentável, a fim de ser realizar um programa contínuo de investigação e formação em ciências cognitivas; 9) Em 1981, concurso realizado pela fundação atraiu 22 propostas;

71

10) O MIT recebeu US$ 1,5 milhão para desenvolvimento do seu Centro de Ciências Cognitivas. Oito instituições receberam doações de US$ 500.000 para fortalecer, unificar e institucionalizar programas de investigação e formação em ciências cognitivas: •

Universidade da Califórnia, Berkeley



Universidade de Rochester



Universidade Carnegie Mellon



Instituto de Neurociência Cognitiva



Universidade da Pensilvânia



Universidade do Texas, Austin



Universidade de Stanford



Universidade da Califórnia, Irvine

11) Em 1986, os principais centros de pesquisa em ciências cognitivas da Universidade da Califórnia, Berkeley, Universidade da Pensilvânia, Stanford, MIT, e Carnegie Mellon já haviam recebido um forte apoio da fundação, e estavam engajados em investigação e colaboração interdisciplinar, tanto em pós-graduação quanto em pós-doutorado, com programas para formar a próxima geração de cientistas cognitivos; 12) A pesquisa beneficiou avanços na tecnologia dos computadores, especialmente em instituições que utilizavam técnicas de inteligência artificial, simulação computacional, e modelagem de computador para estudar as funções cognitivas complexas, tais como resolução de problemas e tomada de decisão; 13) Em 1987, uma década após a o início do programa, a fundação já havia investido um total de quase US$ 25 milhões, US$ 60 milhões nos preços de 2009; 14) Laços foram estabelecidos entre as diversas disciplinas envolvidas nas ciências cognitivas e oportunidades de estudo no campo cresceram nas principais faculdades e universidades. Percebe-se por esta concisa narrativa o alcance e a determinação do programa. Nela fica patente o esforço de liderança da fundação em relação à consolidação das ciências cognitivas. Ele aparece também no relatório apresentado no primeiro ano da iniciativa. Além de relacionar “oficialmente” as disciplinas constituintes das ciências cognitivas – filosofia, psicologia, inteligência artificial, linguística, antropologia e neurociência –, o relatório (“State of the art report”, – SLOAN FOUNDATION, 1978), preparado por um grupo de cientistas

72

engajados no programa para prestar contas à fundação, afirmava claramente uma plataforma política de ação conjunta: [Neste relatório] descrevemos brevemente alguns dos pontos de vista teóricos e estratégias de investigação compartilhados que unem os cientistas cognitivos. (...) Em nossa opinião, a comunicação crescente entre os cientistas cognitivos que trabalham em uma variedade de contextos disciplinares é direcionada para a caracterização formal de determinadas faculdades mentais e sua realização no cérebro. (SLOAN FOUNDATION, p. iii e iv).

Gardner descreve brevemente o papel da Fundação Sloan20 na formação das ciências cognitivas. É necessário que nos ocupemos com alguns aspectos do relatório mencionado, por serem extremamente ilustrativos de muitos dos pontos que aqui investigamos. O primeiro aspecto consiste no que seria o compromisso comum, determinado pelo programa. Segundo o relatório, as disciplinas componentes das ciências cognitivas Compartilharam, de fato, trazendo o campo à existência, um objetivo comum de pesquisa: descobrir as capacidades representacionais e computacionais da mente e sua representação estrutural e funcional no cérebro. [Os pesquisadores das ciências cognitivas] aceitaram o desafio de especificar descrições teóricas adequadas dos sistemas cognitivos e testar empiricamente as predições dessas teorias. A investigação que se segue apresenta alguns dos exemplos de colaboração em pesquisas voltadas para aquele objetivo, e fornece uma ampla demonstração da necessidade prática de um ataque científico coordenado. As questões a serem agora apresentadas nas disciplinas21 das ciências cognitivas estão fundamentalmente ligadas; além disso, o aparato teórico e metodológico de uma disciplina está sendo cada vez mais aplicado, e, por vezes, aprimorado, para responder às questões (SLOAN FOUNDATION, p. 6 – grifo meu).

Vemos que este compromisso envolvia não apenas uma imagem comum implícita da cognição, como computacional, mas a disposição de colaboração interdisciplinar em torno desta imagem. O segundo aspecto corresponde, exatamente, à lista de disciplinas mencionada por Gardner e que se tornou uma referência extremamente influente nos livros sobre ciências cognitivas. Esta lista não aparece na forma de um rol trivial, mas no diagrama abaixo reproduzido, extraído diretamente como fac-símile, com seus termos em inglês, da capa do relatório referido:

20

A fim de ressaltar importância do papel da Fundação Sloan para a consolidação das ciências cognitivas, é preciso registrar que o próprio livro de Gardner foi realizado com financiamento desta instituição (GARDNER, 1985, p. xiii; BODEN, 2006, p. 522). 21 Originalmente subfields.

73

Figura 01 Embora este mesmo hexágono (chamado por Gardner de “hexágono cognitivo” – GARDNER, 1985, p. 36) apareça em alguns livros sobre as ciências cognitivas (é reproduzido, por exemplo, em GARDNER, 1985; VON ECKARDT,1995; BODEN, 2006 e BERMÚDEZ, 2010) – isto é, embora ele tenha se tornado uma espécie de emblema –, pouco tem sido explorado sobre a importância histórica da Fundação Sloan para as ciências cognitivas, a não ser em breves passagens dos livros citados de Boden e Bermúdez22. Gardner, que chama o financiamento dado por este órgão de fomento às ciências cognitivas de “iniciativa Sloan”, esclarece que o “hexágono cognitivo” indica em suas linhas internas cheias as conexões interdisciplinares já existentes em meados dos anos 1970, e as linhas tracejadas como sendo as conexões desejáveis. Mesmo que sejam bastante discutíveis as suposições que essas linhas revelam – tanto na forma de “constatação” quanto na de “recomendação” –, é interessante assinalar que houvesse a preocupação de avaliar e planejar as ações das ciências cognitivas, o que evidencia uma abordagem estratégica. Se esta estratégia teve resultados, quais seus resultados hipotéticos, bem como qual seu alcance e duração, são questões que estão a merecer maiores investigações por parte de quem tenha interesse de compreender as implicações sociais das ciências cognitivas.

22

Bermudez faz uma comparação das teses de unificação das ciências cognitivas, simbolizadas pelo hexágono, com os processos de unificação destas ciências que identifica no momento atual (BERMUDEZ, 2010, p. 96).

74

O segundo aspecto é que a iniciativa Sloan tratava, possivelmente pela primeira vez, as ciências cognitivas como um todo unificável, uma vez que lhe destinou financiamento em conjunto, e não particularizadamente, como já havia feito com a neurociência, alguns anos antes (GARDNER, 1985, p. 50). Outro aspecto do relatório, relevante para os propósitos deste trabalho, é que, ainda segundo Gardner, A comunidade de forma geral teve uma visão claramente negativa do relatório. Na realidade, tantos leitores manifestaram uma oposição tão virulenta que, contrariamente aos planos iniciais, o documento nunca foi publicado. Penso que esta reação negativa resultou do fato de cada leitor ter enfocado o documento sob o prisma de sua própria disciplina e programa de pesquisa. Esforçando-se para ser razoavelmente ecumênicos, os autores simplesmente asseguraram que a maioria dos leitores consideraria o seu trabalho desprezado. (GARDNER, 1985, p. 37).

O autor não diz como obteve as informações sobre a repercussão a que se refere, nem quem seriam os “leitores” que menciona – o que nos impede de dimensionar, exclusivamente pela leitura do livro, o impacto que o relatório obteve, e exigiria maiores pesquisas a respeito. O relatório foi elaborado por uma comissão de treze cientistas cognitivos e filósofos, alguns de destaque, como Zenon Pylyshyn, Donald Norman e George Miller – sendo que três deles foram os responsáveis por sua redação final. Além disso, o grupo contava com especialistas de todas as seis disciplinas emblemáticas. Por esta razão, pode ser lido não como um documento burocrático, ou em um sentido político menor, mas sim como um texto de pesquisadores e pensadores engajados no projeto das ciências cognitivas, que defendem suas ideias – inclusive as ideias estratégicas, mesmo que estas não tenham sido seguidas integralmente. O fato de provocar polêmica pode ser entendido como um sinal de que apresentou questões relevantes, que contudo careciam (ou carecem ainda) de consenso. O fato de ser uma espécie de justificação para recursos financeiros empregados não deve obscurecer alguns pontos importantes de seu conteúdo. Com efeito, ao nos dedicarmos a lê-lo, encontramos sinais de esforços para que fossem constituídos compromissos a serem seguidos por uma determinada comunidade científica, ainda que formada por pesquisadores que vinham de outras áreas e não houvessem previsto esta etapa multidisciplinar em suas carreiras. Contém relatos de todas as seis disciplinas do hexágono. Assinalam-se ainda como relevantes para este trabalho os seguintes pontos – sendo os dois primeiros testemunhos de uma atividade de defesa social das ciências cognitivas, e o terceiro de que a unidade deve ser obtida através da ação interdisciplinar:

75

a) O relatório traz um tom nitidamente entusiástico, bastante confiante na criação de uma nova ciência, como se pode observar na seguinte passagem do seu prefácio: Há um sentido em que a comissão de redação sente que houve admiravelmente. As páginas deste relatório são prova irrefutável da vivacidade e atividade energéticas que hoje caracterizam o campo da ciência cognitiva. Muitas pessoas estão a trabalhar nele. A maioria delas acredita apaixonadamente no que está fazendo. Sua paixão é correspondida por sua criatividade, e ao mesmo tempo em que é impossível todos [os pesquisadores] serem destinados a tocar o manto da verdade, é certamente verdade que o compromisso que eles têm tido para com a ciência cognitiva como uma disciplina unificada e unificadora irá acelerar o dia em que um documento mais claro e muito mais satisfatório do que o presente poderá ser escrito.(SLOAN FOUNDATION, 1978, p. ii)

b) Ele defende com veemência a constituição de uma ciência “unificada e unificadora”, como se lê no excerto acima; c) Nota-se a seguinte exortação ao trabalho interdisciplinar: O Comitê do Estado da Arte, que preparouestadeclaração, refleteo caráter fundamentalmenteinterdisciplinar dotrabalho em ciênciascognitivas,e o relatório contémas contribuições diretasdos membros do comitêque representam as disciplinasda psicologia, linguística, ciência da computação, antropologia, filosofia e neurociência. (Id., ibid.).

Além de ter fixado as disciplinas das ciências cognitivas e promovido um esforço mais claramente propagandístico do novo campo científico, o relatório trouxe extenso detalhamento das atividades realizadas pelas seis disciplinas nos anos anteriores. Algumas passagens teriam importância epistemológica mais expressiva, dignas de serem analisadas em um trabalho de maior fôlego – como, por exemplo, o fato de ser justamente no capitulo dedicado à psicologia que há um item voltado ao “processamento humano de informações”. Esta questão – de a psicologia ter sido a principal portadora da nova noção de processamento de informações, dentre as demais disciplinas, além da inteligência artificial – será retomada em seguida. Não se esgota, certamente, no conteúdo desta seção, a história institucional das ciências cognitivas. Seu propósito principal foi, tão somente, demonstrar como, no processo de consolidação institucional das ciências cognitivas, isto se deu graças a dois elementos principais: 1) O esforço de cooperação multidisciplinar; 2) Um modelo unificador da cognição. Embora neste trabalho se admita a importância das iniciativas de congregação dos cientistas cognitivos para a realização de programas de cooperação, a hipótese que aqui se defende com maior ênfase para explicar a unificação das ciências cognitivas é a do

76

compartilhamento, entre as diversas disciplinas nelas envolvidas, de uma determinada imagem da cognição humana. Teria sido por meio desta imagem compartilhada que diversos pesquisadores, de diferentes disciplinas e locais, mesmo trabalhando em projetos não propriamente interdisciplinares, puderam ser considerados cientistas cognitivos. Isto pode ser interpretado também através da noção de que as ciências cognitivas seriam antes multidisciplinares do que interdisciplinares. A próxima seção se dedicará a investigar, ainda que brevemente, essa hipótese. As seções subsequentes aprofundarão esta investigação. 1.1.4. O caráter analógico do modelo lógico-proposicional A série de acontecimentos que vai das Conferências Macy à iniciativa Sloan torna o surgimento das ciências cognitivas, da orientação cognitivista e dos modelos lógicos inseparáveis entre si, assim como de um contexto social e histórico marcado pelo advento das tecnologias da cognição. Michael Arbib, um dos redatores do relatório à Fundação Sloan, ajuda a confirmar, cerca de vinte e cinco anos depois, que o modelo lógico da cognição – também chamado de cognitivista – foi o predominante por bastante tempo, caracterizando-se, até mesmo na psicologia cognitiva, pela liderança da inteligência artificial e por negligenciar a importância das estruturas biológicas do corpo humano na explicação de comportamentos: A psicologia cognitiva tenta explicar a mente em termos de "processamento de informações" (uma noção em contínua transformação). Ela, portanto, ocupa uma posição intermediária entre a teoria do cérebro e a inteligência artificial, em que o modelo deve explicar dados psicológicos (por exemplo, que tarefas que são difíceis para os seres humanos, a capacidade de memorização das pessoas, o desenvolvimento da criança, os padrões de erros humanos, etc.), mas na qual as unidades do modelo não precisam corresponder a estruturas cerebrais reais. Nos anos de 1960 e 1970, a maioria dos psicólogos cognitivos formulou suas teorias em termos de teoria da informação e/ou manipulação de símbolos, enquanto que as teorias de organização biológica foram ignorados (ARBIB et al, p. 12 – grifo meu).

Nesta seção será examinado mais detalhadamente o papel do modelo lógicoproposicional na unificação das ciências cognitivas. A hipótese a partir da qual será feita a presente investigação é a de que a característica multidisciplinar das ciências cognitivas não dependeu,

basicamente,

de

lideranças

explícitas

e

coordenações

de

trabalhos

interdisciplinares, como vimos ter ocorrido na Iniciativa Sloan, por exemplo. Ao contrário, o que aqui se defende é que a inteligência artificial liderou a constituição das ciências cognitivas mediante a adesão voluntária dos pesquisadores das demais disciplinas à imagem da cognição como computação. Uma vez adotada esta imagem por cada uma das disciplinas,

77

sua atuação não foi predominantemente propiciada por iniciativas exógenas de cooperação direta entre pesquisadores de origens disciplinares diferentes. Dito de outra maneira, a adoção de uma imagem comum da cognição por cientistas de diversas disciplinas tem sido suficiente para que se possa falar nas ciências cognitivas como um campo coeso de pesquisas. A coesão não teria decorrido, portanto, de forças exteriores, conduzindo interações interdisciplinares do tipo tradicional – como na Inciativa Sloan; e sim da formação voluntária, em cada uma das disciplinas, de um compromisso com uma certa imagem geral da cognição, a funcionar como centro de referência. Deste modo, podemos pensar na coesão das ciências cognitivas, em grande parte, como resultado dos efeitos atrativos do modelo, como se este exercesse força centrípeta de aproximação. É interessante constatar que a denominação “ciências cognitivas” se dá no plural na língua portuguesa, assim como no francês (“sciences cognitives”) e no espanhol (“ciências cognitivas”), enquanto que no inglês predomina o emprego do singular “cognitive science”. Esta não uniformidade linguística pode sugerir a falta de consenso quanto à multidisciplinaridade das ciências cognitivas. Porém, tudo parece indicar que a forma singular em língua inglesa demonstra mais uma expectativa futura de unicidade do que a convicção quanto a esta realidade já ter sido alcançada. Isto porque, mesmo em obras escritas na língua inglesa, não se manifestam dúvidas quanto a este campo de conhecimento ser (ainda) multidisciplinar. Em um raro texto em que o termo é empregado no plural (até mesmo em seu título), na língua inglesa, encontramos a seguinte reflexão: Não é muito claro se uma única ciência vai emergir das atuais efervescência e agitação que envolvem as ciências cognitivas. O que está claro é que os últimos anos têm visto o surgimento de um grupo identificável de ciências cognitivas. Entre os praticantes dessas ciências pode-se, com certeza, encontrar muitos que são apropriadamente chamados de cientistas cognitivos, conjuntamente com o rótulo mais tradicional de linguista, cientista da computação, psicólogo, antropólogo e assim por diante. Como resultado, eu tendo a ver a ciência cognitiva mais como um guarda-chuva do que como um chapéu. (MANDLER, 1984, p. 305, grifos em negrito meus)23

O autor começa o trecho acima reproduzido falando em ciências cognitivas, no plural, mas, após apontar para a condição de cientistas cognitivos daqueles que, embora sendo originários de outras disciplinas, atuam no campo das ciências cognitivas, emprega a forma singular “ciência cognitiva” na última frase. Esta passagem transparece a suposição de que, ao menos nos anos 1980, estava aumentado o número de cientistas de diferentes disciplinas que 23

Embora este artigo seja de 1984, somos levados a julgar que a situação descrita no trecho citado não tenha mudado muito nos últimos trinta anos, consultando os livros mais recentes sobre a história das ciências cognitivas (especialmente BODEN, 2006; BERMUDEZ, 2010).

78

eram, também, cientistas cognitivos. Isto porque quando realizavam suas pesquisas e elaboravam suas teorias, embora partissem de domínios científicos diversos, estariam conscientes de que produziam um conhecimento voltado para objetivos não restritos à sua prática disciplinar. É importante salientar esta suposição, uma vez que ela indica um caminho que reúne, ao mesmo tempo, os aspectos que possam caracterizar epistemologicamente diferentes domínios com aqueles que suscitam novas práticas científicas, por ser, de fato, o caminho de cientistas situados historicamente. E esta situação histórica inclui a adoção de um modelo comum. Mas, vistos seus antecedentes institucionais, como se configurou o modelo lógico das ciências cognitivas após aquele período inicial examinado na seção anterior? Propõe-se aqui que ele tenha se formado através da adoção de uma determinada metáfora: a metáfora lógica para o pensamento e a cognição. Embora seja comum se falar em metáfora computacional (SLOMAN, 1978; GARDNER, 1985, p. 82) como base para o desenvolvimento dos modelos de orientação cognitivista, é importante advertir que esta denominação termine por encobrir a principal característica destes modelos (sua estrutura lógico-proposicional), ao induzir ao equívoco de que a analogia principal utilizada em sua construção tenha sido a do cérebro humano com o computador eletrônico, como máquina física. Diferentemente disto, entende-se na presente investigação que o foco da comparação do computador com a cognição se dá nos níveis lógicos de ambos, e não nos seus níveis físicos. Para sustentar esta noção, consideremos o que já foi visto anteriormente na comparação entre os modelos de McCullogh-Pitts e de Shannon, e outros testemunhos, como o de Allen Newell, J. C. Shaw e Herbert Simon, citados por Gardner: Não acreditamos que esta equivalência funcional entre cérebros e computadores implique qualquer equivalência estrutural em um nível anatômico mais minucioso (por exemplo, equivalência de neurônios com circuitos). Descobrir que mecanismos neurais realizam estas funções de processamento de informações no cérebro é uma tarefa para um outro nível de construção teórica. Nossa teoria é uma teoria dos processos de informação envolvidos na solução de problemas, e não uma teoria de mecanismos neurais ou eletrônicos para o processamento de informações (GARDNER, 1985, p. 148 – grifos meus).

Como se pode perceber, estes cientistas demonstram valer-se de uma analogia apenas funcional entre a cognição e o computador, para chegar a propor um modelo comum para ambos. Esta noção está relacionada com a tese do funcionalismo, desenvolvida posteriormente a partir dos trabalhos de Hilary Putnam, Jerry Fodor e Zenon Pylyshyn (BECHTEL, 1988a, p. 112 a 140. Newell e seus colegas também mostram, neste fragmento, que adotaram para a equivalência funcional entre computador e cognição a metáfora do processamento de

79

informações. Outro modo de adotar a mesma analogia essencial se utiliza do conceito de representação mental, que é amplamente aplicado pelas ciências cognitivas tradicionais. É o que afirma, por exemplo, Paul Thagard: A maioria dos trabalhos em ciências cognitivas assume que a mente contém representações mentais análogas às estruturas de dados de computadores e procedimentos computacionais semelhantes a algoritmos computacionais. Teóricos cognitivos têm proposto que a mente contém representações mentais tais como proposições lógicas, regras, conceitos, imagens e analogias, e que ela usa procedimentos mentais, como dedução, buscas, correspondências, rotação e recuperação (THAGARD, 2010 – grifos meus).

Estas atitudes podem, por fim, ser resumidas no que assinalam Gerard Casey e Aidan Moran: “A metáfora pode ser expressa assim: a mente é governada por programas ou conjuntos de regras análogos àqueles que governam computadores” (CASEY & MORAN,1989, p. 4). A analogia entre a cognição humana e o computador eletrônico seria, portanto, possível somente se ambos tiverem a compreensão de seu funcionamento atribuída a um conjunto de regras lógicas. Isto seria necessário para a construção de um modelo lógico que sirva para computadores e para a cognição estritamente humana. É trivial considerar os programas de computadores clássicos como conjuntos de regras lógicas – ou algoritmos. Mas e quanto à cognição humana? Como ela, como um todo, foi tornada equivalente a um de seus alegados aspectos, que é o raciocínio lógico sequencial, para que fosse equiparada ao funcionamento do computador artificial? Lakoff e Johnson afirmam que “a primeira geração das ciências cognitivas (...) aceitou sem questionamentos a visão prevalente de que a razão era incorpórea e literal – como a lógica formal ou a manipulação de um sistema de signos” (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 75 – grifo meu). Mas como a cognição humana pode ser entendida na forma deste mero processo lógico de manipulação de signos? Como teria se desenvolvido, nas ciências cognitivas, tal imagem da cognição, que se propõe a traduzir o processo cognitivo em linhas de códigos formadas por símbolos discretos conectados segundo regras rígidas? Tal imagem não teria sido resultado de algum processo analógico e metafórico particular? Esta é a opção aqui defendida, mesmo quanto a um tema que carece de maiores investigações. Com vistas a contribuir para elas, postula-se neste trabalho mais de uma forma de interpretar esta elaboração teórica. Uma das hipóteses que então se apresenta supõe que ela tenha se dado através de duas etapas de analogias: primeiramente a cognição humana teria sido equiparada a uma linguagem sentencial para, em segundo lugar, tal linguagem ser expressa na forma de linhas formais de códigos simbólicos. A primeira etapa, isto é, a constituição da metáfora do pensamento como linguagem, pode ser descrita como tal como o fazem Lakoff e Johnson. Para eles, a metáfora do “pensamento como linguagem” consiste em considerar que pensar seja uma atividade linguística; deste modo, “ideias simples são palavras” e “ideias complexas

80

são sentenças” (Ibid., p. 244). E prosseguem: “o que esta metáfora faz é conceituar o pensamento em termos de símbolos, como se o pensamento fosse uma sequência de letras escritas” (Ibid., p. 245). A segunda etapa metafórica, após a identificação de toda cognição a uma linguagem escrita em palavras, seria equiparar esta linguagem a um conjunto racional de regras lógicas. Outro autor, que também adota a compreensão das ciências cognitivas clássicas como um exercício de modelagem por processos metafóricos, sugere que a segunda etapa da transformação seja a seguinte: A maneira convencional de modelar a compreensão da linguagem é vê-la como uma forma de dedução lógica. Sentenças em linguagem são mapeadas (usando gramática) como proposições na lógica matemática, e então as regras da lógica são usadas para fazer inferências (FELDMAN, 2006, p. 217).

Em resumo, de acordo com este entendimento, a fim de que a cognição pudesse ter sua operação essencial equiparada ao funcionamento de regras lógicas, teriam se dado dois passos: o primeiro teria consistido em descrevê-la basicamente como linguagem proposicional vocabular, e o segundo em traduzir tal linguagem como uma sequência de proposições da lógica matemática. Haveria algumas outras abordagens possíveis deste processo de teorização clássica sobre a cognição. Uma delas, proposta pela orientação cognitivista e provavelmente a mais difundida nas ciências cognitivas clássicas, lança mão do conceito, desenvolvido por Jerry Fodor, de “linguagem do pensamento”24 que, conforme será explorado mais adiante, busca fundar o modelo lógico-proposicional numa linguagem básica, comum e inata nos seres humanos, subjacente a toda cognição. Mas também se sugere aqui, sucintamente, uma terceira hipótese de compreender a cognição na forma de sequência lógica. Esta abordagem inverte a ideia de uma “linguagem do pensamento” subjacente a toda atividade cognitiva, ao propor que o modelo lógico-proposicional seja uma simplificação abstrata da cognição, e não a descrição de um processo constituinte de sua estrutura essencial. Ela supõe que os modelos lógicos da cognição tenham sido criados a partir de uma analogia entre a cognição como um todo e um de seus aspectos, que é o raciocínio lógico formal – o que poderia classificar esta comparação como uma forma de metonímia, ou mais especificamente de sinédoque25. Isto é, pelo fato de uma das capacidades cognitivas dos seres humanos ser o raciocínio lógico, esta capacidade teria sido valorizada a ponto de ser tomada como sendo a cognição em si.

24

Language of Thought, ou “LoT”, na forma original, em inglês. Cf. FODOR 1975, 1981, 2008, e também discutido, entre outros, GARDNER 1985, p. 83-86; BECHTEL 1988a. p. 54-57; THAGARD, 1988, p. 74 e AYDEDE, 2010. 25 Tipo de metonímia em que se toma a parte pelo todo.

81

Dito isto, retoma-se agora a equiparação entre cognição humana o processamento computacional em máquinas. Além das duas analogias, a do computador com as regras lógicas, e a da cognição humana com estas mesmas regras, haveria ainda uma outra, a reforçar as duas primeiras, utilizada na compreensão conjunta da cognição humana e dos computadores: é aquela entre o conjunto de regras lógicas e um processo fabril produtivo26, na qual um objeto inicial (premissas, estímulos, informações ou inputs) se transforma em um objeto final (conclusões, respostas, comportamentos ou outputs). É o que afirma Gardner, ainda sobre os trabalhos de Simon e Newell, mostrando a analogia entre programas (processos de operação de regras lógicas, algoritmos) e processos produtivos, e que se relaciona também com o que vimos eles chamarem de processamento de informações: Uma noção fundamental do esquema de Newell-Simon é o sistema de produção, no qual uma operação será executada se uma certa condição específica for satisfeita. Os programas consistem em longas sequências de tais sistemas de produção, operando sobre um banco de dados. Conforme descrição dos teóricos, o sistema de produção é uma espécie de ligação estímulo-resposta computacional; se os estímulos (ou condições) forem apropriados, a resposta (ou produção) será executada. (GARDNER, 1985, p. 150 - grifo meu).

Esta terceira analogia, do processo produtivo com os conjuntos de regras lógicas, se combina com a segunda analogia que foi apontada, entre a cognição e estas tais regras, e deste modo permite pensar que a cognição tenha importância pelos resultados que possa produzir, dados alguns insumos, mediante o uso de regras lógicas. Esta série de analogias pode ser expressa da seguinte forma transitiva: Primeira analogia: O funcionamento do computador é como a operação de regras lógicas. Segunda analogia: A cognição é como a operação de regras lógicas. Terceira analogia: A operação de regras lógicas é como um processo produtivo. Quarta analogia: O funcionamento do computador e a cognição são como processos produtivos. Conforme a quarta analogia, acima, – e de acordo com a orientação cognitivista – o fato de a cognição ser análoga a um processo produtivo reforça os motivos para que ela possa ser compreendida unicamente em seu aspecto lógico-racional objetivável. Isto porque este último aspecto, ao ser, por sua vez, análogo a um processo produtivo, seria assim propício a ser pensado como capaz de produzir os resultados esperados da cognição: decisões e ações racionais obtidas segundo regras adequadas. Em outras palavras: seria em nome de um 26

Este ponto será retomado na seção 1.2.2, quando tratarmos do modelo lógico-proposicional na forma de processamento de informações.

82

determinado conceito de produção que a cognição teria sido representada por um modelo lógico-proposicional, e seria pelo mesmo motivo que, para compreendê-la, este modelo dispensaria fatores como emoções, imaginação, relações com o ambiente, e o próprio corpo humano (GARDNER, 1985, p. 6). 1.2. Descrição do modelo lógico-proposicional e suas principais utilizações nas diversas disciplinas das ciências cognitivas 1.2.1

O modelo lógico-proposicional na inteligência artificial Nesta seção será apresentado o modelo lógico-proposicional na forma com que

concebido pela inteligência artificial cognitiva. Será abordada a noção de algoritmo, bem como sua aplicação em programas de computadores, assim como serão descritas as pesquisas iniciais de Herbert Simon e Allen Newell e seu efeito conceitual nas ciências cognitivas. O objetivo deste segmento é esclarecer, ainda que sucintamente, como se deu a liderança da inteligência artificial nas ciências cognitivas, investigando o papel da noção de sistema de símbolos físicos neste processo. Como já foi dito na seção 1.1.3, Herbert Simon e Allen Newell foram os principais responsáveis pela instituição da inteligência artificial como disciplina líder das ciências cognitivas. Por este motivo, é fundamental identificar que características apresentaram os principais conceitos, elementos teóricos, e até mesmo produtos de engenharia computacional, elaborados por Simon e Newell, de modo que fossem compatíveis com a criação do modelo lógico-proposicional como referência do campo científico cujo nascimento proporcionou. Para esta finalidade, um dos principais conceitos a exigirem maior esclarecimento é o de algoritmo. Embora já tenhamos visto sua definição mais geral na seção 1.1.4, é preciso fixar algumas de suas peculiaridades. Utilizemos para tal a seguinte definição de Hartley Rogers, a partir da noção de algoritmo como computação:

83

1. Um algoritmo é dado como um conjunto de instruções de tamanho finito. (Qualquer algoritmo matemático clássico, por exemplo, pode ser descrito em um finito número de palavras em inglês.) 2. Há um agente de computação, geralmente humano, que pode reagir com as instruções e realizar os cálculos. 3. Há condições para preparar, armazenar e recuperar passos em uma computação. 4. Seja P um conjunto de instruções como em 1 e L um agente de informática como em2. Em seguida, L reage a P, de tal maneira que, para qualquer dado de entrada, o cálculo é realizado de forma passo a passo discreta, sem utilização de meios contínuos ou dispositivos analógicos. 5. L reage a P, de tal maneira que um cálculo é levado adiante deterministicamente, sem recorrer a métodos aleatórios ou dispositivos, como, por exemplo, dados de jogar (ROGERS, 1967, p. 2)

Assim podemos dizer que um algoritmo, para o caso em exame, é o conjunto finito de regras bem determinadas27que governa a execução de procedimentos formais de manipulação de símbolos, através do qual a transformação simbólica possa ser efetivada. Sendo assim, é uma relação de instruções cuja obediência é considerada como necessária para que seja executada uma operação com símbolos28. Portanto, o algoritmo não corresponde, para os propósitos da presente investigação, a uma sequência abstrata de símbolos, ou a qualquer processo de cálculo29, tão somente; mas, em vez disso, deve ser entendido como um conjunto de regras a serem obedecidas por processos reais – como visto na definição de Rogers –, sem as quais estes processos não produzem o que deles se espera. Mas devemos também levar em consideração a seguinte definição: “Um algoritmo é um conjunto finito de regras que são inequívocas e que podem ser aplicadas de forma sistemática a um objeto ou conjunto de objetos para transformá-los de maneira definida e circunscrita.” (BERMÚDEZ, 2010, p. 14). Isto é, as regras devem ser inequívocas de tal modo a permitirem transformações, já que precisam ser seguidas para que tais transformações se efetivem. Assim, as regras algorítmicas podem ser caracterizadas como uma forma transcendente e anterior aos processos materiais, que os conforma à sua semelhança, e torna equivalentes, para seus propósitos, todos os processos que a ela se submetem. Claro é que o algoritmo entendido como qualquer processo de cálculo guarda alguma identidade com o que aqui se considera como sendo processos materiais: por exemplo, um procedimento de cálculo deve obedecer a regras sem as quais os valores atribuídos às variáveis – configurando assim um dado estado geral do sistema num certo momento – não podem ser transformados nos resultados esperados. Se um procedimento de cálculo é, por princípio, abstrato, isto é, não pressupõe suas aplicações a sistemas reais, por 27

A alusão à obediência a “regras bem determinadas” na definição de algoritmo é importante, e se encontra, por exemplo, no verbete respectivo no Dicionário de lógica, de Leonidas Hegenberg (HEGENBERG, 1995, p. 4). 28 Uma abordagem mais completa desse caráter de efetividade será feita na seção 1.2.4, quando da exposição da teoria de Marr sobre os três níveis de percepção e cognição. 29 A definição de algoritmo como de “qualquer processo de cálculo” é a que encontramos, por exemplo, no Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano (ABBAGNANO, 2007 [1971], p. 25).

84

outro lado, quando os algoritmos são utilizados na concepção do modelo lógico-proposicional da cognição humana, isto ocorre – ainda que muitas vezes de maneira tácita – tendo como objetivo a explicação de processos reais de percepção, pensamento, memória e ação. Dito alternativamente, a cognição, ainda que pensada na forma de algoritmo, é algo que se implementa fisicamente. Ademais, considerar os algoritmos como de algum modo relacionados com processos materiais de cognição é essencial, como será visto no capítulo 2, para que seja compreendida a crítica corpórea às ciências cognitivas tradicionais. Uma maneira análoga – e igualmente analógica – de se caracterizarem os algoritmos é compreendê-los como processos mecânicos, no sentido de se assemelharem ao funcionamento de máquinas30. Este sentido ainda será mais explorado na seção 2.2, quando serão enfocadas as críticas que o mecanicismo recebeu ao longo do século 20, pelos autores que influenciaram algumas das posições da cognição corpórea. Mas, desde já, devemos fixar alguns aspectos essenciais da imagem maquínica31 do algoritmo. Sua operação deve: a) Dar-se passo a passo, na forma de uma série de interações entre termos bem definidos – assim como nas máquinas deve ocorrer quanto ao ajuste e ao funcionamento das diversas peças que a compõem; b) Ocorrer a partir de uma lista finita de instruções, do mesmo modo como em uma máquina deve haver um número finito de partes, tanto para ser construída de maneira conclusiva, quanto para que dela se espere um resultado operacional em um dado tempo; c) Interligar os valores de entrada e de saída com o mesmo grau de certeza e determinação que vincula os insumos e os produtos de máquinas físicas; d) Conferir confiabilidade e previsibilidade ao funcionamento do todo em decorrência da forma das partes e de sua interação, de tal modo que não seja necessária a intervenção de quem quer que seja a cada um dos passos da operação – conferindo, assim, ao algoritmo, um caráter de independência interna semelhante ao se espera de uma máquina. De qualquer modo, não se exige aqui uma definição mais extensa ou tecnicamente comprometida de algoritmo. Em vez disso, os sentidos de algoritmo aqui considerados devem servir, precipuamente, para a compreensão do modelo lógico-proposicional tal como

30

Não se trata, neste caso, de fazer considerações sobre aspectos técnicos da relação entre algoritmo e a imagem de máquina usada por Alan Turing expressa em seu já mencionado artigo de 1936. 31 Este adjetivo é usado para definir mais propriamente o que seria “mecânico” como referente às máquinas e não a qualquer processo de interação de corpos.

85

produzido pela inteligência artificial em seus primórdios, o que será útil, sobretudo, para explicar a crítica corpórea. Sendo assim, devemos buscar a compreensão de como o algoritmo computacional, do modo como presente na inteligência artificial capitaneada por Simon e Newell, se configurou na forma do modelo lógico-proposicional da cognição. Como já foi mencionado, Gardner afirma que Simon e Newell levaram ao Simpósio do MIT, de 1956, seu artigo “Logic theoretical machine” (GARDNER. 1985, p. 25). Mas devemos observar que na conferência de Dartmouth, semanas antes, uma declaração (citada em GARDNER, 1985, p. 138 e MCORDUCK, 2004, p. 183-184) de John McCarthy, Marvin Minsky,Nathaniel Rochester e Claude Shannon, e apresentada como pedido de bolsa à Fundação Rockefeller, definia o propósito que inspirava a nascente disciplina hoje denominada inteligência artificial – inspiração que, como será confirmado à frente, também norteava Simon e Newell: Propomos um estudo sobre inteligência artificial a ser realizado durante dois meses, por dez homens, durante o verão de 1956 no Dartmouth College, em Hanover, New Hampshire. O estudo será conduzido com base na conjectura de que cada aspecto do aprendizado ou qualquer outro recurso da inteligência pode, em princípio, ser descrito com tanta precisão que uma máquina pode ser feita para simulá-lo (tal como citado em MCCORDUCK, 2004, p. 183-184).

Podem-se constatar nesta proposta indícios de que, desde seu início, a inteligência artificial: a) Não era uma busca apenas de criar uma inteligência que funcionasse nas máquinas, mas que fosse semelhante à inteligência humana; e, assim b) Baseava-se na hipótese de que a inteligência humana podia ser descrita com precisão. Tais suposições são muito importantes para sugerir que a inteligência artificial já trazia em sua gênese a concepção do modelo lógico-proposicional da cognição humana. Isto porque, se a inteligência humana podia ser descrita com precisão suficiente para ser simulada logicamente, a imagem que dela se fazia pressupunha sua redutibilidade à linguagem lógica. Ou, dito de outra maneira, sua redutibilidade lógico-proposicional implicava a crença de que a cognição seria essencialmente compreensível com este tipo de formalização, não podendo haver nada fundamental em sua descrição que não coubesse na sua expressão simbólica. Gardner relativiza esta crença, ao dizer que “alguns praticantes [da inteligência artificial] querem simular os processos de pensamento humano, enquanto outros se contentam com qualquer programa que leve a consequências inteligentes” (GARDNER, 1985, p. 140). Esta diferença tem certa semelhança com uma classificação dicotômica proposta por John Searle,

86

entre inteligência artificial “fraca” e “forte” (SEARLE, 1980). Ambas são importantes porque, de certo modo, selecionam o que seria o compromisso que, partindo da inteligência artificial, constitui o modelo lógico-proposicional da cognição para as ciências cognitivas em geral. Levemos em consideração a crítica que Searle faz à imagem computacional da cognição humana: De acordo com a inteligência artificial fraca, o valor principal do computador no estudo da mente é que ele nos fornece uma ferramenta muito poderosa. Por exemplo, ele nos permite formular e testar hipóteses de uma maneira mais rigorosa e precisa. Mas de acordo com a inteligência artificial forte, o computador não é meramente uma ferramenta no estudo da mente; em vez disso, o computador apropriadamente programado realmente é uma mente, no sentido de que os computadores, dados os programas adequados, podem literalmente compreender e apresentar outros estados cognitivos. Na inteligência artificial forte, porque o computador programado tem estados cognitivos, os programas não são meras ferramentas que nos permitem testar explicações psicológicas; em vez disso, os programas são, eles próprios, as explicações. Eu não tenho nenhuma objeção às afirmações da inteligência artificial fraca (...). Minha discussão aqui será voltada para as alegações que defini como sendo da inteligência artificial forte, especificamente a alegação de que o computador adequadamente programado tem, literalmente, estados cognitivos e que os programas, assim, explicam a cognição humana (Ibid., p. 417).

Se a crítica que Searle faz contra a inteligência artificial é dirigida àquela que defende a imagem da cognição como se fosse equivalente a um programa de computador, o que se constata é que sua objeção é apresentada justamente à corrente da inteligência artificial que não apenas integrou, como, segundo a suposição aqui adotada, liderou as ciências cognitivas tradicionais. Sendo assim, o que ele denomina de “inteligência artificial fraca” não corresponde à ideia de inteligência artificial que se examina neste trabalho. Por outro lado, o que Searle batiza de “inteligência artificial forte” é exatamente o movimento tecnocientífico estudado nesta seção. Os adjetivos “forte” ou “fraco” aplicados à inteligência artificial são inadequados e nada esclarecem quando se tem o propósito de compreender o papel desta disciplina na constituição das ciências cognitivas. Isto porque aquela atividade que Searle chama de inteligência artificial fraca não pode ser adequadamente considerada como uma disciplina das ciências cognitivas. Ela é, talvez mais apropriadamente, um recurso técnico coadjuvante das pesquisas científicas em todos os campos. Em outras palavras, não se trata de uma questão de grau, ou de força, da inteligência artificial, mas de atividades qualitativamente diferentes. De todo modo, a nomenclatura empregada por Searle contribui para que se esclareça o sentido da inteligência artificial para as ciências cognitivas. Ao permitir que façamos diferenciação entre uma disciplina propriamente científica e algo que se aproxima mais de uma técnica instrumental, favorece a caracterização da inteligência artificial científica como ciência cognitiva. Contudo, como nem todas as pesquisas científicas em inteligência

87

artificial assumiram ou assumem pressupostos relacionados à cognição humana, é importante demarcar neste trabalho que a inteligência artificial que aqui se discute é aquela desenvolvida por Simon, Newell, McCarthy e Minsky, entre outros, e que adotava os compromissos que Searle atribuiu ao que denominou de “inteligência artificial forte”. Em suma, para os propósitos da presente investigação tal disciplina deve ser mais precisamente designada como inteligência artificial cognitiva. E o primeiro trabalho a ser examinado, com vistas ase compreender a gênese da inteligência artificial cognitiva, não consiste em texto teórico, mas em um artefato que foi construído com o intuito de que assumisse uma função teórica humana: trata-se do programa Logic Theorist, desenvolvido por Simon e Newell (e Cliff Shaw – GARDNER. 1985, p. 146) na RAND Corporation e apresentado em 1956. O propósito do programa – rodado no computador “Johniac”, na RAND, batizado em homenagem a John Von Neumann – era demonstrar que o computador poderia realizar um pensamento do tipo humano, e isso foi buscado através da descoberta de provas para teoremas de lógica simbólica originalmente apresentados no livro Principia Mathematica, de Alfred North Whitehead e Bertrand Russell. Segundo os historiadores das ciências cognitivas, (GARDNER, 1985; MCCORDUCK, 2004 e BODEN, 2006), de fato o programa conseguiu provar trinta e oito teoremas dos Principia. Segundo McCorduck, Edward Feigenbaum, aluno de Simon, afirmou que seu professor teria dito à sua turma de modelação matemática: “Após o Natal Allen Newell e eu inventamos uma máquina pensante” (MCCORDUCK, 2004, p. 222). Gardner acrescenta, a respeito: Afinal de contas, o Logic Theorist (LT) poderia cm princípio ter funcionado por força bruta (como o famoso macaco à máquina de escrever); mas nesse caso, teria levado centenas ou mesmo milhares de anos para executar o que na realidade fizera em poucos minutos. Ao invés disto, porém, o LT funcionava por procedimentos que, de acordo com a equipe de Newell, eram análogos aos empregados por solucionadores de problemas humanos, Entre os métodos usados pelo LT encontram-se: substituição de um tipo de expressão por outro; um método de destacamento (detachment), onde o programa trabalha de trás para a frente, de algo que já foi provado para algo que precisa ser provado; e uma forma silogística de raciocínio, onde se “ a implica 6” é verdadeiro, e “ b implica c” c verdadeiro, então “implica c” é também verdadeiro. Em um esforço adicional para sublinhar os paralelos entre a solução de problemas pelos humanos e pela máquina, Newell e Simon realizaram vários experimentos com seu programa Mostraram que se retirassem o registro de teoremas anteriores (com base nos quais as soluções para novos teoremas eram construídas), o Logic Theorist não conseguia solucionar problemas que resolvera anteriormente cm dez segundos. Esta foi talvez a primeira tentativa de fazer um experimento com um computador para ver se ele “responde” da mesma forma que os seres humanos (GARDNER, 1985, p. 147).

Assim, se percebe claramente a determinação de Simon e Newell de desenvolverem um programa que não somente fosse capaz de “pensar como um ser humano”, mas de

88

demonstrar que este tipo de funcionamento pudesse refletir a essência do pensamento humano. Foi exatamente neste sentido que a inteligência artificial nascente se colocou como líder das ciências cognitivas: por se apresentar como portadora de um modelo adequado da cognição humana. Ou seja, a inteligência artificial cognitiva jamais foi “apenas” inteligência artificial. Foi a ciência cognitiva pioneira. Isto porque, nas palavras de Gardner: Ao criar e processar o Logic Theorist, Newell e Simon mostraram que a IA era uma possibilidade, senão uma realidade. Enquanto todas as afirmações anteriores tinham sido, em um certo sentido, meros acenos, duas demonstrações fundamentais haviam agora sido feitas: (1) os computadores podiam empenhar-se em um comportamento que, se fosse exibido por humanos, seria inequivocamente considerado inteligente; (2) as etapas pelas quais os programas passam no decurso da prova de teoremas apresentam uma semelhança não trivial com as etapas observadas na solução de problemas humanos (Ibid., p. 148).

Porém, há outros indícios desta condição da inteligência artificial de primeira das ciências cognitivas. Um deles decorre da sequência das pesquisas de Simon e Newell e consiste no General Problem Solver (NEWELL & SIMON, 1972), que procurava reproduzir os processos utilizados pelos “seres humanos normais” (GARDNER, 1985, p. 148) para solucionar problemas. Mas, ainda segundo Gardner: Embora o General Problem Solver (GPS) tenha sido por fim abandonado porque sua generalidade não era tão grande como os seus criadores haviam desejado, (...) o programa pode ser considerado o primeiro a simular um espectro de comportamento simbólico humano. O GPS também teve um papel importante no julgamento de Simon e de Newell a respeito do empreendimento no qual eles estavam engajados. Na sua concepção, toda inteligência envolve o uso e a manipulação de vários sistemas simbólicos, tais como aqueles existentes na matemática ou na lógica. No passado, tal manipulação havia sido feita apenas pelo ser humano dentro dos limites de sua própria cabeça, ou com papel e lápis; mas, com o advento do computador digital, a manipulação de símbolos tornou-se também domínio da maquinaria eletrônica. (Ibid., p. 149-150 – grifo em negrito meu).

Percebe-se com a narrativa sobre a construção do Logic Theorist e do General Problem Solver que ambos os artefatos tiveram o papel de experimentação científica, e não apenas de confecção tecnológica. Como se depreende do trecho acima, o empreendimento de Simon e Newell era científico, e não somente técnico, uma vez que se comprometia com hipóteses mais gerais sobre a cognição e tinha como objetivo testá-las. Sua hipótese do sistema simbólico físico é um exemplo. Segundo Gardner, “o conceito de sistema simbólico físico é tido por Simon e Newell (...) como a doutrina principal da área da ciência da computação”. E, de acordo com José Luis Bermúdez,

89

Um sistema de símbolos físicos dispõe dos meios necessários e suficientes para a ação inteligente em geral. Há duas alegações aqui. A primeiro (a afirmação de necessidade) é que nada pode ser capaz de ação inteligente a menos que seja um sistema de símbolos físicos. Uma vez que os humanos são capazes de ação inteligente, isto significa, é claro, que a mente humana tem de ser um sistema de símbolos físicos. Neste sentido, então, a hipótese de sistema de símbolos físicos surge como uma restrição sobre qualquer possível arquitetura mental. A segundo (a afirmação de suficiência) é que não há qualquer obstáculo, em princípio, para a construção de uma mente artificial, desde que se aborde o problema através da construção de um sistema de símbolos físicos. A plausibilidade e relevância do crédito depende do que um sistema de símbolos físicos é. (BERMÚDEZ, 2010, p. 142-143).

O mesmo autor resume a hipótese do sistema simbólico físico nos seguintes quatro pontos: 1) Os símbolos são padrões físicos. 2) Estes símbolos podem ser combinados para formar estruturas complexas de símbolos. 3) O sistema de símbolos físicos contém processos de manipulação de estruturas complexas de símbolos. 4) Os processos de geração e transformação de estruturas complexas de símbolos podem eles mesmos ser representados por símbolos e estruturas de símbolos dentro do sistema (Ibid., p. 143).

É importante esclarecer qual o sentido do adjetivo “físico”, na expressão e na imagem proposta por Newell e Simon. Isto porque ele pode sugerir que a hipótese por eles defendida considere que os aspectos materiais da cognição têm papel essencial. Para Gardner, “na visão de Newell e Simon, o computador é um sistema simbólico físico como o cérebro humano e exibe muitas propriedades iguais às do ser humano cujo comportamento ele foi agora programado para simular” (GARDNER, 1985, p. 150). Outra passagem que pode elucidar esta questão está num texto do próprio Newell, em que ela afirma que os sistemas simbólicos de que trata são físicos porque “realizáveis em nosso Universo” (NEWELL, 1980, p. 1). Contudo, a passagem que permite o esclarecimento mais preciso deste ponto é aquela em que Newell afirma: No mundo físico, há limites – limites para a velocidade de componentes, para a sensibilidade e energia espaciais, para o material disponível para a memória, para a confiabilidade da operação, para citar apenas os mais óbvios. Ou, declarando uma tautologia: nenhum sistema pode se comportar para além do seu limites físicos. Assim, a universalidade de qualquer sistema deve ser tomada em relação a esses limites de implementação física (Ibid., p. 17).

Assim, podemos dizer que os sistemas simbólicos de Simon e Newell são físicos porque se implementam nos limites próprios do universo material concreto. Mais precisamente, eles funcionam de acordo com as limitações impostas por dispositivos como o computador ou o cérebro – sem o que não se poderia dizer que funcionam. Mas, como se pode perceber

90

claramente, se o dispositivo material tanto pode ser o hardware de um computador como um cérebro, o que é invariante no sistema é a estrutura de símbolos – desde que possa operar em algum suporte material adequado. Em outras palavras, o que determina as propriedades do sistema é sua estrutura simbólica, e não a estrutura material em que se instancia32. Uma afirmação de Margaret Boden, sobre a atividade de Simon e Newell, ajuda a esclarecer um ponto crucial: Seus programas de inteligência artificial especificaram sistemas computacionais formais do tipo definido por Turing. Como psicólogos, no entanto, eles estavam interessados em computações que são fundamentadas no mundo e capazes de dirigir o comportamento nele (BODEN, 2008, p. 1419).

Decorrem desta passagem duas conclusões muito importantes: 1) Que Simon e Newell procuravam desenvolver sistemas para funcionar no mundo, gerando comportamentos concretos em máquinas e, indiretamente, em seres humanos; ou seja, não se ocupavam de problemas meramente abstratos ou matemáticos; 2) Que ambos atuavam, assim, também como “psicólogos”; ou seja, que estavam preocupados em explicar, com suas pesquisas em inteligência artificial, a cognição e o comportamento humanos, no que se colocavam como verdadeiros cientistas cognitivos, e também líderes da ciência nascente, ao definirem os traços essenciais do modelo lógico-proposicional da cognição. Embora tenham ocorrido alguns trabalhos importantes na esteira das pesquisas de Simon e Newell em inteligência artificial cognitiva, como as investigações, teorias e artefatos de Marvin Minsky no MIT, de John McCarthy, também no MIT e depois na Universidade de Stanford, e respectivas equipes, defende-se neste trabalho que as características essenciais do nascimento do modelo lógico-proposicional são devidamente descritas através do exame da contribuição dos dois autores aos quais se atribui o pioneirismo e a liderança de tal empreendimento. Nas

próximas

seções

serão

investigadas

com

maior

profundidade

outras

particularidades do modelo, através de suas aplicações em disciplinas além da inteligência artificial cognitiva. Contudo, deverá ficar patente em todos os casos o que na presente seção de procurou demonstrar: que as ciências cognitivas não teriam se constituído sem a formalização do modelo lógico-proposicional da cognição por parte da inteligência artificial, e que mesmo esta já teve seu início comprometido com a defesa de uma determinada imagem da cognição humana. Esta imagem corresponde à função de representação e ao processamento 32

Este ponto será analisado na seção 1.2.5.

91

de informações mediante estruturas de símbolos, que possui características sintáticas invariantes, cuja forma e cujo conteúdo são descritíveis com precisão mediante passos algorítmicos, lógicos e capazes de constituir proposições claras, distintas e literais. 1.2.2.

O modelo lógico-proposicional na psicologia cognitiva: o caso do processamento de

informações Esta seção explorará a ideia de que o modelo lógico-proposicional tomou a forma principal do processamento de informações, quando empregado pela psicologia. Dito de outra maneira: segundo a concepção defendida neste trabalho, o modelo lógico-proposicional teria assumido diversas feições, em conformidade com as diversas disciplinas integrantes das ciências cognitivas e, no caso da psicologia, esta feição nasceria da concepção de que a cognição funciona processando informações. Pelo fato de que a psicologia, dentre as ciências cognitivas, é aquela que mais se dedica à compreensão da cognição humana individual, não é difícil se inferir que, se o processamento de informações é o modelo principal da psicologia cognitiva, ele seria, ao menos, um dos principais modos de representar a cognição humana nas ciências cognitivas. Mas, além disso, o processamento de informações, como será visto mais detalhadamente adiante, é uma noção presente em quase todas as disciplinas das ciências cognitivas, constituindo, assim, uma das mais importantes configurações do modelo lógicoproposicional. Contudo, o processamento de informações não é uma noção originária da psicologia. Como já foi visto anteriormente, ela nasceu ainda na inteligência artificial. Por outro lado, notaremos que, enquanto na inteligência artificial a noção de processamento de informações é menos uma metáfora do que parte de uma técnica de produção, nas demais disciplinas das ciências cognitivas ela influenciou a criação de modelos particulares a partir da analogia de que a cognição humana funciona como se fosse um artefato artificial de produção de conhecimento, como aqueles que a inteligência artificial efetivamente constrói. Para que se compreenda melhor o sentido da aplicação da noção de processamento de informações à cognição humana, é preciso proceder, todavia, a um recuo. É necessário que se defina com maior clareza em que contexto se passou a buscar compreender o funcionamento “interior” da cognição, e a partir de que debates. Além disso, é importante explorar também que fatos favoreceram esta compreensão. Como é corrente nas principais obras de história das ciências cognitivas, a psicologia cognitiva nasceu como alternativa ao behaviorismo. Contudo, é preciso, antes de prosseguir, fazermos uma observação. Embora tenhamos visto que Gardner destaca o combate ao

92

behaviorismo presente nos movimentos iniciais das ciências cognitivas, alguns autores assinalam que a noção de processamento de informações seria, em parte, compatível com a noção behaviorista de estímulo-resposta. Neste sentido, o que no modelo behaviorista seria estímulo, nos modelos de processamento de informações seria assimilável pela ideia de input, enquanto que a mesma correlação haveria entre resposta (no behaviorismo) e output (no modelo de processamento de informações). É o que considera, por exemplo, D. W. Hamlyn: Em termos behavioristas, a relação entre input e output é aquela entre estímulo e resposta. De fato, colocar a questão em termos de input e output é realmente construir o modelo teórico behaviorista em termos de um aparato teórico bem diferente: o de processamento de informações; mas não há prejuízo em fazê-lo, na medida em que tenhamos consciência do que está sendo feito. (HAMLYN, 1990, p. 3)

Esta concepção é reforçada por Jerome Bruner, um dos principais formuladores da psicologia cognitiva experimental nascente nos anos 1950: “No lugar de estímulos e respostas, inputs e outputs” (BRUNER, 1990, p. 7). Admita-se ou não ruptura mais radical entre o modelo behaviorista e o modelo de processamento de informações da psicologia cognitiva, a mudança de noção norteadora ocorrida mantém a ideia de que há na cognição uma sequência temporal irreversível ligando causas ao comportamento humano, ainda que na nova abordagem haja a preocupação em se descrever o que acontece entre ambos – e isto será muito importante, adiante. A descrição do que se passa entre os inputs e os outputs é o propósito da imagem básica do processamento de informações apresentado por Barber (BARBER, 1988, p. 30), que será comentado a seguir: Input ou estímulo

Output ou resposta

Figura 2 Observemos agora o primeiro modelo psicológico explicitamente baseado na noção de processamento de informações e, segundo Gardner (GARDNER, 1985, p. 92), de inspiração na engenharia. Trata-se do trabalho de Donald Broadbent, desenvolvido juntamente com Colin Cherry no mesmo período das pesquisas semelhantes de George Miller e Jerome Bruner nos EUA, e que se utilizou do seguinte esquema:

93

Figura 3 – Fonte: GARDNER, 1996 [1985], p. 107, a partir do livro Perception and communication, de D. E. Broadbent (Elmsford, N.Y.: Pergamon Press, 1958) Tal fluxograma foi aplicado por Broadbent à percepção, e tem a forma de uma sequência temporal – uma rota – de transformação e produção, ao longo da qual as informações são fornecidas pelos sentidos, passam por etapas de armazenamento e por etapas de filtragem, até que possam ser utilizadas na execução de ações.

Figura 4 -- Fonte:NORMAN, 1980, p. 3

94

Um exemplo análogo mais complexo é reproduzido na figura 4, extraído do artigo “Twelve issues for cognitive science”, publicado em 1980 (vinte e dois anos após a publicação do diagrama anterior) por Donald Norman (um dos redatores do relatório para a Fundação Sloan, então membro do Center for Human Information Processing, da Universidade da Califórnia, San Diego). Ambos os fluxogramas podem ser entendidos como descrevendo típicas atividades recorrentes, compostas de unidades múltiplas de processamento, como em certas modalidades de fabricação industrial, ou de fluxos de trabalhos em escritórios. Isto é, não correspondem à noção de processamento unitário, mas à de processamento múltiplo, composto e sequenciado – ou de um macroprocesso. É o que assinala William Bechtel: As partes do sistema são construídas como módulos operando de maneira quase autônoma. Um dado módulo recebe seu input de outro e envia, por seu turno, seu output aos seguintes, mas realiza sua própria operação, a partir do input recebido, antes de passá-la adiante. (...) Uma analogia pode ser feita com um escritório ou uma fábrica (1988a, p. 102 – grifo meu).

A analogia que Bechtel invoca pode ser ilustrada através de um formato básico de fabricação industrial padronizada e em massa, conforme o descrito na figura abaixo:

Figura 4 – FONTE: KOREN, 2010, p. 6 Esta ilustração, retirada do livro The global manufacturing revolution, de Yoram Koren, apresenta dois tipos de processos de produção, nos quais as setas iniciais, à esquerda, mostram os inputs (matérias-primas ou insumos) e as setas finas, à direita, mostram os outputs (ou produtos finais da fabricação). O esquema de cima corresponde a um processo linear simples, e o de baixo a um processo paralelo. É o que explica o autor:

95

Sistemas de fabricação consistem tipicamente em múltiplas etapas, e cada etapa contém uma máquina ou uma estação de montagem para executar um determinado conjunto de operações, [como é ilustrada na Figura 4]. As máquinas estão interligadas mediante um sistema material de transporte. Quando as operações de uma etapa são completadas, o produto bruto é transferido para a etapa seguinte, e assim por diante, até que todas as operações necessárias sejam completadas e o produto seja acabado. Quando quantidades particularmente grandes são necessárias, várias máquinas (ou estações de montagem) podem ser instaladas em paralelo para executar as mesmas operações ao mesmo tempo em cada máquina [Figura 4, parte inferior], o que aumenta o rendimento do sistema, mas faz o projeto e a operação do sistema mais complexo. A maioria dos processos de fabricação é realizada em múltiplas etapas, incluindo os sistemas de montagem, tais como os usados para construir automóveis, cadeiras de escritório, ou computadores pessoais a partir de peças dadas; ou podem ser sistemas com processos químicos, tais como aqueles em que pastilhas semicondutoras são produzidas, ou eles podem ser sistemas para os produtos que têm que ser usinados, tais como blocos de motor, motores, bombas e compressores. Em sistemas de processamento [metalúrgico], os produtos começam como peças fundidas brutas que têm de ser perfuradas, fresadas, perfiladas e polidas (KOREN, 2010, p. 6 – grifos meus).

O objetivo de ilustrar a alusão de Bechtel é de detalhar um pouco mais a analogia que ele propõe – com processos produtivos de bens e serviços –, no sentido de identificar algumas semelhanças de tais processos com a imagem de processamento de informações adotada nas ciências cognitivas e aplicada aos computadores digitais e ao funcionamento da cognição humana. Embora não seja interesse deste trabalho buscar no modelo da fabricação industrial em massa causas históricas para a adoção do modelo de processamento de informações nas ciências cognitivas, constatamos que este paradigma (conforme o denomina Koren no livro citado) possui características formais bastante coincidentes com aquelas que os cientistas cognitivos pioneiros utilizaram para explicar a cognição. Podemos destacar no modelo as seguintes propriedades: a) Trata-se de um processo sequencial e normalmente irreversível, no tempo, de transformação de elementos básicos (inputs) em elementos finais (outputs); b) Pode ser classificado como um macroprocesso, por ser constituído de etapas ou módulos que, como destaca Bechtel, têm eles mesmos seus próprios inputs e outputs parciais; c) Suas etapas podem consistir em subprocessos de naturezas diferentes, como de transformação, transporte (ou transmissão), armazenamento etc. d) Podem ser lineares ou paralelos, conforme as necessidades e particularidades da produção; e) As etapas ou módulos podem ser mais ou menos autônomos, ou “encapsulados”, no sentido de serem em maior ou menor grau isoladas ou em relação ao processo como um todo.

96

Todas estas propriedades são identificáveis na imagem de processamento de informações, de acordo com os exemplos de sua aplicação apresentados acima. A possibilidade de o processamento de informações ser concebido como tendo execução paralela na cognição humana tem sido bastante discutida nos últimos trinta anos, a partir do desenvolvimento da noção de processamento paralelo e distribuído (PDP, na sigla da expressão em inglês), associada à corrente conexionista das ciências cognitivas. Os debates a respeito, travados, por exemplo, em SMOLENSKY, 1987; CLEEREMANS, 1993; CLARK & TORIBIO, 1994; VAN GELDER, 1998 e ROGERS & MCLLELAND, 2003 e 2004, questionam sobre até que ponto a representação da cognição como PDP pode ser pensada como um conjunto de processos do tipo input/output operando de maneira concomitante e/ou articulada, como o da figura seguinte:

Figura 5 – FONTE: STILLINGS et al, 1985, p. 308 Neil Stillings e seus colaboradores apresentam o fluxograma acima como representando um processamento paralelo de informações que tem como output (ou, no caso em tela, “resposta”) a leitura de uma palavra por um indivíduo humano. Nele, identifica-se forte semelhança com

97

o exemplo dado por Koren (figura 4) de um processamento fabril em paralelo. Mas podem surgir problemas para a utilização do modelo de processamento de informações paralelo na cognição quando esta é compreendida de maneira menos simples. O que alguns autores argumentam, como Francisco Varela e Evan Thompson (VARELA et al, p. 86 e 88, THOMPSON & VARELA, 2001), é que o modelo conexionista, ainda que parta da noção de PDP, torna de tal modo complexo o processamento cognitivo que este perde sua suposta característica linear (linearidade esta ainda encontrada na figura 5), e que a cognição, assim, seria melhor explicada mediante a aplicação de modelos que adotam a linguagem matemática dos sistemas dinâmicos não-lineares33. Outra questão relativa à aplicação da noção tradicional de processamento produtivo à cognição diz respeito à autonomia seus módulos. Esta é discutida por Barber, fazendo referência ao seu “modelo básico” representado na figura 2: Uma das características mais marcantes da abordagem de processamento de informações, que é claramente expressa pelo nosso "modelo básico", é a hipótese da modularidade do sistema de processamento. Estágios de processamento são componentes ou módulos que contribuem para o funcionamento do sistema como um todo. Seria um erro supor que a hipótese de modularidade nos compromete com a forte visão de que os módulos são ilhas inexpugnáveis de atividade de processamento, que respondem apenas em relação aos seus inputs e são insensíveis às operações de processamento ao seu redor. (...) É, afinal, perfeitamente possível descrever uma organização empresarial como um conjunto de departamentos que tem uma forma modular, sem fazer a suposição de que as suas operações não exercem influências mútuas. A caracterização completa da organização consistirá em esclarecer as funções dos departamentos, bem como a natureza das influências mútuas. É certo, todavia, que existe pelo menos uma técnica metodológica de uso comum na psicologia, que é voltada para a forte suposição de independência dos estágios de processamento. É particularmente útil no início de uma investigação em que o contorno da estrutura da sequência de processamento de informação está sendo estabelecida. Também pode servir para testar o quão longe a suposição de independência pode ser levada. (BARBER, 1988, p. 31).

Isto é, embora a imagem do processamento de informações, quando aplicada às ciências cognitivas, mantenha seu traço modular, admite-se que tenha suas particularidades e, segundo o autor, não seria questão claramente respondida se o encapsulamento das etapas cognitivas seria uma boa suposição34, embora na origem da analogia organizacional ou fabril em muitos casos os módulos sejam isoláveis. Mas, além de ser análogo a um processamento de transformação sobre certa matéria para se obter certo produto, que características essenciais a noção de processamento de informações precisou ter para ser adotada pelas psicologia cognitiva? Que requisitos teve de 33

Este tema será retomado com maior minúcia nas sessões 2.1. e 2.3. Uma extensa discussão a respeito do encapsulamento dos módulos e das informações é feita por Fodor (FODOR, 1983). 34

98

cumprir? Para responder a estas questões, comecemos por analisar os seguintes comentários de Jerome Bruner a respeito da utilização da noção de processamento de informações como modelo para a cognição: O processamento de informações armazena mensagens e as recupera em um endereço na memória sob instruções de uma unidade de controle central, ou os mantém em uma memória separadora temporária, e então as manipula de maneiras prescritas: enumera, ordena, combina, compara as informações pré-codificadas (...). De acordo com a teoria da informação clássica, uma mensagem é informativa se reduz escolhas alternativas. Isto implica um código de escolhas possíveis préestabelecidas. As categorias de possibilidade e as instâncias que compreendem são processadas de acordo com a “sintaxe” do sistema, e seus possíveis movimentos. (...) Mas o processamento de informações não pode lidar com qualquer coisa a não ser entradas bem definidas e arbitrárias, estritamente regidas por um programa de operações elementares. Tal sistema não pode lidar com a incerteza, com a polissemia, com conexões metafóricas ou conotativas. (...) O processamento de informações precisa de planejamento prévio e regras precisas. (BRUNER, 1990, p. 4).

Este trecho traz algumas indicações importantes sobre que condições formais o processamento de informações precisa cumprir a fim de que seja aplicável à cognição. As principais delas são35: 1) O processamento de informações é uma cadeia de etapas e tarefas – ou módulos, como já vimos – a serem realizadas tendo como matéria as informações (“mensagens”): armazenar, recuperar, manipular, enumerar, ordenar, combinar, comparar – como já descrito a partir das figuras 02 e 03 e discutido acima; 2) As atividades destes módulos são realizadas a partir de “instruções de uma unidade de controle central”; 3) As informações devem ser bem definidas, não admitindo incerteza e polissemia; 4) Para garantir o que foi descrito nos itens anteriores, o processo deve ser planejado e contar com regras precisas. Todas as condições se referem ao que é necessário para que o fluxo possa ser considerado um processo de transformação. Isto é, todas elas são inerentes à noção de processamento enquanto tal – não importando, a princípio, a natureza de suas entradas e saídas (ou inputs e outputs). Contudo, as condições 3 e 4 (esta, com respeito à necessidade de “regras precisas”) concernem ao conteúdo do processo, ou seja, são condições aplicadas às informações processadas. Vejamos mais precisamente, então, em que consiste o conteúdo do processamento de informações, isto é, o que são seus inputs, seus outputs e o que exatamente – e como – ele processa.

35

Cf. com a definição de algoritmo na seção 1.2.1.

99

Destaquemos a afirmação de Bruner de que as informações devem ser bem definidas e que não admitem incerteza ou polissemia. Esta convicção deve ser examinada com auxílio da teoria da informação e de seu uso pelas ciências cognitivas. É preciso retomarmos alguns aspectos históricos. Segundo Gardner (GARDNER, 1985, p. 18), um passo primordial para o desenvolvimento da noção de processamento de informações aplicada à cognição foi o artigo de Claude Shannon tem sido considerado o criador da teoria da informação, a partir, inicialmente, de seu trabalho “A symbolic analysis of relay and switching circuits”, de 1938, onde surgiu a ideia de correlacionar as alternativas verdadeiro/falso da lógica formal às posições de ligado/desligado de circuitos eletrônicos – e já abordado na seção 1.2.2. Como já foi visto, nesta formulação, que é o princípio fundador da computação digital, está a origem do conceito de binary digit, ou “bit”, como a medida unitária de informação – que corresponde à posição alternativa ligado/desligado em circuitos. Este conceito permite, entre outras aplicações, inaugurar a noção de processamento de informações, ao criar condições para se medirem as quantidades de informações a serem processadas: transmitidas, armazenadas, computadas. Tal foi a ideia foi desenvolvida por Shannon (1948), na forma de uma teoria matemática da comunicação. Nela surge a importante noção de que a grandeza informação é inversamente proporcional à de incerteza de um estado ou evento, o que permite atender a uma das condições da aplicação do processamento de informações nas ciências cognitivas, como assinalou Bruner: de que no processamento de informações as informações devem ser bem definidas. O que Shannon afirma no artigo de 1948 é que quanto mais improvável um estado (que ele chama também de “mensagem”, no sentido formal da informação), mais informativo é. Sendo assim, um dos fatores que estimularia o uso da noção de processamento de informações nas ciências cognitivas seria precisamente a possibilidade de se medir a incerteza de sinais e, assim, se pretender estudar crenças, comportamentos e outros objetos destas ciências com a máxima redução de incerteza formal. Mas em que sentido a informação que se pode correlacionar a graus de incerteza é tão somente formal? O que significa dizer que a própria incerteza está no nível formal? Scarantino e Piccinini (PICCININI & SCARANTINO, 2010, p. 240) utilizam as noções de informação não semântica e de informação semântica para delimitar que tipo de informação é – no caso, a informação não semântica –, ao mesmo tempo, formal e passível de medição. Para eles, “informação” no sentido utilizado por Shannon é informação não semântica, sem significado – ou seja, é forma sem conteúdo, ou ainda, para usar as palavras de Shannon, “mensagem cujo

100

significado é irrelevante” (SHANNON, 1948, p. 379). Há outras formas de enfrentar este problema, como a proposta pelo filósofo e cientista de inteligência artificial Aaron Sloman: Às vezes é útilcontrastarinformação sintáticacominformação semântica, onde a primeira diz respeito à forma ou estruturade algoque transmite informações, enquanto que a informação semânticaseria sobre oconteúdo do queé dito (SLOMAN, 2011, p. 5).

Isto deveria ajudar a resolver a questão que nasce da polissemia – e equivocidade – da própria palavra “informação”, cujo uso por parte de Shannon, ironicamente, pretendia ajudar a reduzir a equivocidade de todas as demais palavras, e sinais. É o que já apontava Sloman antes de propor a solução acima assinalada: O usoda palavra "informação" na teoria matemática [da informação] provou serto talmente enganoso.Tal uso não concerne ao significado, ao conteúdo, ao sentido, àconotação ou à denotação,mas àprobabilidade eredundância desinais (SLOMAN, 1978, p. 5).

Ora, se a partir da acepção de Shannon, a palavra “informação” é potencialmente polissêmica e, por isso, potencialmente enganosa – inclusive para as ciências cognitivas –, seu uso com o propósito de reduzir incertezas, tal como propugnado por este autor, se torna fragilizado. Por exemplo, quando se fala em “processamento de informações” nas ciências cognitivas, que sentido de “informação” se quer utilizar? Pelo que acabamos de ver, segundo as propostas de Piccinini/Scarantino e de Sloman, a palavra “informação” deveria aparecer sempre adjetivada, para que fosse eliminada a incerteza quanto ao seu uso? Porém, isto já não aconteceu na literatura anterior às obras destes autores – o que manterá inexoravelmente a potencial ambiguidade da palavra “informação” enquanto esta literatura for utilizada –, e ainda precisaria haver um improvável compromisso a ser amplamente respeitado no futuro pelos cientistas cognitivos de não mais utilizarem a palavra “informação” não adjetivada. Isto sem considerar um agravante: se a palavra “informação” devesse ser sempre adotada adjetivada em ciências cognitivas, qual significado seria atribuído ao substantivo puro? Mas as dificuldades não cessam aí. Para tornar a questão ainda mais complexa, como aponta Luciano Floridi, “não há ainda consenso sobre a definição de informação semântica” (FLORIDI, 2005, p. 351). Isto levaria a um segundo campo de problemas que, como será mostrado à frente, não parece afetar de modo sensível as atividades das ciências cognitivas, já que se pode lançar mão de níveis de análise. Por outro lado, quanto ao uso do substantivo “informação” em si, podemos nos perguntar se alternativas mais simples do que a adjetivação já foram criadas, sobretudo em razão de necessidades técnicas práticas. Um exemplo de possível resposta positiva a esta

101

indagação seria o fato de que há muito que correntemente se fala, na linguagem técnica, em “processamento de dados”, aparentemente no lugar de “processamento de informações” (embora a expressão “processamento de dados”, como ramo de atividades técnicas na sociedade, esteja sendo amplamente substituída no uso comum por “tecnologia da informação” – o que não esclarece, contudo, a diferença entre os termos). Mas esta utilização iria além de um ambiente técnico? Seria já predominante ao menos no campo teórico da inteligência artificial? Seria de se esperar que fosse adotada também pelas ciências cognitivas, como a psicologia ou a neurociência? Este é mais um conjunto de questões cujo exame exaustivo escapa às possibilidades deste trabalho. Porém, cabem aqui algumas considerações a respeito. Aparentemente, tem sido corrente nos trabalhos teóricos e nos usos técnicos da inteligência artificial o emprego de “dados” no sentido de “informação sintática” e de “informação” no sentido de “informação semântica” – para usar as expressões adjetivadas propostas recentemente por Sloman (2011). O próprio Floridi o faria propositalmente (1999, 2004, 2005), consciente da necessidade desta diferenciação para a atividade prática de “gestão de dados”: A estrutura conceitual fornecida pela tecnologia de banco de dados pode nos ajudar a esclarecer o significado de "dados", "informação" e "conhecimento" (DIC), ao esboçarmos um modelo “erotético” (lógica “erotética” é a lógica de perguntas e respostas). O dado é algo que faz a diferença: uma luz no escuro, um ponto preto em uma página branca, um 1 em vez de um 0, um som no silêncio. Como tal, é um átomo de semântica: não pode haver menor extensão de significado, porque um “não-dado” é um “dado-nada”, em que mesmo a presença de “nada” é significante (...). Do ponto de vista do nosso modelo “erotético”, um dado pode então ser definido como uma resposta sem uma pergunta: 12 é um sinal que faz a diferença, mas ainda não informativo; por isso pode ser o número dos signos astrológicos, o tamanho de um sapato, ou o nome de uma linha de ônibus em Londres – não sabemos ainda o quê. Computadores certamente tratam e "entendem" dados; é controverso se existe qualquer sentido razoável para que se possa considerar que eles compreendam informações (FLORIDI, 1999, p. 106 – grifos meus).

Tal seria um exemplo claro de influência da tecnologia para a teoria da inteligência artificial – e, por extensão, das ciências cognitivas. Viria ao mesmo tempo da prática de gestão de bancos de dados em computadores (de uso sobretudo coletivo), como salienta Floridi, mas também da utilização de bancos de dados na área de administração chamada “gestão do conhecimento”, calcada numa hierarquia conceitual em cuja base está o dado e em cujo topo está o conhecimento, este entendido como o conjunto de crenças necessárias para fundamentar decisões (ações) de gestores organizacionais. Segundo esta concepção, o conhecimento é produto do processamento (ou da combinação) de informações que possuam conteúdo semântico que, por seu turno, têm como estrutura formal os dados. Um exemplo de

102

conhecimento seria: “A inflação foi de 7% em 2011 no Brasil”. Nesta sentença, “informação” no sentido de Floridi corresponderia ao significado de cada palavra ou símbolo (“inflação”, “7”, “%”, “Brasil” etc.) e “dado” à forma de cada um dos sinais utilizados, tanto no aspecto gráfico como em sua estrutura digital porventura presente em um computador – seja na memória, na transmissão ou na unidade de processamento (computação) em si. Esta abordagem teria a suposta vantagem de conceituar “informação” em função de seu uso prático (voltado, em última instância, para a ação), o que tornaria mais claro o porquê das diferenças de sentido do vocábulo, e delimitaria seus significados possíveis, contribuindo assim para reduzir, ou mesmo eliminar – ainda que num certo contexto –, a polissemia de “informação” destacada por alguns autores. Outro aspecto a ser investigado na mencionada hierarquia seria em que medida o dado, como “átomo de semântica”, já possui um significado mesmo quando entendido como “puro” símbolo, sem que lhe seja atribuído um conteúdo específico, como sugere Floridi. Mas ainda não podemos afirmar muito a partir da correspondência aqui sugerida. Restaria sabermos com certeza se Floridi concordaria em substituir pela palavra “dado” a palavra “informação” no sentido de Shannon e por “informação” a expressão “informação semântica”, aqui empregada anteriormente. Mas, coerentemente com uma advertência feita logo acima, explorar esta questão seria excessivo para este trabalho; tampouco nos cabe aqui discutir se as ciências cognitivas já estariam dispostas a aceitar este suposto novo conjunto de definições. O que está no âmbito deste trabalho é tão somente levantar algumas questões, propostas aqui como relevantes, a partir do uso mais comum da noção de processamento de informações nas ciências cognitivas, em geral, e na psicologia cognitiva, em particular. É ainda possível delinear com alguma clareza tais questões, ainda que sem resolver o problema potencial da equivocidade da palavra “informação”. Afinal, o próprio Shannon advertiu sobre este problema: À palavra informação foram dados significados diferentes por vários autores no campo geral da teoria da informação. É provável que pelo menos uma parte destes significados seja suficientemente útil em certas aplicações para merecer estudo adicional e reconhecimento permanente, [mas] é difícil esperar que um conceito único de informação explique satisfatoriamente as inúmeras aplicações possíveis [da palavra informação] neste campo geral. (SHANNON, ‘‘The lattice theory of information,”, 1950, citado por FLORIDI, 2004).

103

1.2.3. Características gerais do modelo lógico-proposicional e sua aplicação às demais disciplinas das ciências cognitivas 1.2.3.1. A linguística gerativa Na presente seção serão enfocados alguns desenvolvimentos disciplinares do modelo lógico-proposicional da cognição que reforçaram sua consolidação, definindo com maior clareza a orientação cognitivista – mais especificamente na linguística e na neurociência. Inicialmente, levar-se-á em consideração a concepção do modelo lógicoproposicional na linguística, o que é especialmente importante na presente pesquisa por três razões principais: a) Porque a primeira linguística cognitiva, ou linguística gerativa, teve forte influência nas ciências cognitivas, na disseminação social do modelo lógico-proposicional da cognição – devido a variadas aplicações –, além de fazê-lo com uma proposta bastante peculiar de autonomia disciplinar; b) Porque a dimensão da linguagem e da natureza dos conceitos é uma das mais importantes na formação de uma imagem do pensamento humano dominante no início das ciências cognitivas, sendo a cognição tratada pela linguística gerativa sobretudo em sua dimensão sintática, aspecto fundamental na naturalização do modelo lógico-proposicional; e c) Porque esta imagem foi um dos principais alvos de objeções da cognição corpórea, especialmente por parte da abordagem corpóreo-conceitual, que contesta a natureza essencialmente sintática, formal e abstrata dos conceitos, da linguagem e da cognição em geral. E, justamente, o exame do papel da linguística nas ciências cognitivas deve começar pela seguinte indagação um tanto contrafactual de Margaret Boden: A linguística teórica tem sido extremamente importante na história das ciências cognitivas como um todo. Mas poderia não ter sido. Afinal, por que os psicólogos, ou filósofos, ou antropólogos, ou neurofisiologistas, ou cientistas da computação deveriam estar interessados em linguística? Se acontecesse de eles estarem concentrados na linguagem, então talvez a linguística fosse relevante. Se não, por que eles deveriam se preocupar com ela? (BODEN, 2008, p. 590).

Boden prossegue afirmando que a linguística se tornou especialmente importante para as demais disciplinas das ciências cognitivas precisamente no período do nascimento deste campo multidisciplinar. Isto é, ela teria tido um papel fundamental na constituição das ciências cognitivas. Este ponto deve ajudar a compreensão de como tem sido a multidisciplinaridade das ciências cognitivas. Como já vem sendo defendido neste trabalho, esta multidisciplinaridade

104

não tem seguido um padrão único, como por exemplo o da colaboração interdisciplinar, tal como planejado na Iniciativa Sloan. Ademais, aqui se advoga, como já foi reiteradamente afirmado, que a coesão das ciências cognitivas ocorreu com base no compartilhamento de um modelo geral da cognição, de tal modo que cada disciplina, na orientação cognitivista, atuou com certa autonomia, mas mantendo ainda assim compromissos epistemológicos e paradigmáticos com as demais. Além disso, ainda, tem sido argumentado aqui a favor da ideia de que a inteligência artificial exerceu liderança na constituição das ciências cognitivas. Porém, Boden está sugerindo um outro aspecto da interconexão disciplinar nas ciências cognitivas: o papel de influência que a linguística teve sobre as demais disciplinas. Na verdade, este aspecto não deve ser considerado isoladamente. Em vez disso, ele deve indicar que cada uma das disciplinas das ciências cognitivas influenciou as demais – e o conjunto delas –, em maior ou menor grau. Como vimos na seção 1.2.2, a psicologia cognitiva foi a responsável por fixar a noção da cognição como geração de comportamento mediante a operação de um processo produtivo determinista, e isto contribuiu para que outras disciplinas adotassem o mesmo pressuposto. Nesta seção exploraremos, pois, qual foi a contribuição singular que a linguística proporcionou às ciências cognitivas. Veremos também como e por que se justifica examinar as teses de David Marr na mesma seção. E Boden já nos adianta o principal quanto a ambos os aspectos: Descobriu-se (...) que a linguística teórica – especificamente o estudo da sintaxe – alimentou a chama acesa por outras disciplinas. (...) No início da década de 1960 ninguém envolvido nas ciências cognitivas, ou na filosofia da mente, pode ignorá-la. O motivo, em apenas duas palavras: Noam Chomsky (1928). A linguística tornou-se computacional com Chomsky. Ele tentou formular uma definição matemática da linguagem como tal: uma explicação “computacional”, no sentido abstrato mais tarde enfatizado por David Marr. Sua obra, incluindo um papel pioneiro sobre linguagens de computador, encorajou outros a perseverar, ou a embarcar, na modelagem computacional da linguagem. Mas ele próprio não se juntou àqueles. Ele era muito cético sobre o que é normalmente chamado de linguística computacional, ou processamento de linguagem natural (PNL). (...) As primeiras publicações de Chomsky – até meados dos anos 1960s – tiveram um enorme e duradouro efeito sobre as ciências cognitivas em geral. Isso não precisava ter acontecido, mesmo que sua linguística fosse, como um discípulo, [Fodor], disse mais tarde, “a prova de vida da possibilidade das ciências cognitivas''. Mas Chomsky generalizou suas alegações filosóficas e metodológicas. Ele chegou a definir a linguística como “parte da psicologia”', com foco em “um domínio cognitivo específico e uma faculdade da mente”. (...) Com efeito, ele viu sua linguística como uma teoria da mente. (...) Ele reviveu a doutrina então extremamente fora de moda do nativismo. Esta é a visão de que a mente/cérebro do bebê recém-nascido já está equipada com o conhecimento da linguagem, ou disposições no sentido dela. (...) A influência de Chomsky sobre as ciências cognitivas foi benéfica em muitos aspectos. Em particular, ele aprofundou o questionamento nascente ao behaviorismo, e encorajou teorias “mentalistas” formuladas em termos de regras e/ou representações internas (Ibid., p. 590-591).

105

Partindo de outra afirmação – “Como a psicologia, a linguística teve que passar por uma transformação, a fim de dar sua contribuição para as ciências cognitivas. A figura central nessa transformação foi Noam Chomsky” (BECHTEL & GRAHAM, 1998, p. 33) – é preciso então caracterizar que transformação teria a linguística sofrido para integrar as ciências cognitivas, graças à intervenção de Chomsky. Segundo os mesmos autores, e Gardner (GARDNER, 1985, p. 196-207) mudando uma tradição em que a linguística, até então, era um estudo meramente histórico, europeus, como Ferndinand de Sausssurre, e radicados nos EUA como Franz Boas, Edward Sapir, Roman Jakobson e Leonard Bloomfield, adotaram, ao longo da primeira metade do século 20, uma pesquisa estrutural e experimental das línguas, que implicava uma análise fonológica e morfológica. Já na década de 1950 foram iniciados estudos linguísticos com ajuda de computadores, que contribuíram para uma intensificação de investigações sintáticas, como as realizadas pelo professor de Chomsky, Zelig Harris. De acordo com Bechtel e Graham, Uma das principais influências de Chomsky da linguística bloomfieldiana foi ele entender a gramática como um sistema gerativo – um conjunto de regras que geraria todos e apenas os membros do conjunto infinito de frases gramaticalmente bem formadas de uma língua. Chomsky assumiu a questão de que tipo de sistema computacional (autômato) era necessário para realizar uma gramática gerativa de linguagem natural (BECHTEL & GRAHAM, 1998, p. 36).

Assim, Chomsky foi à busca do que poderíamos chamar de estruturas mais essenciais de toda linguagem, como afirma Gardner (GARDNER, 1985, p. 182-196). Seu propósito, expresso em seu livro de 1957, Syntactic structures, foi identificar as propriedades das sentenças, como fatos objetivos. Contudo, seu intuito foi mais radical ainda: determinar as regras da língua. Segundo, Gardner:

106

Chomsky alertou para as diferenças entre sentenças aparentemente semelhantes e ofereceu às mesmas uma explicação convincente: John is easy to please [John é fácil de agradar] (onde John é quem recebe o agrado) versus John is eager lo please [John é ávido de agradar] (onde John é quem agrada). Ted persuaded John to learn [Ted convenceu John a estudar] (onde John é quem deve estudar) versus Ted promised Johnto learn [Ted prometeu a John estudar] (onde Ted é quem estuda), Chomsky forneceu um grande número de sentenças onde o significado pode ser preservado apesar de mudanças dos termos principais (The cat chased lhe mouse versus The mouse iras chased by the cat) [O gato caçou o rato versus O rato foi caçado pelo gato] cm oposição àqueles pares de sentenças onde simplesmente não se pode reverter as orações (Many men read few books versus Few books are read by many men) [Muitos homens lêem poucos livros versus Poucos livros são lidos por muitos homens], Ele indicou e sugeriu mecanismos subjacentes à habilidade humana para detectar e resolver as ambiguidades em sentenças como Flying planes can be dangerous [Pilotar aviões pode ser perigoso ou Aviões voando podem ser perigosos], The shooting of the hunters disturbed me [Os tiros dos caçadores me perturbaram ou A morte a tiro dos caçadores me perturbou] I didn’t shoot John because I like him [Eu não atirei em John porque gosto dele], E ele assinalou para estudo sentenças que parecem aceitáveis: John seerned toeach of the men to like the other [Parecia a cada um dos homens que John gostava do outro], em oposição àquelas sentenças superficialmente semelhantes que violam algumas supostas regras da língua: John seems to the men to like each other [Parece aos homens que John gosta um do outro] (GARDNER, 1985, p. 183).

A questão, para Gardner, é que o objetivo de Chomsky de identificar tais regras implicava também considerar que elas fossem utilizadas pelos indivíduos para gerar as sentenças, e que eles lançam mão delas porque estão ao seu alcance de alguma maneira. Tal objetivo mais completo quanto ao estudo das regras linguísticas envolvia, em Chomsky, um propósito de estudo comportamental, “psicológico” ou, mais propriamente, cognitivo. Além disso, estudar as regras linguísticas significava estudar a sintaxe, isto é, estudar aquilo que Chomsky considerava serem as regularidades formais próprias da língua, numa abordagem sistêmica. Nas palavras de Gardner: Em vez de simplesmente observar os dados da língua, e tentar discernir regularidades de expressões empiricamente observadas, como seus predecessores haviam feito tipicamente, Chomsky insistia que os princípios nunca emergiriam de um estudo das expressões em si. Ao contrário, era necessário trabalhar dedutivamente. Deve-se tentar entender que tipo de sistema é a linguagem, assim como se procura entender como é um ramo particular da matemática; e devem-se expor as conclusões em termos de um sistema formal. Tal análise deveria levar à postulação de regras que possam explicar a produção de qualquer sentença gramatical concebível (e há, é claro, um número infinito de tais sentenças), mas ao mesmo tempo as regras não deveriam “gerar” nenhuma sentença incorreta ou agramatical. Uma vez que o sistema tenha sido estabelecido, dever-se-ia então examinar expressões particulares para determinar se podem, de fato, ser adequadamente geradas através da adesão às regras do sistema linguístico (Ibid., p. 184).

Para Gardner, Chomsky adotou dois pressupostos simplificadores em seu programa:

107

1) O estudo da sintaxe (ou gramática) linguística pode ser feito com autonomia em relação a outros aspectos da língua (como a semântica e a pragmática) (CHOMSKY, 2002 [1957], p. 14-17); 2) A linguística pode operar com autonomia em relação às demais disciplinas das ciências cognitivas. Tais propostas de autonomia têm implicações importantes para a presente investigação. A primeira é no sentido de que revela uma crença de Chomsky na suficiência da sintaxe para explicar o que ele considerava essencial, no sentido cognitivo, na linguagem. A segunda – que decorre da primeira – é que a linguística poderia se integrar às ciências cognitivas sem cuidar de outros aspectos da cognição que não o linguístico. Isto corrobora a ideia aqui defendida de que, dado que uma disciplina das ciências cognitivas se comprometa com determinada imagem compartilhada da cognição, pode perfeitamente atuar com autonomia e, ainda assim, ser parte constituinte legítima deste campo científico. E estudar a linguagem privilegiando sua dimensão sintática, como Chomsky, corresponde justamente a se adotar o modelo lógico-proposicional na linguística. Mas a defesa desta suposição ainda exige alguma argumentação. Sobretudo para deixar mais claro que sentido tem a valorização da sintaxe nas ciências cognitivas, por meio da breve investigação aqui realizada sobre a linguística gerativa. Como primeiro passo de seu empreendimento, Chomsky – segundo Gardner – teria tido necessidade de demonstrar as limitações dos métodos até então utilizados para estudar a sintaxe. Mais que isso, seu intuito era expor que tais métodos – o de estados finitos e o estruturalista – não eram capazes de explicar as sentenças aceitáveis a partir de regras. Sua proposta alternativa teve então as seguintes características. Por

influência

de

Zelig

Harris,

Chomsky

adotou

a

análise

gramatical

transformacional, sustentada na ideia de que regras governam as transformações entre as representações abstratas de sentenças. A linguística gerativa opera mediante um sistema de regras formais matemáticas utilizadas para gerar as sentenças gramaticais, no qual as transformações são procedimentos algorítmicos. De acordo com Gardner, o sistema funciona da seguinte forma:

108

Partindo de regras estruturalistas, geram-se apenas os âmagos das sentenças, ou sentenças-núcleo, que são asserções declarativas ativas curtas. Estas são geradas seguindo-se um conjunto de instruções para construir sequências: por exemplo, (1) Sentença = Frase Nominal (Noun Phrase)+ Frase Verbal (Verb Phrase); (2) Frase Nominal = A + N; (3) A - o, a, os, as (the); (4) N = homem, bola; (5) Frase Verbal Verbo + Frase Nominal; (6) Verbo= bater, pegar; e assim por diante, Partindo de um único símbolo S, pode-se gerar, através de um conjunto de regras completamente especificável, uma sentença-núcleo como “O homem pegou a bola”. A partir daí, todas as outras sentenças gramaticais da língua podem ser geradas através da transformação destas sentenças-núcleo (GARDNER, 1985, p. 187).

A adoção da linguística gerativa, ademais, exige que se acredite na existência separada de um nível transformacional. Essa crença está relacionada com outra: de que a linguagem possui um nível primário, sintático, que é básico em relação a outros como o semântico e o fonético. A sintaxe seria, para Chomsky, uma estrutura profunda da linguagem que pode ser manipulada sem que se leve em consideração os significados atribuídos às palavras. Isto, para Gardner, revela um sentido “platônico” da concepção de Chomsky (Ibid., p. 191). Para Chomsky, este nível primário sintático é essencial para promover a seleção entre o que é gramatical ou agramatical: Uma linguagem [é] um conjunto (finito ou infinito) de sentenças, cada uma delas finita em comprimento e construída a partir de um conjunto finito de elementos. Todas as línguas naturais em sua forma escrita ou falada são línguas nesse sentido, uma vez que cada linguagem natural tem um número finito de fonemas (ou letras em seu alfabeto) e cada sentença é representável como uma sequência finita desses fonemas (ou letras), embora haja um número infinito de sentenças. Da mesma forma, o conjunto de "sentenças" de algum sistema formal de matemática pode ser considerado uma língua. O objetivo fundamental da análise linguística de uma linguagem L é a de separar as sequências gramaticais, que são as sentenças de L, das sequências não gramaticais, que não são sentenças de L, e estudar a estrutura das sequências gramaticais. A gramática de L será, assim, um dispositivo que gera todas as sequências gramaticais de L e nenhum das agramaticais. Uma maneira de testar a adequação de uma gramática proposta para L é determinar se as sequências que gera são realmente gramaticais, i. e., aceitáveis para um falante nativo, etc. (CHOMSKY, 2002 [1957], p. 13 – grifo meu).

O “dispositivo”, grifado acima, seria portanto um processo de julgamento de eficácia cognitiva. Isto porque uma sentença agramatical não permite cognição, no sentido de Chomsky. Este dispositivo de julgamento é considerado “computacional”, por Boden, no mesmo sentido de máquina matemática pura que possui a Máquina de Turing (BODEN, 2008, p. 629). E tal noção de “dispositivo” será usada por Chomsky para fundamentar outra formulação fundamental de sua teoria linguística, importante para sua contribuição ao cognitivismo: a do nativismo das regras gramaticais. Ainda segundo Boden,

109

Nem mesmo Chomsky, é claro, sugeriu que os bebês nascem sabendo francês, ou talvez inglês (...). Mas os seus conhecimentos de gramática universal, disse ele, agem como um quadro que os guia para atender a determinados recursos e distinções, na língua falada em torno deles. Na sintaxe como em fonética, o valor específico dessas características distintivas varia entre línguas naturais: daí a sua diversidade aparente. Deste ponto de vista, a criança é, na verdade, como um cientista. Em vez de recolher dados por pura indução (o que é impossível), o cientista formula teorias e hipóteses que sugerem o que procurar e onde procurar. Isto, essencialmente, é o que o bebê tem que fazer ao aprender a sua língua materna. A visão do falante/ouvinte como um testador de hipóteses vinha sendo sempre implicada com o trabalho de Chomsky, mas bastante independentemente do nativismo. Ela estava implícita em Syntactic structures, em sua alegação de que o falante/ouvinte deve atribuir uma estrutura gramatical de muitos níveis, não observável, às declarações, a fim de entendê-las (...).O que o nativismo de Chomsky acrescentou (em 1965) à ideia amplamente atual do teste de hipóteses foi a alegação de que os bebês (...) podem produzir suas hipóteses linguísticas com base em um poderoso esquema teórico – um “dispositivo de aquisição de linguagem” –já presente em suas mentes (Ibid., p. 647).

Assim, o nativismo de Chomsky se apoia na noção de que um dispositivo inato de aquisição de linguagem está disponível no aparelho cognitivo humano, independentemente de experiências particulares e de organismos individuais. Isto reforça a crença cognitivista na existência transcendente de um nível abstrato, sintático e computacional na cognição humana. É tal dispositivo algorítmico que, no presente trabalho, se considera a forma do modelo lógico-proposicional na linguística gerativa. Não caberá aqui discorrer sobre a riqueza e a complexidade deste modelo na linguística de Chomsky. O que se impõe à presente exposição é ressaltar os aspectos da contribuição da linguística gerativa ao cognitivismo, ainda que sem aprofundar uma análise a respeito das conexões desta disciplina com as demais das ciências cognitivas em sua feição tradicional. Destacar esses aspectos é necessário para que se possa compreender a crítica feita pela cognição corpórea, especialmente pela abordagem corpóreo-conceitual. Assim, resumem-se os principais traços do aporte teórico da linguística gerativa às ciências cognitivas nas seguintes suposições nela identificadas: 1) A estrutura básica de toda linguagem é sintática e pode ser suficientemente expressa, e de maneira precisa, por um esquema algorítmico, formal, computacional, matematizado; 2) Tal estrutura consiste em um dispositivo de aquisição de linguagens que está presente de maneira inata em todos os falantes/ouvintes das línguas; 3) Daí decorre que as essências da linguagem e da cognição correspondem, grosso modo, a um dispositivo computacional, capaz de viabilizá-las e de permitir medir sua eficácia;

110

4) Assim, é desta forma que a linguagem é compreendida como uma estrutura transcendente, autônoma, anterior às experiências e independente dos corpos individuais. Outros aspectos da importância da linguística gerativa para a dinâmica das ciências cognitivas serão examinados quando da crítica que lhe tem sido endereçada pela cognição corpórea. A seguir, será discutida em linhas gerais a contribuição de Marr ao cognitivismo, a partir da questão da percepção visual. Esta abordagem permite compreender em boa parte a presença do modelo lógico-proposicional na neurociência. 1.2.3.2. Marr e os três níveis cognitivos David Marr (1940-1980) foi um neurofisiologista britânico que se tornou um pesquisador da inteligência artificial, e apresentou, já no MIT, uma teoria computacional da cognição que sintetiza muito das contribuições das diversas disciplinas das ciências cognitivas até agora examinadas neste trabalho. Num curto mas profícuo período de pesquisa, produziu o livro Vision (postumamente publicado em 1982), no qual apresentou suas conclusões principais – que também se encontram em grande parte no artigo, escrito com Tomaso Poggio, "From understanding computation to understanding neural circuitry" (1976). Segundo Gardner, nesta trajetória encurtada pela morte por leucemia, Marr Estabeleceu um programa de como abordar apercepção visual em particular e de como estudar os sistemas de conhecimento em geral. A crença de que a visão é a construção de descrições simbólicas eficientes das imagens encontradas no mundo era fundamental para a sua perspectiva. Como de certa vez o expressou, as imagens do mundo devem produzir uma descrição que seja útil para o observador e não abarrotada de informações irrelevantes. Ao optar por uma descrição simbólica, Marr rompeu definitivamente com aqueles pesquisadores que acreditavam na “percepção direta”36 e entrou no campo da ciência cognitiva (GARDNER, 1985, p. 298).

Marr propôs, para explicar a cognição – a partir da percepção –, a existência de três níveis de análise do sistema cognitivo: a) computacional; b) algorítmico ou representacional; e c) de implementação física. O nível computacional corresponde a se compreender o processo cognitivo a partir de qual é sua tarefa, ou objetivo, de processamento de informações – ou daquilo que exigirá no nível seguinte, um algoritmo Por exemplo, no caso do processamento visual, a etapa computacional corresponde à necessidade de o cérebro identificar e interpretar uma imagem 36

Suas objeções se dirigiam sobretudo às teorias de J. J. Gibson (GIBSON, 1979; CHEMERO, 2009).

111

no mundo; numa calculadora, corresponde à operação que ela deverá realizar (adição, subtração, etc.). O nível algorítmico identifica o conjunto de instruções formais de manipulação de símbolos que permitem a realização da tarefa, ou da transformação. Na visão, corresponderia ao mecanismo que estrutura, nos órgãos da visão e no cérebro, o processamento da imagem como informação; na calculadora, seria o nível em que se descrevem os passos necessários para que a operação se realize. O nível de implementação explica como se dá a realização do algoritmo no sistema físico. No processo da visão, ou na calculadora, o terceiro nível é aquele em que o algoritmo é instalado nos respectivos suportes materiais. O importante nesta implementação é que ela é suposta como sendo possível em aparatos diferentes, a partir do mesmo algoritmo, o que revela a adesão de Marr às teses do funcionalismo e da realizabilidade múltipla. No caso da teoria de Marr, podemos dizer que o modelo lógico-proposicional se decompõe nos dois primeiros níveis. Tanto no nível computacional quanto no algorítmico encontramos a estrutura formal com que o cognitivismo buscou explicar a cognição humana como independente dos corpos individuais, e de acordo com um processamento simbólico e abstrato de informações desencarnado. Assim Gardner contribui para reforçar esta constatação, referindo-se às teorias neurocientíficas de Marr: “Para entender como os neurônios do sistema visual realmente executam suas tarefas, deve-se recorrer a princípios matemáticos envolvidos na interpretação de imagens” (Ibid., 1985, p. 300). Mas qual seria o modo com que Marr interagiu com as demais ciências cognitivas, ou como as influenciou? Qual teria sido sua contribuição à fixação do modelo lógicoproposicional no campo da neurociência? Ou, ainda, como a fixação deste modelo em sua disciplina contribuiu para as ciências cognitivas como um todo? A seguinte passagem de Gardner pode elucidar essas questões, ao aproximá-lo de Chomsky: Assim como Chomsky queria examinar a sintaxe em sua forma primitiva (não contaminada pela semântica ou pela pragmática), Marr queria isolar ao máximo sua análise do processamento visual da interferência do conhecimento do “mundo real”. Mas Marr também buscava coerência com oque se sabe a respeito do funcionamento do cérebro. Em cada nível de processamento examinava as evidências relevantes sobre o funcionamento cerebral: modificava continuamente os algoritmos na esperança de torná-los coerentes com as evidências psicofísicas e neurofisiológicas – seja no nível das células individuais seja no dos lobos corticais. Assim, com um olho no cérebro e o outro na implementação de algoritmos em um computador, Marr era a personificação da ciência cognitiva interdisciplinar (Ibid., p. 306).

Esta talvez seja a característica mais importante da aplicação do modelo lógicoproposicional da cognição à neurociência. Como já foi comentado anteriormente, a respeito

112

do artigo de McCulloch e Pitts de 1943 – que, como podemos agora verificar, foi um pioneiro até mesmo das formulações de Marr –, quando se trata de conceber um nível de funcionamento computacional da cognição aplicado ao cérebro, é preciso se levar em consideração como se realiza este funcionamento. Em outras palavras, no caso do modelo lógico-proposicional empregado na neurociência, se exige desta disciplina também explicar como o modelo, de algum modo, se encarna no cérebro humano. Na inteligência artificial também ocorre esta necessidade, mas então se apresenta uma diferença crucial: os programas de computador, assim como as máquinas físicas de computar, são obras de engenharia, são construídos pelo ser humano. Deste modo, os programas podem ser construídos para se adaptarem aos computadores, e vice-versa. Contudo, quando se emprega a hipótese computacional da cognição ao cérebro humano, não há a possibilidade de se construírem nem o “software” nem o “hardware”. Assim, se exige do cientista cognitivo que explique como a imagem lógico-proposicional da cognição humana pode ser compreendida como operando em uma estrutura física natural que não foi por ele projetada nem produzida, e cujas leis de funcionamento ele não domina. Por este motivo, se requer neste caso uma atuação interdisciplinar efetivamente colaborativa, em que os especialistas em neurofisiologia e neurobiologia auxiliem na formulação de hipóteses por parte do cientista cognitivo que advoga o modelo lógico-proposicional. Contudo, não devemos nos esquecer de que a preocupação com as limitações estabelecidas pela dimensão física ao modelo lógico-proposicional já haviam sido salientadas por Newell, quando da sua defesa da hipótese do sistema simbólico físico. Consideremos a seguinte afirmação de Bechtel e Graham: Enquanto Marr às vezes é retratado como tendo proposto que nós trabalhamos exclusivamente a partir do nível mais alto, ele claramente enfatizou, também, as limitações que vêm de baixo para cima, e as considerou em sua tentativa de explicar o processamento visual (BECHTEL & GRAHAM, 1998, p. 70).

Isto sugere não apenas que a teoria de Marr se assemelha bastante a um sistema simbólico físico, tal como o concebido por Simon e Newell, como também que o problema da implementação não se apresentou, exclusivamente, para os cognitivistas estudiosos do cérebro.

113

1.2.4. A questão da representação mental nas ciências cognitivas clássicas: a busca de uma teoria da cognição a partir do modelo lógico-proposicional Vários autores têm destacado o papel da noção de representação na história das ciências cognitivas. O objetivo desta seção é não apenas investigar este papel, como discutir a tentativa de se criar uma teoria geral da cognição – a Teoria Computacional da Mente – como parte deste desenvolvimento. Uma providência necessária, contudo, será tentar esclarecer algumas tendências de polissemia para “representação”, assim como se fez para “informação”, na seção 1.2.2. Assim, do mesmo modo como foi feito em relação à noção de processamento de informações – de acordo com os objetivos deste estudo –, e para tentar reduzir as possibilidades de engano quanto ao significado das noções aqui examinadas, é importante realizar um retrospecto histórico para verificarmos onde, quando e com que feição a noção de representação surgiu nas ciências cognitivas. Em primeiro lugar, constata-se que para os principais historiadores das ciências cognitivas a noção de representação, assim como a de PI, também é fundante nas ciências cognitivas. Segundo Gardner, O maior êxito das ciências cognitivas foi a demonstração clara da validade da postulação de um nível de representação mental: um conjunto de construtos que podem ser invocados para a explicação de fenômenos cognitivos, indo da percepção visual à compreensão de narrativas. Enquanto há quarenta anos, no auge da era behaviorista, poucos cientistas ousavam falar em esquemas, imagens, regras, transformações e outras estruturas e operações mentais, estes pressupostos e conceitos representacionais são agora tomados como certos e permeiam as ciências cognitivas (GARDNER, 1985, p. 383 – grifo meu).

Uma convicção semelhante encontra-se em Paul Thagard: A maioria dos cientistas cognitivos concorda que o conhecimento cognitivo na mente consiste em representações mentais. (...) Os cientistas cognitivos têm proposto vários tipos de representação mental, incluindo regras, conceitos, imagens e analogias. (...) A ciência cognitiva propõe que as pessoas têm procedimentos mentais que operam nas representações mentais para produzir pensamento e ação. Diferentes tipos de representações mentais tais como regras e conceitos fomentam diferentes tipos de procedimentos mentais. (THAGARD, 2005, p. 4 e 5 – grifos em negrito meus)

Ainda podemos procurar auxílio na obra de referência The MIT encyclopedia of cognitive sciences (WILSON & KEIL, org.). Ali não há, porém, o verbete “representation”; significativamente para as investigações deste trabalho, onde ele deveria estar há uma remissão a um verbete escrito por Barbara Von Eckardt, com o título de “mental representation”, onde autora diz:

114

Se tomarmos um dos pressupostos fundamentais da ciência cognitiva de que a mente/cérebro é um dispositivo computacional, os portadores da representação mental serão estruturas ou estados computacionais (VON ECKARDT. p. 527 – grifos meus)

A partir destas afirmações de historiadores das ciências cognitivas – e mesmo do fato em si de a citada enciclopédia não possuir um verbete para “representação”, e sim um para “representação mental” – podemos perceber que, além de a noção de representação ser fundamental nas ciências cognitivas, é relevante que, nestas ciências, representação seja qualificada como “mental”. Podemos nos perguntar em que medida fariam sentido nestas ciências outras formas de conceituar a noção de representação ou, na direção inversa, por que o conceito de representação mental tem sido importante. A proposta aqui apresentada é de mais uma vez, investigar esta questão, ainda que brevemente, na própria história das ciências cognitivas. Para orientar esse propósito, saliente-se nos trechos acima citados os seguintes aspectos: a) Na citação de Gardner, merece atenção especial a menção que ele faz ao uso do conceito de representação mental, nas ciências cognitivas, para explicar fenômenos cognitivos; b) Na citação de Thagard, deve-se dar destaque à correlação que o autor faz entre representação mental e procedimentos mentais ou computacionais; c) Na citação de Von Eckardt, note-se a dimensão de estrutura física que a autora correlaciona à representação mental. Estes três aspectos são aqui propostos como guias para a compreensão do uso do conceito de representação mental nas ciências cognitivas. São eles: o poder explicativo do conceito, a relação entre o nível da representação e o nível de procedimentos na mente, e a relação entre o nível da representação mental e o nível das estruturas físicas onde ela ocorreria. Ao chegar até aqui, pode-se entender que já é possível definir por que nas ciências cognitivas se usa o conceito de representação mental e não o de representação em geral: porque o que importa, para estas ciências, é como a representação é feita pelo dispositivo cognitivo, que tem recebido o nome de “mente”. Sendo assim, não haveria interesse, pelo menos inicial, em tratar da representação em outros meios que não a cognição humana ou os computadores. Considerando este entendimento sobre a representação mental, a suposição aqui defendida é de que importa para as ciências cognitivas estimar em que medida a hipótese de que a representação mental é produto de procedimentos fisicamente implementados, adotada por este campo científico, seria capaz de explicar fenômenos cognitivos. Esta ideia seria também uma importante chave para entender o papel da noção de representação no modelo lógico-

115

proposicional. Com esta orientação, prosseguindo a análise de cunho histórico, considere-se a seguinte afirmação de Varela, Thompson e Rosch: A ferramenta central e a metáfora orientadora do cognitivismo é o computador digital. Um computador é um dispositivo construído de forma tal que um conjunto particular de suas mudanças físicas pode ser interpretado como consistindo de computações. Uma computação é uma operação desenvolvida ou implementada com símbolos, ou seja, com elementos que representam o que eles querem dizer. Por exemplo, o símbolo “7” representa o número 7. Simplificando por ora, podemos dizer que o cognitivismo consiste na hipótese de que a cognição – inclusive a humana – é a manipulação de símbolos como a dos computadores digitais. Em outras palavras [para o cognitivismo] cognição é representação mental: acredita-se que a mente opera manipulando símbolos que representam características do mundo, ou representam o mundo como tendo uma determinada forma (VARELA et al, 1991, p. 7 e 8 – grifos em negrito meus).

Desta passagem serão de grande importância para este trabalho os seguintes elementos: a) A suposição de que uma determinada abordagem, o cognitivismo, seria a portadora principal da noção de representação mental nas ciências cognitivas; b) A representação mental, para este tipo de abordagem (para o cognitivismo), seria o significado de símbolos manipulados (processados) através de dispositivos físicos como computadores digitais; c) Tal significado seria dado pela correspondência entre estes símbolos e o mundo. O primeiro elemento deste rol situa historicamente a adoção da noção de representação na dinâmica das ciências cognitivas: ele teria sido proposto pela abordagem chamada de cognitivismo – como já foi verificado anteriormente quanto ao modelo lógico-proposicional. Em seguida, deve-se estudar este ponto. Mas, antes, é preciso atentar para os aspectos seguintes. O segundo elemento da afirmação de Varela e coautores corresponde ao que já havia sido constatado das citações de Thagard e Von Eckardt sobre representação mental: a representação se dá mediante procedimentos e manipulações em dispositivos físicos. Este ponto também sugere que se comece a correlacionar informação no sentido de Shannon a símbolos formais, e informação semântica a representação, no sentido cognitivista. Este seria um caminho possível para explicar as relações entre processamento de informações e representação nas ciências cognitivas. Veremos se é aceitável. O terceiro aspecto – o da representação como correspondência entre símbolos e o mundo – será abordado mais à frente, ainda nesta seção. Para uma compreensão dos aspectos teóricos do cognitivismo, vejamos o que propõe John Haugeland, filósofo das ciências cognitivas e, especialmente, da inteligência artificial:

116

Cognitivismoem psicologia efilosofiaé, em linhas gerais,a posição de que o comportamento inteligentepode ser explicado(apenas)por apelo a"processos cognitivos" internos, isto é, ao pensamento racionalem sentido amplo (HAUGELAND, 1998, p. 9).

Mas quais seriam os cientistas que utilizariam esta orientação? Se um traço importante do cognitivismo é o pressuposto da cognição como processo, poderíamos associar este traço à defesa da noção de processamento de informações como modelo para a cognição? Varela et al consideram que o artigo já citado de McCullogh e Pitts, “A logical calculus of ideas immanent in nervous activity”, de 1943, teria sido constitutivo das ciências cognitivas e uma fonte de ideias precursoras do cognitivismo. Com efeito, encontramos neste artigo a seguinte concepção de representação: Relações existentes entre as atividades fisiológicas nervosas correspondem, evidentemente, às relações entre as proposições; e a utilidade da representação depende da identidade destas relações [das atividades nervosas] com aquelas da lógica proposicional (MCCULLOCH & PITTS, 1943, p. 117).

Esta é uma forma, bastante sintética, de afirmar que o dispositivo físico neuronal humano, através de seu funcionamento segundo um esquema racional e lógico proposicional, tem a capacidade de realizar representações. Pode-se perceber já em 1943 uma preocupação em considerar o caráter representacional da cognição como base para explicar esta última, a partir do funcionamento de dispositivos cognitivos que possam ser entendidos como computacionais – como seria o caso do cérebro humano. O que está em questão, ao menos em parte, é a capacidade da orientação cognitivista de explicar a cognição com base na noção de representação. Ou, em outras palavras, trata-se de identificar o sentido de representação no modelo lógico-proposicional. O cognitivismo teria como pressuposto que, como foi dito acima, um dispositivo físico, dotado de um modo de funcionar racional, proposicional, lógico e simbólico, seja capaz de realizar adequadamente a representação do mundo. Sobre isto, voltam a dizer Varela e seus colaboradores:

117

Uma computação é uma operação realizada com símbolos (com elementos que representam o que eles significam). A noção-chave aqui é a de representação ou “intencionalidade”, o termo filosófico para aboutness37. O argumento cognitivista é de que o comportamento inteligente pressupõe a habilidade de representar o mundo como sendo de determinadas formas. Consequentemente, não podemos explicar o comportamento cognitivo a não ser se assumirmos que um agente age representando características relevantes de sua situação. O comportamento do agente será bem sucedido na medida em que sua representação de uma situação for precisa (permanecendo todos os outros aspectos iguais). Essa noção de representação, pelo menos desde a falência do behaviorismo, não tem sido controversa. O que é controverso é o próximo passo, qual seja, a afirmação cognitivista de que a única forma pela qual podemos explicar a inteligência e a intencionalidade é por meio da hipótese de que a cognição consiste na ação baseada em representações fisicamente realizadas sob a forma de um código simbólico no cérebro eu em uma máquina (VARELA et al, 1991,p. 40)

Entende-se desta passagem que, para seus autores, a representação como intencionalidade – quer dizer, a representação como relação da cognição com o mundo que se quer conhecer e sobre o qual se quer agir –, é um pressuposto importante do cognitivismo. Voltaremos à questão da intencionalidade mais à frente, assim como às controvérsias que o cognitivismo – como orientação principal das ciências cognitivas clássicas – suscita. Antes, exploremos brevemente outras características do conceito de representação na versão clássica das ciências cognitivas. Comecemos por notar que trabalhos recentes propõem nomes alternativos para o cognitivismo. Estas novas denominações salientam outros aspectos da representação. Paul Thagard, por exemplo, prefere denominar a corrente tradicional da cognição de um modo que dá destaque à sua característica computacional: O estudo interdisciplinar da mente (ciências cognitivas) tem um núcleo: a compreensão computacional-representacional da mente (CCRM38). [Para este estudo] pensar é o resultado de representações mentais e processos computacionais que operam nessas representações (THAGARD, 2005, p. 20 – grifo meu).

William Ramsay também propõe seu batismo para o que chama de paradigma das ciências cognitivas tradicionais, cujo caráter computacional também assinala; mas ele sublinha também o fato de as representações neste modelo serem internas e simbólicas: Nas ciências cognitivas houve algo como um paradigma central que tem dominado os trabalhos em psicologia, linguística, etologia cognitiva e filosofia da mente. Esse paradigma é comumente conhecido como a teoria clássica computacional da cognição, ou TCCC39. O centro do paradigma clássico é sua postulação explicativa central - representações internas simbólicas (RAMSAY, 2007, p. 2 – grifos meus)

37

A palavra aboutness não foi aqui traduzida tendo em vista ter sido consagrada na forma inglesa pelas traduções brasileiras de artigos e livros que contêm o termo na filosofia e nas ciências cognitivas. 38 No original, em inglês, “computational-representational understanding of mind” (CRUM). 39 No original, em inglês, “classical computational theory of cognition” (CCTC).

118

As abordagens retrospectivas das ciências cognitivas que, como acabamos de ver, sugerem outros nomes para sua corrente inaugural, afirmam que esta considera a representação, além de mental, interna, simbólica e computacional. Num passo seguinte, relacionar estas quatro qualidades da representação em pares afins nos permite compreender melhor sua utilização pelas ciências cognitivas tradicionais. O fato de a representação ser considerada mental e interna diz respeito a onde ocorre; ser simbólica e computacional corresponde a seu modo de operar, onde quer que opere. Esta caracterização traduz um arcabouço teórico específico, baseado no modelo lógico-proposicional: a Teoria Computacional da Mente, desenvolvida e defendida sobretudo por Jerry Fodor (FODEOR, 1981b). Trata-se da tentativa de se estabelecer uma teoria geral da cognição humana. Tendo como tema central a representação, Fodor a compreende como um processo simbólico e computacional que ocorre de modo interno à mente. Segundo Bechtel (BECHTEL, 1988b, p. 55), a Teoria Computacional da Mente se preocupa com a “estrutura formal de símbolos na mente e com a maneira pela qual eles são manipulados”. Para compreendermos melhor o sentido deste princípio, levemos em consideração as palavras de Fodor: Associar as propriedades semânticas de estados mentais com as de símbolos mentais é totalmente compatível com a metáfora do computador, porque é natural pensar no computador como um mecanismo que manipula símbolos. A computação é uma cadeia causal de estados computacionais e os elos da cadeia são operações sobre fórmulas semanticamente interpretadas em um código de máquina. Pensar um sistema (como o sistema nervoso), como um computador é levantar questões sobre a natureza do código com que se calcula e as propriedades semânticas dos símbolos no código. De fato, a analogia entre mentes e computadores implica realmente a postulação de símbolos mentais. Não existe computação sem representação (FODOR, 1981a, p. 7 – grifo meu).

Vemos que, para a Teoria Computacional da Mente, a representação se confunde com a manipulação de símbolos. Sendo assim, computar é representar – e elaborar uma teoria da cognição pressupõe compreendê-la a partir do modelo lógico-proposicional. Mas considerar o modelo lógico-proposicional em relação à representação leva à questão: em que medida a computação e os processos simbólicos que ocorrem na representação se relacionam com o que é externo a ela? Retornamos ao problema da intencionalidade. Segundo Lakoff e Johnson, O termo representação mental possuía dois diferentes significados [nas ciências cognitivas tradicionais]. No primeiro, uma representação era vista como a representação de um conceito que, por seu turno, era definido somente em termos de seu relacionamento com outros conceitos dentro de um sistema formal. Logo, nesta teoria, uma representação era uma expressão simbólica puramente interna a um dado sistema formal. No segundo, uma representação era entendida como uma representação simbólica de algo fora do sistema formal (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 76).

119

Isto é, o problema da representação parece oscilar entre a importância da sintaxe e a importância da semântica, esta compreendida, também, como o meio pelo qual o mundo externo pode ser referido pelos processos computacionais40. Ou seja, num certo sentido, o problema da intencionalidade – isto é, a discussão sobre se os estados mentais representam ou não estados do mundo (v. BECHTEL, 1988b, p. 40-44) – interferiria na tese da representação mental. Isto levaria, também, a uma possível polissemia da palavra “representação”, na medida em que ela possa significar, de um lado, a relação entre os símbolos e o mundo ou, de outro, a relação dos símbolos entre si. Porém, ter estas alternativas como excludentes pode ser enganoso. Como vimos no texto do próprio Fodor, acima reproduzido, o importante para a Teoria Computacional da Mente é que estados mentais sejam associados a símbolos mentais. E estes somente operam obedecendo a uma cadeia causal. Esta cadeia é essencial ao modelo computacional da representação. Se os valores semânticos atribuídos aos símbolos mentais (pelos estados mentais) correspondem ou não a estados do mundo não é essencial para a Teoria Computacional da Mente. Como afirma Pylyshyn a respeito: “Fodor sugere que uma estratégia essencial metodológica da psicologia cognitiva é dispensar a questão da intencionalidade e desenvolver modelos que estão preocupados principalmente com a coerência” (PYLYSHYN, 1980, p. 128). Isto porque, para esta visão, o comportamento é produzido graças a uma cadeia causal computacional, ainda que ao mesmo tempo dependa do conteúdo dos símbolos desta cadeia. Este conteúdo pode corresponder a “estados” do mundo, ou não. Isto quer dizer que a Teoria Computacional da Mente admite que o valor semântico da representação possa espelhar estados do mundo, mas esta correspondência não é necessária no modelo41. Sem a cadeia simbólica formal e causal, ao contrário, não há representação, seja esta preenchida por valores semânticos adequados ao mundo ou não. A adequação que deve haver é sobretudo formal. O comportamento é, como vimos no uso da noção de processamento de informações pela psicologia cognitiva, um output – um produto – do processo cognitivo implementado em um dispositivo físico. Os valores semânticos dados aos símbolos sintaticamente encadeados são os inputs deste processo. Assim, por um lado, não importa, para a Teoria Computacional da Mente, se estes inputs são verdadeiros no sentido de correspondentes a estados do mundo. Por outro, a Teoria Computacional da Mente entende que eles representam algo, que é causa do comportamento; e que para serem efetivos deverão ser aplicados a uma cadeia simbólica capaz de gerar resultados neles originados. Desta 40

Esta questão será retomada com maior profundidade na seção 2.2, quando for abordada a objeção ontológica da cognição corpórea ao cognitivismo. 41 Esta questão será examinada novamente na seção 2.2 quando se discutirá a noção de solipsismo metodológico, de Fodor, no âmbito das críticas da cognição corpórea ao que ela chama de objetivismo no cognitivismo.

120

maneira, fica mais bem compreendida a citação de Fodor apresentada no final da seção 1.2.2, de que a função dos mecanismos cognitivos é a transformação de representações. A cadeia simbólica é, portanto, um processo de transformação – um processo produtivo. Tal compreensão da cognição como processo produtivo computacional-simbólico, por parte da Teoria Computacional da Mente, irá ajudar a se estabelecer, neste trabalho, a relação entre as noções de representação e de processamento de informações nas ciências cognitivas clássicas e, deste modo, precisar as características do modelo lógico-proposicional como núcleo unificador. No início deste trabalho, foi afirmado que as ciências cognitivas constituem uma unidade multidisciplinar em virtude da admissão, por parte dos cientistas que as praticam, de certos compromissos comuns. Segundo a perspectiva aqui defendida, a partir do trabalho de alguns autores, este compromisso pode ser descrito como consistindo, sobretudo, na utilização do modelo lógico-proposicional – oriundo da tecnologia e da inteligência artificial – para explicar a cognição. Após se descreverem as linhas gerais da adoção deste modelo nas seções 1.1.4 e 1.2.1, foi defendido que uma outra noção, a de representação, é comumente apresentada como essencial nas ciências cognitivas clássicas. Mas que papel esta noção exerce no modelo lógico-proposicional? Por que uma teoria geral da cognição, baseada no modelo lógico-proposicional, apelou para o conceito de representação? Por que alguns autores enfatizam ora o processamento de informações, ora a representação, ao se utilizarem do modelo lógico-proposicional? Deve-se assumir então a tarefa de melhor esclarecer o significado de processamento de informações e representação mediante seu uso nas ciências cognitivas, a partir da ideia de que ambas as noções são aspectos, compatíveis e complementares entre si, de uma mesma orientação. Um importante passo será entrelaçarmos as noções de processamento de informações e representação observando aplicações mais específicas destas nas ciências cognitivas, considerando a Teoria Computacional da Mente. Um emprego relevante destas noções na cognição é a previsão de comportamentos. Isto é, a utilização delas na compreensão da cognição permitiria que, uma vez que esta seja considerada como um processo formal de produção, seus outputs possam ser predeterminados em função das variáveis (inputs) aplicadas. Exatamente como em um programa de computador. É o que descrevem Terry Winograd e Fernando Flores no trecho abaixo:

121

Nas últimas décadas, formas simples de psicologia cognitiva têm sido contestadas pelos defensores da "psicologia de processamento de informações", que afirmam que sistemas cognitivos podem ser mais bem compreendidos por analogia com computadores programados. As premissas por trás dessa abordagem podem ser resumidas como se segue: 1. Todos os sistemas cognitivos são sistemas de símbolos. Eles alcançam sua inteligência simbolizando situações externas e internas, e eventos, e por meio da manipulação destes símbolos; 2. Todos os sistemas cognitivos compartilham um conjunto básico subjacente de processos de manipulação de símbolos; 3. A teoria da cognição pode ser expressa como um programa, respeitado um apropriado formalismo simbólico, de tal forma que o programa, quando executado no ambiente adequado, irá produzir o comportamento observado. Esta abordagem não é incompatível com modelos não computacionais anteriores. Em geral, as regras que – se postula – regem recorrências poderiam ser embutidas em programas apropriados. Neste sentido, um programa é um sistema formal que possui um certo número de variáveis, e que pode ser manipulado (pode funcionar) para gerar previsões sobre o comportamento (outputs) de alguns sistemas naturais aos quais se destina servir de modelo. Na medida em que o comportamento previsto corresponde ao observado, a teoria é validada. (WINOGRAD & FLORES, 1986, p. 25 – grifo meu).

Anteriormente foi enfatizado que, para alguns autores, não teria havido ruptura radical entre os propósitos do behaviorismo e do processamento de informações humano. É o que reafirmam Winograd e Flores, na passagem acima reproduzida. Segundo esta concepção, a intenção de prever o comportamento humano – e, talvez, prescrevê-lo – teria provocado a adoção de um modelo descritivo e explicativo para o que, na abordagem behaviorista, estaria oculto em uma insondável caixa preta. O texto de Winograd e Flores acima possui aspectos importantes para a presente análise: a) A psicologia de processamento de informações utiliza a analogia de computadores programáveis; b) Esta analogia se justifica porque todos os sistemas cognitivos são concebidos como sistemas formais de manipulação de símbolos – isto é, sistemas computacionais; c) Aplicadas variáveis ao sistema cognitivo formal de manipulação de símbolos, o comportamento dele decorrente pode ser previsto. O que os autores defendem é que o processamento de informações é uma variação do modelo que tem como núcleo uma sequência formal de símbolos à qual são aplicáveis valores mutáveis e que, graças a seu formalismo, permite que sejam obtidos comportamentos previsíveis a partir destes valores. Se este entendimento estiver correto, eles acabam de confirmar que o modelo lógico proposicional serviu para a elaboração da Teoria Computacional da Mente – que se baseia na suposição da cognição como uma cadeia formal simbólica e é um modelo de representação, segundo Fodor – e comporta o processamento de informações. Além disso, algumas pistas deixadas por Winograd e Flores sugerem

122

articularmos o processamento de informações e a representação através das noções de informação estudadas no início desta seção. Se, segundo a Teoria Computacional da Mente, a representação ocorre mediante a atribuição de valores aos símbolos formalmente estruturados, podemos pensar, como já se adiantou, na informação sintática como elemento central do nível formal do processo representacional, e a informação semântica como conteúdo dos valores atribuíveis às representações simbólicas. A seguinte passagem de Pylyshyn ajuda a sustentar este entendimento, ao assim descrever a Teoria Computacional da Mente no mesmo artigo, já citado, em que ele considera o “idioma do processamento de informações” um “compromisso essencial entre os estudiosos da cognição”: A ideia é que a forma adequada para caracterizar funcionalmente as atividades mentais que determinam o comportamento de uma pessoa é proporcionar um estado inicial de representação – interpretado como representando crenças, conhecimento tácito, metas e desejos, e assim por diante – e uma sequência de operações que transforma este estado inicial, por meio de uma série de estados intermediários, em que os comandos são finalmente enviados para os transdutores de saída. Todos os estados intermediários, sobre este ponto de vista, também são representações que, no modelo, tomam a forma de expressões ou estruturas de dados. Cada uma delas tem um significado psicológico: deve ser interpretado como uma representação mental. Assim, todos os estados intermediários do modelo constituem afirmações sobre o processo cognitivo. (PYLYSHYN, 1980,p.120 – grifos meus).

A visão de Pylyshyn é coerente com a hipótese aqui defendida de que tanto o processamento de informações como a Teoria Computacional da Mente são modos de compreender a cognição como transformação de representações, mediante uma sequência formal de operações – um processo –, a partir de estados iniciais, produzindo comportamento. Em outras palavras, tanto a noção de processamento de informações, quanto a Teoria Computacional da Mente decorrem da adoção de um modelo geral para a cognição: o modelo lógico-proposicional. Além disso, Pylyshyn chama o aspecto formal do processo de “estrutura de dados”, o que corroboraria nossa anterior suposição – seguindo Floridi – de que “informação”, no sentido formal, sintático, pode ser adequadamente substituída por “dado”. Mas talvez um resumo mais perfeito da associação entre processamento de informações e representação esteja em Ramsay: De fato, este é um dos sentidos legítimos em que os sistemas cognitivos podem servistos como fazendo algo chamado “processamento de informações''. Enquanto os motores de automóveis transformam combustível e oxigênio em um eixo de acionamento girando, e cafeteiras convertem café em pó em café líquido, sistemas cognitivos transformam estados representacionais em diferentes estados representacionais (RAMSAY, 2007, p. 69).

123

De acordo com Winograd e Flores, Pylyshyn e Ramsay, o processamento de informações é, ao se basear no modelo lógico-proposicional, um processo de transformação de representações, de estados iniciais em comportamento. Ramsay enfatiza, como já havíamos visto em seções anteriores, a metáfora mecânico-fabril. Mas, agora, fica explícito que o processamento de informações transforma representações. Mas por que seria processamento de informações? Em que sentido processar informações equivaleria a transformar representações, ou a produzir comportamento, a partir de estados iniciais, de valores semânticos atribuídos? Como já vimos, segundo Gardner foi George Miller o primeiro psicólogo cognitivo a utilizar a expressão “processamento de informações” em um trabalho sobre a cognição humana – em seu artigo “The magical number seven, plus or minus two: some limits on our capacity for processing information", de 1956. Este foi um artigo baseado no conceito de informação de Shannon. Ou seja, a preocupação de Miller era com a informação no sentido formal, quantitativo – ou, se adotarmos outros termos, com a informação sintática ou dado. Porém, observamos que, conforme demonstram Scarantino e Piccinini, além de Aaron Sloman, nas obras citadas na seção 1.2.2, o sentido de informação para as ciências cognitivas não se manteve unicamente no aspecto formal. Os próprios modelos de processamento de informações descritos nas figuras 3 e 4, respectivamente por Broadbent e Norman, supõem que a informação, a fim de ser utilizada para explicar a cognição e a fim de produzir comportamento, precisa ter seu conteúdo considerado. De qualquer modo, os principais modelos de processamento de informações na cognição apareceram antes da formulação da Teoria Computacional da Mente, por Fodor, que passou a aplicar amplamente a noção de representação mental para significar o processo de transformação de estados cognitivos iniciais em comportamento – isto é, para tentar constituir uma teoria geral a partir de um modelo principal, com variações locais em cada aplicação e em cada disciplina. Embora, para Gardner, Fodor tenha adotado a noção de processamento de informações, conforme afirma na seguinte passagem, Fodor passa aadotar aabordagem geral de processamento de informação das ciências cognitivas: é na manipulação de símbolo sou representações mentais que as atividades cognitivas são realizadase, na verdade, constituídas (GARDNER, 1985, p.82),

o próprio Fodor faz muito pouca referência explícita ao processamento de informações em suas obras. De fato, foi a partir dos principais trabalhos de Fodor que, nas ciências cognitivas, se passou a falar mais explicitamente na cognição como “manipulação de símbolos ou representações mentais”, e nem tanto em processamento de informações. Isto sugere que o

124

núcleo do modelo lógico-proposicional se manteve nas formulações mais tardias do cognitivismo, com maior nitidez do que a noção de processamento de informações. Porém, como podemos concluir a partir do fragmento recém-citado de Gardner, a maior utilização da noção de representação do que da noção de processamento de informaçõespor parte de Fodor e de seus seguidores não elimina que se possa identificar uma correspondência entre ambas as noções. Por outro lado, temos condições já de fazer uma importante distinção entre elas, que diz respeito à extensão do processamento de informações. Como vimos nos esquemas apresentados nas figuras 2 a 5, e na descrição de Bruner (BRUNER, 1990, p. 4), o processamento de informações na cognição envolve diversas etapas, ou módulos. Trata-se de módulos de percepção, armazenamento, recuperação, manipulação, enumeração, ordenação, combinação, comparação, expressão, ação etc. Por seu turno, o modelo lógico-proposicional adotado na Teoria Computacional da Mente está concentrado no que poderíamos chamar de módulo computacional do processamento de informações. Para Fodor, o que é essencial no processo cognitivo é a transformação das representações, como vimos. Sendo assim, em sua concepção, a etapa que mais importa do processamento de informações é a computação, aquela onde ocorrem as transformações significativas das representações. Porém, embora a partir principalmente de Fodor, a ênfase dos textos em ciências cognitivas clássicas tenha sido dada à representação entendida como computação simbólica, outros cientistas cognitivos dedicaram bastante atenção a outros módulos e etapas do processamento de informações, chegando mesmo a usar a palavra “representação” com sentidos diversos de Fodor. Herbert Simon, por exemplo, se ocupa do armazenamento da informação, o que ele chama – dando outra acepção ao termo e corroborando a advertência já feita aqui sobre a polissemia da palavra, comum nas ciências cognitivas – de representação: O cérebro humano codifica, modifica e armazena informações que são recebidas através de seus diversos órgãos dos sentidos, transforma essas informações pelos processos que são chamados de "pensar", e produz outputs motores e verbais de vários tipos com base nas informações armazenadas. Esta descrição não é muito controversa– somente o mais radical dos behavioristas radicais a questionaria. O que é altamente controversa é a forma como a informação é armazenada no cérebro ou, na terminologia de costume, como é “representada"– ou mesmo como podemos descrever as representações, e o que queremos dizer quando dizemos que a informação é representada de uma forma, em vez de outra (SIMON, 1978, p. 3 – grifo meu).

Se para Simon uma das acepções para “representar” é armazenar informação, para outro cientista cognitivo, como Sloman, representar pode ser carregar, ou expressar, informação. Sua abordagem é, também, um exemplo de uma acepção mais ampla de processamento de

125

informações, não a resumindo à etapa de computação. Ele desdobra o processamento de informações em diversos módulos ou, mais precisamente, processos integrantes: Uma portadora de informações P (uma representação) pode expressar a informação I para o usuário U no conxteto C. O usuário U pode tomar P para expressar informação sobre algo remoto, passado, futuro, abstrato (como números), ou mesmo inexistente como, por exemplo, uma situação evitada, ou um personagem de ficção. A informação expressa pode ser envolvida em muitos processos, como por exemplo: aquisição, transformação, decomposição, combinação com outras informações, interpretação, derivação, armazenamento, inferência, solicitação, teste, uso como premissa, controle de comportamento interno ou externo, e comunicação com outros usuários de informações. Tais processos requerem geralmente que U implemente mecanismos que tenham acesso a P, a partes de P, e a outros portadores de informações (por exemplo, na memória de U ou no ambiente) (SLOMAN, 2007, p. 12).

Por outro lado, em vez de divergência, podemos apontar convergência entre as acepções de “representação” usadas por Simon e Sloman, ao conceber que, para o modelo de processamento de informações, “armazenar” não teria sentido diferente de “portar”, ou “expressar”. Todos seriam casos em que a representação contém informação: pode recebê-la, transportá-la, guardá-la e fornecê-la quando necessário ao processo. Mas a que sentido de “informação” Simon e Sloman se refeririam? A seu sentido meramente formal, estrutural – o “sentido de Shannon” –, ou a seu sentido signficativo, semântico? Busquemos a resposta nas palavras dos autores. Simon diz que as informações são recebidas pelos órgãos dos sentidos e permitem que sejam produzidos outputs motores e verbais a partir delas. Sloman afirma que um usuário pode tomar uma representação (portadora de informação) para expressar algo remoto. Numa primeira apreciação, somos tentados a afirmar que ambos se referem à informação com conteúdo semântico. Afinal, Simon fala em produção de comportamento a partir de percepções, e Sloman em uma ação de expressão, em que a informação se refere a algo que não ela mesma. Estes efeitos são associados à informação dotada de conteúdo, como vimos anteriormente. Porém, entendemos também que a informação com conteúdo deve obedecer a algumas regras formais para que seja capaz de conduzir seu conteúdo. Com base nisto, somos levados a concluir que ambos os aspectos da informação devem ser considerados no processamento de informações, ao menos naquele descrito por Simon e Sloman. Dito de outro modo, os aspectos formais da informação – tais como presentes nas preocupações de Shannon e George Miller – seriam condições para que a informação seja tomada como matéria de transformações no modelo de processamento de informações. Ou ainda, os aspectos sintático e semântico seriam níveis de análise, como propõem Stillings et al:

126

A distinção entre estudar a competência ou o conhecimento de um sistema e estudar os seus processos formais de informação pode ser pensada como a distinção entre níveis de análise. A análise formal reside em um nível inferior, proporcionando uma explicação dos processos de informação que estão na base do conhecimento que é visível a um nível superior, comportamental. A análise do mapeamento semântico que parta das representações formais para chegar ao seu domínio pode ser pensada como uma ponte entre os níveis formal e de conhecimento. Ela explicaria por que um sistema formal é uma implementação bem sucedida de uma competência específica. Embora a análise formal possa ser pensada como mais profunda do que uma análise de nível de conhecimento, não a substitui. Cada nível de análise contribui com os seus próprios achados para o quadro geral. Sem a análise do nível de conhecimento, incluindo a compreensão do mapeamento de representação, não teríamos uma compreensão de que o algoritmo realiza, e não seríamos capazes de capturar o fato de que dois algoritmos diferentes, com diferentes representações, possam calcular a mesma função. Sem a análise formal saberíamos o que um sistema faz, mas não como ele faz isso. Revendo o exemplo de multiplicação decimal, a análise abstrata de competência (x · 0 = 0, etc) nos diz qual a função do produto, enquanto análise de representação mostra que a notação decimal sistematicamente representa números, e a análise formal especifica totalmente a mecânica do algoritmo. Se ignorarmos um nível de análise, perdemos uma parte importante da imagem. (STILLINGS et al, 1985, p. 7 – grifos meus)

Isto é, para estes autores, o nível formal do processamento de informações explicaria como se produz a cognição, e o nível comportamental explicaria o que se produz através da cognição. Ambos seriam níveis indispensáveis à compreensão do modelo de processamento de informações aplicado à cognição. Além disso, segundo os mesmos autores, “a análise dos sistemasao níveldo conhecimento eao nível formal, e o uso doconceito de representação para unir estes níveis, distingue mas ciências cognitivas (incluindo ciência da computação) de outras ciências (STILLINGS et al, 1985,p. 8 – grifo meu)”.42 Esta proposta de utilizar o conceito de representação para unir os níveis formal e comportamental de análise vem ao encontro da seguinte abordagem que Varela, Thompson e Rosch fazem do cognitivismo:

42

Os autores, no mesmo livro, ainda consideram outros níveis de análise da cognição, como o nível físico. Para abordagens alternativas e mais extensas dos níveis de análise na cognição, v. NEWELL (1981), STICH (1983), FODOR (1987) e MARR (1982).

127

Se desejamos afirmar que estados intencionais possuem propriedades causais, temos de mostrar não apenas como estes estados são fisicamente possíveis, mas como eles podem causar o comportamento. É aqui que surge a noção de computação simbólica. Os símbolos são físicos e, além disso, também possuem valores semânticos. As computações são operações com símbolos que respeitam aqueles valores semânticos ou são restringidos pelos mesmos. Em outras palavras, uma computação é fundamentalmente semântica ou representacional – não podemos entender a ideia de computação (em oposição a alguma operação arbitrária ou aleatória com símbolos) sem advertir para as relações semânticas entre as expressões simbólicas (este é o significado da máxima “não existe computação sem representação”). Um computador digital, entretanto, opera apenas com a forma física dos símbolos que ele computa; ele não tem acesso aos valores semânticos dos símbolos. Suas operações são, todavia, semanticamente restringidas porque toda distinção semântica relevante para seu programa foi codificada na sintaxe de sua linguagem simbólica pelos programadores. Ou seja, em um computador a sintaxe espelha ou é paralela à semântica (atribuída). Então, a afirmação cognitivista é de que este paralelismo nos mostra como inteligência e intencionalidade (semântica) são física e mecanicamente possíveis. Logo, a hipótese é de que computadores fornecem um modelo mecânico do pensamento ou, em outras palavras, que o pensamento consiste em computações físicas, simbólicas (VARELA et al, 1991, p.40 e 41).

O que eles afirmam é que a sintaxe, para o cognitivismo – o que pode ser aplicado à Teoria Computacional da Mente –, é a forma de operar do pensamento, embora a representação tenha como conteúdo valores semânticos. Este paralelismo próprio da representação seria uma propriedade intrínseca a ela que a permitiria unir os níveis formal e comportamental da análise da cognição como processamento de informações. Isto porque a face formal, ou sintática, da representação articula-se com o nível formal da informação, enquanto a face semântica da representação articula-se com o nível comportamental da informação. É por esta razão que, como já foi dito mais de uma vez anteriormente, podemos pensar que o processamento de informações seja um processo de transformação de representações. Ou, em outras palavras, que o modelo lógico-proposicional possa absorver o conceito de representação no interior da tentativa de se constituir uma teoria geral da cognição. A esta altura, já se pode apresentar um resumo do que foi dito, propondo que alguns aspectos da relação entre processamento de informações e representação em suas aplicações nas ciências cognitivas clássicas sejam considerados. São eles: 1) Se há alguma unidade nas ciências cognitivas, esta é proporcionada pelo compromisso de cientistas de diversas disciplinas afins em torno de compromissos, em torno do modelo lógico proposicional da cognição – sendo que uma das variações deste é o processamento de informações; 2) A noção de processamento de informações traz inspiração tecnológica, através da inteligência artificial, e tem como principal característica consistir em um processo de transformação de inputs em outputs cognitivos;

128

3) Este processo de transformação, quando adotado como modelo – por exemplo, na psicologia cognitiva –, é constituído de módulos, etapas, ou subprocessos, assemelhando-se à fabricação industrial em massa e a outros processos organizacionais de transformação social de insumos em produtos finais; 4) O uso do modelo lógico-proposicional e da noção de processamento de informações pelas ciências cognitivas clássicas tem, como uma de suas mais importantes aplicações, a previsão de comportamentos a partir de dois elementos: a estrutura do processo, e a natureza dos inputs; 5) A noção de representação aparece nas ciências cognitivas desde sua gênese, mas é enfatizada, na forma de representação mental, através da Teoria Computacional da Mente, que consiste na tentativa de se ampliar o entendimento da cognição como um processo causal de transformação computacional e simbólica de representações, não necessariamente referenciadas a objetos externos; a transformação de representações teria mesmo o propósito do processamento de informações; 6) A noção de representação se articula com a noção de processamento de informações, no modelo lógico-proposicional, de duas maneiras: a. Na forma de um núcleo de computação e transformação de representações, que compõe a etapa principal do processamento de informações; b. Na forma de uma unidade simbólica dotada de uma face sintática e outra semântica, capaz de articular o nível formal com o nível significativo das informações.

129

2.

A COGNIÇÃO CORPÓREA

2.1. Antecedentes histórico-conceituais Será apresentado nesta seção um exame da formação e da articulação histórica dos principais conceitos e noções utilizados pelas abordagens da orientação corpórea, mantendose a preocupação de considerar suas diferenças em relação à orientação cognitivista, de acordo com o sentido geral deste trabalho. Mais precisamente, esta seção se ocupará de diversas formulações científicas e filosóficas desenvolvidas em sua maior parte no século 20, das quais a orientação corpórea extraiu modos de conceituara cognição alternativos aosdo cognitivismo. Mas, além de conceitos, aqui serão discutidos problemas e controvérsias que, enfrentados por cientistas e filósofos de várias áreas, contribuíram para configuração conceitual da cognição proposta pela orientação corpórea. Quanto a este ponto, é forçoso acrescentar que a cognição corpórea decorre de algumas maneiras características de solucionar tais problemas e controvérsias. Haverá dois principais fios condutores de como serão a seguir considerados os processos de construção da cognição corpórea. O primeiro concerne à transformação e à criação vocabular neles envolvidas. Uma das principais atitudes adotadas pela orientação corpórea tem sido propor novos significados para vocábulos usuais nas ciências cognitivas e na filosofia, como é o caso de representação, percepção, experiência, categorização, metáfora, imaginação, emoção, sentimento etc. – para chegar a ressignificar as principais das palavras que utiliza: cognição e corpo. Porém, além desta modalidade crítica de alterações de significado, a orientação corpórea vem se servindo de termos originários de outras iniciativas teóricas e de pesquisa, a ponto de torná-los peculiares a seu âmbito. Deve-se admitir, mesmo, que a orientação corpórea tem como uma de suas características mais proeminentes a reelaboração e a recombinação destes termos. Trata-se de conceitos como, por exemplo, autoorganização, autonomia, sistema, complexidade, conexionismo, homeostasia, emergência, entre outros correlatos. Finalmente, em paralelo às citadas reconfigurações semânticas, há na cognição corpórea, como seria de se esperar, a adoção de termos inéditos, conforme também veremos mais à frente. O segundo fio condutor de como os antecedentes históricos da cognição corpórea serão aqui examinados decorre da necessidade de enfatizar dois âmbitos de sua influência: aquele que contribui para melhor compreender a coesão geral da orientação corpórea, mediante noções que perpassam ou sustentam as diversas frentes de pesquisa que a

130

constituem; e aquele voltado para assimilar o sentido de cada uma destas frentes em particular. A ênfase do primeiro tipo é exigida, em especial, para a compreensão dos processos através dos quais contextos sociais e conceituais teriam embasado, ou até mesmo estimulado, a unificação da cognição corpórea. O segundo tipo de ênfase dirige-se, sobretudo, às referências apresentadas nas argumentações dos próprios autores de cada uma das abordagens – sendo, assim, voltado ao que é mais específico, e não necessariamente comprometido com uma postura unificadora. Tal diferença será assinalada sempre que necessário. Esta dupla perspectiva se coaduna com a hipótese defendida neste trabalho de que, embora uma forma geral da orientação corpórea seja patente, sua compreensão mais completa não prescinde da atenção a certas particularidades das frentes relativamente autônomas que a compõem. Em suma, esta seção se ocupará, orientada pelos dois fios condutores explicitados, de questões como as seguintes: de que conceitos, controvérsias e linhas de pesquisa a cognição corpórea partiu para contestar o cognitivismo? Como transformou as produções científicofilosóficas nas quais que se baseou? Que particularidades – mas também que traços comuns, ou de união – se podem perceber nas diferentes formas como as influências foram recebidas pelas abordagens que constituem hoje a cognição corpórea? Porém, outra forma de considerar as influências recebidas pela cognição corpórea deve ser mencionada: trata-se de sugerir que os autores que adotaram esta orientação nas ciências cognitivas vêm promovendo uma síntese de diversas ideias que se manifestaram em vários campos do conhecimento, sobretudo, no século 20. São ideias que, por terem tido origem em diversos domínios, não eram usualmente aproximadas e articuladas. Sendo assim, um modo de compreender o surgimento da cognição corpórea é caracterizá-la como a reunião e transformação destas ideias no contexto das ciências cognitivas. A partir desta perspectiva, surge um duplo desafio: primeiramente, entender por que motivos e como essas ideias têm sido introduzidas nas ciências cognitivas – com a característica suposta de contribuírem para rejeitar as premissas do cognitivismo –; e, em segundo lugar, explicar de que modo a heterogeneidade destas ideias não tem sido empecilho para que a cognição corpórea não apenas as utilize de forma coerente, mas também o faça para manter o campo das ciências cognitivas dotado de unidade na sua perspectiva. Em favor do enfrentamento deste duplo desafio existe a possibilidade de que estas ideias sejam ser classificadas conforme grandes grupos de atividades. Tal procedimento tem a vantagem de reconhecer que as influências da cognição corpórea foram desenvolvidas em contextos específicos, a partir de atividades intelectuais de naturezas diversas, o que permite

131

identificar com maior facilidade que diferenças de linguagem tiveram de ser superadas e, assim, como afinidades puderam ser estabelecidas. Além disso, a identificação de um nível mais geral de diferenças recomenda que os antecedentes históricos da cognição corpórea aqui abordados sejam tipificados, principalmente, como de natureza filosófica e científica. Por fim, no campo científico, os antecedentes deverão ser classificados em dois tipos, o que resulta no seguinte agrupamento: a) Biofisiológicos – que abarcam as diversas iniciativas científicas de explicar a origem da vida, as diferenças entre seres vivos e não vivos, e as bases biológicas e neurofisiológicas da cognição humana, além de perspectivas na neurociência desafiadoras do cognitivismo, como o conexionismo; b) Filosóficos – que correspondem sobretudo a posicionamentos críticos ao racionalismo, ao logicismo e às correntes que disputam os desdobramentos do conceito brentaniano de intencionalidade – mas também alcançam questões como o reducionismo, a relação entre seres vivos e máquinas e mesmo a natureza da própria ciência, manifestando-se de maneira particular na questão da percepção; c) Psicolinguísticos – que reúnem estudos científicos sobre comportamento e linguagem humanos, incluindo os culturais e multiculturais. A cognição corpórea recebeu também influência de cientistas computacionais que produziram críticas ao cognitivismo internas à própria inteligência artificial. Esta influência, todavia, é mais recente que as demais, podendo ter sido já motivada pelos mesmos trabalhos que anteciparam a cognição corpórea, e até por esta última – o que será esclarecido e analisado ao final da seção. Mas é preciso notar também que em muitas atividades precursoras da orientação corpórea domínios como os acima relacionados se entrelaçaram. Alguns exemplos são bastante notáveis. Sobretudo no caso dos antecedentes que envolvem questões biológicas, encontram-se preocupações ontológicas e epistemológicas importantes – como veremos no que diz respeito aos conceitos de auto-organização, complexidade e emergência. De fato, os autores da cognição corpórea herdaram interesses filosóficos muito semelhantes aos que moveram os criadores de tais conceitos. Ficará patente, também, como na abordagem fenomenológica de Merleau-Ponty a respeito da percepção e do comportamento – e bastante influente sobre certos autores da orientação corpórea – já se incorporavam temas provenientes da biologia e da neurologia. Mas o que estes exemplos também confirmam é que os principais problemas que resultaram na cognição corpórea foram enfrentados a partir de cada um dos três enfoques aqui considerados, por autores que os tinham como atividade principal – o que

132

lhes confere suficiente particularidade. Por outro lado, os três enfoques não serão aqui apresentados de forma estanque ou sucessiva. Tendo em vista as características da formação da cognição corpórea, a exposição nesta seção necessitará mencionar os três tipos de influência de maneira às vezes alternada, e frequentemente combinada. Serão ainda mencionados antecedentes culturais da cognição corpórea, mas a atenção a eles será breve, tendo em vista sua importância ser relativamente menor face aos problemas discutidos nesta pesquisa. Por outro lado, esta influência cultural será rapidamente abordada quando da menção a atividades institucionais que fomentaram a cognição corpórea – como, por exemplo, a Lindisfarne Association43 e o Biological Computer Laboratory44. Aspectos políticos respectivos serão tratados, também com brevidade, no interior das controvérsias teóricas e das situações institucionais. O exame realizado nesta seção não terá como ponto de partida, contudo, o mais remoto dentre os antecedentes históricos da cognição corpórea a serem abordados. Inicia-se “no meio do caminho”, tendo como referência um mesmo conjunto de atividades coletivas que, segundo a premissa adotada neste trabalho, deu início ao processo que culminou com a criação das ciências cognitivas: as Conferências Macy e o Simpósio Hixon. Iniciar o presente exame por estes eventos se justifica porque neles se estabeleceu de maneira decisiva um debate do período subsequente: aquele que, de um lado, defendeu, como já foi tratado no primeiro capítulo, o processamento simbólico de informações como imagem mecanicista da cognição humana e, de outro, buscou romper com esta imagem não só em sua forma lógicoproposicional da cognição, mas também em sua modalidade reducionista dos processos orgânicos em geral a leis físicas subjacentes, quer no cérebro ou no corpo. Já se abordou no capítulo 1 deste trabalho a questão da redução da cognição a processos mecânicos, tanto os simbólicos, como os físicos. Nesta seção será discutido como os precursores da cognição corpórea colocaram em questão ambas as imagens mecanicistas da cognição. Isto, evidentemente, equivale a dizer que a cibernética foi crucial para a formação da orientação corpórea – e não apenas por ter contribuído para o nascimento das ciências cognitivas, como foi visto nas seções 1.1.2 e 1.1.3. Mais precisamente, uma segunda geração do movimento cibernético – doravante Segunda Cibernética – deu origem a conceitos e debates que, ao longo de alguns anos, e mediante sua circulação em diversos meios científicos, terminaram por produzir forte influência nos autores da orientação corpórea. Além 43

Associação fundada por William Thompson em 1972, no estado norte-americano de Nova York, que teve papel direto na publicação de obras seminais da cognição corpórea, cuja importância será adiante detalhada. 44 Laboratório fundado por Heinz Von Foerster na Universidade de Illinois (1958-1975), cujas características e influências sobre a cognição corpórea serão a seguir especificadas.

133

disso, a segunda fase da cibernética deve grande parte de suas diferenças em relação à primeira fase a produções de autores anteriores que, graças também a esta intermediação, se tornaram fundamentais para a formulação da cognição corpórea45. Além disso, começar o presente estudo pela segunda fase da cibernética está em conformidade com a suposição de que o mesmo conjunto de atividades científicas que deu origem às ciências cognitivas já continha as sementes da cognição corpórea, e que isto é essencial para compreender mais claramente esta última como oriunda da dinâmica interna do campo científico interdisciplinar que integra. De acordo com o relato de Francisco Varela, A fase cibernética das ciências cognitivas produziu uma incrível variedade de resultados concretos, além de sua longa (e muitas vezes subterrânea) influência. Alguns deles são: • a utilização da lógica matemática para compreender o funcionamento do sistema nervoso; • a invenção de máquinas de processamento de informação (como computadores digitais), constituindo a base da inteligência artificial; • o estabelecimento da metadisciplina da teoria dos sistemas, que deixou marcas em muitos ramos da ciência, como a engenharia (análise de sistemas, teoria do controle), biologia (fisiologia da regulação, ecologia), ciências sociais (terapia de família, antropologia estrutural, gerenciamento, estudos urbanos), e economia (da teoria dos jogos); • a teoria da informação como uma teoria estatística do sinal e de canais de comunicação; • os primeiros exemplos de sistemas auto-organizados. A lista é impressionante: temos a tendência de considerar muitas dessas noções e ferramentas como uma parte integrante de nossas vidas. No entanto, nenhuma delas existia antes desta década formativa, e foram todas produzidas por intenso intercâmbio entre pessoas de origens amplamente diferentes: um esforço interdisciplinar especialmente bem sucedido. (VARELA, 1992, p. 237)

. O que Varela chamou de “fase cibernética das ciências cognitivas”, no texto acima, ainda não é considerado, neste trabalho, como um período em que as ciências cognitivas já estivessem constituídas. Estas, como já se argumentou no primeiro capítulo, tiveram início na segunda metade da década de 1950. A fase referida por Varela é anterior – mas a menção a ela é pertinente, desde que assumida, justamente, como aquela na qual se deram os fatos que nesta pesquisa são tidos como cruciais na formação não só do cognitivismo, mas também da cognição corpórea. Dentre os resultados da cibernética apontados acima por Varela, aqueles correspondentes à utilização da lógica matemática na compreensão do sistema nervoso, à engenharia e ao gerenciamento, assim como ao processamento e à teoria da informação, já foram apontados neste trabalho como constitutivos do cognitivismo. Mas aqueles referentes à teoria dos sistemas e suas aplicações quanto à vida e à ecologia, e à auto-organização, 45

Um destacado exemplo desta classe de mediação seria como se deu a transmissão da noção de sistema, sobretudo a partir do trabalho de Ludwig Von Bertalanffy, da Segunda Cibernética para a cognição corpórea.

134

caracterizam a Segunda Cibernética e foram fundamentais para a origem da cognição corpórea. Isto equivalente a destacar parte da Segunda Cibernética46 como movimento crítico à imagem mecanicista dos seres vivos e da cognição, e justifica que nosso primeiro foco a seguir consista, portanto, nos eventos sociais e conceituais47 que ganharam a denominação de Segunda Cibernética. As demais influências, não relacionadas diretamente ao movimento cibernético – mas não menos importantes, embora pertencentes a campos variados –, serão comentadas na sequência. Segunda Cibernética é a denominação48 que recebeu (PASK, 1969; VON FOERSTER, 1979; STENGERS, 1985; DUPUY, 1996 [1994]; PESSOA, 2001; HEYLIGHEN e JOSLYN, 2001;FROESE, 2010 e 2011) a corrente liderada por participantes das Conferências Macy como Heinz Von Foerster, W. Ross Ashby, Gordon Pask e Gregory Bateson – mas que somente se evidenciou e ganhou nome após aquela sequência de encontros49. Como já foi exposto nas seções 1.1.2 e 1.1.3, as Conferências Macy tiveram como título e subtítulo “Cybernetics - Circular causal and feedback mechanismsin biological and social systems”50. O subtítulo já sugere que o conteúdo e o propósito das conferências devem ser de interesse não apenas para as origens do cognitivismo, mas da cognição corpórea, até porque, segundo Varela, Alternativas à dominação imponente da lógica como a principal abordagem das ciências cognitivas já haviam sido propostas e amplamente discutidas durante a década de sua formação. Nas Conferências Macy, por exemplo, argumentou-se que em cérebros reais não existem regras ou processador lógico central nem é a informação armazenada em endereços precisos. Em vez disso, os cérebros parecem operar na base de interconexões em massa, de uma forma distribuída, tal que sua real conectividade muda como resultado da experiência (VARELA, 1992, p. 242).

Este conjunto de argumentos e pesquisas apontado por Varela como desafiadores dos pressupostos do cognitivismo ainda não constituía a cognição corpórea, que somente se

46

Com a exceção de autores como Ashby. Considera-se aqui “eventos conceituais” as publicações de teorias, e “eventos sociais” as atividades coletivas promovidas com o propósito de debate filosófico e científico. 48 Para evitar equívocos, no texto deste trabalho não será usada a expressão “segunda geração da cibernética”, como é feito por alguns autores (v., por exemplo, PICKERING, 2010) – a não ser em citações nas quais não haja risco de que seja compreendida com relação à idade dos autores envolvidos. Em seu lugar, serão empregadas expressões como Segunda Cibernética, segunda fase da cibernética, segunda etapa da cibernética ou cibernética de segunda ordem. 49 Tem também relevância, para a cibernética como um todo, o grupo informal denominado “Ratio Club”, que reuniu, de 1949 a 1958, entre outros cientistas britânicos, Ashby, Donald McKay e William Grey Walter – mas também Alan Turing (DUPUY, 1996 [1994]; MCCORDUCK, 2004; HUSBANDS et al, 2008). Contudo, está por ser explorada a influência do “Ratio Club” para as teses que inauguraram a Segunda Cibernética, o que se justificaria, ao menos, pela a presença, no grupo, de Ashby e Grey Walter. 50 É importante acentuar que este título somente se estabeleceu após a 9ª conferência. 47

135

consubstanciaria três décadas depois. Parte deles corresponde justamente ao que se veio a denominar Segunda Cibernética. Em resumo – e com atenção à sua importância para a origem da cognição corpórea –, podemos dizer que a Segunda Cibernética teve as seguintes características principais (VON FOERSTER, 1979; DUPUY, 1966 [1994]; FROESE, 2010 e 2011): 1) Apresentou-se como uma cibernética de segunda ordem, na medida em que se aplica ao conhecimento e ação humanos – inclusive à própria cibernética –, no que evidencia um caráter de circularidade de observação e, sobretudo, o papel ativo do sistema observador; 2) Dedicou-se, mais do que a “primeira” cibernética, às especificidades dos chamados sistemas biológicos – e não só ao controle destes, mas ao crescimento e ao aprendizado; 3) Aprofundou preocupações metafísicas da primeira cibernética, adotando postura crítica antirreducionista ao rejeitar a imagem mecanicista dos seres vivos51. Sobretudo da segunda característica – mas com interferência das outras – decorrem dois fatos de especial importância para a identificação dos antecedentes da orientação corpórea: em primeiro lugar, a participação da Segunda Cibernética nestes antecedentes deuse principalmente a partir de questões de natureza biofisiológica (para utilizar a classificação dos três tipos de influência anteriormente proposta); em segundo lugar – o que decorre do primeiro aspecto –, a influência da Segunda Cibernética se efetivou predominantemente sobre a abordagem aqui denominada corpóreo-enativista, que é examinada na seção 2.3 (VARELA, 1996; BOURGINE & STEWART, 2004; FROESE & STEWART, 2010; FROESE, 2011). Não vem de outra motivação o trecho acima reproduzido de Varela. A abordagem corpóreoenativa, além de ser considerada neste trabalho – conforme se buscará justificar mais adiante, e especialmente na seção subsequente – como pioneira da orientação corpórea, distingue-se das demais por ter nascido e se desenvolvido no âmbito de pesquisas dedicadas a explicar a natureza dos organismos vivos, de sua autonomia e reprodutibilidade, e os processos cognitivos como indissociáveis desta natureza. Sendo assim, podemos afirmar que a orientação corpórea teve como primeiro impulso questionamentos de caráter biológico – ainda que fortemente impregnados de determinadas preocupações filosóficas – ao cognitivismo. Dito de outra forma, e como ficará mais evidente à frente: foi a partir de atividades de pesquisa no campo da biologia, direcionadas já em grande parte ao tema da cognição, e 51

A pesquisa com redes neurais, que pode ser considerada parte da Segunda Cibernética, tem traços, contudo, reducionistas.

136

ocorridas nos anos 1960 e 197052, que se gestaram os primeiros passos do que, nas duas décadas seguintes, se afirmou como sendo a orientação corpórea das ciências cognitivas. Contudo, e como já foi de outra forma advertido acima, o reconhecimento da centralidade e da antecedência do campo biofisiológico nas bases da orientação corpórea não deve sugerir, de modo algum, que ele tenha exercido sua influência isoladamente da filosofia e da psicolinguística. É preciso assinalar que, entre outras interações, as ideias precursoras da cognição corpórea no campo da biologia não se engendrariam sem fortes provocações filosóficas, e que, além disso, as influências de origem psicolinguística foram intensamente inspiradas por questionamentos ontológicos e epistemológicos, assim como por resultados de pesquisas biológicas, fisiológicas e neurológicas. Estas interações antecipam um tema que será examinado na próxima seção: o modo característico de como a multidisciplinaridade se efetiva na orientação corpórea. Isto é, neste momento já se anuncia e a seguir aprofundaremos como na orientação corpórea – e acabou de ser dito que isso já acontecia desde suas origens – certas atividades e reflexões, tradicionalmente desenvolvidas por especialistas circunscritos a disciplinas isoladas, tendem a conviver nos trabalhos dos mesmos cientistas. Mais precisamente: enquanto nas ciências cognitivas tradicionais a multidisciplinaridade tinha como característica desejada (vide, por exemplo, declarações citadas de Frank Fremont-Smith no capítulo 1, além do Relatório Sloan), ou efetivada (vide sobretudo a iniciativa Sloan), a interdisciplinaridade – isto é, a colaboração entre pesquisadores de diferentes disciplinas53 –, na cognição corpórea práticas científicas e filosóficas diversas, normalmente circunscritas a tradições disciplinares mais ou menos fechados, são frequentemente exercidas pelos mesmos autores. Feitas estas ressalvas, reconhecer que as origens mais imediatas da cognição corpórea já se encontravam, ao menos em parte, na cibernética, envolve três constatações principais sobre a dinâmica histórica correspondente: 1) A partir da cibernética, dois caminhos divergentes teriam se constituído (FROESE, 2010, 2011): um, mais imediatamente, com a formação concomitante das ciências cognitivas e de sua corrente inaugural cognitivista; o outro, com a Segunda Cibernética e seus desdobramentos na direção de alguns dos principais pressupostos da cognição corpórea – o que nos leva a supor um conflito em parte latente, a ser mais 52

Aqui são referidas sobretudo as pesquisas desenvolvidas no Chile neste período por Humberto Maturana e Francisco Varela. 53 Alguns polímatas importantes como Warren McCulloch, John Von Neumann e Norbert Wiener foram propriamente precursores das ciências cognitivas, e não seus praticantes, enquanto um outro como Herbert Simon contribuiu para este campo mais efetivamente nos limites da disciplina que ajudou a criar, a IA.

137

claramente explicitado nos anos seguintes, entre duas tendências já identificáveis no primeiro momento cibernético; 2) Como as atividades científicas que se iniciaram com a cibernética tiveram o intuito deliberado de que fosse criado um campo de pesquisas multidisciplinar – e, como já foi observado acima, declaradamente interdisciplinar –, tanto o cognitivismo quanto a cognição corpórea teriam se mantido, ainda que respeitando suas peculiaridades, na qualidade de movimentos científicos que extrapolam fronteiras de disciplinas para reuni-las segundo um ponto de vista comum; 3) No caso da cognição corpórea, a convergência multidisciplinar foi, em parte, guiada pela herança de preocupações metafísicas de seus precursores da Segunda Cibernética, como poderemos perceber sobretudo comparando afirmações de Von Foerster e Ashby com outras de autores como Francisco Varela, George Lakoff, Mark Johnson e António Damásio. Para que se identifiquem mais claramente as controvérsias que deram origem à Segunda Cibernética, e que estimularam o surgimento da orientação corpórea, deve-se dirigir a atenção primordialmente a três conceitos, cruciais para ambas as correntes: os de autoorganização, emergência e complexidade. Além disso, é fulcral, para a constituição destes conceitos, a contestação, já assinalada, à imagem mecanicista dos seres vivos e da cognição. Por sua vez, isto exige que nos debrucemos sobre os tratamentos dados, tanto pela a Segunda Cibernética quanto pela cognição corpórea, a outro conceito, intimamente vinculado aos três recém-mencionados e que, de certa forma, os articula: o de sistema – em torno do qual se deu grande parte da controvérsia quanto aos princípios mecanicistas aqui aludidos. E, embora seja comum que recentemente o conceito de sistema seja omitido quando se fala em organização, emergência e complexidade na cognição corpórea, este fato pode ser caracterizado mais como elipse do que como eliminação do conceito. Nas próximas linhas se defenderá, justamente, a suposição de que as transformações ocorridas noção de sistema, desde a primeira cibernética até as duas orientações das ciências cognitivas aqui estudadas – a cognitivista e a corpórea – são um fio condutor adequado para compreender a formação do arcabouço conceitual da orientação corpórea, tendo como passagem crucial o conjunto de mudanças produzidas pela Segunda Cibernética. Esta mudança teria se dado, sobretudo, em decorrência da tentativa de se dissociar dos sistemas a imagem mecanicista que tem sido vinculada a seu uso tradicional.

138

2.1.2. A evolução das características da noção de sistema A primeira observação a ser feita a respeito das transformações das propriedades atribuídas à noção de sistema a serem aqui examinadas é que, com respeito ao contexto da cibernética em geral, o uso da palavra não deve ser confundido com outros mais antigos, anteriores à segunda metade do século 20, e tampouco com demais usos contemporâneos. Outra nota relevante é de que as duas etapas da cibernética e as ciências cognitivas têm se valido de estudos sobre a noção de sistema em si mesma e, com frequência, contribuído para eles. Por estes motivos, antes de avançarmos rumo à compreensão das questões relativas à noção de sistema propostas, primeiramente, pela Segunda Cibernética e, posteriormente pela orientação corpórea, devemos traçar um quadro dos usos da noção, até chegarmos às suas características mais patentes na primeira fase da cibernética. Para além do registro da ocorrência da palavra “sistema” já em autores como Platão e Aristóteles (PESSOA, 2001, p. 35), é útil partir da seguinte apreciação retrospectiva de Ludwig Von Bertalanffy, que informa sobre a intensificação do uso da palavra “sistema” a partir do início do Renascimento: Tal como acontece com toda ideia nova na ciência e em outras áreas, o conceito de sistema tem uma longa história. Mesmo considerando os casos em que o termo "sistema" em si não tenha sido enfatizado, a história deste conceito inclui muitos nomes ilustres. Na "filosofia natural", podemos relacioná-lo com Leibniz, com Nicolau de Cusa e sua coincidência de opostos, com a medicina mística de Paracelso, com a visão da história de Vico e Ibn Khaldun como uma sequência de entidades ou "sistemas" culturais, e com a dialética de Marx e Hegel, para citar apenas alguns nomes de uma rica panóplia de pensadores (VON BERTALANFFY, 1968, p. 11).

Outros exemplos filosóficos e científicos do uso da palavra “sistema” devem ser lembrados para ampliar a ilustração feita por Von Bertalanffy: desde seu emprego em “sistema do mundo”, expressão comum nas cosmologias e mecânicas da era moderna em diante, até o influente uso da noção de sistema capitalista no sentido marcadamente crítico na doutrina revolucionária de Marx (isto é, não apenas na filosofia dialética marxista, como apontado por Von Bertalanffy acima, mas na insistência de Marx na necessidade de transformação revolucionária do sistema de funcionamento da sociedade), passando por Condillac, e seu Tratado dos sistemas (CONDILLAC, 1798), por Kant e sua arquitetônica dos sistemas e pelo “sistema da ciência” ou da “cientificidade” do idealismo alemão (REALE & ANTISERI, 2007 [1997], vol. 05, p. 50 e segs.); isto, sem que deixemos de registrar as formulações bastante difundidas, que já foram abordadas na seção 1.2 deste trabalho (por terem sido fundamentais na constituição das ciências cognitivas), dos sistemas de

139

processamento de informações e dos sistemas de símbolos físicos, ambas explicitadas por Allen Newell e Herbert Simon (respectivamente em NEWELL & SIMON, 1971 e 1972) no desenvolvimento que promoveram da inteligência artificial. Mas como se chegou à noção de sistemas na inteligência artificial ou, mais importante, àquelas que a cognição corpórea construiu para contestar o uso de sistemas simbólicos como modelo para a cognição humana por parte do cognitivismo? Além disso: em que difere a acepção de sistema tal como se dá na inteligência artificial daquelas propostas pela cognição corpórea, geralmente aplicadas a outras entidades que não sequências abstratas lineares de símbolos processadas por dispositivos físicos? Como se trata de usos científicos do conceito, devemos buscar nas raízes da ciência moderna suas origens, assim como verificar em que medida o próprio conceito tem sido alvo de investigações – e o que estas investigações sugerem. Este último tópico sugere um outro questionamento, ainda: por que os sistemas passaram, eles mesmos, a ser objeto de investigação? Em que medida, por que motivos e através de que modos particulares ter sistemas como objeto é característico das cibernéticas e das ciências cognitivas? Galileu usou a noção de sistema como representação ou modelo do universo – mas também como significando a própria realidade universal. Chamou os universos de Ptolomeu e Copérnico de “sistemas do mundo” (GALILEI, 1970 [1632]), criou ele mesmo com sua ciência um “novo sistema do mundo” (STENGERS, 2002 [1993], p. 90); entretanto, não se deteve em considerações sobre que características intrínsecas um conjunto deveria ter para receber a denominação de sistema. Exemplos posteriores e importantes do uso da expressão “sistema do mundo” na “filosofia natural” – além daqueles que aparecem na citação de Bertalanffy – são de Newton, que conferiu ao segundo livro de sua obra Philosophiae naturalis principia mathematica o título de De mundi systemate (“O sistema do mundo”), e de Laplace, cem anos depois, em mais de uma obra (LAPLACE, 1824, [1749] e 1951 [1812]). Ambos adotaram a definição para “sistema do mundo” semelhante à de Galileu, que pode ser descrita como o conjunto de entidades do universo explicado através das relações logicamente coerentes destas entidades entre si e com o próprio conjunto, o que implica estas relações serem expressas matematicamente. Contudo, resta claro nas citadas obras que ambos, além de considerarem o “sistema do mundo” – ou seja, o universo –, também trataram de sistemas particulares, isto é, de “sistemas de corpos” como partes do sistema do mundo matematizado, embora ainda sem analisar a noção de sistema em si (NEWTON, 2009 [1686]; LAPLACE, 1824, [1749] e 1951 [1812]).Além disso, é importante ressaltar que o uso da palavra sistema na mecânica clássica se aplicava a objetos nos quais se observava movimento, e

140

especialmente movimento interno. Esta peculiaridade é importante para as considerações sobre o uso de sistema no século 20, que virão a seguir. Já Condillac tratou de outro tipo de sistema: o sistema de ideias. Ele definiu sistema como “A disposição das diferentes partes de uma arte ou uma ciência em uma ordem em que as últimas se explicam pelas primeiras. Aquelas que fornecem razão às outras são chamadas de princípios” (CONDILLAC, 2010 [1749], p. 8). Neste caso, a certas partes de um sistema de ideias – os princípios, que poderiam, ou deveriam, preexistir ao sistema – seria conferido o papel de explicar o sistema como um todo. A citada obra de Condillac – dedicada sobretudo à crítica empirista e iluminista dos “sistemas metafísicos”, de autores como Descartes, Leibniz e Spinoza, dirigindo suas objeções ao fato de estes sistemas serem, segundo ele, fundados sobre princípios abstratos ou pressupostos – é importante, especialmente, por investigar sistemas em si, assumi-los como conjuntos cujos elementos são partes interconectadas, e estudar as relações que permitem compreender a unidade ordenada do conjunto como decorrente do fato de este ser constituído de partes – o que antecipa, ainda que em linhas gerais, a acepção de sistema que será corrente e precederá a da cibernética, ao longo do século 1954. Mas é útil considerar também o estudo sobre os sistemas de conhecimento que ocorreu na obra de Kant, autor reconhecidamente influente na filosofia e na ciência do século 19 em diante. No capítulo III da “Doutrina transcendental do método”, da Crítica da razão pura, denominado “A arquitetônica da razão pura”, Kant avança na exigência de certas características para que um conjunto de conhecimentos possa ser considerado um sistema: Por um sistema (...) compreendo a unidade de conhecimentos múltiplos sob uma ideia. Esta última é o conceito racional da forma de um todo na medida em que tanto a extensão do múltiplo quanto as posições que as partes ocupam umas em relação às outras são determinadas a priori por tal conceito (...). A unidade do fim ao qual se referem todas as partes, e que na ideia deste fim também se relacionam umas às outras faz com que se possa dar pela falta de cada uma das partes mediante o conhecimento das demais, e que não ocorra uma adição ao acaso ou uma magnitude indeterminada de completude que não possua os seus limites determinados a priori. O todo é portanto articulado (articulatio) e não amontoado (conservatio)” (KANT, 1991 [1787], p. 235)

Pelo fato de, em seguida a esta passagem, no mesmo texto, Kant afirmar que a unidade e a articulação que se empenha em caracterizar se aplicam a sistemas de conhecimento e não a outros agregados – como, por exemplo, corpos de animais –, se poderia supor que sua arquitetônica não teria implicações para o que esta seção busca explorar. Afinal, conforme ficará cada vez mais evidente nas próximas linhas, o emprego que mais nos interessa da noção

54

Para maior aprofundamento na concepção de sistema em Condillac, v. HINE, 1979.

141

de sistema é exatamente quanto a organismos vivos, por ser primordial na cognição corpórea. Contudo, percebe-se que a exigência de critérios unificadores, assim como a interdependência entre as partes e destas com a totalidade, tais como destacadas em Condillac e Kant, são traços que permaneceram presentes nas utilizações mais recentes da noção de sistema. E embora o século 19 tenha presenciado a reafirmação do princípio unitário de um totalizador “sistema da ciência”, especialmente por parte do romantismo alemão e de Hegel, como destaca Nicola Abbagnano no verbete “Sistema” de seu Dicionário de Filosofia (ABBAGNANO, 2007 [1971], p. 908-910), ainda segundo este autor, o termo “sistema” foi e é empregado também sem relação com este significado, para indicar qualquer organismo dedutivo, mesmo que não tenha um princípio único corno fundamento. É o caso dos sistemas científicos que hoje se fala em matemática e lógica. Os sistemas hipotético-dedutivos, abstratos, axiomáticos, etc. não são sistemas por terem um princípio único; aliás, os seus princípios, que são os axiomas, devem ser independentes entre si, não devem poder ser deduzidos um do outro. São chamados de sistemas unicamente por seu caráter dedutivo, e no mesmo sentido fala-se de sistema numérico e, ás vezes, de “sistema de axiomas" para indicar um simples conjunto não contraditório de proposições primitivas (...). Isso significa que o uso dessa palavra perdeu o significado forte ou elogioso de discurso dedutivo (Ibid.)

Isto quer dizer que as transformações que afetaram a noção de sistema nos últimos séculos, quanto esta foi aplicada a conjuntos coerentes de ideias, nela preservaram o caráter de unidade dada por relações entre partes, mesmo renunciando à exigência de princípios unificadores. Mas a dispensa a tais princípios virá ainda de outra origem, no caso dos sistemas físicos. Vejamos como. Abbagnano, no mesmo verbete, ainda se refere a dois outros tipos de sistemas que não se restringem a um conjunto de ideias. O primeiro deles é “qualquer totalidade ou todo organizado” (ABBAGNANO, 2007 [1971], p. 909). Embora, evidentemente, tal definição possa abranger as totalidades em geral, inclusive as de ideias, a intenção do autor, evidenciada pelos exemplos apresentados, é a de tratar dos sistemas naturais: “sistema solar, sistema nervoso”. São sistemas componentes da natureza já referidos anteriormente, como os “sistemas de corpos” em Newton e Laplace. Entretanto, ao abordar esta acepção o autor identifica mais um aspecto muito importante para nossa investigação: Desse ponto de vista, às vezes se faz a distinção entre o sistema como conjunto contínuo de partes que têm inter-relações diversas e a estrutura ou a organização que os componentes dele podem assumir em determinado momento (Ibid.).

Trata-se do aspecto temporal: ao se referir às diferenças entre as configurações que as inter-relações das partes de um sistema podem assumir ao longo do tempo, Abbagnano salienta que algumas delas se mantêm, enquanto outras se modificam. Neste ponto, chegamos

142

a caracterizar um aspecto fundamental dos sistemas: são conjuntos cujos elementos possuem relações entre si e com o todo, nos quais algumas destas relações se modificam ao longo do tempo, e outras permanecem inalteradas, de modo a garantir a unidade característica do todo ao longo do tempo e sob transformações. Dito de outra forma, o modo particular como as relações fixas e as variáveis ocorrem em um dado sistema serve para caracterizá-lo. Este critério de definição dos sistemas será especialmente útil ao examinarmos as modificações do uso da noção até suas acepções na cognição corpórea. Constatado que a temporalidade é uma condição essencial para que se compreenda a unidade dos sistemas, deve se prosseguir na investigação de como outras questões foram colocadas historicamente quanto a ela. Abbagnano ainda apresenta uma terceira acepção de sistema, que corresponde àquela aqui abordada em primeiro lugar: “Qualquer teoria científica ou filosófica, especialmente quando se quer ressaltar seu caráter escassamente empírico. No séc. XVIII falava-se de ‘sistema do mundo’ para indicar as teorias cosmológicas”. (Id., Ibid., p. 910). Neste sentido, sistema, como já aludido acima quanto a Galileu, designa não somente a teoria, mas também seu objeto, não apenas a representação como igualmente o que se supõe o mundo. Contudo, como podemos extrair do que foi mencionado sobre os sistemas de Galileu, o mais importante nesta relação de representação é que o sistema de ideias destinado a representar o sistema do mundo possa expressar matematicamente, de maneira adequada, as relações internas que se considera estarem estabelecidas em seu objeto. Este é, também, o pressuposto de Newton e Laplace (NEWTON, 2009 [1686]; LAPLACE, 1824, [1749] e 1951 [1812]; DIJKSTERHUIS, 1986; p. 478). Quanto a Newton, é importante considerar a seguinte afirmação de Cassirer: O newtonianismo não pressupõe (...) senão a ordem e a legalidade perfeita da realidade empírica. Entretanto, essa legalidade significa que os fatos, como tais, não são um material simples, uma incoerente massa de detalhes, mas que se pode demonstrar, nos fatos e pelos fatos, a existência de uma forma que os penetra e os une. Essa forma apresenta-se como matematicamente determinada, estruturada e articulada segundo o número e a medida. Mas é justamente essa articulação que não pode ser objeto de uma antecipação conceitual; ela deve ser encontrada e demonstrada nos fatos. O encaminhamento do pensamento não vai, por conseguinte, dos conceitos e dos axiomas para os fenômenos, mas o inverso (CASSIRER, 1992, p. 26, citado em TAKIMOTO, 2013, p. 56).

Como se nota, Cassirer faz convergirem neste trecho duas características que Abbagnano apontou na história da noção de sistema: de um lado, o fato de o sistema teórico espelhar as relações constituintes do sistema como objeto de estudo; e, de outro, a dispensabilidade de princípios que antecipem, na teoria, a articulação interna da forma do objeto – já que esta última é encontrada e demonstrada na determinação empirista dos fatos.

143

Porém, o mais importante é que a convergência apontada por Cassirer revela a identidade das duas características: é justamente a confiança na forma coerente das relações internas do objeto que permite ao newtonianismo relativizar a necessidade da antecipação conceitual. A partir desta configuração, os sistemas físicos se caracterizam por relações internas suficientes para explicar sua unidade e sua estrutura. Estas relações internas são aquelas caracterizadas como racionais. Neste sentido, os sistemas físicos e os sistemas teóricos que os explicam possuem em comum uma estrutura racional (o que será retomado na próxima seção), condição que garante a inteligibilidade dos primeiros com o emprego dos segundos. Esta noção de razão como “poder primitivo” da verdade e da certeza, isto é, como correspondência entre os sistemas do mundo e os sistemas de ideias – o que, de certo modo, diminuirá a importância dos sistemas metafísicos criticados por Condillac –, se consolidará a partir do século 18, conforme se extrai das palavras de Elika Takimoto: A filosofia natural do século XVIII esteve de certa forma (...) vinculada ao paradigma metodológico da física newtoniana e sua aplicação foi generalizada. A grande ferramenta intelectual do conhecimento físico-matemático – a análise – foi considerada como um instrumento indispensável de todo o pensamento em geral. Diferentemente, por exemplo, de Descartes, Spinoza, Malebranche e Leibniz, autores de grandes sistemas metafísicos, que consideraram a razão como a região das “verdades eternas”, o século XVIII, de uma forma geral, confere à razão um sentido aparentemente mais modesto. A razão passa a ser considerada como um poder primitivo que nos leva a descobrir, a estabelecer e consolidar a verdade. E essa operação de assegurar-se da verdade constitui a condição necessária de toda a certeza verificável. Equivocam-se, porém, aqueles que acreditaram na falsa modéstia conferida à razão. Caberá a ela a responsabilidade da estrutura de todo edifício que compreende uma nova totalidade que ela mesma criará, ao levar as partes que constituem o todo, segundo regras que ela mesma promulgou. Enfim, nessas águas turbulentas – que correspondem ao novo método de filosofar – a “razão” assume o leme e passa a nos guiar para metas bem definidas (TAKIMOTO, 2013, p. 57-58 – grifos meus).

Esta racionalidade, tal como generalizada no século 18, e que, segundo o texto acima, seria característica de um determinado contexto histórico, é a principal característica dos sistemas compreendidos através do que tem sido chamado nesta seção de imagem mecanicista, que é expressa de forma exemplar pelo “sistema do mundo” de Laplace, proposto no início do século seguinte, amplamente discutido nos dois últimos séculos e já mencionado acima:

144

Devemos então considerar o estado presente do universo como o efeito de seu estado anterior e como a causa do que se seguirá. Dada por um instante uma inteligência que pudesse compreender todas as forças pelas quais a natureza é animada e a situação respectiva dos seres que a compõem – uma inteligência suficientemente vasta para submeter esses dados à análise – ela poderia abarcar na mesma fórmula os movimentos do maiores corpos do universo e os do átomo mais leve; para ela nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, estaria presente aos seus olhos. A mente humana oferece, através da perfeição que ela tem sido capaz de dar à astronomia, uma ideia fraca dessa inteligência. Suas descobertas em mecânica e geometria, acrescentadas à da gravidade universal, lhe permitiram compreender através das mesmas expressões analíticas os estados passados e futuros do sistema do mundo. Aplicando o mesmo método a alguns outros objetos de seu conhecimento, ela conseguiu relacionar leis gerais a fenômenos observados e prever aqueles que, dadas as circunstâncias, deveriam ser produzidos (LAPLACE, 1951 [1812], p. 5 – grifo meu).

O modelo de sistema do mundo de Laplace, como se percebe, não só estabelece uma ideia de universo matematicamente articulado em todos os seus aspectos e partes, mas também define como deve operar uma inteligência capaz de conhecer as regras que o articulam e determinam, de modo que se constitua em um objeto plenamente descritível e previsível em seus movimentos temporais, por tal inteligência a ele externa. Esta imagem racional de dupla determinação mecânica55 – do objeto “em si” e das características da fórmula de conhecimento que dá sua inteligibilidade – será questionada, de diferentes formas, pela Segunda Cibernética e pela cognição corpórea, tanto quanto dará origem, também de diferentes formas, às noções de sistema da primeira cibernética e do cognitivismo. Dito de outra maneira: aquilo que no modelo de Laplace se funde – as características mecânicas do sistema do mundo e do pensamento que pode compreendê-lo – no contexto das controvérsias que envolvem as duas cibernéticas e a duas orientações das ciências cognitivas terão tratamentos diversos. O próximo passo desta seção é esclarecer em que medida as características até aqui apresentadas da noção de sistema são semelhantes ou diferentes daquelas próprias da cibernética em diante. Isto exige também responder à questão: teria havido uma dupla e paralela evolução da noção de sistema, em que, de um lado, se formaram as acepções cibernéticas e derivadas, diferentes das tradicionais, e, de outro, estas últimas se mantiveram basicamente inalteradas até o presente? Após a consulta ao Dicionário de Filosofia de Abbagnano, que lançou luz sobre alguns relevantes aspectos históricos da noção de sistema, cabe verificar as definições da palavra que constam de outros dicionários e enciclopédias na 55

Não se aplica, aqui, a ideia de “mecânico” apenas no sentido cartesiano, qual seja, de um conjunto de relações causais entre corpos dadas exclusivamente por contato direto. O sentido da palavra neste trabalho é mais propriamente o conferido por Laplace, ou de causalidade determinística linear. Isto quer dizer que se admite numa cadeia causal deste tipo, por exemplo, forças gravitacionais ou eletromagnéticas que atuem sem que haja contato direto entre os corpos, desde que o sistema se caracterize por ter suas relações causais plenamente determináveis e previsíveis. O mesmo se pode dizer das relações matemáticas destinadas a representá-lo.

145

atualidade, considerando seu papel na fixação de significados correntes. Através destas definições, espera-se ser possível identificar especialmente o emprego científico recenteda noção de sistema, para confrontá-lo com as acepções empregadas a partir da cibernética. Do Oxford Dictionary extrai-se a seguinte relação de definições para “sistema” (em resumo): Sistema - um conjunto de coisas trabalhando juntas como partes de um mecanismo ou uma rede interconectada; um todo complexo; um conjunto de órgãos do corpo com uma estrutura comum ou função; o corpo humano ou animal, como um todo; a computação em um grupo de unidades de hardware relacionados ou programas, ou ambos, especialmente quando dedicado a uma única aplicação; um grupo de objetos celestes conectados por suas forças de atração mútuas, especialmente se movendo em órbitas em torno de um centro; um conjunto de princípios e procedimentos de acordo com o qual algo deve ser feito; um esquema organizado ou método; um conjunto de regras usadas na medição ou classificação, o planejamento ou o comportamento organizado (...) (OXFORD DICTIONARY)

Deste verbete podem ser colhidos três sentidos principais para sistema, a partir de um sentido técnico geral. O sentido geral é, como já foi aqui anotado a partir de outras fontes, o de um conjunto de partes interconectadas; mas o verbete reparte este sentido de sistema em três tipos: o físico, como um organismo ou um grupo de corpos celestes; o simbólico, como um plano, um método ou um regulamento; e uma combinação de ambos os tipos, como um computador ou uma rede de computadores, que possui um nível físico e um nível simbólico articulados. Por outro lado, a Encyclopaedia Britannica oferece uma definição de “sistema físico” que demonstra ser bastante precisa e conveniente para a elucidação de seu emprego nas ciências: Um sistema é uma parte do universo selecionada para estudar as alterações que ocorrem dentro dela em resposta a condições variáveis. Um sistema pode ser complexo, tal como um planeta, ou relativamente simples, como o líquido dentro de um copo. Aquelas porções de um sistema que são fisicamente distintas e mecanicamente separáveis de outras partes do sistema são chamadas fases (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA).

Enquanto a definição do Dicionário Oxford enfatiza os aspectos técnicos e usuais de sistema, a da Encyclopaedia Britannica caracteriza o conceito claramente como um objeto de estudo, dando relevo a dois aspectos: o de poder ser mais ou menos complexo; e sua mutabilidade – já assinalada acima – ser passível de ser produzida por condições provocadas externamente. A esta altura, deve-se ressaltar que é comum a todas as acepções de sistema mencionadas acima o fato de corresponderem a um objeto de estudo. Ou seja, quando todos os autores citados e as obras de referência pesquisadas utilizaram a palavra “sistema” se

146

referiam a um determinado objeto de investigação: fosse um objeto considerado como natural (como os “sistemas de corpos”, para Newton), ou como o próprio pensamento (como os “sistemas metafísicos”, para Condillac e o “sistema de conhecimentos” tratado por Kant na arquitetônica citada). Mas não apenas isso: tratava-se de um determinado tipo de objeto ao qual eram atribuídas características especialmente relevantes para sua observação, explicação e, em alguns casos, produção. Será importante buscarmos reunir estas características para verificarmos se, e em que medida, são reconhecíveis no emprego da noção de sistema nas duas fases da cibernética e, mais importante, nas duas orientações das ciências cognitivas que aqui estão em estudo: a cognitivista e a corpórea. A importância desta busca decorre da possibilidade de estas características servirem de guia para se revelarem as semelhanças e diferenças entre os modos como estas correntes científicas conceituam a cognição humana, quer como um sistema em si, quer como um sistema composto por subsistemas – mas, sobretudo, quanto à natureza de tais sistemas ser ou não assimilável ao que tem sido denominado neste trabalho de imagem mecanicista. Com este objetivo, é necessário, pois, fixar uma primeira definição do conceito de sistema, tornada possível pelo que até o momento se expôs, correspondendo a um sentido que podemos chamar de “pré-cibernético”: Definição geral de sistema - Totalidade cujas partes são interdependentes, sujeita a modificações ao longo do tempo tais que não destruam sua unidade, constituindo objeto ideal ou físico, mais ou menos complexo, de estudo ou produção.56 A partir desta definição geral, na qual se destaca o caráter de preservação temporal da unidade de uma multiplicidade, deve-se buscar elucidar em seguida como a questão da unidade do sistema, no tempo e no espaço, se explicou nas cibernéticas, de modo a ter influenciado a cognição corpórea. Além disso, é fundamental investigar se, e de que modo, a noção de sistema teria sido afetada por esta divisão. Assim, cabe nos aproximarmos da acepção de sistema própria da primeira cibernética para compreendermos que divergências (não necessariamente na forma de discordâncias) quanto a seu emprego teriam proporcionado construções como, de um lado, o sistema simbólico abstrato de Newell e Simon acima referido – bastante característico do cognitivismo – e, de outro, a partir da Segunda

56

A partir desta definição, não é sistema um conjunto em que as relações entre os seus elementos não seja fundamental para caracterizá-lo.

147

Cibernética, o sistema distinguido pelas noções de auto-organização, emergência e complexidade. Pamela McCorduck sintetiza no seguinte trecho que modalidade de sistema a primeira cibernética estabeleceu, como inovação em relação à noção newtoniana de sistema acima referida, e que proporcionou a concepção do sistema de processamento de informações própria da primeira feição das ciências cognitivas: A cibernética registrou a passagem de um modelo dominante, ou conjunto de explicações para os fenômenos, para outro. Energia – a noção central para a mecânica newtoniana – foi agora substituída por informação. As ideias da teoria da informação, como codificação, armazenamento, ruído, e assim por diante, forneceram uma melhor explicação para toda uma série de eventos, desde o comportamento de circuitos eletrônicos até o comportamento de uma célula replicante. Uma razão para isto é que a antiga mecânica newtoniana lidou com sistemas conservativos e fechados, enquanto que o modelo da teoria da informação pôde lidar com sistemas abertos, isto é, sistemas acoplados ao mundo exterior, tanto para a recepção de impressões quanto para o desempenho de ações, e nos quais a energia não é a questão central. (MCCORDUCK, 2004, p. 104-105 - grifo meu).

Esta passagem deixa claro que considerar os sistemas como abertos, tal como, segundo a autora, procedeu a cibernética, foi necessário para o nascimento das ciências cognitivas clássicas, já que os sistemas deveriam processar informações, o que implica troca de informações com o exterior. Contudo, atribuir abertura aos sistemas, além de decorrer da necessidade de se apresentarem soluções para problemas que os usos anteriores da noção não enfrentaram, foi uma atitude adotada também – como veremos – pela Segunda Cibernética, embora aos poucos o mero processamento de informações deixasse de ser a exigência da abertura. Assim, sem contar a abertura, que características essenciais os sistemas tiveram na primeira cibernética, suficientes para permitir perceber suas diferenças em relação à concepção newtoniana de sistema, mas insuficientes para os propósitos da Segunda Cibernética e de outras perspectivas afinadas com esta? E haveria outras características, como a abertura, que embora também exigidas aos sistemas caracterizados pela Segunda Cibernética, tivessem sentido diferente daquele empregado pela primeira cibernética? Margaret Boden nos relembra a seguinte definição de cibernética, na qual uma determinada característica dos sistemas é associada aos primeiros cibernéticos: Cibernética é o estudo dos “sistemas causais circulares”. Estes são sistemas de autorregulação, em que a informação sobre os resultados das ações do sistema é alimentada de volta, de modo a cessar, adaptar, ou prolongar a atividade original. Aos olhos dos primeiros cibernéticos, eles variaram de máquinas a vapor às sociedades humanas (BODEN, 2006, p. 198- grifo meu).

Esta definição encontra forte respaldo no artigo de Arturo Rosenblueth, Norman Wiener e Julian Bigelow, “Behavior, purpose and teleology”, de 1943, por ser considerado

148

como precursor da cibernética e das ciências cognitivas. A questão original apresentada neste artigo era exatamente a da retroalimentação intencional (purposeful feedback), forma de autocontrole observada no comportamento de algumas classes de objetos. O importante, neste momento, é compreender que esta propriedade, em tal classe de objetos, pressupõe a condição destes últimos de sistemas – mas começa a traçar o tipo de sistemas que já não corresponde mais àquele usual até o final do século 19. Isto quer dizer que quando os autores usaram como exemplo, no artigo mencionado, o caso do sistema nervoso, o emprego da palavra “sistema” já trazia as qualidades específicas que aqui buscamos definir como intrínsecas ao pensamento cibernético. Seriam sistemas em relação aos quais se questionou a condição de serem ou não fechados – para atribuir-lhes a propriedade de abertos – e, principalmente, nos quais se identificou que o fator de abertura deveria incluir que os sistemas também se “abrem” para eles mesmos no tempo, de modo a que alguns outputs de seu comportamento se tornam inputs de seus momentos futuros. Como demonstra o artigo de Rosenblueth et al, trata-se assim, por um lado, de um processo cujo sentido temporal é essencial para corroborar a sua intencionalidade – uma vez que o propósito de seu comportamento presente se traduz em situação futura. Por outro lado, este processo somente pode ser teleológico, ter um propósito – como o de autocontrole – voltado para si mesmo, se sua linearidade57ao longo do tempo resultar numa circularidade, ao ter efeitos sobre a conservação e os propósitos teleológicos do mesmo objeto: do mesmo sistema. O autocontrole e o feedback foram temas trazidos às ciências e ao conceito de sistema como solução para problemas tecnológicos – o que é evidenciado no artigo ora em foco. Isto serve para reiterar que o enfrentamento de problemas teve papel crucial nas transformações conceituais que são aqui investigadas – ainda que nem sempre estas soluções tenham tido efeito estritamente em relação aos problemas que as suscitaram, frequentemente acontecendo de servirem a outras linhagens de problemas, como se demonstrou no caso da máquina de Turing. E, evidentemente, as ideias de autocontrole – ou de autorregulação – e circularidade antecipam a de auto-organização, mas explicar o processo de organização exigiria mais do que agregar vários processos de controle, porque novos problemas se colocam neste caso, de tal modo que uma agregação deste tipo – sem uma organização geral – não seria solução para eles. Para constatarmos de que maneira esta observação vai ao encontro de problemas e disputas efetivamente enfrentados no âmbito da cibernética, devemos retornar ao período das Conferências Macy e do Simpósio Hixon.

57

Não se está empregando o termo “linearidade” para restringir a análise a sistemas lineares, dela excluindo sistemas não-lineares. A linearidade, neste caso, aplica-se à linha do tempo no modo que se observa em sistemas mais simples (WIENER, 1961 [1948]. p. 97-98).

149

Porém, antes, há dois breves passos a serem dados: primeiro, é preciso resumir uma acepção específica de sistema, estabelecida pela primeira cibernética, com vistas a compreender que qualidades no conceito foram então acrescentadas ou modificadas, e quais ainda o seriam; e, também, como decorrência da acepção de sistema na cibernética, ressaltar as implicações de, nela, ser peculiar a questão do fluxo de informações. Quanto à acepção específica de sistema da primeira cibernética, propõe-se a seguinte: Definição de sistema da primeira cibernética - Totalidade aberta, com suas partes interdependentes, sujeita a modificações ao longo do tempo tais que não só não destruam sua unidade, mas que também a preservem mediante autocontrole e autorregulação, em parte mediante fluxo de informações, constituindo objeto ideal ou físico, mais ou menos complexo, de estudo ou produção. O passo decorrente sublinha um aspecto envolvido nas questões debatidas no período das Conferências Macy e que derivaram na Segunda Cibernética. Trata-se do fato já assinalado acima na citação de Pamela McCorduck, e reforçado, da seguinte forma, por Margaret Boden: “O foco da cibernética foi dirigido ao fluxo de informações, e não ao de matéria ou de energia envolvidas. E porque a informação é uma noção abstrata, pode ser aplicada a muitos tipos diferentes de sistema – incluindo até mesmo as mentes” (Ibid.). Cada uma destas frases faz uma afirmação de extrema importância para a presente pesquisa. A primeira delas evidencia a circunstância de que, nos sistemas de autorregulação tais como concebidos na primeira cibernética, o processo de feedback deve ser compreendido essencialmente como fluxo de informação. A segunda afirmação aponta para outro tipo de sistema, que decorrerá dos sistemas de autocontrole: os sistemas simbólicos abstratos, de processamento exclusivamente de informações – que já foi objeto de análise e definição no primeiro capítulo deste trabalho como modelos da cognição humana. A primeira questão que estas observações de Boden suscitam é: a Segunda Cibernética fez alguma objeção à ênfase dada pela primeira cibernética, nos sistemas que estudou, ao fluxo de informação, ou seja, ao fluxo de um elemento abstrato? Mas outra indagação já se anuncia na esteira dessa: no sentido em que a cognição corpórea se opõe à imagem da cognição como processamento de informação, teria ela de algum modo retomado o sentido de sistema como fluxo de matéria e de energia? Formuladas estas interrogações, tem-se maior clareza investigativa para que sejam examinados certos fatos ocorridos nas Conferências Macy, no Simpósio Hixon, ou a eles

150

contemporâneos, preponderantes na diferenciação da concepção de sistema entre a primeira e a Segunda Cibernética, e que, como já se adiantou, dizem respeito à imagem mecanicista dos seres vivos e da cognição. Trata-se de estudar como na Segunda Cibernética ocorreram as seguintes influências principais – que também afetaram a cognição corpórea, por contestarem, ao menos em parte, pressupostos que levaram ao cognitivismo: a Teoria Geral dos Sistemas, apresentada contemporaneamente às Conferências Macy, por Ludwig Von Bertalanffy; as posições de Paul Weiss, discutidas no Simpósio Hixon e em encontros posteriores (DUPUY, 1996 [1994]); e as já apontadas questões polêmicas levadas por W. Ross Ashby às Conferências Macy. A Teoria Geral dos Sistemas, diferentemente do que o nome possa sugerir, não consistiu em um estudo sobre os sistemas, quaisquer que tivessem sido – ou viessem a ser – na ciência e na filosofia até então. Não se propôs, por exemplo, a discutir os “sistemas do mundo” ou os “sistemas de corpos” da tradição newtoniana, juntamente com outras aplicações do conceito, como o sistema nervoso, os sistemas de equações ou os sistemas de ideias, buscando descrever o que seria típico e comum a todas elas; em vez disso, apresentou-se como uma contestação e uma alternativa ao padrão mecânico de a ciência unificar suas teorias e à aplicação destes padrões aos sistemas vivos. Sendo assim, foi, também, uma nova abordagem dos sistemas diante das formas como eram predominantemente tratados até então. Sobre a Teoria Geral dos Sistemas, levemos em consideração, de início, a seguinte passagem: Ao longo da década de 1950 os pensadores cibernéticos ligaram-se à escola da Teoria Geral dos Sistemas (TGS), fundada aproximadamente no mesmo período por Ludwig Von Bertalanffy como uma tentativa de construir uma ciência unificada, mediante a descoberta dos princípios comuns que regem os sistemas abertos, evolutivos. A TGS estuda sistemas em todos os níveis de generalidade, enquanto cibernética se concentra mais especificamente em sistemas direcionados a objetivos, funcionais, que exibam algum tipo de relação de controle. (HEYLIGHEN & JOSLYN, 2001).

Embora este trecho afirme que a influência da Teoria Geral dos Sistemas sobre a cibernética ocorreu na década de 1950, os trabalhos de Von Bertalanffy em biologia teórica que tiveram importância no quadro da Segunda Cibernética se originaram pelos menos vinte anos antes (VON BERTALANFFY, 1950, p. 7; STENGERS, 1985, p. 68; CAPRA, 1996). Contudo, Von Bertalanffy somente anunciou uma teoria geral para os sistemas nos anos 1950. É preciso assinalar que Von Bertalanffy não participou de eventos aqui considerados decisivos para a cibernética e as ciências cognitivas como as Conferências Macy e o Simpósio Hixon. A menção à Teoria Geral dos Sistemas no quadro da Segunda Cibernética, portanto, se deve à influência de Von Bertalanffy e da Teoria Geral dos Sistemas nas controvérsias que

151

aqui são examinadas, caracterizada por fatos como: a militância de Von Bertalanffy em favor de sua doutrina, representada, entre outros aspectos, pela criação da “Society for the Advancement of General Systems Theory”58, em 1954, por ele juntamente com Ralph Gerard, Kenneth Boulding e Anatol Rapoport no Stanford Center for Advanced Study in the Behavioral Sciences; a participação de Ralph Gerard nas Conferências Macy, que será à frente relatada brevemente (DUPUY, 1996 [1994]; ABRAHAM, 2002); a tendência posterior de assimilação da Teoria Geral dos Sistemas ao pensamento sistêmico (CIRNE-LIMA, s/d; CAPRA, 1996; ROSNAY, 2000); e, especialmente, as menções feitas por Jean-Pierre Dupuy e Isabelle Stengers ao peso das ideias de Von Bertalanffy na concepção que, em consonância com a Segunda Cibernética, pôs em questão a imagem mecanicista para explicar a dinâmica dos seres vivos (DUPUY, 1996 [1994], p. 176-177; STENGERS, 1985). Para investigar o papel da Teoria Geral dos Sistemas na constituição da cognição corpórea, através das questões colocadas pela Segunda Cibernética, deve-se partir do artigo de Von Bertalanffy “An outline of General System Theory”, de 1950 – e não do seu livro General System Theory: Foundations, development, applications, de 1968, que, embora constitua uma obra mais alentada e completa, foi publicado posteriormente ao surgimento das controvérsias iniciais estudadas nesta seção. O artigo, que possui o tom de um manifesto, defendeu basicamente os seguintes pontos: 1) Era inadequada a tendência mecanicista – laplaciana – de a ciência buscar explicar os fenômenos através da sua redução a partes elementares, estudadas isoladamente, isto redundando na aplicação de leis físicas às demais ciências; 2) Por outro lado, a opção de valorizar o todo, crítica ao reducionismo e recente à época do artigo, carecia de precisão e rigor e tendia a ser vaga e mística; 3) Era então necessário que se produzisse uma mudança geral na atitude científica, capaz de dar conta não apenas das partes de um sistema, mas também das relações e interações entre elas, ao assumir a totalidade como organização dinâmica, e não mero agregado – mas de forma rigorosa e lógico-matemática, comprometida com a garantia de exatidão; 4) Para tal, a solução decorreria da criação de uma Teoria Geral dos Sistemas, que produziria leis gerais dos sistemas que, por sua vez, refletiriam padrões subjacentes, revelando a correspondência formal e a homologia lógica de vários

58

Atualmente, International Society for the Systems Sciences (ISSS), v. em http://isss.org/world/about-the-isss.

152

tipos de sistemas, desde os mais simples aos mais complexos, sem reduzir, porém, os padrões destes últimos aos dos primeiros; 5) Por recusar o reducionismo da imagem mecanicista dos sistemas, a Teoria Geral dos Sistemas também seria capaz de enfrentar novos problemas, que não apareciam na física, mas eram sobretudo característicos dos sistemas vivos. Sendo assim, a Teoria Geral dos Sistemas, ao mesmo tempo em que se propôs a ser uma nova doutrina geral e uma nova metodologia hipotético-dedutiva para todas as ciências, teve sua proposição provocada pela incapacidade, atribuída por Von Bertalanffy à imagem mecanicista, para lidar com um tipo inédito de problema: aquele decorrente da necessidade de explicar o comportamento típico dos sistemas vivos. Isto porque, segundo ele, os sistemas vivos não se comportam como um agregado de sistemas físicos, nem mantêm o mesmo padrão de transformações destes últimos ao longo do tempo, e a imagem mecanicista não estava sendo capaz de explicar este comportamento. Nas palavras de Von Bertalanffy, Um forte contraste entre a natureza inanimada e animada parece existir. De acordo com a segunda lei [da termodinâmica], eventos físicos são direcionados para um nivelamento, por baixo, das diferenças e para estados de desordem máxima. No desenvolvimento orgânico e na evolução, uma transição para estados de ordem e diferenciação mais elevados parece ocorrer. Muitas vezes tem sido assumido que, por conseguinte, uma tendência para o aumento da complicação é uma característica primária dos seres vivos, em contraste com a natureza inanimada. (...) Estes problemas ganham novos aspectos se passamos de sistemas fechados, levados em conta pela termodinâmica clássica, para sistemas abertos. A entropia pode diminuir na evolução de tais sistemas; em outras palavras, estes sistemas podem desenvolverse espontaneamente para uma maior heterogeneidade e complexidade (VON BERTALANFFY, 1950, p. 11).

Este “salto” – ou aparente descontinuidade – entre leis físicas e leis biológicas não foi, contudo, tratado por Von Bertalanffy como misterioso ou inexplicável, nem usado como justificativa para se renunciar a uma unificação racional da natureza. Para ele, esta suposta desunidade da ciência denunciava um modo inadequado de se considerarem suas leis. Embora ele deixe em aberto “a questão da ‘redução final’ das leis da biologia (e dos outros reinos nãofísicos) às da física”, (Ibid., p. 12), afirma: A visão de mundo mecanicista encontrou seu ideal no espírito laplaceano, isto é, a concepção de que todos os fenômenos são, em última instancia, agregados de ações fortuitos de unidades físicas elementares. Teoricamente, esta concepção não conduziu a ciências exatas fora do campo da física, ou seja, às leis dos níveis mais elevados de realidade – biológicos, psicológicos e sociológicos. Na prática, suas consequências foram fatais para nossa civilização (Ibid., p. 13).

Mas há outra questão enfrentada por Von Bertalanffy que é decisiva para a presente pesquisa. Ele não apenas recusou o que chamou de misticismo das posições que, em geral,

153

combatiam a imagem mecanicista dos sistemas na biologia, mas contestou diretamente uma teoria que tentara, décadas antes, explicar certos padrões dos seres vivos aparentemente não adequados aos princípios da física, a partir de experimentos em embriologia. Trata-se do vitalismo proposto por Hans Driesch, como princípio apriorístico da vida (DRIESCH, 1908). Segundo Driesch e Von Bertalanffy, os estados finais dos sistemas vivos, ao contrário dos que chama de inanimados, não são determinados pelos estados iniciais. Esta característica, por ambos denominada “equifinalidade”, foi explicada por Driesch como uma propriedade dada por um fator não sujeito à explicação científica, a ”enteléquia”59. Partindo do exemplo de um sistema do tipo laplaceano, discute Von Bertalanffy: Na maioria dos sistemas físicos o estado final é determinado pelas condições iniciais. Tome-se, por exemplo, o movimento em um sistema planetário onde as posições num tempo t são determinadas por aquelas em um tempo t0, ou um equilíbrio químico em que as concentrações finais dependem dos valores iniciais. Se as condições iniciais ou o processo são modificados, o estado final é alterado. Fenômenos vitais mostram um comportamento diferente. Neles, em um sentido amplo, o estado final pode ser alcançado a partir de condições iniciais diferentes e de formas diferentes. Tal comportamento chamamos de equifinal. Assim, por exemplo, o mesmo resultado final, ou seja, uma larva típica, é alcançado por um germe normal completo do ouriço-do-mar, por meio germe após separação experimental das células, por dois germes após a fusão ou depois de translocações das células. É bem conhecido que apenas este experimento foi considerado, por Driesch, a prova principal do vitalismo. De acordo com Driesch, tal comportamento é inexplicável em termos físico-químicos. Um sistema físico-químico não teria o mesmo desenvolvimento – neste caso, a produção de um organismo inteiro, uma vez anteriormente dividido ou lesionado. Este comportamento extraordinário só pode ser dar pela ação de um fator vitalista, a enteléquia, essencialmente diferente das forças físico-químicas e que governa os processos de previsão da meta a ser alcançada. É, portanto, uma questão de fundamental importância se a equifinalidade é uma prova do vitalismo. A resposta é que não. (VON BERTALANFFY, 1950, p. 8).

Como foi visto anteriormente, para recusar a explicação vitalista do desenvolvimento dos sistemas vivos, Von Bertalanffy advogou uma nova característica para eles: são sistemas abertos que trocam matéria com o ambiente. E esta é uma condição de sua equifinalidade. Sendo assim, o caráter de abertura dos sistemas vivos ganha um sentido significativamente diferente não somente daquele dos sistemas newtonianos fechados – o que é mais óbvio –, mas também dos sistemas abertos estudados pela primeira cibernética que, como foi assinalado acima, se interessou pela abertura dos sistemas sobretudo com respeito ao fluxo de informações, carregadas por energia, e não chegou a se aprofundar na investigação de fatos aparentemente anômalos como a equifinalidade.

59

Este é um termo que, em Aristóteles, significa o ato final ou perfeito, a realização acabada da potência, também associado à alma de um corpo orgânico. Para Driesch, a enteléquia é o princípio espiritual dos seres vivos, irredutível a causas físico-químicas (ABBAGNANO, 2007 [1971], p. 334).

154

De um lado, Von Bertalanffy ressalta a qualidade dinâmica dos sistemas vivos, cujo equilíbrio não é o equilíbrio térmico característico dos sistemas fechados, e sim o estado “estacionário” que se mantém graças a ser também fluxo permanente de mudanças; isto é, trata-se de um equilíbrio que depende justamente da contínua troca de matéria e energia do sistema com o exterior e de incessantes transformações internas a ele. Além disso, trata-se de uma autorregulação metabólica que não implica apenas um servomecanismo informacional, como na imagem de sistema da primeira cibernética. Mas, de outro lado, uma notável inovação de Von Bertalanffy reside na sua aposta – ainda que não muito segura – na hipótese de uma termodinâmica própria dos sistemas abertos, baseada nas teorias de Ilya Prigogine (VON BERTALANFFY, 1950, p. 12). Von Bertalanffy reportou-se, no artigo de 1950, ao livro de Prigogine Étude thermodynamique des phénomènes irréversibles, de 1947, que trazia seu teorema de produção mínima de entropia, aplicável aos estados estacionários de não equilíbrio próximos ao equilíbrio. Embora demonstrasse confiança ainda reticente60 em relação a este teorema, Von Bertalanffy chegou a afirmar que Prigogine demonstrou que os estados estacionários dos sistemas vivos são definidos pela produção mínima de entropia. Isto ao menos revela sua confiança de que a capacidade de sistemas vivos de se desenvolverem espontaneamente para uma maior heterogeneidade, diferenciação e complexidade – ou seja, a produção de ordem a partir da desordem – é explicável com base em leis científicas, e não um contrassenso insondável pela ciência. Mas, também, permite que se chame a atenção para a questão sobre até que ponto, hoje, já se considera devidamente explicada cientificamente a produção de ordem a partir da desordem em seres vivos, ou mesmo se tal exigência de explicação ainda se faz. 2.1.3. A Teoria Geral dos Sistemas e a noção de auto-organização Nota-se que, a partir de sua crítica tanto à imagem mecanicista quanto ao vitalismo, Von Bertalanffy não propôs tão somente uma nova forma de unificação da ciência e da natureza, ou apenas uma abordagem inovadora dos sistemas. O que ele defendeu foi uma terceira via para explicar o desenvolvimento, no tempo, dos sistemas vivos – ainda que não tenha chegado a plenamente elaborá-la. 60

No artigo, Von Bertalanffy adverte que o fato de as pesquisas sobre sistemas abertos ser recente recomenda que, sobre elas, caiba no texto a citação de “apenas alguns pontos de importância geral e filosófica” (VON BERTALANFFY, 1950, p. 7). Ainda no livro de 1968, o teorema de produção mínima foi tratado por Von Bertalanffy como aplicável somente a condições restritivas (VON BERTALANFFY, 1968, p. 151). De qualquer modo, Prigogine somente apresentaria uma formulação matemática determinista da termodinâmica dos sistemas abertos e das estruturas dissipativas mais tarde.

155

Esta tentativa de criar uma terceira via é o que acentua Isabelle Stengers, já caracterizando a teoria de Von Bertalanffy como organicista – tal como identificada por ela em obra do autor anterior à aqui examinada – e a localizando no quadro que esta seção busca delinear: Os teóricos da cibernética opõem usualmente a “causalidade circular” à “causalidade linear” dos físicos. A história da embriologia desenvolveu, ao longo do século 20, uma terceira noção de causalidade que muitos, seguindo Von Bertalanffy, (Kritische Theorie der Formbildung, Berlin: Borntraeger, 1928) qualificarão de organicista. O organicismo busca se distinguir de doutrinas a priori, de tipo “vitalista” ou “holista”, apontando para problemas que os biólogos não previram nem desejaram, mas que lhes foram impostos pelo estudo do desenvolvimento dos seres vivos (STENGERS, 1985, p. 68).

Assim, verifica-se que os sistemas, para a parte da Segunda Cibernética afinada com Von Bertalanffy (e Von Foerster), adquirem uma terceira característica central, além daquelas dos sistemas mecanicistas (causalidade unidirecional) e dos sistemas da primeira cibernética (causalidade circular): a causalidade organicista, que será uma ideia cara à cognição corpórea, ainda que por ela transformada. Esta nova imagem apresenta duas descontinuidades correlatas: uma, aquela identificada em seus objetos de estudo na natureza, e que se aplica à dinâmica de desenvolvimento dos seres vivos em relação aos processos inanimados subjacentes, recusando claramente o reducionismo fisicalista; outra, aquela apontada em seus objetos de estudo que são as próprias teorias sobre a natureza, e que se aplica à dinâmica de compreensão da natureza, significando uma guinada no estudo dos sistemas. Esta guinada, na medida em que, nela, é crucial a ideia de equilíbrio estacionário dinâmico, anuncia duas das qualidades dos sistemas que a presente investigação vem considerando como fundamentais para a cognição corpórea: a auto-organização e a complexidade. Um dos efeitos das ideias de Von Bertalanffy para as ciências cognitivas será, como se verá adiante, a adoção por parte da cognição corpórea – em especial pela abordagem corpóreo-enativa – da noção de que a cognição é um processo plenamente envolvido na dinâmica de manutenção da vida através de formas de equilíbrio dependentes de permanente transformação. Esta imagem se contrapõe diretamente à cognitivista, assim como ao reducionismo mecanicista que para alguns, como Jean-Pierre Dupuy, ainda era forte na primeira cibernética. Porém, segundo este autor, outras controvérsias se traduziram em embates mais frontais – o que se passará a expor. A contribuição do embriologista experimental e biólogo teórico Paul Weiss à constitituição da imagem não mecanicista dos sistemas biológicos se deu de forma direta no Simpósio Hixon, em 1948. De acordo com Dupuy, o confronto

156

envolveu por um lado, Warren McCulloch, por outro, um conjunto de pesquisadores composto pelos neurofisiologistas Karl Lashley e Ralph Gerard, pelos psicólogos Wolfgang Köhler e Heinrich Klüver e, sobretudo, pelo embriologista Paul Weiss. (...) A concepção apresentada por Weiss interessa-nos ao mais alto ponto, porque anuncia, em certa medida, as teorias da autopoiese e da autonomia que serão desenvolvidas pela Escola Chilena da auto-organização (Maturana e Varela) (DUPUY, 1996 [1994], p. 172-173).

Neste trecho, Dupuy menciona dois pontos importantes, além de anunciar a relevância das posições de Weiss. O primeiro é que McCulloch teria se tornado, então, o representante, dentre os cibernéticos, da posição reducionista. O segundo é que Weiss teria contraposto a McCulloch uma concepção precursora da autopoiese. Isto antecipa uma divergência de McCulloch com Humberto Maturana (que colaborou diretamente com o primeiro) e Francisco Varela, além daquela que opôs o modelo lógico-proposicional da cognição à noção biológica de conhecimento destes dois autores: trata-se do modo como Maturana e Varela modificaram a ideia inicial de epistemologia experimental de McCulloch (VARELA, 1996; FROESE, 2010 e 2011), e que será alvo de análise adiante. Mas o que mais conta neste momento é ressaltar que, para Dupuy, primeiro Weiss “vai, ante a biologia molecular em ascensão, opor-se ao reducionismo e ao determinismo da informação genética, bem como à conquista da biologia pela cibernética” (DUPUY, 1996 [1994], p. 175); e, em segundo lugar – mas ainda mais importante para este trabalho por se tratar de posição valiosa para a cognição corpórea –, defenderá a noção de autonomia do sistema nervoso. Ainda de acordo com a narrativa de Dupuy sobre o Simpósio Hixon, Weiss, em réplica a afirmação de McCulloch em uma palestra sobre a percepção depender exclusivamente da veracidade ou falsidade de um estímulo dado ao globo ocular, defende o papel constitutivo do organismo sobre o estímulo. Nas palavras de Dupuy, Duas concepções radicalmente diferentes contrapõem-se aqui, precisa ele [Weiss]: aquela que faz do sistema nervoso central uma simples máquina de transformar mensagens de entrada em mensagens de saída; e aquela que o considera um sistema que tem sua coerência interna própria; cujas características não são o reflexo das estimulações sensoriais. (...) O que importa é dar finalmente o “golpe de misericórdia” na velha ideia da psicologia associacionista de que é a estrutura do input que determina a estrutura do output. O que não quer dizer, obviamente, que o sistema nervoso esteja isolado do mundo exterior. Simplesmente, o input só age como gatilho ou detonador, que “escolhe” entre diversos modos de funcionamento autônomo do sistema e eventualmente, os altera (DUPUY, 1996 [1994], p. 181).

Numa primeira análise, o que estava em jogo no Simpósio Hixon, de acordo com Dupuy, era uma controvérsia fundamental para a presente pesquisa: aquela que opunha o modelo lógico-proposicional, expresso pela imagem do cérebro como dispositivo processador de informações mediante a operação de um nível simbólico-mecânico desencarnado, à

157

concepção do cérebro como um órgão corporal que interfere ativamente na cognição, e na qual não há lugar para um nível simbólico apriorístico e desencarnado, a não ser como abstração a posteriori. Evidentemente, McCulloch era apontado como defensor da primeira posição, demonstrando com isso um reducionismo lógico da cognição.

Porém, esta

divergência revela outra, a ela subjacente: a de que a redução da cognição ao nível lógico supunha um funcionamento mecânico também do cérebro, tal como já foi visto anteriormente ser a suposição básica de McCulloch e Pitts, expressa no artigo de 1943, bastante comentado no primeiro capítulo deste trabalho, o que, de acordo com Dupuy, fazia parte da contestação expressa por Weiss no Simpósio Hixon. Para Dupuy, esta é uma inferência que se reforça com base em formulação posterior de Weiss. Na descrição de Dupuy, Weiss afirmou algo que se aproximou das posições de Bertalanffy sobre a descontinuidade observada nos sistemas vivos, embora expressa de outra forma. Dupuy faz menção à seguinte passagem de Weiss, em favor de sua suposição: Considerando-se a célula como uma população de partes de várias magnitudes, a regra de ordem é objetivamente descrita pelo fato de que o comportamento resultante da população como um todo é infinitamente menos variante de momento a momento do que são as atividades momentâneas de suas partes. Apesar do fluxo contínuo de componentes, tanto em relação à composição quanto à localização, o sistema como um todo conserva o seu caráter. Pequenas moléculas entram e saem, macromoléculas se partem e são substituídas, partículas de perdem e ganham constituintes macromoleculares, se dividem e se fundem, e todas as peças se movem em um momento ou outro, de forma imprevisível, de modo que é seguro afirmar que em nenhum momento na história de uma determinada célula, e muito menos em estágios comparáveis de células diferentes, jamais as mesmas constelações de partes vão precisamente se repetir. Por outro lado, no entanto, não se encontra esta singularidade, portanto imprevisibilidade, no preciso estado e distribuição de componentes refletidos no sistema resultante total, cujo padrão geral e comportamento (ou o que geralmente se refere como "organização'') permanecem relativamente inalterados, portanto, previsíveis. Isto nos força a concluir que, embora os membros individuais da população molecular e partículas tenham um grande número de graus de liberdade de comportamento em direções aleatórias, a população como um todo é um sistema que restringe esses graus de liberdade, de tal maneira que o seu comportamento conjunto converge para uma resultante não aleatória, mantendo o estado da população, como um todo, relativamente invariante (WEISS, 1968, p. 6 – grifos do autor)

Esta importante questão apresentada por Weiss recebe a seguinte complementação de Isabelle Stengers, aplicável à discussão entre McCulloch e Weiss: “O verdadeiro problema é saber como o comportamento do sistema nervoso pode ser estável, muito mais estável do que as estruturas moleculares que o produzem” (STENGERS, 1985, p. 74). Pode-se notar que a questão proposta por Weiss tem correspondência com aquelas levantadas por Bertalanffy, na medida em que, mesmo diante de um comportamento mais variado e incerto de suas partes, o

158

sistema vivo estabelece um padrão mais estável para si mesmo, o que lhe permite se contrapor à tendência de aumento de indiferenciação e entropia atribuída aos sistemas inanimados. Dito de outra forma: embora as menores partes do sistema vivo – no caso em análise, o sistema corresponde à célula, mas também aos agregados de células como o sistema nervoso – ainda se comportem como seres inanimados, sua aglutinação orgânica adquire um padrão diverso, de tal modo que “níveis de integração superiores não são redutíveis aos níveis inferiores” (DUPUY, 1996 [1994], p. 182). Na verdade, Dupuy afirmou algo que vai além: para ele, Weiss enxerga nesta diferença de padrões uma causalidade mútua, em que o todo também determina e restringe o comportamento das partes, estabilizando-o, e antecipando aquilo que mais tarde será chamado de causalidade “top-down”

61

, ou “descendente”. Dupuy chega a

chamar essa mútua causalidade de codeterminação e a identificá-la com o que Varela denomina, segundo Dupuy, “princípios de autonomia biológica”. A autonomia viria do fato de o todo não se subordinar às partes e nem ao exterior, contrariando a concepção “bottom-up”, ou “ascendente”, “que consiste em partir de elementos completamente especificados, bem como de suas conexões, e em deduzir daí as propriedades da totalidade que eles constituem” (DUPUY, 1996 [1994], p. 198). É preciso assinalar que, neste momento, as divergências entre a primeira e a segunda cibernética se tornam mais evidentes e radicais. Conforme a interpretação de Dupuy, a primeira “cibernética falhou neste ponto, justamente quando colocava suas conferências fundadoras sob o signo da ‘causalidade circular’” (DUPUY, 1996 [1994], p. 183)62. Neste sentido, a causalidade circular da primeira cibernética constitui algo muito mais simples do que a codeterminação que se configura com a Segunda Cibernética – se Weiss for considerado, como tem sido feito aqui, uma autor afinado com esta abordagem. Além disso, acrescentada às formulações de Von Bertalanffy, a proposição de Weiss sobre a relação entre as partes e o todo de um sistema vivo contribui para que se compreendam melhor as profundas diferenças entre as noções de sistema de matriz newtoniana, aquela comum à primeira cibernética (e que foi influente no cognitivismo) e as que foram precursoras dos sistemas auto-organizados, e dos dotados de emergência e complexidade. Numa análise que

61

Para um estudo sobre este tema, afinado com o conteúdo do presente trabalho, e que relaciona vasta bibliografia a respeito, v. VARELA et al, 2001. 62 Quanto a este ponto, é preciso observar a sugestão de Dupuy de que McCulloch teria, de algum modo, defendido a ideia de causalidade “top-down” (DUPUY, 1996 [1994], p. 198). Contudo, esta suposição não seria capaz de contrariar a tese, em parte defendida pelo próprio Dupuy, de que tanto na primeira cibernética quanto no cognitivismo teria sido predominante a noção de causalidade “bottom-up”.

159

reforça a questão da complexidade e do conexionismo afetado por esta, a imagem mecanicista, para Dupuy, seria Uma abordagem simples do real. Se a totalidade se deduz simplesmente dos elementos, é porque estes já contêm a inteligência da totalidade. (...) Contrastando com isso, podemos dizer que a concepção do organismo vivo como autoorganização não é nem de tipo “descendente”, nem de tipo “ascendente”, já que implica codeterminação do todo e dos elementos. O problema tal como Paul Weiss o colocava, e tal como é hoje retomado pelos neoconexionistas, é o dos comportamentos coletivos estáveis de que é capaz uma rede de elementos interconectados que só definimos de maneira “aleatória". É essencial entender que “aleatório” já não quer dizer aqui que o sistema não é determinista, mas sim que as conexões foram obtidas ao acaso. Elas não são, pois, destinadas a priori a realizar um projeto coletivo, é a totalidade particular que elas produzirão efetivamente nestas ou naquelas circunstâncias que, a posteriori, lhes dará sentido (DUPUY, 1996 [1994], p. 198-199).

Assim, a questão da auto-organização, a partir da interpretação de Weiss por Dupuy, ao ser pensada como uma maneira radical de se contestar a imagem mecanicista do ser vivo e da cognição, traz a complexidade e a aleatoriedade para o âmbito do determinismo, o que revela, juntamente com o da codeterminação, mais um tema filosófico e científico aparentemente paradoxal a ser enfrentado pela cognição corpórea. Como será constatado um pouco mais à frente, este aparente paradoxo se manifesta no tema da emergência. Veremos que o debate em busca de uma alternativa ao mecanicismo e ao vitalismo mobilizou, por exemplo, C. D. Broad, em seu livro The mind and its place in nature, de 1925 – no que se percebe a dificuldade de se separar a questão da auto-organização da questão da emergência, em sistemas vivos, embora, como teremos ocasião de notar, o desenvolvimento dos dois conceitos tenha se dado de maneira consideravelmente independente. Dupuy ainda salientou que a questão da circularidade causal tal como concebida por Weiss esteve praticamente ausente das discussões das Conferências Macy. Mas outra discussão ocorreu em uma das conferências finais desta série que pode ser considerada uma ruptura entre a primeira e a segunda cibernéticas, e que também contribuiu para a redefinição das propriedades da noção de sistema. Na opinião de Dupuy o debate revela uma limitação, ou contradição, da primeira cibernética. Trata-se das controvérsias protagonizadas por W. Ross Ashby a partir de sua construção hipotética chamada de homeostato. Na nona e penúltima conferência Macy, em março de 1952, Ashby apresentou o seu homeostato que, nas palavras de Dupuy, era um modelo matemático de autômato cibernético representando “a interação de um organismo - o ‘cérebro’- e de seu meio ambiente”. Mas, para Dupuy, segundo sustentou em sequência, o homeostato

160

Não serve a nenhum projeto, não é concebido para realizar nenhuma tarefa. É uma “experiência de pensamento” destinada a ilustrar uma tese que Ashby gostaria que fosse universal: longe de serem acidentes extremamente improváveis da evolução, a vida e a inteligência desenvolvem-se necessariamente em todo sistema isolado. Estar vivo é ter a capacidade de manter um pequeno número de variáveis “essenciais” no interior de certos limites fisiológicos, e isso para uma gama muito ampla de ambientes diferentes (DUPUY, 1996 [1994], p. 202).

Esta ousada formulação de Ashby supõe também que a estabilização seja uma forma de seleção própria a toda máquina – sendo o cérebro apenas mais uma delas –, tal como asseverou mais tarde (mas acompanhando o mesmo sentido), no seguinte trecho: Ao ir de qualquer estado em direção a apenas um de equilíbrio, o sistema passa de um maior para um menor número de estados. Desta forma, está realizando uma seleção, no sentido puramente objetivo de que rejeita alguns estados, ao abandonálos, mas mantém algum outro estado, aderindo a ele. Assim, como todo sistema determinado segue rumo ao equilíbrio, desta forma ele realiza uma escolha. Ouvimos ad nauseam a afirmação que uma máquina não pode selecionar; mas a verdade é exatamente o oposto: cada máquina, toda vez que segue rumo ao equilíbrio, realiza o correspondente ato de seleção (ASHBY, 1962, p. 270).

Além dos pressupostos de que a inteligência seja um resultado necessário com o tempo, e de que a estabilização de um sistema possa ser entendida como uma seleção por este realizada, Ashby entendia a estabilização como uma forma de adaptação (ASHBY, 1962; DUPUY, 1996 [1994], p. 202; PESSOA, 2001, p. 31; FROESE &STEWART, 2010). Mas há uma ideia que completa este modelo que gerou maiores reações dentre os primeiros cibernéticos, como Walter Pitts e Julian Bigelow, ainda de acordo com a narrativa de Dupuy. Trata-se da afirmação de Ashby, feita na conferência Macy de 1952, de que as máquinas encontram (ou, como já se sublinhou, “escolhem”) o equilíbrio por ação do acaso. Diante dela, Bigelow questionou: “De que maneira o senhor pensa que a descoberta aleatória de equilíbrio por esta máquina é comparável a um processo de aprendizado?” (VON FOERSTER, 1952, p. 103). À estranheza de Bigelow quanto à máquina “aprender” por movimentos aleatórios Ashby teria retrucado: “Eu penso que a palavra ‘aprender’, entendida num sentido objetivo, sem considerar nada obtido introspectivamente, é baseada neste tipo de coisas acontecendo” (Id. Ibid.). Na interpretação de Dupuy, este foi o grande embate, causador do maior ferimento causado por Ashby à primeira cibernética: expor para os primeiros cibernéticos que eles precisavam supor um nível intencional (mental, espiritual, algorítmico, anímico) acima do nível mecânico físico para explicar as escolhas adaptativas dos sistemas. Como já foi visto no primeiro capítulo deste trabalho, esta suposição de um nível representacional, simbólico, não significou problema para o cognitivismo. Foi, ao contrário, uma solução que impulsionou o florescimento das ciências cognitivas. Mas com este desafio, Ashby denunciava a fragilidade do pressuposto unicamente mecanicista da

161

primeira cibernética, expondo sua dependência da metafísica – se esta última for entendida como algo além do nível físico das máquinas materiais. Enfatizando a premissa de Ashby de que o comportamento do homeostato é descritível puramente através de uma função matemática, Isabelle Stengers reconhece o fado determinista de que a única definição racional possível de um comportamento possível de um sistema deve ser em termos de uma função que, dado um estado do sistema e do ambiente, determina o estado seguinte – a guilhotina pode cair. A auto-organização, entendida como a modificação, a autodeterminação, pelo sistema desta função, é impossível, ou então ela traduz somente o fato de que a função que parece se auto modificar foi mal definida. A função é uma constante do sistema, que não pode ser alterada, exceto por uma outra função que determine a mudança da primeira, e que deveria ser incluída na definição. A auto-organização é, portanto, uma aparência (STENGERS, 1985, p. 46).

Deste raciocínio se infere que a auto-organização como criação e livre escolha, ao menos no âmbito do próprio sistema, não tem lugar para Ashby. Seu autômato, assim, se assemelha ao computador que não tem como decidir para além das instruções que recebe, e cujo sistema simbólico abstrato é o único nível onde os significados que o fazem operar podem estar presentes. Não se vê na teorização de Ashby a preocupação com a descontinuidade no padrão de modificação no tempo entre os seres inanimados e os vivos – como em Von Bertalanffy – ou ente as partes e o todo – como em Weiss. Sua concepção de auto-organização, portanto, não se baseia – o que, consequentemente, não procura explicar – num modo diferente de dinâmica entres seres vivos e não vivos. Neste aspecto, Ashby estava mais próximo da primeira cibernética. Esta concepção de Ashby, evidentemente, já anunciava uma divergência no meio da Segunda Cibernética, entre ele e Von Foerster, por exemplo. Mas teria servido para estabelecer com maior clareza os caminhos que divergiriam a partir daí, e que são aqueles que a presente pesquisa tem em sua mira principal. O trabalho de Ashby posterior às suas intervenções na 9ª Conferência Macy – incluindo publicações como o livro Design for a brain (1952) e o importante artigo de 1962, além de sua participação no já citado Biological Computer Laboratory – teve outros desdobramentos para a Segunda Cibernética, e mesmo para a cognição corpórea. Isto revela um duplo papel de Ashby nas bases da cognição corpórea: tanto sua influência na transição da cibernética para as ciências cognitivas, sem o que não haveria o campo multidisciplinar em que a cognição corpórea atua, quanto no seu papel direto na formação das teses desta última. Sobre este ponto, afirma Tom Froese:

162

No entanto, a desintegração do campo da [primeira] cibernética, que é tradicionalmente associada com as Conferências Macy, também forneceu a oportunidade para uma segunda geração de pesquisadores levarem os princípios da cibernética a um território inexplorado. Mais importante, o próprio trabalho de Ashby sobre adaptação e ultra-estabilidade (v. ASHBY 1956; 1960) preparou o palco para a emergência da escola de Santiago de biologia cognitiva de Maturana e de Varela (...). Além disso, a presença de Ashby no Biological Computer Laboratory de Von Foerster foi certamente influente para o desenvolvimento posterior da cibernética de segunda ordem (cf. FOERSTER, 1979) (FROESE, 2010, p. 04).

Contudo, desta afirmação de Froese acerca da influência de Ashby sobre a Segunda Cibernética e a Escola de Santiago suscita uma questão: como Ashby poderia ter contribuído positivamente para estas correntes, se elas afirmaram formas de auto-organização e ele teria demonstrado ser esta última impossível? Ainda segundo Froese, estas tradições aceitaram o homeostato de Ashby como uma prova de conceito e adotaram seu esquema dinâmico, mas então tiveram de encontrar maneiras de resolver algumas de suas limitações fundamentais. Dois desafios derivados da obra de Ashby são particularmente notáveis a este respeito (Id. ibid.).

Tais desafios seriam, de acordo com Froese: a) pode haver auto-organização?; e b) qual o papel do observador? Quanto ao primeiro ponto, Froese afirma que uma resposta positiva à possibilidade de auto-organização, mesmo após as objeções de Ashby anteriormente referidas, decorreria de uma ideia deste mesmo autor: a ocorrência de ruído externo ao sistema pode ser o elemento crucial, a perturbação necessária para que as configurações um sistema não se limitem às suas próprias determinações. Segundo Froese, o efeito do ruído externo para Ashby, além de ter relação com a tese da “ordem pelo ruído”, de Von Foerster, pode ser formalizado matematicamente como machine “breaking” e explicado pelo conceito de ultraestabilidade63. Por outro lado, Maturana teria respondido a este desafio fundando a autoreferência na autoprodução material – o que será explorado mais à frente (FROESE, 2010, p. 5). O que desponta nesta interpretação de Froese – e que interessa sobremaneira a este trabalho – é que a perturbação aventada remete à influência do ambiente no sistema. Isto é importante quando se trata da cognição dos sistemas vivos, mas sobretudo tendo em vista a relevância que a cognição corpórea dá ao ambiente no processo cognitivo. Ademais, uma observação de Froese deve ser ressaltada: diz respeito ao fato de que tanto Von Foerster quanto Maturana teriam avançado em relação às limitações de Ashby para a auto-organização, ao levarem em conta a questão material, isto é, a constituição física e biológica dos sistemas – o que não estaria no centro do modelo ashbyano (Id., ibid.). Evidentemente, a questão da 63

Para maior aprofundamento no conceito ashbyano de ultra-estabilidade, v. ASHBY, 1947, FROESE & STEWART, 2010.

163

constituição material do sistema deve ser tratada como inseparável da sua relação com o ambiente. Como já foi salientado anteriormente, os sistemas a partir da Segunda Cibernética e, especialmente, para a cognição corpórea, são sistemas abertos de transformações e intercâmbio de matéria e energia com o meio exterior. A influência de Ashby sobre estas correntes teria sido impeli-las a romper a limitação imposta por ele mesmo, ao ter concebido os sistemas auto-organizados como entidades basicamente abstratas, imaginárias, e não dotadas de interação concreta com o mundo. Em relação ao papel do observador, de certo modo a mesma questão se coloca, se for seguida a argumentação de Froese, a partir do que ele chama de “guinada epistemológica” (Id., ibid.). Isto porque o que se apresenta como questão epistemológica é, justamente, o enfoque dado às relações entre o sistema observado e o sistema observador, nas quais, como veremos à frente, a cognição corpórea identifica um sentido basicamente material ou, mais precisamente, na forma de fluxo de matéria e energia. Mas, por ora, devemos nos concentrar na afirmação de Froese de que Ashby, embora identifique na relação de observação propriedades que não são intrínsecas à coisa observada, mas à relação em si, de certo modo reage a esta constatação: Curiosamente, o fato de que essa admissão é uma primeira indicação da natureza fundamentalmente relacional de todo o conhecimento, na medida em que depende do ponto de vista de nossas observações, não é reconhecido por Ashby. Pelo contrário, ele lamenta que a abordagem sistêmica que está desenvolvendo tenha de lidar com uma "peculiaridade não encontrada nas ciências mais objetivas de física e química" (...). É possível que essa concepção bastante ingênua do trabalho das "ciências duras" represente para ele a situação científica ideal, que ele busca imitar em suas tentativas de desenvolver conceitos de fenômenos biológicos que são "puramente objetivos" (Ibid.).

Neste sentido, a tendência de Ashby seria se manter nos limites da noção de sistema mecanicista, como já foi tratado anteriormente – assim como no que Froese identifica como uma postura representacionista. Ao contrário de Von Foerster, que teria operado a “guinada epistemológica”, como será abordado a seguir, quando estiverem em foco acontecimentos já posteriores às Conferências Macy. Por ora, cabe um resumo da análise aqui feita da importância destas conferências na formação das duas correntes das ciências cognitivas aqui estudadas. Nele, tem-se que a imagem científica mecanicista do ser humano se viu abalada em decorrência dos estudos dos sistemas de tal maneira que se pode questionar se isto contribuiu para o definhamento da primeira cibernética. Este fato se explicaria, ao menos em parte, pelos ataques proferidos à primeira cibernética, liderados por autores como Von Bertalanffy, Paul Weiss e W. Ross

164

Ashby – alguns deles no próprio “território” da primeira cibernética, como as Conferências Macy e o Simpósio Hixon. Entretanto, um dos acontecimentos mais significativos dentre os que acompanharam as transformações no conceito de sistema, tais como aqui examinadas até o início dos anos 1950, corresponde não apenas à perda de adeptos que atingiu a primeira cibernética, mas também ao fato de esta ter dado lugar, como campo de investigação interdisciplinar, às ciências cognitivas. Como já foi assinalado na seção 1.1.2, a partir da conferência de 1956 no Dartmouth College as ciências cognitivas começaram a se estabelecer nas universidades e centros de pesquisa, sobretudo dos EUA. A disposição de intensa colaboração entre pesquisadores de várias origens para estudar o ser humano e as máquinas em conjunto, que teve nas Conferências Macy uma concretização exemplar, foi transferida para o novo espaço de produção científica e tecnológica que as ciências cognitivas formaram. Mas,além disso, motivada por investidas como as de Von Bertalanffy, Paul Weiss e Ashby, a cibernética, ainda que muito transformada – e muitas vezes nem mesmo usando o antigo nome –, sobreviveu na sua segunda fase, paralelamente às ciências cognitivas, trazendo novas questões que, de acordo com a suposição adotada neste trabalho, seriam tomadas como pontos de partida da cognição corpórea, reencontrando, assim, as ciências cognitivas mais à frente. É preciso lembrar também que a imagem mecanicista do ser humano, atribuída por alguns autores à primeira cibernética, teria sido herdada pelas ciências cognitivas – com seus sistemas de processamento de informações –, mas continuou sendo combatida na Segunda Cibernética e pela Teoria Geral dos Sistemas. Desta maneira, encerrada a investigação do período das Conferências Macy com vistas a compreender os antecedentes da cognição corpórea, veremos que passaram a conviver – em disputa – nas décadas seguintes duas noções principais de sistemas abertos: a dos sistemas simbólicos do cognitivismo, representando sobretudo o fluxo linear de informações abstratas, e a da Teoria Geral dos Sistemas e da Segunda Cibernética, representando sobretudo o fluxo complexo de energia e matéria – cenário de tensão em que surgiu, mais tarde, a cognição corpórea, como um retorno dos temas da segunda fase da cibernética às ciências cognitivas. Isto faz com que o próximo foco da presente investigação se dirija aos anos 1960 e 1970, para prosseguir no exame dos temas da auto-organização, complexidade e emergência, que alguns costumam resumir, ainda que com certa imprecisão, no primeiro dos termos. Este é o caso de Dupuy, na seguinte asserção:

165

Nos anos 60 e 70, a cibernética, que se tomara “segunda cibernética” ou “cibernética de segunda ordem”, sobreviveu a si própria e se mostrou capaz de desenvolver uma corrente de pesquisas sobre os “sistemas de auto-organização". (DUPUY, 1996 [1994], p. 73 – grifo meu).

Pode-se retomar então que a noção de auto-organização foi engendrada, também, de modo intrinsecamente articulado com a questão do papel do observador e de sua situação, como se destacou na obra de Heinz Von Foerster, e se pontua no seguinte excerto: Enquanto a primeira geração da cibernética culminou com a percepção de que o conhecimento de um sistema é essencialmente dependente do observador, a segunda geração da cibernética, que tentou desenvolver sistematicamente a visão sobre uma teoria cibernética do observador, culminou com a consciência de que o observador é essencialmente dependente da situação em que se encontra (FROESE, 2011, p. 8-9).

Esta é a particularidade que induz também a que se chame a Segunda Cibernética de cibernética de segunda ordem, como feito por Dupuy na citação acima. Porém, antes de abordar a condição do observador como dependente de uma situação, é preciso retomar o que Froese chamou de “guinada epistemológica”, como atitude bastante diferente daquela que, de certa maneira, teria sido compartilhada pela primeira cibernética e pelo cognitivismo – e também por Ashby: Contra a hipótese de uma epistemologia representacionista da primeira geração de cibernéticos, que Ashby manteve, o passo decisivo que lançou a cibernética de segunda ordem como uma abordagem diferente pode ser definido por uma guinada epistemológica. Ela aceitou e incorporou o que a pesquisa anterior em cibernética já começara a mostrar: que o conhecimento científico é um fenômeno relacional no domínio das explicações que não representa, e nem pode representar, uma realidade independente do observador. Em outras palavras, a relatividade das ideias sistêmicas na perspectiva do observador, anteriormente conhecida apenas pela primeira geração da cibernética em termos da arbitrariedade de escolhas envolvidas em distinguir um sistema particular de interesse, foi agora explicitada e mais radicalizada ainda (Id., ibid. – grifo meu).

A epistemologia de que aqui se trata corresponde, portanto, a uma postura que tende a recusar o caráter representacional da cognição, e clama por um papel ativo do observador. Contudo, ela teria tido sua inspiração mais imediata nos trabalhos de um autor identificado não apenas com a primeira cibernética, mas justamente com a imagem computacional e representacional da cognição: Warren McCulloch. Já foi dito anteriormente que McCulloch acreditava estar tratando a psicologia e a epistemologia de modo incorporado com suas pesquisas nos final da primeira metade do século 20, embora já tenhamos visto os efeitos que suas formulações produziram no sentido oposto. Um testemunho desta sua crença aparece na frase: “Fazer psicologia em epistemologia experimental é tentar entender a corporeidade da mente” (MCCULLOCH, 1988 [1965], p. 2). Acompanhando o entendimento de Tom Froese, é

166

preciso destacar dois aspectos do legado de McCulloch quanto a este ponto. De um lado, trata-se de notar que autores como Von Foerster, Maturana e Varela prosseguiram no desafio de realizar pesquisas experimentais, seja diretamente em seres vivos ou por simulações computacionais, com interesse no papel ativo do observador na constituição dos objetos do conhecimento (FROESE, 2010 e 2011). De outro lado, sobretudo Maturana e Varela aprofundaram a epistemologia experimental a ponto de romper definitivamente com o modelo representacional de McCulloch, em seus trabalhos a partir dos anos 1970 (VARELA, MATURANA & URIBE, 1974; MATURANA & VARELA, 1998, 2010), fazendo com que a cognição fosse compreendida de modo inseparável da vida e dos organismos. Isto é, se McCulloch em algum momento expressou seu intuito de mais propriamente encarnar a cognição no organismo, não foi ele mesmo quem alcançou este objetivo. Porém, é preciso ainda examinar o papel de Von Foerster na ruptura com a primeira cibernética, e sua importância para a constituição da cognição corpórea, tendo em vista sua insistência no papel ativo do sistema observador. Esta foi uma mudança fundamental em relação não apenas à primeira cibernética, mas também ao cognitivismo, ainda que, como estamos prestes a verificar, possua ainda algumas limitações. Mesmo assim, por esta razão – mas também por outras, principalmente as relacionadas à sua intervenção direta no ambiente científico, que abordaremos adiante –, Von Foerster deve ser considerado o mais importante autor, dentre os associados à Segunda Cibernética, na formação dos antecedentes da cognição corpórea. Seu conceito de trivialidade ilustra bastante bem suas preocupações críticas do modelo computacional da cognição, e revela teor ético e político de sua abordagem – já antecipando a postura crítica e política da cognição corpórea. Vejamos como se dá esta formulação: Deixe-me apresentar dois conceitos, que são os de máquina "trivial" e "não trivial". O termo "máquina" neste contexto refere-se a propriedades funcionais bem definidas de uma entidade abstrata, e não a um conjunto de engrenagens, botões e alavancas, embora tais mecanismos possam representar realizações físicas daquelas entidades funcionais abstratas. Uma máquina trivial é caracterizada por uma relação um-paraum entre o seu "input" (estímulo, causa) e seu "output" (resposta, efeito). Esta relação invariável é "a máquina". Uma vez que esta relação seja determinada de uma vez por todas, este é um sistema determinístico; e dado que um output uma vez observado para a um determinado input será o mesmo para o mesmo input que se dê mais tarde, este é também um sistema previsível. Máquinas não triviais, no entanto, são criaturas bastante diferentes. Sua relação de input-output não é invariante, mas determinada por um output anterior da máquina. Em outras palavras, os seus próprios passos anteriores determinam as suas reações presentes. Embora estas máquinas sejam ainda sistemas determinísticos, para todos os sentidos práticos elas são imprevisíveis: um output, uma vez observado para um dado input, provavelmente não será o mesmo para o mesmo input dado posteriormente. (VON FOERSTER, 1972, p. 6).

167

Os sistemas não triviais são capazes de usar, como inputs alternativos, outputs produzidos por eles mesmos – ou externos à sua configuração, e assim inesperados –, de tal modo que não têm a mesma condição de previsibilidade dos sistemas triviais. Von Foerster, no mesmo texto, dá o exemplo de estudantes que, diante de um teste de conhecimentos, oferecem diferentes respostas. Os estudantes “triviais” dão respostas previsíveis, que podem ser definidas como corretas ou erradas. Os estudantes “não triviais” oferecem respostas não previsíveis e que, por isso, podem ser classificadas como erradas, embora possam estar corretas segundo critérios alternativos. Com estas considerações, Von Foerster apresenta uma critica ao sistema educacional preponderante em sua época que, em sua opinião, selecionava os estudantes que se comportam como máquinas triviais. Esta concepção também adianta a aplicação da complexidade aos sistemas cognitivos, e a medular noção de autotransformação tão característica da cognição corpórea. Com a seguinte consideração ele define socialmente a trivialização: “Um perfeito desempenho em um teste é indicativo de perfeita trivialização: o estudante é completamente previsível e assim pode ser admitido na sociedade. Ele não causará surpresas ou problemas” (Ibid.). Contudo, Tom Froese alerta para a insuficiência da noção de máquina não trivial para que se alcance a ideia de um papel efetivamente ativo – e autônomo – do observador. Em seu entendimento, apenas uma perspectiva propriamente construtivista pode dar conta da necessidade de superação da condição mecanicista das máquinas não triviais, que ainda as condena a serem sistemas determinados (FROESE, 2010, p. 81). Não cabe nos propósitos deste trabalho uma abordagem mais extensa da questão específica do construtivismo, sendo preferível deixar para referi-lo através de menções feitas pelos próprios autores da cognição corpórea. O que de mais importante deve resultar da discussão sobre a trivialidade tal como posta por Von Foerster é exatamente a abertura que oferece para se romper com o determinismo cognitivista e, além disso, ressaltar o sentido de autocriação da cognição, desenvolvido sobretudo a partir da biologia cognitiva de Maturana e Varela. Dito de outra maneira, o caráter mecânico presente na não trivialidade termina por estimular os críticos do cognitivismo a fazerem com que a complexidade apenas insinuada na concepção de Von Foerster seja radicalizada. Outro aspecto, passível de crítica pela cognição corpórea, encontrado na noção de não trivialidade, é a não plenamente colocada questão da separação entre sistemas observados e observadores. Neste sentido, devemos atentar para o fato de que este problema será mais adequadamente enfrentado quando os autores da orientação corpórea, através principalmente da iniciativa de Varela, buscarem embasamento filosófico na fenomenologia, conforme será tratado adiante, e, assim, proporem, para além da guinada

168

epistemológica – tal como acima apresentada – uma guinada ontológica. A questão ontológica, quando aplicada ao tema da relação entre sistema observador e sistema observado, não se limita a discutir a realidade de cada um destes sistemas em separado, mas antes sua inseparabilidade, ou, ainda, a relação entre ambos como de cocriação – como ficará mais claro quando este trabalho se detiver no enativismo, adiante. Mas, para que se tenha uma ideia antecipada e resumida da solução proposta, trata-se, no dizer de Froese, de lançar mão do conceito de experiência vivida, sugerindo que: (i) já participamos do mundo antes de nos isolamos através reflexão abstrata, e (ii) não precisamos encontrar uma representação de nós mesmos como sujeitos cognitivos em nossos "cérebros-computadores" porque nós já coincidimos com a nossa própria experiência vivida (Ibid., p. 82).

O que aqui foi apontado como uma insuficiência da posição de Von Foerster demonstra, de fato, que apenas com o surgimento da cognição corpórea a questão ontológica da cognição seria mais radicalmente enfrentada. Considerado este fato de outro ponto de vista, o que se conclui é que a Segunda Cibernética não avançou, do mesmo modo que a orientação corpórea, na direção de uma ruptura ontológica tão radical com a primeira cibernética e, de certo modo, com o cognitivismo. Entretanto, antes de passarmos a tratar dos antecedentes filosóficos da cognição corpórea e, assim, investigarmos mais de perto a que corresponde a aqui chamada guinada ontológica, ainda há alguns pontos a explorar sobre a influência que esta sofreu da Segunda Cibernética e, mais particularmente, de Von Foerster, Gordon Pask, e da noção de cibernética de segunda ordem. Esta noção implica algo mais do que tão somente investigar o sistema observado, ou mesmo o papel do observador. Com ela se apresenta uma ideia especialmente nova nas considerações feitas até o momento sobre a transformação da noção de sistema, sobretudo no que diz respeito à constituição da cognição corpórea. Vejamos por quê. Pask diferencia, inicialmente entre um suposto objetivo independente que sistemas teriam, e o objetivo que estes sistemas teriam para um utilizador: A teoria cibernética de máquinas de somar não é apenas uma teoria de dispositivos mecânicos que não têm nenhum objetivo. Refere-se diretamente ao processo de adição e, indiretamente, ao utilizador da máquina de somar, isto é, o dispositivo mecânico é necessariamente incorporado ao contexto que o torna significativo. (PASK, 1969, p. 24).

Estabelecendo uma importante diferença desta posição para a concepção de Ashby, ele prossegue:

169

A verdade da hipótese cibernética não pode ser decidida (em relação a um sistema particular) no nível do tipo mais fundamental e simples de modelo: a "caixa preta" de Ashby. Não importa quanto tempo um sistema identificado com tal modelo seja observado, e não importa quantos experimentos sejam realizados através da variação do input da "caixa preta": somente será possível dizer que o sistema se comporta como se fosse (ou não) um sistema direcionado a um objetivo. (Id., ibid.)

Estas afirmações são de grande relevância. Elas defendem que o objetivo de um sistema não se define em seu âmbito isolado, mas de acordo com a interpretação de um observador. Este é que compreende o sistema como se tivesse um objetivo próprio. E realizar esta interpretação é uma característica da relação. Dito de outro forma, é próprio da relação entre observador e observado que o primeiro atribua objetivos ao primeiro. Sem a relação de observação tal interpretação não ocorreria. Esta concepção expõe as limitações de se considerar a existência e os objetivos de cada um dos sistemas, o observado e o observador, isoladamente. Von Foerster, dez anos depois destas colocações de Pask, concorda com elas, indo, contudo, mais longe: Sugiro que a cibernética dos sistemas observados possa ser considerada a cibernética de primeira ordem, enquanto cibernética de segunda ordem é a cibernética de sistemas de observação. Isto está de acordo com uma outra formulação que tem sido dada por Gordon Pask. Ele também distingue duas ordens de análise. Àquela em que o observador entra no sistema, estipulando a finalidade do sistema, podemos chamar de "condição de primeira ordem". Em uma "condição de segunda ordem", o observador entra no sistema, estipulando seu próprio propósito. A partir disso, parece ficar claro que a cibernética social deve ser uma cibernética de segunda ordem – a cibernética da cibernética –, a fim de que o observador que entra no sistema seja autorizado a estipular seu próprio propósito: ele é autônomo (VON FOERSTER, 1979)

Ao afirmar que a cibernética dos sistemas observados é a cibernética de primeira ordem, enquanto que a cibernética dos sistemas observadores é a cibernética de segunda ordem, Von Foerster identifica dois níveis de análise, mas que, como vemos, na cibernética de segunda ordem estão imbricados. Dito de outra forma, o nível de análise de segunda ordem implica o de primeira ordem – que, por sua vez, só faz sentido se há o segundo para considerá-lo. Podemos exemplificar esta imbricação usando como exemplo exatamente o homeostato de Ashby, tal como vimos que foi apresentado na 9ª Conferência Macy: considere-se que, de acordo com a abordagem de Von Foerster, o homeostato seja um modelo que não faria sentido fora de um estudo feito pelo próprio Ashby. Porém, embora o modelo de Ashby considere a relação do sistema com o ambiente – e mesmo que esta relação seja fundamental para a organização do sistema, dado que a organização ocorre em função da

170

adaptação do sistema ao mundo exterior –, a formulação do próprio Ashby não comporta dois níveis de análise como os propostos por Von Foerster. Entretanto, não é nesta diferenciação entre dois níveis interdependentes que Von Foerster mais se aproxima da cognição corpórea. Sua formulação mais afim com esta abordagem encontra-se explicitada em três postulações no final da citação acima: de que a cibernética de segunda ordem é uma cibernética social, de que o observador tem o poder de estabelecer seu próprio objetivo e – mais importante – que esta última característica define sua autonomia. A autonomia, para Von Foerster, tem um caráter eminentemente correlacional – entre o sistema observador e os sistemas observadores – mas, evidentemente, seu polo principal é o sistema observador, uma vez que é nele que a autonomia se expressa e se produz. Além disso, a autonomia se caracteriza mais propriamente quando o sistema observador tem a si como sistema observado e, nesta condição, estipula o propósito de si mesmo. E ela se destaca tendo como fundo o ambiente – no caso da citação acima, o ambiente social. A autonomia, portanto, é uma característica dos sistemas vivos, que se manifesta de modo especial nos seres humanos – e, segundo a cognição corpórea, está intimamente ligada ao fato de que, nos humanos, a auto-estipulação de propósito é ao mesmo tempo um traço cognitivo e de sobrevivência. Assim os sistemas autônomos são a noção mais próxima, nas transformações que aqui são estudadas na noção de sistema, daquela utilizada na cognição corpórea – e que mais radicalmente rechaça a noção de sistema simbólico do cognitivismo e, de modo semelhante, se afasta da ideia de sistema da primeira cibernética. Veremos nas próximas seções como a noção de autonomia se faz presente nas abordagens que compõem a cognição corpórea. Mas podemos desde já afirmar que é através da abordagem corpóreo-enativista que a autonomia ganha maior relevância para as ciências cognitivas de orientação corpórea, ao demarcar a importância do organismo individual em sua explicação da cognição. Isto fica patente na seguinte afirmação de Evan Thompson: “Um ponto chave é que a abordagem enativa explica a individualidade64 e a subjetividade desde o início levando em conta a autonomia própria de seres vivos e cognitivos” (THOMPSON, 2007, p. 14). E a relação entre a noção de autonomia e a crítica ao cognitivismo já havia sido explicitada no livro fundador do enativismo, lançando mão da noção de clausura (ou fechamento) operacional:

64

No original selfhood.

171

Uma importante e ampla mudança está começando a ocorrer nas ciências cognitivas em decorrência de sua própria pesquisa. Essa mudança exige que nos afastemos da ideia do mundo independente e extrínseco em direção à ideia de um mundo inseparável da estrutura desses processos de automodificação65. Essa mudança de postura não expressa uma mera preferência filosófica; ela reflete a necessidade de compreendermos os sistemas cognitivos não com base nas relações entre informações (input) e comportamento (output), mas a partir de sua clausura operacional. Em um sistema operacionalmente fechado, os resultados de seus processos são os próprios processos. A noção de clausura operacional é uma forma de especificar classes de processos que, na sua própria operação, voltam-se sobre si mesmos para formar redes autônomas. Essas redes não se enquadram na classe de sistemas definidos por mecanismos externos de controle (heteronomia), mas, ao contrário, na classe de sistemas definidos por mecanismos internos de autoorganização (autonomia). O ponto chave é que esses sistemas não operam por 66 representação. Em vez de representar um mundo independente, eles enatuam em um mundo como um domínio de distinções inseparável da estrutura incorporada pelo sistema cognitivo (VARELA et al, 1991, p. 139-140).

Com auxílio desta passagem, podemos compreender melhor como se concluiu a transformação na noção de sistema, ao longo do período examinado nesta seção, de modo a se configurar da maneira empregada na cognição corpórea. E do mesmo modo que a noção de cognição corpórea só é mais bem compreendida através de seu oposto, o cognitivismo – e vice-versa –, a ideia de autonomia fica mais clara quando contrastada com a de heteronomia. Além disso, podemos perceber que a auto-organização, para a abordagem corpóreo-enativista, se define mais propriamente pela noção de autonomia. Mais adiante, será analisada a evolução da noção de autonomia na abordagem corpóreo-enativista, levando-se em consideração o conceito de autopoiese, desenvolvido por Francisco Varela e Humberto Maturana nos anos 1970. E embora as outras abordagens da cognição corpórea de alguma forma compartilhem a ideia de autonomia como característica dos sistemas vivos e cognitivos, foi a abordagem corpóreo-enativista que mais se ocupou dela. O que de mais essencial havia a ser considerado em relação aos sistemas autoorganizados, nos antecedentes da cognição corpórea, foi feito nos últimos parágrafos. Porém, com o intuito de concluir as observações sobre as influências recebidas pela cognição corpórea no campo biofisiológico, é ainda necessário fazer alguma referência aos conceitos, complementares ao de auto-organização: os de emergência e complexidade.

65

Aqui os autores se referem à noção de automodificação dos processos cognitivos defendida por Marvin Minsky em The Society of mind (MINSKY, 1985). 66 Juntamente com o neologismo substantivo “enação” (enaction), o enativismo propõe também o verbo “enatuar” (to enact) para designar sua compreensão da ação cognitiva.

172

2.1.4. A noção de emergência O conceito de emergência tem relação com o que foi chamado, acima, de causalidade organicista, ou seja, com as abordagens de Bertalanffy e Weiss. Isto é, busca dar conta de descontinuidades observadas entre o comportamento individual de elementos de um sistema e o comportamento global deste último. E, embora, na história da ciência, não se aplique apenas ao desenvolvimento dos sistemas vivos, no que concerne à cognição corpórea seu sentido é, basicamente, o de explicar processos orgânicos e mentais de modo não reducionista. Para ficar mais claro seu emprego na cognição corpórea, levemos em conta o seguinte fragmento de Varela, no qual é ressaltado o sentido ontológico da emergência: A noção de emergência é difícil, pois embora essencial, tem sido geralmente mal interpretada. Utilizo o termo emergência em um sentido mais técnico. Quando observamos a forma como o cérebro funciona, ou melhor, o funcionamento do processo de cognição, há cada vez mais evidências de que estamos lidando com componentes muito individuais, neurônios ou grupos de neurônios, ou populações de neurônios. O trabalho do neurocientista é investigar essas células e tratar de compreender seu funcionamento, a impressionante riqueza do cérebro e a complexidade extraordinária de milhões e milhões de conexões complexas. Podemos nos referir a esses elementos locais em interação como regras locais; essas regras locais e interações locais não são como a transferência de informações em um computador – o envio de mensagens de um lado para outro de forma sintática ou programática. Estas interações ocorrem em tempo real de forma muito rápida, dinâmica e simultânea. O que disso se depreende é algo que ainda não parou de me surpreender, e é que a partir deste elemento local surge um processo global, um estado global ou nível global que não é independente dessas interações locais nem redutíveis a elas. Trata-se da emergência de um nível global que surge a partir das regras locais; e que tem um status ontológico diferente, porque traz consigo a criação de um indivíduo, ou de uma unidade cognitiva. Então, quando veem um animal em movimento, ou me veem dirigindo-lhes a palavra, eu me comporto como uma unidade coesa, não como uma mera justaposição de movimento, voz, olhar e postura. Eu sou uma unidade integrada, mais ou menos harmônica, o que eu chamo de "eu mesmo" ou "minha" mente, e vocês interagem comigo nesse nível. (...) Esta interação está ocorrendo no nível da individualidade, que é o global, o emergente. Mas sabemos que o global é simultaneamente uma causa e consequência das ações locais que acontecem o tempo todo no meu corpo (VARELA, 2000, p. 5 – grifos em negrito meus)

O primeiro trecho grifado nesta passagem é importante por resumir a principal característica do conceito de emergência, e demonstrar em que sentido ele se aplica à cognição corpórea. Seu significado aparentemente paradoxal é expresso exatamente na ideia de que efeitos globais não são independentes nem redutíveis aos elementos locais com os quais estão correlacionados. Isto será mais explorado adiante. Porém é a segunda frase assinalada que comporta o aspecto mais notável da absorção do conceito por Varela. O fato de o enativismo considerar que o que emerge do processo cerebral é uma unidade cognitiva é

173

fundamental na compreensão da orientação corpórea. Primeiramente, porque postula a irredutibilidade da unidade cognitiva a elementos e regras mais simples que a ela subjazem – no que percebemos que a cognição corpórea também deixa de adotar o reducionismo fisicalista. Em segundo lugar, porque aponta na emergência da unidade cognitiva o caráter, propriamente ontológico, de constituição da individualidade que ao mesmo tempo é cognitiva e vital – sendo que ambos os aspectos são essenciais e inseparáveis nesta constituição. E em terceiro lugar porque atribui a esta unidade emergente a capacidade de causar, reciprocamente, os elementos que a constituem – o que reforça o sentido ontológico de causar, produzir, sustentar a si mesma no tempo. Como veremos, esta possibilidade de causar suas próprias causas, e a si mesma, é o que distingue a individualidade cognitiva para a cognição corpórea. Trata-se da aplicação ao conjunto formado pelo sistema global e suas partes da ideia de codeterminação própria da ontologia enativista, que será mais detidamente explorada na seção 2.3. De certa forma, esta mesma condição já foi apontada no conceito de autonomia, tal como formulado por Von Foerster, ainda que não mediante o uso do conceito de emergência. Com isso, percebemos como difere a cognição corpórea, diante de uma de suas influências, através da combinação de autonomia e emergência. Esta é mais uma indicação de como a cognição corpórea opera por síntese e transformação de conceitos e princípios anteriormente produzidos em campos diversos. Visto este breve exemplo da aplicação do conceito de emergência na cognição corpórea, devemos agora promover um recuo para identificar, em linhas gerais, que transformações ocorreram no conceito desde sua primeira formulação e que importam para a presente investigação, no sentido também de clarificar o conceito. Atribui-se o nascimento da noção de emergência a John Stuart Mill, Alexander Bain and George Henry Lewes, ainda no século 19 (STEPHAN, 1992; PESSOA, 2001). E uma definição pioneira e clara de emergência encontra-se neste fragmento de Lewes, citado por Stephan: Existem duas classes de efeitos marcadamente distintas: resultantes e emergentes. Assim, apesar de cada efeito ser a resultante dos seus componentes, ou o produto de seus fatores, nem sempre podemos rastrear os passos do processo, de modo a ver no produto o modo de operação de cada um dos fatores. Neste último caso, proponho chamar o efeito de emergente (LEWES, citado em STEPHAN, 1992, p. 27).

Contudo, antes de Lewes, Mill já havia apresentado uma classificação de relações entre causas e efeitos que se aproxima desta. Ao se referir ao princípio, por ele formulado, de “composição de causas”, no qual “o efeito conjunto de diversas causas é idêntico à soma de seus efeitos separados”, Mil afirma:

174

Este princípio, no entanto, de modo algum prevalece em todos os departamentos do campo da natureza. A combinação química de duas substâncias produz, como é bem conhecido, uma terceira substância, com propriedades diferentes das de qualquer das duas substâncias em separado, ou de ambas em conjunto. Nenhum traço das propriedades do hidrogênio ou do oxigênio é observável nas de seu composto, a água. O sabor do acetato de chumbo não é a soma dos gostos dos seus elementos componentes, ácido acético e chumbo ou seu óxido; nem o é a cor azul do sulfato de cobre uma mistura das cores do ácido sulfúrico e do cobre (STUART MILL, 2011 [1843], p. 355)

Além de descrever este oposto à combinação de causas, que chamou de princípio heteropático, em reações químicas, Mill destacou como esta forma de causalidade ocorre nos fenômenos da vida – inclinação teórica que tem sido recorrente desde o aparecimento do conceito de emergência, e que se observa também na sua aplicação na cognição corpórea. Porém, o conceito de “emergência” só foi mais profundamente explorado muitas décadas depois, por C. Lloyd Morgan em seu livro Emergent evolution, de 1923 (PESSOA, 2001, p. 39). Este livro já trazia várias das questões que vieram a ser alvo de debate no século 20, sobretudo envolvendo as limitações atribuídas ao reducionismo. Lloyd Morgan tratou da emergência nos níveis que chamou de mente, vida e matéria (LLOYD MORGAN, 1923, p. 27), no que veio a ser uma abordagem bastante abrangente do alcance da noção. E, como salienta Osvaldo Pessoa (PESSOA, 2001, p. 39-40), Stephan (STEPHAN, 1992, p. 27-39) classifica a emergência em cinco casos, ainda com base em Mill e Lewes, mas também lançando mão de autores mais recentes: 1) Emergência como não aditividade – na obra de Mill, é oriunda da diferença entre causas homopáticas e heteropáticas; no primeiro caso, os efeitos de causas complexas são explicados pela adição linear, algébrica ou vetorial, dos efeitos parciais; no caso da emergência como não aditividade, não; já para Lewes, a não aditividade

diz

respeito

mais

à

impossibilidade

de

se

identificar

retrospectivamente, dado o efeito complexo, quais foram os efeitos parciais que o constituíram. 2) Emergência como novidade – é o sentido que mais se aproxima do caráter ontológico da emergência; trata-se da eclosão de novas qualidades, de novas existências, a partir de níveis de existência anteriores, que podem ser considerados também, de certo modo, “inferiores”, ou mais simples; é justamente quando se coloca a questão dos níveis mais baixos e mais altos de atividade, que têm sido aplicados à cognição, e que foram referidos, também através de uma perspectiva ontológica, na citação anterior de Varela; suscita igualmente o tema da complexidade.

175

3) Emergência como imprevisibilidade –poderia ser confundida com a emergência como novidade, mas Stepham adverte, recorrendo sobretudo aos autores mais recentes que se dedicaram à emergência, que pode haver novidade previsível, assim como imprevisibilidade de algo que não é classificável como novo – para o que dá o exemplo de sistemas não determinísticos; já Pessoa correlaciona este tipo de emergência com o caos determinístico. 4) Emergência como não dedutibilidade – ponto em relação ao qual Stepham recorre a C. D. Broad, e a seu livro The mind and its place in nature, de 1925, já mencionado rapidamente acima, para assinalar que Broad busca distinguir seres vivos de não vivos, sem lançar mão de vitalismo, e sem aderir ao mecanicismo; para tal, em primeiro lugar, Broad afirma que o comportamento de um sistema é totalmente determinado pelo comportamento dos seus componentes, no que entende rejeitar as teorias vitalistas; em segundo lugar, Broad defende que, de acordo com uma teoria emergentista, as leis que descrevem o comportamento do sistema a partir do comportamento dos seus componentes não podem ser deduzidas a partir das leis destes últimos. 5) Emergência como causalidade descendente – trata de um tema brevemente já referido nas páginas anteriores, que discute a possibilidade de propriedades macroscópicas exercerem poder causal a elementos microscópicos do sistema. Estas características das primeiras formulações do conceito de emergência apresentam um quadro bastante completo dos modos como a noção influenciou a cognição corpórea. Mas, com vistas a compreender esta influência, é preciso advertir sobre uma importante questão ressaltada por Osvaldo Pessoa: Uma concepção plausível e bastante popular entre físicos é que “ontologicamente” uma propriedade macroscópica seja redutível a propriedades microscópicas, apesar de, na prática, “epistemologicamente”, ser impossível deduzir a propriedade macro a partir do micro, devido à complicação intratável dos cálculos matemáticos. Se nos colocarmos do lado dos biólogos e dos psicólogos, porém, o reducionismo é visto com maus olhos. Como é possível considerar que um sapo seja redutível a meros mecanismos, e desprezar a presença de um código genético que incorpora milhões de anos de evolução biológica? Como é possível reduzir a mente ao cérebro físico, dado que nosso ponto de partida para conhecer o mundo físico é justamente a nossa mente? Nesses campos, um bom número de pesquisadores salienta que há uma diferença entre fisicalismo e reducionismo. O fisicalismo aceita que a base dos fenômenos biológicos e mentais seja a física e a química, mas considera que não pode haver uma redução entre níveis devido a presença de conteúdos informacionais, significações, causalidade descendente, etc. O estudo da auto-organização tende a nos comprometer com o fisicalismo (em oposição a um vitalismo ou espiritismo), mas permanece em seu seio o debate entre reducionistas e não reducionistas (PESSOA, 2001, p. 40).

176

Em primeiro lugar, Pessoa sublinha a tendência, entre os físicos, de acreditar que, embora haja redutibilidade ontológica – isto é, no mundo objetivo – esta pode ser por vezes inalcançável pelo conhecimento, vale dizer, seria epistemologicamente irrepresentável. Por outro lado, ele reconhece nos biólogos e psicólogos dificuldade de aceitar o reducionismo, mesmo aquele imaginado pelos físicos, como tendo caráter ontológico. Mas talvez a observação mais importante desta passagem seja aquela que registra a rejeição ao vitalismo, tanto da parte dos que creem, quanto das que não creem no reducionismo ou mecanicismo. Deste modo, restaria ainda hoje, no meio científico, uma indefinição quanto ao reducionismo, embora sem vestígios significativos de concepções vitalistas. Por isso mesmo, o fisicalismo, entendido também como materialismo, predominaria. Naquilo que mais interessa ao presente trabalho, é importante notar que a cognição corpórea recusa o reducionismo e o vitalismo, sendo, a seu modo, uma corrente científica e filosófica fisicalista, materialista. Antes de se fazer menção, de forma introdutória, a como os conceitos de emergência, auto-organização e complexidade estão interligados numa perspectiva antirreducionista e materialista na cognição corpórea, é preciso fazer uma observação, necessária à compreensão desta perspectiva. Tratase do fato, ressaltado por Stephan, de que, sobretudo a partir dos anos 1980 – ou seja, aproximadamente no mesmo período de desenvolvimento da cognição corpórea –, o tema da emergência ocupou mais intensamente filósofos da mente, de modo a enfatizar certas questões. Segundo o autor, esta seria a quarta fase da história do conceito de emergência, na qual autores como Roger W. Sperry (SPERRY, 1980 e 1988), que se dedicou especialmente à questão da interação mente-cérebro e da tensão religião/ciência, J. J. Smart, que, a favor do fisicalismo e dialogando com Sperry, propôs os sentidos “forte” e “fraco” para a emergência (SMART, 1981), e, principalmente, Jaegwon Kim, investigaram o conceito de emergência com relação a propriedades mentais. Dentre estes, o trabalho de Kim merece algumas observações a mais. Sobretudo no volume Supervenience and mind (KIM, 1993) – que reúne artigos do filósofo desde o início dos anos 1970 – Kim discute temas relacionados à emergência das propriedades mentais a partir de propriedades físicas, defendendo a ideia de causação mental como superveniência mental, e se opondo à noção de causação descendente (“downward”, ou “top-down”). Não cabe no escopo deste trabalho um aprofundamento sobre tais questões, que podem ser convenientemente compreendidas em consultas aos trabalhos de Kim e de outros filósofos da mente contemporâneos67. O mais importante a se salientar quanto a este ponto é o modo como o enativismo tratou a questão. Examinemos como um dos

67

Para um compreensivo panorama da emergência na filosofia da mente v. CRANE, 2001 e KIM, 2006.

177

principais formuladores do enativismo, Evan Thompson, se pronuncia sobre o tema da emergência, inicialmente quanto aos fenômenos em geral: A emergência está intimamente relacionada com a auto-organização e com a causalidade circular, as quais envolvem a influência recíproca de processos de "bottom-up" e "top-down". Por exemplo, um tornado emerge através da autoorganização de partículas de ar e água em circulação; ele reciprocamente suga essas partículas em uma configuração macroscópica particular, com efeito devastador para qualquer coisa em seu caminho. (...) Eu esboço uma maneira de pensar sobre a emergência que eu chamo de coemergência dinâmica. Coemergência dinâmica significa que não só um todo surge a partir das suas partes, mas as partes também surgem a partir do todo. Parte e todo coemergem e mutuamente especificam um ao outro. Um todo não pode ser reduzido às suas partes, pois as partes não podem ser caracterizadas independentemente do todo; inversamente, as partes não podem ser reduzidas ao todo, pois o conjunto não pode ser caracterizado independentemente das partes (THOMPSON, 2007, p. 38).

A ideia de coemergência dinâmica, defendida por Thompson, constitui uma compreensão radical de emergência, que se diferencia bastante das concepções anteriores, especialmente daquelas dedicadas à emergência de propriedades mentais. Quanto a esse aspecto, é oportuno conhecer a objeção de Thompson à ideia de emergência de propriedades, e a alternativa que apresenta68:

68

Para um maior aprofundamento sobre as divergências entre as posições correntes sobre a emergência de propriedades mentais – especialmente de Jaegwon Kim – e as posições enativistas, v. o apêndice B de THOMPSON, 2007, de onde se extrai o seguinte trecho: “O reducionismo parte/ todo anda de mãos dadas com uma metafísica atomista de dados físicos básicos e suas configurações mereológicas, uma metafísica que Kim subscreve aparentemente (1993, p. 77, 96-97, 337). Ao mesmo tempo, ele também, aparentemente, acredita que nada na disputa filosófica sobre emergência depende de definições gerais precisas de "físico" (1993, p. 340). Mas isso parece errado em ambas as explicações. No contexto da ciência contemporânea, como vimos, "natureza" não consiste em elementos básicos, mas em campos e processos, e esta diferença entre o ponto de vista do processo e uma partícula elementar da versão da metafísica de substâncias cartesianas faz diferença para as questões filosóficas sobre a emergência (Campbell e Bickhard 2002; Hattiangadi 2005). No primeiro ponto de vista, não há um nível inferior dos elementos básicos com propriedades intrínsecas que ascende determinando todo o resto. Tudo é processo em todo o trajeto "para baixo" e "para cima”, e os processos são irredutivelmente relacionais, eles existem apenas em padrões , redes, organizações, configurações ou camadas. Para a visão reducionista parte/todo , "para baixo" e "para cima" descrevem níveis de realidade mais e menos fundamentais. Níveis mais elevados são realizados e determinados por níveis mais baixos (o "modelo em camadas da realidade"; ver Kim 1993 , p. 337-339). Do ponto de vista do processo, "para cima" e "para baixo" são termos de contexto relativo usados para descrever fenômenos de vários escala e complexidade. Não existe um nível de base de entidades elementares para servir como a última "base de emergência" na qual tudo se fundamenta. Fenômenos em todas as escalas não são entidades ou substâncias , mas processos relativamente estáveis , e uma vez que os processos alcançam a estabilidade em diferentes níveis de complexidade, ao mesmo tempo interagindo com processos em outros níveis, todos são igualmente reais e nenhum tem primazia ontológica absoluta.” (THOMPSON, 2007, p. 440-441).

178

Embora o termo propriedade emergente seja de uso generalizado, eu prefiro processo emergente. Estritamente falando, não faz sentido dizer que uma propriedade emerge, mas apenas que ela vem a ser realizada, instanciada, ou exemplificada em um processo ou entidade que emerge no tempo. A emergência é um processo temporal , mas propriedades (se consideradas como universais ou como abstrações linguísticas) são atemporais. Por exemplo, a propriedade de estar vivo não emergiu quando a vida se originou na Terra; em vez disso, passou a ser instanciada como um resultado do processo emergente de autopoiese, que constitui as células vivas. Este exemplo também aponta para a importância das características causais de processos emergentes: a rede emergente de autopoiese constitui um indivíduo biológico (a célula), que produz mudanças no ambiente externo. Também cria um contexto estruturado no qual novos tipos de eventos podem acontecer, tais como a síntese de proteínas e a replicação de RNA/DNA, que não podem ocorrer para além ou fora do ambiente intracelular protegido (Ibid., p. 418-419).

Trata-se, mais uma vez, da ênfase ao sentido ontológico de emergência, para o enativismo. A alusão, feita no texto acima, às transformações no ambiente externo produzidas pelas células, serão mais adiante, neste trabalho, examinadas na forma das transformações cognitivas. Veremos como a cognição corpórea compreende os processos cognitivos como ontológicos, ao menos em dois sentidos: pelo fato de eles serem considerados como processos materiais, e não meras propriedades, e por significarem a cocriação de um mundo, e não mera representação. Há outros trabalhos69 que têm discutido a questão da emergência ontológica. É o caso do artigo “The search for ontological emergence”, de Michael Silberstein e John McGeever, em que os autores afirmam: Podemos distinguir a emergência epistemológica, que é apenas uma limitação do aparelho descritivo, da emergência ontológica, que deverá envolver recursos causais de um sistema como um todo, não redutíveis às propriedades de suas partes, o que implica o fracasso do reducionismo do todo à parte e da superveniência mereológica (SILBERSTEIN & MCGEEVER, 1999, p. 01).

Outras considerações sobre o conceito de emergência ainda serão feitas adiante, mas no âmbito já das teorias corpóreas. Porém, há ainda necessidade de tratarmos de outro aspecto, que complementa tecnicamente as características da noção de sistema que orienta os modelos corpóreo-experienciais, e que vimos estar presente nas questões da auto-organização e da emergência: a complexidade. 2.1.5. A noção de complexidade O tema da complexidade talvez seja o que mais evidencie o caráter de modelo da imagem corpóreo-experiencial da cognição. Embora a noção de modelo adotada neste 69

Ver, por exemplo, BITBOL, 2007, e DI PAOLO et al 2010, p. 40.

179

trabalho não se restrinja à de modelo matemático (vide seção 1.1.1), referências de vários autores a sistemas complexos costumam incluir a menção a modelos matemáticos dinâmicos como forma de explicar tais sistemas. É como diz Fritjof Capra, assimilando sistemas autoorganizados à noção de complexidade: A concepção dos sistemas vivos como redes auto-organizadoras cujos componentes estão todos interligados e são interdependentes tem sido expressa repetidas vezes, de uma maneira ou de outra, ao longo de toda a história da filosofia e da ciência. No entanto, modelos detalhados de sistemas auto-organizadores só puderam ser formulados muito recentemente, quando novas ferramentas matemáticas se tornaram disponíveis, permitindo aos cientistas modelarem a interconexidade não-linear característica das redes. A descoberta dessa nova "matemática da complexidade" está sendo cada vez mais reconhecida como um dos acontecimentos mais importantes da ciência do século XX (CAPRA, 2004 [1996], p. 88).

O que se depreende desta afirmação é que até mesmo para se conceber a ideia de sistema complexo foi necessário o desenvolvimento de ferramentas matemáticas. É conveniente, contudo, dar um passo atrás para examinar, antes dos sistemas complexos e dos sistemas dinâmicos não-lineares, alguns aspectos gerais da ideia de sistema dinâmico. Mencionando sua aplicação à cognição, Evan Thompson fornece a seguinte descrição da noção de sistema dinâmico, assinalando a ambiguidade, que já foi mencionada anteriormente neste trabalho, que envolve duas acepções de sistema – o objeto “real”, e a sua representação teórica.

180

A ideia central da abordagem dinâmica é que a cognição (...) é um fenômeno dinâmico e, portanto, precisa ser entendida a partir da perspectiva da ciência dos sistemas dinâmicos. Essa perspectiva inclui teoria dos sistemas dinâmicos (um ramo da matemática pura), modelagem de sistemas dinâmicos (modelagem matemática de sistemas empíricos) e investigações experimentais de fenômenos biológicos e psicológicos informados por essas ferramentas. (...) Em termos simples, um sistema dinâmico é aquele que muda ao longo do tempo. O termo sistema, contudo, é ambíguo, já que ele pode referir-se a um sistema real no mundo, tal como o sistema solar, ou a um modelo matemático de um sistema real. No caso do mundo real, o termo sistema não admite uma definição precisa. Em geral, um sistema é um conjunto de entidades ou processos relacionados que se destaca de um fundo como um todo, conforme algum observador vê e conceitua as coisas. O exemplo clássico da história da ciência é o sistema solar. Seus componentes são o sol, a lua e os planetas, e seus estados são suas possíveis configurações. (...) O que muda ao longo do tempo é o estado do sistema. Um sistema dinâmico, no sentido de um modelo, no entanto, é uma construção matemática que tem como objetivo descrever e prever a forma como um sistema real muda ao longo do tempo (as trajetórias dos planetas, e eventos como eclipses, no caso do sistema solar). Para este fim, alguns aspectos do sistema real são apontados como sendo especialmente importantes e são matematicamente representados por variáveis quantitativas. Especificar os valores numéricos de todas as variáveis em um dado momento indica o estado do sistema neste momento. Um sistema dinâmico inclui um procedimento para a produção de tal descrição do estado do sistema e uma regra para transformar a descrição do estado atual em outra descrição do estado em um momento futuro. Um sistema dinâmico é, portanto, um modelo matemático do modo como um sistema muda ou se comporta na medida em que o tempo passa. (THOMPSON, 2007, p. 38-39)

Evan Thompson, além de reiterar a ideia, já apresentada anteriormente nesta seção, de que um sistema é normalmente considerado quanto às suas mudanças ao longo do tempo, reforça também a observação de que a descrição científica destas mudanças exige uma formalização matemática – já feita anteriormente nesta seção, quando mencionada a matematização do sistema mecânico newtoniano. Mas quando passamos dos sistemas dinâmicos lineares para os sistemas dinâmicos não lineares, esta mudança se faz acompanhada da eclosão da noção de complexidade. E esta exigência será feita, justamente, na utilização dos sistemas dinâmicos para compreender a cognição, de acordo com a orientação corpórea. Prossegue, a respeito da não linearidade, Evan Thompson: [Nos sistemas dinâmicos lineares], dados os valores iniciais das variáveis (as condições iniciais), todos os estados futuros do sistema podem ser conhecidos sem se recalcular o estado do sistema para cada incremento de tempo. (...) Quando as equações contêm termos não lineares – funções em que o valor de saída não é diretamente proporcional à soma das entradas – então, tal solução é impossível. Portanto, uma abordagem matemática diferente tem de ser adotada a fim de se encontrar uma fórmula que possibilite a previsão de um estado futuro a partir de um estado presente (Ibid., p. 39-40).

Este problema da não linearidade do comportamento e da inteligibilidade de certos sistemas já havia sido levantado nesta seção, quando examinadas as questões da autoorganização e da emergência. Este fato reforça como os temas da auto-organização, da

181

emergência e da complexidade estão articulados na noção de sistema que vem sendo empregada pela cognição corpórea – constituindo diversos aspectos de uma mesma noção, em si mesma complexa (HOOKER, 2011, p. 5). Resta compreendermos melhor as características da complexidade tal como se desenvolveram ao longo do século 20, e como esta noção chegou a ser absorvida pela orientação corpórea das ciências cognitivas. Para melhor delimitarmos o conceito, retomemos a narrativa de Thompson. O termo complexidade descreve um comportamento que não é nem aleatório nem ordenado e previsível; ao contrário, refere-se a um comportamento que exibe padrões cambiantes e instáveis. De particular importância no contexto das recentes abordagens dos sistemas dinâmicos não lineares para o cérebro e o comportamento é a noção de complexidade como instabilidade dinâmica ou metaestabilidade (...). A ciência atual indica que complexidade deste tipo pode ser encontrada em inúmeras escalas e níveis, desde os moleculares e organicistas, aos ecológicos e evolutivos, bem como o neural e comportamental. Em todos os casos a mensagem parece ser que a complexidade, e a instabilidade ou a metaestabilidade, são necessárias para a auto-organização e o comportamento adaptativo (THOMPSON, 2007, p. 40).

Porém, esta já é uma acepção recente de complexidade. Em busca da origem do conceito no século 20, levemos em consideração uma afirmação de Gaston Bachelard: Na realidade, não há fenômenos simples; o fenômeno é uma trama de relações. Não há natureza simples, substância simples; a substância é uma contextura de atributos. Não há ideia simples, porque uma ideia simples, como viu muito bem Dupréel, deve ser inserida, para ser compreendida, num sistema complexo de pensamentos e de experiências. A aplicação é complicação. As ideias simples são hipóteses de trabalho, conceitos de trabalho, que deverão ser revistos para receberem seu devido valor epistemológico. As ideias simples não são a base definitiva do conhecimento; aparecerão por conseguinte num outro aspecto quando as colocarem numa perspectiva de simplificação a partir das ideias completas (BACHELARD, 1978 [1934], p. 164)

Embora estas palavras denotem o início da atenção ao tema, encontraremos apenas mais tarde, num artigo “Science and complexity”, de Warren Weaver – como já foi dito no capítulo 1, colaborador de Claude Shannon –, uma alusão direta à questão da complexidade, ou, mais precisamente, da complexidade organizada: Um vírus é um organismo vivo? O que é um gene, e como é que a constituição genética original de um organismo vivo se expressa nas características desenvolvidas do adulto? As moléculas de proteínas complexas "sabem” como reduplicar seu padrão, e isto é uma pista essencial para o problema da reprodução de seres vivos? Todos estes problemas são certamente complexos, mas eles não são problemas de complexidade desorganizada, para que métodos estatísticos têm a chave. Eles são todos problemas que envolvem lidar simultaneamente com um número considerável de fatores que estão inter-relacionados em um todo orgânico. Eles são todos, na linguagem aqui proposta, problemas de complexidade organizada (WEAVER, 1947, p. 05)

Mencionando a mesma expressão como resultado do processo histórico da ciência – “complexidade organizada” – Stuart Kauffman sintetiza à sua maneira, comparando as

182

combinações entre as noções de simplicidade/complexidade e organização/desorganização, algumas das observações que foram feitas nesta seção sobre as transformações da noção de sistema nos últimos séculos: A ciência do século XVIII, após a revolução newtoniana, foi caracterizada pelo desenvolvimento das ciências da simplicidade organizada, a ciência do século XIX, via mecânica estatística, esteve focalizada na complexidade desorganizada, e a ciência dos séculos XX e XXI tem enfrentado a complexidade organizada. Em lugar nenhum este enfrentamento é tão gritante como na biologia. (KAUFFMAN, 1993, p. 173).

Embora não mencione auto-organização, mas apenas organização, este trecho (escrito, como se vê, na última virada de século) enseja que se pense em um fato: a noção de complexidade em seres vivos tem sido com tal frequência associada à de auto-organização, que dificilmente se pode defini-la, nas ciências da vida recentes, de maneira isolada desta inter-relação. Sobre este ponto, levemos em conta os dois textos abaixo, o primeiro de Henri Atlan e o segundo de Jean-Pierre Dupuy e Paul Dumouchel, que fazem alusão à origem cibernética70 não apenas de ambos os conceitos, mas também de sua vinculação mútua: Que querem dizer essas noções de informação, código e programas, aplicadas, não a máquinas artificiais, mas a sistemas físico-químicos naturais? O fato de qualificá-las de psicológicas não basta, porque, embora a psicologia as utilize, elas não são apenas psicológicas. São, na verdade, noções cibernéticas que se situam “no ponto de articulação do pensamento e da matéria’’ (Costa de Beauregard), ou “entre a física e a biologia” (S. Papert), e que fazem com que voltemos a nos interrogar sobre a questão da realidade material ou ideal das noções físicas, até mesmo as mais corriqueiras. Com efeito, se nos restringirmos à biologia, essas noções, pelas respostas que sugerem para as antigas questões sobre a origem da vida e a evolução das espécies, de fato provocam a emergência de indagações inteiramente novas e fundamentais sobre a realidade física da organização, sobre a lógica da complexidade e sobre a lógica dos sistemas auto-organizadores (ATLAN, 1992[1979], p. 20 – grifo meu). É para esclarecer esta continuidade/descontinuidade entre cibernética das máquinas artificiais e a cibernética das "máquinas naturais" que os pesquisadores retomaram em anos recentes perguntas sobre a lógica das organizações complexas, que haviam sido levantadas pelos pioneiros cibernéticos da auto-organização. Categorias de conhecimento heterodoxo foram propostas de vários quadrantes, frequentemente complementares, por vezes contraditórias: a causalidade circular de entre níveis de uma organização hierárquica, hierarquia entrelaçada, emergência do radicalmente novo, a instabilidade do caos e a capacidade organizadora dos mesmos, a extensão aos sistemas não humanos de conceitos como eu, sujeito, significação, laços recursivos e paradoxo sauto-referenciais, etc (DUPUY & DUMOUCHEL, 1984, p. 2)

70

Para uma discussão do tema da complexidade no âmbito da cibernética, considerando o conceito de informação, na Nona Conferência Macy, v. o texto “Feedback mechanism in cellular biology”, de Henry Quastler (VON FOERSTER, 1952, p. 167-181).

183

Embora seja um erro considerar o contrário, isto é, que a auto-organização somente possa estar associada a sistemas complexos – um exemplo notório de auto-organização em um sistema simples são as “tortoises” de Grey Walter (GREY WALTER, 1950), precursoras da vida artificial, mas há outros semelhantes –, foi justamente na forma do amálgama com a auto-organização, do qual também faz parte a noção de emergência, que a complexidade biológica se fez presente, com uma feição própria, na constituição da cognição corpórea, e sobretudo através da abordagem enativista (THOMPSON & VARELA, 2001; DI PAOLO et al 2010). Contudo, há um campo em que a teoria dos sistemas dinâmicos não lineares e, consequentemente, a noção de complexidade, têm sido aplicadas à cognição, de maneira especialmente influente para a cognição corpórea. Trata-se do emprego dos sistemas dinâmicos não lineares ao funcionamento do cérebro. Este ponto é muito importante porque demonstra que a cognição corpórea envolve também uma compreensão alternativa dos processos cerebrais, e, ao contrário do que se pode suspeitar, não recusa a relevância deste órgão. Vejamos como esta abordagem se desenvolveu – a partir do conexionismo. Varela, Thompson e Rosch assim descrevem este processo histórico de investigação e desenvolvimento conceitual: Em 1958, Frank Rosenblatt construiu o Perceptron – um aparelho simples dotado de alguma capacidade de reconhecimento – puramente com base nas mudanças de conectividade entre componentes semelhantes a neurônios. (...) A história nos mostra que estes pontos de vista alternativos foram literalmente eliminados da cena intelectual em favor das ideias computacionais (...). Foi somente no final da década de 1970 que ocorreu a explosiva retomada dessas ideias. (...) Certamente, um dos fatores que contribuiu para a renovação desse interesse foi a descoberta paralela da auto-organização na física e na matemática não linear, bem como o amplo acesso a computadores com maior velocidade de processamento (VARELA el al, 1991, p. 85-86 – grifos meus).

Como já se observou anteriormente, as controvérsias sobre o modelo lógicoproposicional da cognição começaram nas próprias Conferências Macy, mesmo que este modelo tenha prevalecido no nascimento das ciências cognitivas. Mas, como vem sendo discutido ao longo desta seção, muitas alternativas a ele se produziram durante o período cibernético – ainda que fossem alternativas esparsas e dependentes do desenvolvimento de novas ideias e ferramentas ainda pouco testadas. O uso do instrumental fornecido pelos sistemas dinâmicos não lineares foi, como apontam Varela et al, uma das maneiras de se explicarem processos cognitivos distribuídos e não redutíveis a uma imagem determinista linear. Porém, em consonância com o que afirma o texto acima, apenas ao longo da década de 1970 o conexionismo se uniu ao emprego dos sistemas dinâmicos não lineares nas pesquisas sobre o cérebro.

184

Varela e seus coautores, no mesmo livro, assinalam duas limitações do modelo lógicoproposicional, que, segundo eles, teriam provocado o desenvolvimento da alternativa conexionista. Ressalte-se que esta argumentação vem ao encontro da ideia defendida neste trabalho de que não apenas a cognição corpórea, mas também muitas das formulações que a influenciaram, decorreram de tentativas de solucionar problemas que o modelo lógicoproposicional teria se mostrado incapaz de enfrentar: 1) O fato de o processamento simbólico de informações ser baseado em regras sequenciais, aplicadas uma por vez, naquilo que os autores chamaram de “gargalo de Von Neumann”. Tal limitação é crucial na medida em que não permite dar conta de “um grande número de operações sequenciais, como a análise de imagens ou a previsão do tempo.” Esta deficiência recomendaria supor um processamento paralelo. (Ibid., p. 86); 2) O fato de o processamento simbólico de informações ser “localizado”, o que implica que a “perda ou o mau funcionamento de qualquer parte dos símbolos ou regras do sistema resulta em uma disfunção séria.” Esta limitação recomendaria supor um processamento distribuído. (Ibid.). Percebe-se que ambas as limitações se aplicam não apenas à cognição humana, ou ao cérebro. Alcançam também o processamento de máquinas computacionais. Isso nos leva a compreender que o modelo lógico-proposicional seria uma simplificação excessiva, mesmo para as necessidades da inteligência artificial, o que é corroborado pela tentativa de se desenvolverem computadores dotados de processamento distribuído e paralelo, por vezes inspirados na própria arquitetura do cérebro – o que seria chamado de “brain-style modeling” (RUMELHART& MCCLELLAND, 1986; PINKER & PRINCE, 1988). Mas, Varela, Thompson e Rosch acrescentam ainda que uma importante mudança proporcionada pelo conexionismo teria sido utilizar como padrão de cognição a criança, em vez do especialista. Isto porque “ficou claro que o tipo mais profundo e fundamental de inteligência é a do bebê capaz de adquirir a linguagem a partir de enunciados cotidianos dispersos, e de formar objetos significativos a partir do que parece ser um mar de luzes” (Ibid.). No mesmo texto, eles ainda ressaltam a característica de plasticidade do processo cognitivo. Referem-se à “regra de Hebb”, proposta por Donald Hebb, em 1949: “se dois neurônios tendem a ser ativados conjuntamente, sua conexão é fortalecida; caso contrário, ela é enfraquecida. Consequentemente, a conectividade do sistema torna-se inseparável de sua história de transformações” (Ibid., p.87). Estas duas concepções são de fundamental importância para o que neste trabalho é considerado o cerne da ideia de cognição corpórea:

185

que os significados cognitivos são desenvolvidos, nos e pelos indivíduos, através de suas experiências de interação e transformação sensório-motora com o mundo, e não obtidos através do acesso a uma suposta estrutura transcendente de sentidos literais. Ao contrário, a suposição de que os significados cognitivos são previamente estabelecidos, e alimentam um processo algorítmico de manipulação de símbolos, toma como padrão o modo de raciocinar “correto” científico ou filosófico, assumido como a forma mais plenamente desenvolvida de cognição. Curiosamente, as abordagens conexionista e dos sistemas dinâmicos não lineares, embora aplicadas ao cérebro, significam uma preparação da valorização do corpo como um todo na compreensão da cognição, própria da cognição corpórea. Em primeiro lugar, por apontarem as limitações do modelo lógico-proposicional, que é a imagem da cognição desencarnada por excelência. Em segundo lugar, por contribuírem para a concepção de uma noção de cérebro como corpo, inclusive no seu caráter de autotransformação. E em terceiro lugar – o que de certa forma é um corolário do fator anterior – por fortalecerem a admissão de conexões orgânicas entre o cérebro e o resto do corpo. Quanto às características específicas dos sistemas dinâmicos não lineares – aqui considerados como os sistemas “em si”, e não no sentido da ferramenta matemática, por mais problemática que seja essa suposição –, ressalte-se a seguinte afirmação de Raymond Gibbs: Uma característica fundamental dos sistemas dinâmicos é que eles são autoorganizados – eles chegam a novos estados simplesmente através de seu próprio funcionamento, sem especificação do ambiente ou de determinação vinda de dentro. Com a mudança contínua de um ou mais parâmetros de controle (de modo semelhante, mas não equivalente a variáveis independentes), novos estados surgem espontaneamente como uma função não linear de interações entre os componentes dos sistemas. (GIBBS, 2005, p. 225).

Mais do que reafirmar o vínculo entre complexidade e auto-organização, este trecho salienta a imprevisibilidade própria deste tipo de sistema, o que contrasta com a maior previsibilidade característica do modelo lógico-proposicional. Esta observação é suficiente, por ora, para os propósitos desta seção de caráter histórico. Muito ainda se poderia dizer sobre a importância da história dos conceitos de complexidade e sistemas dinâmicos não lineares para a formação da cognição corpórea. Porém, haverá ocasião, nas próximas seções, para tratar de aplicações diretas destes conceitos nos trabalhos dos autores desta orientação, o que dispensa que se prolonguem no momento maiores considerações sobre eles. Façamos então uma espécie de balanço sobre a influência da história das transformações da noção de sistemas para a cognição corpórea. Em relação ao legado da

186

Segunda Cibernética e da Teoria Geral dos Sistemas, e como já foi advertido anteriormente neste trabalho, a cognição corpórea pode ser compreendida como uma síntese de diversas noções produzidas por aquelas tradições. Por este prisma, o que a cognição corpórea tem feito é promover uma convergência eminentemente científica – isto é, não apenas teórica mas experimental e observacional – dos temas ligados à teoria dos sistemas dos anos 1960 e 1970. O esforço que se nota é para dar um novo sentido a noções como auto-organização, emergência e complexidade. Ou, melhor dizendo, o efeito da estratégia explícita da orientação corpórea tem sido promover uma composição destas noções de tal maneira que elas convergem e quase se fundem. Para melhor compreender este ponto, mais uma vez será considerada uma formulação de Varela, Thompson e Rosch: A estratégia (...) é construir um sistema cognitivo sem começar com símbolos e regras, mas com componentes simples que se conectariam intensamente uns com os outros de maneira dinâmica. Nessa abordagem, cada componente opera apenas em seu ambiente local, de forma que não há um agente externo que, digamos, redirecione o eixo do sistema. Entretanto devido à construção da rede do sistema, uma cooperação global emerge espontaneamente quando os estados de todos os “neurônios” participantes alcançam um estado mutuamente satisfatório. Em tal sistema, não há necessidade de uma unidade de processamento central para orientar toda a operação. Essa passagem das regras locais para a coerência global é o cerne do que se costumava chamar de auto-organização nos anos da cibernética. Hoje as pessoas preferem falar de propriedades emergentes ou globais, dinâmica de rede, redes não-lineares, sistemas complexos ou mesmo sinergética (VARELA et al, 1991, p. – grifos em negrito meus)

Foram grifados nesta passagem os termos que denotam exatamente as noções de autoorganização, emergência e complexidade, mas sobretudo para demonstrar como elas se aproximam umas das outras na cognição corpórea – ou, ao menos, no enativismo. E podemos dizer também que a chave para compreensão desta aproximação, ou desta síntese, está na frase grifada: “Em tal sistema, não há necessidade de uma unidade de processamento central para orientar toda a operação”. Isto quer dizer que foi através, sobretudo, da recusa a um dos pilares do cognitivismo – o processamento central – que se promoveu a síntese aqui mencionada. Dito de outra forma: ambas as decorrências históricas da primeira cibernética, quais sejam, as ciências cognitivas clássicas e a Segunda Cibernética, se encontram dessa forma na gênese da cognição corpórea. As ciências cognitivas clássicas, como alvo de rejeição

em

seus

pressupostos

cognitivistas

mas,

também,

como

padrão

de

multidisciplinaridade no estudo da cognição; a Segunda Cibernética, como origem de noções novas, mais ainda dispersas e pouco amadurecidas: ambas, contudo, proporcionaram motivações para que, mediante a contestação do modelo-lógico-proposicional do cognitivismo, as noções de auto-organização, emergência e complexidade adquirissem

187

coerência inédita. Desta maneira, a imprecisão apontada anteriormente, quando foi referido o conceito de auto-organização tal como tratado por Dupuy, se reduz. Mas somente se reduz porque há uma nova noção de sistema, para a cognição corpórea que, necessariamente, se ergue da rejeição à noção de sistema do cognitivismo. Sendo assim, podemos considerar que o trecho recém citado de Varela et al apresente, a seu modo, uma definição de sistema bastante adequada para a cognição corpórea – sobretudo se assinalarmos que se trata de um sistema ao mesmo tempo observado e observador e, em ambas as perspectivas, ativo. Ademais, na passagem acima fica bem caracterizado aquilo que Isabelle Stengers chamou de causalidade organicista, desde que se esteja falando de sistemas vivos. Isto porque na concepção de sistema nela proposta não se apela para princípios holistas ou vitalistas para tentar explicar como a coerência global nos seres vivos nasce de comportamentos que fogem ao padrão mecanicista, ou para apresentar uma alternativa ao reducionismo. No trecho citado, ao contrário, encontramos uma concepção materialista. Haverá ensejo nas próximas seções para que se retome, sob outros prismas, a questão do materialismo da cognição corpórea. Mas, com o que se acaba de discorrer, podemos dar por concluída a incursão sobre os antecedentes da cognição corpórea relacionados ao conceito de sistema, e suas transformações ocorridas nos últimos séculos, com ênfase naquelas que se deram no século 20. A seguir, serão abordados dois outros temas importantes para a eclosão da cognição corpórea, ainda no âmbito biofisiológico: o primeiro é o da autopoiese; o segundo virá indiretamente através da fenomenologia, por meio das influências da Gestalt na biologia; Posteriormente, se tratará da influência da psicologia, da linguística e de fatores culturais na cognição corpórea. 2.1.6. Autopoiese e autonomia O primeiro dos dois temas retoma, de certa forma, o conceito de autonomia, e, embora ainda relacionado às transformações do conceito de sistema e próxima às noções de autoorganização, emergência e complexidade, trouxe algumas questões e características destacadamente novas e de extrema relevância para a gestação da cognição corpórea: trata-se do conceito de autopoiese. Para identificar as raízes deste conceito, retomemos o trabalho de Heinz Von Foerster, porém agora como empreendedor científico, para analisar, ainda que com brevidade, a importância do seu Biological Computer Laboratory para o nascimento da cognição corpórea. O Biological Computer Laboratory foi fundado na Universidade de Illinois, em 01/01/1958 – ou seja, quase cinco anos após a décima e última das Conferências Macy, das quais Von Foerster foi relator. No período entre as Conferências Macy e a

188

fundação do Biological Computer Laboratory, Von Foerster realizou, entre outros, trabalhos com Warren McCulloch no MIT e com Arturo Rosenblueth no México, com ênfase em neurofisiologia e fisiologia muscular (MÜLLER, 2000, p. 283). Não cabe nos limites desta pesquisa apresentar uma análise comparativa entre o Biological Computer Laboratory e outras iniciativas que tiveram importância para as ciências cognitivas, como as próprias Conferências Macy, o acolhimento às pesquisas de Herbert Simon e Allen Newell pela RAND Corporation ou mesmo o financiamento Sloan – embora uma comparação deste tipo possa ser bastante útil para a compreensão dos desafios colocados ao paradigma cognitivista no período. Um ponto que merece maiores esclarecimentos é aquele das causas do fim do laboratório por falta de recursos, em 1974. É suficiente, contudo, para atender aos propósitos deste trabalho, registrar que participaram do Biological Computer Laboratory, de vários modos, cientistas como os ingleses W. Ross Ashby, Stafford Beer e Gordon Pask; os alemães Gotthard Günther e Ernst Von Glasersfeld; e os chilenos Humberto Maturana, Francisco Varela e Ricardo Uribe, entre outros. Este caráter internacional diferencia a iniciativa em relação às outras citadas, sem deixar de se vincular às inclinações heterodoxas do local. Afinal, o Biological Computer Laboratory foi o centro de pesquisa mais importante da Segunda Cibernética. Não apenas isto; a importância do Biological Computer Laboratory para o conceito de autopoiese fica evidente na seguinte citação: Hipóteses e programas de pesquisa "desviantes" tornaram-se cada vez mais característicos do estilo BCL, ou do estilo de pesquisa de seus protagonistas. Romper com a corrente principal de pesquisa não foi claramente o objetivo pretendido, mas foi o resultado óbvio da próxima fase da história do laboratório, cujo início pode ser datada de meados dos anos 1960. Naquela época, Heinz Von Foerster visitou o cientista chileno Humberto Maturana, que conheceu em uma conferência na Europa, em seu laboratório em Santiago, e, posteriormente, convidou-o para o BCL. Maturana já tinha estado nos Estados Unidos, tendo trabalhado durante algum tempo no MIT, onde ele não tinha se encaixado tão bem devido às suas opiniões "teimosas". Naquela época (em 1959), ele já tinha um difícil relacionamento com o laboratório de Marvin Minsky, o "mentor" posterior das pesquisas em de inteligência artificial. Então Maturana chegou ao BCL, onde trabalhou, entre outras coisas, em um artigo importante que conduz em direção à sua já famosa teoria da autopoiese. Mesmo a mais antiga formulação da teoria da autopoiese, como mais tarde foi articulada, apareceu pela primeira vez como uma publicação interna no BCL. Alunos e colegas de trabalho de Maturana também desenvolveram vínculos com o BCL, e importantes primeiras publicações – por exemplo, de Francisco Varela – foram feitas como reports do BCL. (...) Foi provavelmente o desafio fornecido pelo ímpeto do grupo chileno que permitiu a Heinz Von Foerster avançar no desenvolvimento de sua versão radical de uma "cibernética de segunda ordem". Isto não significa que os conceitos de Foerster poderiam ser derivados dos de Maturana, ou vice-versa. (...) A contribuição de Foerster pode ser lida como uma resposta direta à de Maturana e vice versa. O principal paralelo entre Foerster e Maturana parece consistir na guinada da autotematização que, por sua vez, foi dirigida ao mainstream científico nos anos 1960 e no início dos 1970. Dois leitmotifs podem ser vistos aqui – o de "fechamento" e o do "observador". (MÜLLER, 2000, p. 288)

189

O que Müller afirma, na verdade, é que os trabalhos de Maturana e Varela também influenciaram Von Foerster. Mais do que isto: para os propósitos da presente investigação é especialmente relevante que o convite de Von Foerster a Maturana tenha se dado numa visita do primeiro a Santiago – visto que naquele período era muito mais frequente o fluxo de pesquisadores no sentido da América Latina para a América do Norte. Isto remete ao fato de que a relação de Von Foerster com Maturana e Varela é fundamental para que compreendamos o sentido político – e ontológico – da cognição corpórea. Voltaremos a este ponto adiante, ao tratarmos do papel de Von Foerster na difusão do conceito de autopoiese. Mas esta constatação contribui também para que se reforce a convicção de que o ambiente precursor da cognição corpórea envolvia forte intercâmbio de ideias e o enfrentamento coletivo de controvérsias. É o que atesta, também, Isabelle Stengers, advertindo, no entanto, para os problemas na articulação entre auto-organização e autopoiese: Von Foerster integrou sem qualquer problema a autopoiese de Maturana e Varela às teses do BCL. Ela se uniu profundamente à vocação primeira do laboratório: pensar a diferença entre os computadores e autômatos de que dispomos e o que seria um autômato semelhante ao vivo. Mas a noção de auto-organização tornou-se, no momento do contato entre Maturana, Varela e Von Foerster, muito estranha a esta vocação para que o encontro tivesse lugar em torno deste tema (STENGERS, 1985 p. 56)

Para que se esclareça a relação entre a ideia de autômato e a de ser vivo neste contexto, as diferenças entre auto-organização e autopoiese, e a importância disto para a cognição corpórea, alguma incursão precisa agora ser feita aos antecedentes chilenos do conceito de autopoiese, sobretudo à obra de Maturana. Um aspecto relevante da contribuição de Maturana está na noção de que os seres vivos se caracterizam pelos processos através dos quais se conservam. Segundo seu próprio depoimento (MATURANA & VARELA, 1998 [1974]; MATURANA, 2012), ele chegou a esta ideia a partir das perguntas equivalentes: "O que começou quando os seres vivos começaram a existir na Terra e foi conservado desde então?”, ou "Que tipo de sistema é um sistema vivo?". A segunda forma da questão já foi brevemente discutida nas páginas anteriores, sobretudo quando foram examinados os trabalhos de Von Bertalanffy e Weiss. Contudo, a resposta que Maturana propôs – e que está na origem da noção de autopoiese – se diferencia daquelas que levaram ao conceito de auto-organização de seres vivos, tal como investigado neste trabalho até o momento. Ela se notabiliza por estar centrada na ideia de individualidade:

190

Eu pensei que o que era fundamental para explicar e compreender os sistemas vivos era atentar para a sua condição de seres discretos, entidades autônomas que vivem a sua vida como unidades independentes. Na verdade, eu pensei (como eu ainda faço) que a coisa mais importante sobre a biologia como uma ciência é o fato de que o biólogo lida com entidades discretas e autônomos que, em sua operação individual, geram fenômenos gerais que são válidos para todos os membros da classe de seres vivos: o que é central na biologia é o que acontece na vida dos seres vivos como individualidades. Ao mesmo tempo, eu acho que a coisa mais importante na física como uma ciência é que o físico lida com leis gerais e não com as particularidades das entidades que, estando subordinados a elas, tornam o funcionamento dessas leis aparentes através de suas relações e interações: o que é central na física são as leis gerais que definem o que é possível e o que não é possível nas relações e interações de entidades em geral, sem se importar com a sua possível individualidade (MATURANA & VARELA, 1998 [1974], p. 11 – grifo meu).

O destaque para a noção de “operação” é importante na medida em que antecipa a ideia de clausura operacional, essencial na noção de autopoiese. A característica de clausura, ou fechamento, do ser vivo, já se percebe no pensamento de Maturana ao examinarmos a seguinte passagem retrospectiva, na qual ele se refere a suas ideias nos anos 1960: Eu não tinha o conceito de circularidade ou autoprodução ainda; que veio um pouco mais tarde. Eu vi então que tudo no sistema vivo mantém um conjunto de relações moleculares circulares de uma forma que se constitui espontaneamente um sistema vivo como uma entidade discreta autônoma. De fato, eu tinha chegado a compreender que os sistemas vivos são entidades moleculares dinâmicas discretas que existem como redes circulares fechadas de produções moleculares que, através de suas interações, produzem a mesma rede molecular fechada que as produziu, e em que tudo podem mudar, desde que a sua estreita dinâmica molecular circular permaneça invariável (MATURANA, 2012, p. 159)

Nota-se que, diferentemente do que vimos nos diversos aspectos do conceito de autoorganização, o que mais importa na clausura operacional é a independência do sistema em relação ao ambiente, no que diz respeito à sua capacidade de se manter. Este seria o caráter de sua autonomia, que não chega a revelar incompatibilidade entre auto-organização e autopoiese. Digamos que o primeiro conceito é mais geral do que o segundo, uma vez que este se refere a sistemas que se autocriam, autoproduzem, no todo e em suas partes, e não apenas organizam, por si mesmos, partes pré-existentes. Disto decorre uma importante implicação para a cognição corpórea: os sistemas autopoiéticos, ou autônomos, dependem essencialmente de sua estrutura interna para se manterem e se autoproduzirem. Isto, acrescido do fato de que a cognição é entendida como um processo vital pela orientação corpórea, confere papel fundamental para as dinâmicas e estruturas dos seres individuais na geração dos significados cognitivos. Tal é a compreensão que se explicita quando Maturana afirma que os indivíduos que chama de “unidades compostas são sistemas determinados por suas estruturas” (MATURANA, 1988, p. 7), se reforça no comentário de Varela de que Maturana realizou a conexão entre a circularidade dos processos neuronais e dos processos orgânicos (VARELA,

191

1996, p.412), e se complementa numa obra central do enativismo, como verificamos na seguinte passagem de Evan Thompson: Um sistema autônomo, como uma célula ou organismo multicelular, não é meramente um sistema que se auto-mantém, como uma chama de vela; estes são sistemas também autoproduzidos, pois produzem seus próprios processos de automanutenção, incluindo uma fronteira topológica ativa que demarca o dentro do fora e ativamente regula a interação com o meio ambiente. Numa única célula, forma autopoiética de autonomia, uma rede metabólica delimitada por uma membrana produz metabólitos que constituem tanto a própria rede em si, quanto a membrana que permite a dinâmica limitada da rede. Outros sistemas autônomos têm diferentes tipos de processos de autoconstrução e topologias de rede. Seja o sistema uma célula, uma rede imunológica, um sistema nervoso, uma colônia de insetos ou uma sociedade animal, o que emerge é uma unidade com sua própria identidade, domínio de interações ou meio auto-produtivos, seja o sistema celular (autopoiese), somático (redes imunes), sensório-motor e cognitivo (sistema nervoso) ou social (sociedades animais) (THOMPSON, 2007, p. 65).

Alguns pontos deste trecho exigem destaque, uma vez que trazem algumas informações valiosas sobre como a noção de sistema tem sido tratada na cognição corpórea. O primeiro deles, contudo, diz respeito a como o conceito de autopoiese é associado por Thompson apenas à autonomia celular. Dito de outra forma, o autor restringe a noção de autopoiese ao caso da célula. Mas, em outra passagem do mesmo livro, Thompson esclarece a importância da noção de autopoiese para a compreensão das de autonomia e autoprodução: A autopoiese é o caso paradigmático de autonomia biológica, por duas razões. É o caso mais bem compreendido empiricamente, e fornece o núcleo "biológico" de toda a vida na Terra. Para se qualificar como autônomo, no entanto, um sistema não tem que ser autopoiético, no sentido estrito (um sistema molecular autoproduzido delimitado por uma membrana). Um sistema autopoiético produz dinamicamente seu próprio limite material ou membrana, mas um sistema pode ser autônomo sem ter esse tipo de limite material. Os membros de uma colônia de insetos, por exemplo, formam uma rede social autônoma, mas a fronteira é social e territorial, e não material (Ibid., p. 44).

Isto é, a autopoiese, embora seja um conceito originariamente circunscrito ao caso da célula, na qual a membrana tem crucial importância como ao mesmo tempo limite e meio de comunicação com o exterior, uma versão ampliada do conceito pode ser aplicada a outros sistemas autônomos, se o que se quer é destacar sua qualidade de sistema que se autoproduz. Mas outro ponto da primeira citação de Thompson, acima, merece especial atenção: aquele que associa a produção de identidade à autoprodução do sistema vivo. Se recordarmos que a cognição, para o enativismo, é um processo vital, e se acrescentarmos a esta ideia o que acabamos de constatar sobre as noções de autonomia e autopoiese significarem autoprodução dinâmica, concluiremos que a cognição é também um processo de transformação do ser vivo,

192

no qual ele se produz ao realizar processos cognitivos e, além disso, realiza estes processos de modo dependente de sua estrutura individual, de seu organismo, de seu corpo. O intuito de se analisar aqui o conceito de autopoiese não é de avaliá-lo em todos os seus aspectos e limites. Isto fugiria ao escopo deste trabalho. Por esta razão, basta que seja indicada a relevância deste conceito para as teses da cognição corpórea. E esta relevância não é pequena, ainda que a noção de autopoiese não venha sendo mencionada com muita frequência nos textos mais influentes da cognição corpórea71 – como, por exemplo, The embodied mind, Philosophy in the flesh, ou nos livros de Mark Johnson e António Damásio. A autopoiese (como “explicação” da noção de autonomia – VARELA, 1981) serve como meio de compreensão do que, como já vimos em citação anterior de Varela et al (1991), significa autonomia em oposição a heteronomia ou alonomia (VARELA, 1981), que corresponderiam a um controle externo. No caso da cognição, a heteronomia se associa ao modelo lógico-proposicional, na medida em que o controle externo do organismo se dá mediante um sistema simbólico abstrato e a ele transcendente, no qual os significados são produzidos predominantemente através de estímulos, ou inputs, exógenos. Este aspecto não pode, contudo, ser plenamente compreendido fora do contexto político e do questionamento ontológico que o precederam. É necessário fazer uma incursão aos acontecimentos que antecederam a disseminação do conceito de autopoiese, inseparáveis de seu próprio sentido para a cognição. Cabe então mostrar que Von Foerster teve papel central na aceitação internacional do conceito, considerando o contexto da vinculação da sua produção a seu local de nascimento e às dificuldades de sua penetração no meio científico dominante norte-americano, conforme importante narrativa de Varela (VARELA, 1996)72. O seguinte trecho revela com propriedade a consciência que Varela tinha sobre as relações entre o conceito, sua origem, sua influência e seu sentido ontológico-político:

71

Uma importante exceção é o livro Mind in life, de Evan Thompson, no qual há um capítulo, de cerca de 35 páginas, inteiramente dedicado ao conceito. Para discussões mais pormenorizadas a respeito do conceito de autopoiese, no interesse da cognição corpórea, v. BOURGINE & STEWART, 2004 e FROESE & STEWART, 2010. 72 Este artigo – contendo uma atitude política de Varela quanto à ciência – já foi referido na introdução deste trabalho.

193

Se a autopoiese tem sido influente é porque ela foi capaz de alinhar-se com um outro projeto que se concentra na capacidade interpretativa do ser vivo e concebe o ser humano como um agente que não descobre o mundo, mas sim o constitui. É o que poderíamos chamar de guinada ontológica da modernidade que, no final do século XX, está tomando forma como um novo espaço de interação social e de pensamento, e que, sem dúvida, está progressivamente mudando a face da ciência. Em outras palavras, a autopoiese é parte de um quadro muito maior do que a biologia, no qual hoje detém uma posição privilegiada. É essa sintonia com uma tendência histórica, intuída mais do que conhecida, que é o núcleo das primeiras ideias sobre a autopoiese (VARELA, 1996, p. 407-408 – grifo em negrito meu).

Independentemente de se as expectativas otimistas de Varela, quanto ao que chama de guinada ontológica na ciência, estão se concretizando ou não, é muito importante constatar quais eram seus propósitos com o conceito de autopoiese. Vemos que não se tratava apenas de uma teoria para a natureza da vida, mas englobava uma determinada compreensão da natureza da ciência e da vida social e política, ao defender que o ser humano constitui o mundo ao se autoproduzir. Este posicionamento antecipa a investigação que este trabalho se propõe a fazer das motivações pelas quais a cognição corpórea, ao mesmo tempo em que faz sua crítica ao modelo lógico-proposicional da cognição, advoga uma nova continuidade e um novo processo unificador para as ciências cognitivas. Este processo implica basicamente, como será mais explorado adiante, uma concepção ontológica e política da cognição e, por extensão, da própria ciência (e das ciências cognitivas). De qualquer modo, podemos afirmar que, se estiver havendo algum sucesso do prognóstico de Varela, parte dele estará se dando justamente através da penetração da cognição corpórea no ambiente científico contemporâneo. Observaremos que, assim como Varela, outros autores da cognição corpórea, como George Lakoff, Mark Johnson e António Damásio, têm se empenhado em propor uma nova imagem de ser humano, de natureza e de ciência ao mesmo tempo em que defendem suas teorias sobre a cognição. E é necessário destacar que o conceito de autopoiese, em sua dimensão ontológico-política explicitada por Varela acima, se coaduna com estes posicionamentos, ainda que não seja mencionado com frequência nas argumentações destes autores e de outros da mesma linha. Contudo, o mais importante no artigo que está sendo comentado é a narrativa que não apenas expõe a dificuldade – abrandada pela ação de Von Foerster –, com que a noção de autopoiese passou a circular no ambiente científico, mas revela as motivações filosóficas e políticas que já estavam presentes desde antes da sua proposição, e a acompanharam a disseminação do conceito. Dito de outra forma, fica patente no artigo que o conceito foi criado com a consciência, por parte de seus autores, que sua defesa envolveria algum tipo de embate, e que suas características se vinculam ao local e ao momento de seu nascimento – o

194

Chile do início dos anos 1970. Ademais, não deve ser negligenciado o fato de que o próprio artigo, ainda que retrospectivo, possa ser compreendido como um texto motivado politicamente, justamente no sentido de não deixar que seja esquecido, em nenhum momento, o sentido ontológico-político da autopoiese. Varela destaca, dentre as principais influências que teve no período anterior à elaboração do conceito, seu aprendizado como orientando de Maturana, suas leituras filosóficas e a cibernética. Quanto à filosofia, Varela aponta a importância da fenomenologia de Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty em sua formação. Como é bem conhecido – e como veremos adiante –, especialmente a filosofia de Merleau-Ponty foi essencial para a elaboração da concepção ontológica da cognição corpórea, e isso se deve sobretudo à leitura que Varela fez deste filósofo desde sua juventude. Entretanto, neste artigo Varela revela uma influência menos conhecida: aquela de filósofos da ciência como Thomas Kuhn, que defenderam a natureza histórico-social da dinâmica científica. Varela afirma que as noções kuhnianas de revolução científica, anomalia e paradigma foram conscientemente utilizadas por ele ao defender a autopoiese como uma nova concepção para o fenômeno da vida – isto é, como um novo paradigma biológico. Em outras palavras, Varela adotou os conceitos de Kuhn – especialmente aqueles desenvolvidos em A estrutura das revoluções científicas (KUHN, 1978 [1962]) – não como forma de explicar a posteriori as transformações no cenário da ciência, mas como tentativas de provocar estas transformações, o que não deixa de ser incomum. Foi com este raciocínio que ele identificou como anomalia da então biologia normal (para fazer alusão ao conceito e ciência normal, de Kuhn), a insatisfação dele e de Maturana com a noção de informação como chave para a compreensão da cognição. Esta posição teria levado ele e Maturana a buscar reformular a ideia de epistemologia experimental, originalmente proposta por McCulloch, com quem Maturana trabalhara no MIT. De 1968 a 1970, Varela teve outra experiência importante para sua formação como cientista, e que também aguçou sua percepção das diferenças entre as concepções então tradicionais e o que chamou de sua heterodoxia: foi quando fez seu Doutorado em Biologia na Universidade de Harvard. Lá, estudou, além dos temas ligados ao seu objeto principal, antropologia, teoria dos sistemas dinâmicos não lineares, filosofia e linguística, e se deu conta de que, diferentemente do que experimentara em Santiago, não havia recepção favorável às questões epistemológicas que o interessavam mais vivamente. Sua maior referência nos EUA era, então, exatamente Von Foerster, a quem visitou muitas vezes no Biological Computer

195

Laboratory, tendo então participado do encontro “Cognition: a multiple view”, promovido por Von Foerster, no qual Maturana apresentou o trabalho “Neurophysiology of cognition” – que viria a ser embrião da sua obra “Biology of cognition”. Mas, além disso, seu contato com a política estudantil em Harvard, animada pela onda de maio de 1968 em Paris, foi crucial, segundo sua própria narrativa, para que ele adotasse uma posição política voltada para a transformação das condições de vida na América Latina. Coincidentemente, retornou a seu país dois dias antes da eleição do socialista Salvador Allende para presidente da República do Chile. É se referindo ao período de Allende que Varela afirma, descrevendo os meses de gestação do conceito de autopoiese: Foram meses de trabalho e discussão quase constantes. Algumas das ideias eu testei com os meus alunos no curso de biologia celular, outros com colegas no Chile. Ficou claro para nós que estávamos embarcando em uma viagem que era conscientemente revolucionária e anti-ortodoxa, e que esse valor tinha tudo a ver com o clima no Chile, onde as possibilidades foram se desdobrando em uma criatividade coletiva. Os meses que levaram ao desenvolvimento de autopoiese são inseparáveis do Chile na época (VARELA, 1996, p. 412).

Assim, se nota que o conceito de autopoiese, em vez de ser estudado como um mero conjunto abstrato de formulações teóricas, deve sê-lo, de acordo com sua importância para a cognição corpórea, em função de sua íntima vinculação com o contexto em que foi elaborado e, além disso, em função do modo como foi levado ao encontro do ambiente científico fora de seu local de nascimento. Varela reporta no artigo em análise que o primeiro texto em inglês contendo o conceito de autopoiese – “Autopoiesis: the organization of the living systems”, de 1971, seu e de Maturana – foi recusado por pelo menos cinco publicações internacionais às quais fora enviado. A mesma indiferença teria ocorrido diante de sua palestra chamada “Cells as autopoietic machines”, proferida na Universidade do Colorado, nos EUA, em 1972. Por outro lado, Varela dá conta de alguns focos de boa receptividade para o conceito, como as de Von Foerster, Ivan Illich, Erich Fromm e Stafford Beer, que escreveria o prefácio de uma das edições dedicadas a ele, após trabalhar no Chile a convite do então ministro de Allende, e futuro pesquisador da inteligência artificial, Fernando Flores. Mesmo com a boa aceitação do conceito no Chile, apenas em 1973 foi publicada a versão em espanhol do livro De máquinas y seres vivos: uma teoria de la organización biológica. Porém, a tradução para o inglês do livro somente seria publicada em 1980.

196

A participação mais significativa de Von Foerster, segundo Varela, decorreu da visita já mencionada anteriormente do primeiro ao Chile. Nesta ocasião, Von Foerster contribuiu para a redação final do texto “Autopoiesis: the organization of living systems, its characterization and a model”, de Varela, Maturana e Ricardo Uribe (outro pesquisador chileno que, como já vimos, esteve no Biological Computer Laboratory). Segundo Varela, com a contribuição de Von Foerster o texto foi publicado na revista Biosystems, em 1974. Contudo, neste ano Varela já tinha sido obrigado a se exilar do Chile, devido ao golpe militar que derrubou e assassinou Allende em 1973. Foi no contexto histórico aqui apresentado que se deu o que Varela chamou de guinada ontológica, representada não apenas pelo conceito de autopoiese, como também pelas implicações políticas que são vinculadas a ele. Nas palavras do autor, Esta tendência que designo como guinada ontológica não é um modo filosófico, mas sim um reflexo da vida de todas as coisas. Estamos entrando em um novo período de fluidez e flexibilidade que arrasta consigo a necessidade de refletir sobre a maneira pela qual os seres humanos fazem o mundo em que vivem, e não já o encontram feito como uma referência permanente (Ibid., p. 415).

Esta densa passagem apresenta três pontos extremamente importantes para a presente pesquisa e suas hipóteses sobre a cognição corpórea: 1) A ideia de que o momento histórico de então exigiu uma reflexão nova sobre a construção humana do mundo, que articularia de modo inseparável as dimensões biológica, cognitiva e politica; 2) A acepção ontológica da cognição como produção de um mundo, que se consubstanciaria posteriormente no conceito de enação, oposta à perspectiva representacional de sentido meramente epistemológico73, afinada com o cognitivismo então ainda dominante nas ciências cognitivas; 3) Uma nítida posição filosófica – metafísica – do autor, que não se limita a uma suposta neutralidade científica, e orienta seu posicionamento diante da sua atividade de cientista no mundo, que ele, como vimos, compreende como algo que é permanentemente produzido, e não apenas representado. Cabe ainda uma suposição sobre este fragmento, coerente com o que foi exposto anteriormente: de que, para Varela, a própria ontologia não seja apenas um ramo da filosofia,

73

Entenda-se como “meramente epistemológico” o sentido dos estudos sobre a cognição que considere separadamente os sujeito e o objeto, como entidades independentes – tal como caracterizado pela crítica da cognição corpórea.

197

mas uma expressão da própria vida humana se autoproduzindo – concepção que envolveria, por certo, a filosofia mesma. Ao examinarmos o conceito de autopoiese ficou bastante evidente o peso da reflexão filosófica na sua elaboração. Através deste caminho, ocorreu, nesta seção, uma particular transição de questões originalmente biológicas na direção de questões filosóficas. Estas questões filosóficas passam a exigir elucidação, o que nos leva à segunda parte da seção, que se dedicará prioritariamente às influências filosóficas da cognição corpórea. Prosseguiremos a partir da ideia de guinada ontológica, ou da importância que tem a questão da produção de um mundo para a cognição corpórea, sobretudo através da abordagem corpóreo-enativa. Porém, há três observações a fazer a respeito. A primeira é que um aprofundamento da questão ontológica, para a cognição corpórea, virá com a investigação das abordagens corpóreoenativa e corpóreo-conceitual, nas seções 2.3 e 2.4 – além de algumas considerações gerais importantes na próxima seção. Sendo assim, ao contrário do que foi feito com o estudo dos antecedentes biológicos da cognição corpórea – os quais não merecerão maiores considerações nas seções seguintes –, não nos estenderemos muito nesta seção no que tange à sua base ontológica, apresentando apenas as principais referências que posteriormente serão detalhadas. A segunda observação é de que a questão ontológica que será tratada nas próximas seções tem forte conexão com a importância da noção de experiência humana para a cognição corpórea. Sendo assim, devemos investigar, agora, como nasceu a dimensão experiencial da orientação corpórea. Veremos que ela se deve predominantemente à abordagem corpóreo-enativa, e à influência da fenomenologia sobre ela. Mas a terceira observação sugere que a filosofia que mais influenciou o enativismo, a fenomenologia do comportamento e da percepção de Maurice Merleau-Ponty, já possuía, ela mesma, influências de um modo de pensar os organismos vivos que antecipou em muitos aspectos a cognição corpórea. Tom Froese cunhou o termo guinada experiencial para designar – parafraseando Varela – a atenção deste para com a fenomenologia como meio de compreender a experiência humana, o que contribuiu para que propusesse o enativismo. Paralelamente à necessidade de compreender a experiência humana, vem a necessidade de compreender o fenômeno da vida74, a ela associado, que foi enfrentado por Varela sobretudo com a noção de autopoiese. Froese afirma que “uma apropriada compreensão do fenômeno da vida deve levar em conta o corpo concreto vivo, incluindo o suas propriedades materiais e termodinâmicas, e o corpo 74

A noção de fenômeno da vida, na maior parte dos trabalhos de Varela e Thompson, tem como origem a obra de Hans Jonas (JONAS, 1966).

198

concreto vivido, incluindo suas propriedades fenomenológicas ou experienciais em primeira pessoa” (FROESE, 2011, p. 3) – fazendo referência à proposta apresentada por Evan Thompson e Robert Hanna para articular a noção biológica de corpo, vinculada à biologia da cognição, com a noção husserliana de corpo vivido (HANNA & THOMPSON, 2003). Já o adjetivo concreto Froese extraiu do artigo de Varela “The reenchantment of the concrete” (VARELA, 1995). O sentido de “concreto”, neste artigo de Varela, é empregado em oposição a “racionalista, cartesiano, objetivista” – princípios cognitivistas, segundo a cognição corpórea – e, assim, afinado com as ideias de corpóreo, encarnado, vivido. 2.1.7. A fenomenologia da percepção Tratou-se da biologia do conhecimento nas páginas anteriores, e devem ser agora exploradas as origens da noção de experiência humana no enativismo, para que possamos compreender mais plenamente como nasceu a ideia de cognição corpóreo-experiencial na confluência de biologia cognitiva com fenomenologia. A noção de experiência, tal como adotada na cognição corpórea, será objeto das seções que tratarão das abordagens que a compõem – e portanto, não será alvo desta seção –, mas algumas de suas características principais se encontram sobretudo na apropriação feita pelo enativismo da fenomenologia de Merleau-Ponty, e isto será brevemente explorado nas próximas linhas. No livro The embodied mind Varela, Thompson e Rosch destacam a importância de Merleau-Ponty para a compreensão da cognição como processo no qual percepção e ação, e organismo e ambiente, são elementos inseparáveis, e assim constituem a experiência. Mais do que isso, eles chegam a declarar que seu livro seria uma “continuação moderna” do “programa de pesquisa” de Merleau-Ponty (VARELA et al, 1991, p. xv). É merecedora de nota esta dupla afirmação. Em primeiro lugar, em razão da segunda expressão usada. Afirmar que Merleau-Ponty tenha realizado um programa de pesquisa é uma caracterização pouco usual para a atividade de um filósofo, mas, tendo em vista sobretudo o fato – que será examinado a seguir – de que ele tenha utilizado teorias de fisiologistas para embasar suas ideias, esta formulação torna-se mais compreensível. Em segundo lugar, talvez Varela, Thompson e Rosch estejam se colocando um lugar que parecem considerar ser aquele adotado por Merleau-Ponty: um inevitável “caminho do meio” entre filosofia e ciência. Uma as referências de Varela, Thompson e Rosch é o livro de Merleau-Ponty A estrutura do comportamento (MERLEAU-PONTY, 2006 [1942]), no qual destacam

199

(VARELA et al, 1991, p. 173-175) a passagem inicial em que o autor afirma, baseando-se nas teorias dos fisiologistas alemães Viktor Von Weizsäcker e Kurt Goldstein, que: 1) A concepção da cognição, com utilização da analogia de que o organismo animal seria um teclado passivo, no qual os estímulos do mundo exterior seriam “tocados”, é inadequada. Isto porque, segundo Merleau-Ponty – apoiado em Weizsäcker – o organismo ao perceber não é passivo como um teclado, mas ativo. Dito de outra forma: para que os estímulos sejam recebidos, o ser vivo que percebe tem que se movimentar e a seus órgãos dos sentidos, de maneira ativa, para que a percepção, e posterior ação, ocorram. Sendo assim, não se pode dizer, propriamente, que os estímulos sejam apenas “recebidos”. Eles, de certa forma, são colhidos, buscados, produzidos, pelo próprio animal. Deste modo, segundo Weizsäcker, citado por Merleau-Ponty, “as propriedades do objeto e as intenções do sujeito (...) não apenas se misturam, mas ainda constituem um todo novo” (MERLEAU-PONTY, 2006 [1942], p.); 2) O mundo, portanto, não é algo independente das características do organismo que o “conhece” – ou dele extrai elementos para sua sobrevivência. Ao contrário, conforme a citação de Goldstein feita por Merleau-Ponty, “o meio (Umwelt) se recorta no mundo segundo o ser do organismo – sendo claro que este só pode existir se encontrar no mundo um ambiente adequado” (Ibid,. p. 15). Tem-se a partir destas afirmações que na experiência perceptiva – que não é apenas de percepção, mas precedida e seguida de ação – o mundo que importa não é o mundo supostamente objetivo nem subjetivo, entendidos como separados, mas uma nova realidade provocada pelo encontro das duas dimensões: aquela proporcionada pelo mundo exterior, e aquela proporcionada pelo organismo. Nas palavras de Varela et al, “como Merleau-Ponty observa, o organismo tanto inicia o ambiente, quanto é moldado por ele” e “devemos ver o organismo e o ambiente como reunidos em especificação e seleção recíprocas” (VARELA et al, 1991, p. 174). É importante observar que Merleau-Ponty, ao desenvolver uma filosofia do comportamento, da percepção e da ação, não se baseou unicamente em obras filosóficas. Como já foi assinalado acima, a influência filosófica que, através da fenomenologia da percepção, ajudou a produzir a noção de enação, decorre ela mesma de trabalhos científicos. Isto deve provocar reflexões importantes sobre os limites que supostamente garantiriam a pureza dos discursos filosófico e científico, e cujo questionamento é de fundamental importância na cognição corpórea. Como já foi dito, este trabalho defende a ideia de que os

200

autores da cognição corpórea, em vez de basearem suas conclusões exclusivamente em argumentos expressos em teorias científicas, adotam posições metafísicas e políticas em seu discurso. Mas podemos dizer o mesmo de Goldstein e Weizsäcker. O segundo, que desenvolveu estudos sobretudo a respeito da medicina psicossomática, expôs ideias filosóficas relacionadas à sua produção científica em livros como Der Gestaltkreis, Theorie der Einheit von Wahrnehmen und Bewegen, de 1940, em que apresentou o conceito de Gestaltkreis, isto é, Gestalt circular, e Pathosophie (1956). Seu conceito de Gestaltkreis já antecipava importantes afirmações da cognição corpórea, como a de que a experiência atual sempre depende da maneira como experiências anteriores moldaram o organismo que a vive (HAHN, 1991). Já Kurt Godstein tem uma obra mais reconhecida e influente. É notória, por exemplo, sua importância em Georges Canguilhem (O normal e o patológico) e na obra primeira de Michel Foucault Doença mental e psicologia, de onde se extrai o seguinte trecho, no qual o autor ressalta a importância, para Goldstein, da noção de que o organismo se relaciona com o meio na medida em que constitui, ele mesmo, um todo: Estudando, nas fronteiras da medicina mental e orgânica, uma síndrome neurológica como a afasia, [Goldstein] recusa tanto as explicações orgânicas por uma lesão local, quanto as interpretações psicológicas por um déficit global da inteligência. Mostra que uma lesão cortical pós-traumática pode modificar o estilo das respostas do indivíduo a seu meio; um dano funcional limita as possibilidades de adaptação do organismo e suprime do comportamento a eventualidade de certas atitudes. Quando um afásico não pode nomear um objeto que lhe é mostrado, apesar de poder reclamá-lo, se dele necessita, não é por causa de um déficit (supressão orgânica ou psicológica), que se poderia descrever como uma realidade em si; é que ele não é mais capaz de uma certa atitude face ao mundo, de uma perspectiva de denominação que, ao invés de aproximar-se do objeto para pegá-lo (greifen), distancia-se para mostrá-lo e indicá-lo (zeigen). Quer suas designações primeiras sejam psicológicas ou orgânicas, a doença concerniria de qualquer modo a situação global do indivíduo no mundo; em vez de ser uma essência fisiológica ou psicológica, é uma reação geral do indivíduo tomado na sua totalidade psicológica e fisiológica. Em todas estas formas recentes de análise médica, pode-se, então, ler uma significação única: quanto mais se encara como um todo a unidade do ser humano, mais se dissipa a realidade de uma doença que seria unidade especifica; e também mais se impõe, para substituir a análise das formas naturais da doença, a descrição do indivíduo reagindo a sua situação de modo patológico (FOUCAULT, 1975 [1954], p. 11-12)

Pode-se dizer que, além desta concepção holística do ser humano, Goldstein se aproxima da cognição corpórea por suas posições já assinaladas na obra de Merleau-Ponty. Suas inclinações filosóficas se encontram presentes na sua concepção de biologia tal como expressa no livro The organism, e de onde se extrai o seguinte fragmento: .

201

O que se entende por mente sempre vai depender do que se entende por vida e natureza. Parece-nos que, em geral, a concepção de espírito é (e para Scheler também) determinada por uma noção incorreta do fenômeno da vida, porque ela foi arrancada, "isolada", do todo a que pertence. Desta forma, a vida se tornou imbuída de características realmente não atribuíveis a ela, um mero artefato de descrição isolada. (GOLDSTEIN, 1995 [1934], p. 354).

Goldstein explicita neste texto sua consciência de que, por trás de um discurso científico, há posições metafísicas sobre o significado dos conceitos utilizados, que não deixam de influir nas conclusões teóricas75. Além disso, expõe sua própria concepção crítica sobre conceitos como “vida” e “natureza” que, por sua vez, estarão presentes nas influências que provocou em filósofos como Merleau-Ponty, Foucault e Canguilhem – e, ainda que em sua maior parte indiretamente, sobre os autores da cognição corpórea. A menção a Weizsäcker e Goldstein recupera alguns dos temas discutidos anteriormente, quando nesta seção se tratou da importância do trabalho de alguns cientistas, como sobretudo Weiss, no desenvolvimento de uma nova noção de sistema vivo – uma noção marcada pelas ideias de holismo e auto-organização, mas buscando evitar apelar para uma interpretação vitalista do fenômeno da vida. Contudo, deve-se ressaltar neste momento que a influência de Weizsäcker e Goldstein se notabiliza não somente pelo sentido de propor novas explicações para a natureza da vida, mas sobretudo por nascer de trabalhos já comprometidos com novas concepções de ser humano, de saúde e da relação entre cognição e organismo. Sendo assim, estes autores se aproximam de uma importante dimensão da cognição corpórea: sua preocupação com as consequências práticas dos conceitos científicos. Ou ainda: que os conceitos científicos podem nascer já comprometidos, de algum modo, com a destinação que terão. Veremos mais à frente, em detalhe, como se manifesta este aspecto da cognição corpórea – embora ele já venha sendo anunciado como sendo o sentido ontológico-político da atuação dos autores dessa nova vertente das ciências cognitivas. Quanto à influência de Merleau-Ponty sobre a cognição corpórea, contudo, não deve pairar a desconfiança de que tenha sido tão somente uma transmissão direta das ideias de cientistas como Weizsäcker e Goldstein. É preciso deixar patente que alguns conceitos de Merleau-Ponty foram fundamentais, em si mesmos, para o desenvolvimento da noção da cognição como acontecimento corpóreo-experiencial. Para explicitar esta convicção, deve ser referido o sentido mais especificamente filosófico da concepção enativista. Para tanto, levemos em consideração o início do livro The embodied mind:

75

Sobre as implicações da importância da metafísica na constituição da ciência moderna e contemporânea v. VIDEIRA, 2011 e TAKIMOTO, 2013.

202

Um cientista cognitivo de inclinação fenomenológica, refletindo sobre as origens da cognição, pode pensar assim: as mentes despertam em um mundo. Não projetamos nosso mundo. Nós simplesmente nos descobrimos com ele; nós despertamos tanto para nós mesmos quanto para o mundo que habitamos. Vimos a refletir sobre este mundo à medida que crescemos e vivemos. Nós refletimos sobre o mundo que não é feito, mas encontrado, e é também nossa estrutura que nos possibilita refletir sobre este mundo. Então, ao refletirmos, nós nos encontramos em um círculo: estamos em um mundo que parece que já existia antes de a reflexão ter-se iniciado, mas esse mundo não é separado de nós. Para o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, a identificação deste círculo abriu espaço entre o self e o mundo, entre o interno e o externo. Este espaço não era um abismo ou divisor: ele englobava a distinção entre o self e o mundo e, ainda, provia a continuidade entre eles. Sua abertura revelou um caminho de meio, um entre-deux (VARELA et al, 1991, p. 03).

Pode-se dizer que o que é afirmado acima já foi dito com apoio de Weizsäcker e Goldstein. Porém, a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty apresenta outras questões além daquelas já apresentadas com apoio destes dois cientistas. Vejamos a citação abaixo, unindo as questões da reflexão e da percepção, reproduzida, em parte no livro acima mencionado: Eu comecei a refletir, minha reflexão é reflexão sobre um irrefletido, ela não pode ignorar-se a si mesma como acontecimento, logo ela se manifesta como uma verdadeira criação, como uma mudança de estrutura da consciência, e cabe-lhe reconhecer, para aquém de suas próprias operações, o mundo que é dado ao sujeito, porque o sujeito é dado a si mesmo. O real deve ser descrito, não construído ou constituído. Isso quer dizer que não posso assimilar a percepção a sínteses que são da ordem do juízo, dos atos e da predicação. A cada momento, meu campo perceptivo é preenchido de reflexos, de estalidos, de impressões táteis fugazes que não posso ligar de maneira precisa ao contexto percebido e que, todavia, eu situo imediatamente no mundo, sem confundi-los nunca com minhas divagações. A cada instante também eu fantasio acerca de coisas, imagino objetos ou pessoas cuja presença aqui não é incompatível com o contexto, e todavia eles não se misturam ao mundo, no teatro do imaginário. Se a realidade da minha representação só estivesse fundada na coerência intrínseca das “representações”, ela deveria ser sempre hesitante, e abandonado às minhas conjecturas prováveis, eu deveria a cada momento desfazer sínteses ilusórias e reintegrar ao real fenômenos aberrantes que primeiramente eu teria excluído dele (MERLEAU-PONTY, 2006 [1945], p. 06)

Este trecho bastante denso apresenta algumas questões que, embora não tenham sido explicitamente exploradas pelos autores da cognição corpórea, parecem figurar como pano de fundo de suas críticas à representação como processo intelectual, abstrato. A primeira delas é a da reflexão como algo que já se dirige a um sujeito que não é separado do mundo. A segunda, a da diferenciação entre os estímulos provenientes do mundo com aqueles provocados internamente no sujeito, o que exige que se considere o mundo como realidade, e o papel do sujeito como produtor de imaginação e fonte da distinção entre realidade e imaginação. A terceira diz respeito à implausibilidade da percepção como análise e síntese abstrata.

203

De fato, não se pode afirmar que as teses merleau-pontianas tenham sido suficientes para se estabelecer a noção de enação, ou para fundar a concepção da cognição corpórea para a inseparabilidade entre sujeito e objeto e entre percepção e ação. Como veremos nas seções subsequentes, as influências da fenomenologia, seja originada em Husserl, William James, Heidegger, Merleau-Ponty ou mesmo Hans Jonas, não foram a única fonte do enativismo. Alguns resultados de pesquisas científicas tiveram grande peso na constituição da ideia de enação, como será examinado em maiores detalhes adiante76. Assim, não se justifica neste trabalho um aprofundamento da investigação sobre a fenomenologia de Merleau-Ponty, para além do que expressamente é referido na literatura da cognição corpórea. Todavia, uma citação de Merleau-Ponty feita por Varela e seus coautores merece ainda ser examinada: “O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que só é projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta” (VARELA et al, 1991, p. 4). Coerentemente com o método que vem sendo adotado neste trabalho, não cabe uma interpretação desta passagem à luz da obra merleau-pontiana em si, mas de acordo com a apropriação que a abordagem corpóreo-enativa fez do autor. Neste sentido, embora não se possam fazer afirmações com maior certeza a respeito – até porque os próprios autores não deixam claro exatamente os critérios de sua apropriação –, esta citação parece demonstrar que a unidade entre percepção e ação e aquela entre sujeito e mundo não são diferentes em essência, ou decorrem de uma mesma condição. Isto é, a ideia de projeto vincula percepção e ação, assim como sujeito e mundo, a partir da noção de que a ação do sujeito, embora dependa do mundo e de sua própria estrutura, engloba a percepção que, sem a íntima articulação com a ação, poderia ser apenas representação abstrata e desincorporada. Ou seja, a experiência, para o enativismo, é essencialmente atividade corpórea que, por sua vez, se dá na forma da experiência. Para corroborar esta ideia, devemos reproduzir as palavras dos criadores do enativismo sobre Merleau-Ponty, naquilo que pode ser lido como um resumo de sua posição sobre o autor:

76

As principais delas foram as pesquisas de Held e Hein com a percepção de gatos (VARELA et al, 1991, p.174), de Bach y Rita com a “visão” tátil, e o trabalho sobre cores de De Valois (LAKOFF, 2003) e dos próprios Varela e Thompson,

204

Afirmamos, com Merleau-Ponty, que a cultura científica ocidental requer que vejamos nossos corpos tanto como estruturas físicas quanto como estruturas experienciais vividas – em resumo, como algo que é tanto “externo” quanto “interno”, tanto biológico quanto fenomenológico. Esses dois lados da corporeidade obviamente não são opostos. Ao contrário, transitamos para diante e para trás entre eles continuamente. Merleau-Ponty reconheceu que não podemos compreender esse movimento sem uma investigação do seu eixo fundamental, a saber, a corporeidade do conhecimento, da cognição e da experiência. Para Merleau-Ponty, assim como para nós, a corporeidade tem esse sentido duplo: inclui o corpo tanto quanto uma estrutura experiencial vivida como o contexto ou meio dos mecanismos cognitivos (VARELA et al, 1991, p. xv-xvi).

Mais uma vez se evidencia a determinação de autores da cognição corpórea em responder à cultura científica ocidental com nova perspectiva – e, para isso, invocam as teorias de Merleau-Ponty. Neste fragmento eles reafirmam que esta nova perspectiva tem como marca essencial a recusa às dicotomias que consideram tradicionais. Assim, demonstram que, filosoficamente, a cognição corpórea consiste na busca por eliminar diversos tipos de separação: entre corpo e experiência, entre sujeito e objeto, entre percepção e ação, entre cognição e vida. Como alternativa, defendem o que chamam de “entre-dois”, ou “caminho do meio”. Trata-se, evidentemente, de uma asserção bastante desafiadora, que exige de seus proponentes uma argumentação inovadora. Porque não somente propõe a ruptura com a noção de “terceiro excluído” da lógica formal – e, de resto, presente na maior parte da tradição racionalista ocidental, conforme também advogam autores da cognição corpórea (sobretudo em LAKOFF & JOHNSON, 1999) –, mas também porque defendem um pensamento dinâmico, em movimento, no sentido do “trânsito” contínuo para adiante e para trás referido no texto acima reproduzido. Disto decorre que na orientação filosófica da cognição corpórea, caracterizada pela influência, dentre outras, de Merleau-Ponty, surge então combatida outra separação, que será mais explorada adiante: entre epistemologia e ontologia. 2.1.8. Psicologia, linguística e cultura Já ficou bastante evidente a proeminência das teorias biofisiológicas no nascimento da cognição corpórea. Mesmo a importância de Merleau-Ponty para esta corrente, como acabamos de ver, não pode ser plenamente separada das influências que este filósofo recebeu de fisiologistas do início do século 20. Porém, há uma linha de antecedentes crucial para a cognição corpórea que ainda deve ser mencionada nesta seção. É aquela originada em pesquisas psicológicas e linguísticas. Na psicologia merecem destaque nos antecedentes da cognição corpórea os trabalhos de J. J. Gibson e seus seguidores (GIBSON, 1979) – aquilo que Anthony Chemero e Michael

205

Turvey chamam de “abordagem ecológica de percepção e ação” (CHEMERO & TURVEY, 2007, p. 473). A psicologia ecológica de Gibson concentra seus estudos nos animais (porque são os seres vivos aos quais se pode atribuir comportamento – dentre eles o homem) e propõe dois conceitos principais, no livro The ecological approach to visual perception (GIBSON, 1979) O primeiro deles é o de affordances77: trata-se do que o ambiente oferece, provê ou fornece ao animal, de bom ou ruim (Ibid., p. 127), como, por exemplo, o suporte ou abrigo dado por uma superfície, o alimento que uma presa possibilita ao predador, ou o perigo que um predador oferece para a presa. O segundo conceito é o de percepção direta: trata-se da atividade de se obter informações da disposição de luz do ambiente (Ibid., p. 147). Segundo Gibson, a iluminação ambiental caracteriza-se por invariâncias, de uma parte, e variações, de outro, que proporcionam a geração de informações que são coletadas pelo animal de forma direta, sem intermediação do intelecto, ou de qualquer tipo de cálculo. Além disso, tais informações não são recebidas passivamente pelo nervo óptico: resultam de uma ação exploratória realizada pelo animal. Assim, quem percebe não é o cérebro, mas o animal inteiro inserido (embedded) e incorporado ao entorno, o que supõe também a possibilidade ou efetivação de movimento relativo (do animal em relação ao entorno e vice-versa) – e que também proporciona variações informativas – e as affordances. Como ressaltam Chemero e Turvey, na teoria da ecologia ambiental de Gibson percepção-ação e animal-ambiente são “pares inseparáveis” (CHEMERO & TURVEY, 2007. p. 473). Para Gibson, perceber seria mais do que meramente representar imagens fixas, uma vez que o ambiente ofereceria um ilimitado conjunto de informações a serem potencialmente utilizadas em um processo de percepção direta. Mas, além disso, colhe-se em Gibson um posicionamento mais explícito de recusa à representação enquanto mediação: “quando afirmo que a percepção do ambiente é direta, eu quero dizer que ela não é mediada por imagens da retina, imagens neurais ou imagens mentais” (GIBSON, 1979, p. 147). Gibson chega a afirmar que as affordances não devem ser pensadas apenas como fatos do ambiente, e sim ao mesmo tempo do ambiente e do comportamento (Ibid.). Com isso, ele acredita suprimir a dicotomia sujeito-objeto. Por outro lado, quanto a este ponto a teoria gibsoniana parece estar prejudicada por algumas limitações. Elas correspondem a uma posição ainda objetivista, e são apontadas por Varela et al. De acordo com eles, é instrutivo explorar a diferença entre sua 77

Esta palavra não foi traduzida, uma vez que se trata de neologismo de Gibson que não consta dos dicionários da língua inglesa.

206

ênfase ao “caminho do meio” e à co-determinação do animal e do ambiente, e a abordagem de Gibson (...). A teoria de Gibson tem essencialmente duas características distintas. A primeira é compatível com nossa abordagem da ação perceptivamente orientada. Ele afirma que no estudo da percepção o mundo deve ser descrito de forma a mostrar como ele constitui ambientes para animais que percebem. Na visão de Gibson, certas propriedades são encontradas no ambiente (...). As propriedades mais significativas consistem [nas] affordances. (...) A segunda é que Gibson oferece uma incomparável teoria da percepção para explicar como o ambiente é percebido (...). Sua hipótese mais fundamental é de que existem invariâncias na topologia da luz ambiental que especificam diretamente propriedades do ambiente, incluindo as affordances. Este segundo elemento – que na realidade define o programa de pesquisa de Gibson – não é compatível com nossa abordagem da ação perceptivamente orientada. (...). Na visão de Gibson (...) a ação perceptivamente orientada consiste em “selecionar” ou “prestar atenção a” invariâncias na luz ambiental que especificam diretamente sua origem ambiental. Para Gibson, estas invariâncias ópticas, bem como as propriedades ambientais que elas especificam, não dependem de nenhuma forma de atividade perceptivamente orientada do animal. (...) Resumidamente, então, enquanto Gibson afirma que o ambiente é independente , dizemos que ele é enatuado por histórias de acoplamento. Enquanto Gibson afirma que percepção é detecção direta, afirmamos que é enação sensório-motora (VAREAL et al, 1991, p. 203-204).

Além de levarmos em conta a pertinência na crítica de Varela, Thompson e Rosch ao confuso antirrepresentacionismo – claramente objetivista – de Gibson, as teorias das affordances e da percepção direta, formuladas por este autor, não podem ainda ser consideradas teses da cognição corpórea por consistirem em abordagens da percepção visual que não atribuem papel suficientemente importante ao corpo como um todo – e nem esmiúçam o papel deste último em geral – no processo cognitivo, como as frentes de pesquisa aqui estudadas. A reforçar esta posição, entende-se no presente trabalho que a crítica de Gibson ao cognitivismo não possui a contundência nem a profundidade que se encontram nas abordagens aqui examinadas. Uma evidência desta limitação é a de que Gibson defende uma noção de informação que não confronta fundamentalmente aquela adotada no modelo lógicoproposicional. Embora em sua obra ele critique o uso, na compreensão da percepção, da noção de informação quantificada proposta por Shannon (GIBSON, 1979, p. 242-243), o fato de ele considerar que as informações estão disponíveis no ambiente de maneira independente dos organismos que as percebem é ao menos compatível com a estrutura do modelo cognitivista. Os significados cognitivos obtidos através da percepção, para Gibson e para grande parte dos psicólogos cognitivistas, provêm do ambiente, dos objetos compreendidos como transcendentes, dados pelo mundo e anteriores à percepção. Em outras palavras, ao desprezar o papel da experiência e do corpo na constituição dos significados cognitivos, Gibson apresentaria uma teoria da percepção visual insuficientemente crítica ao modelo lógico-proposicional, o que estimularia a necessidade de propostas mais radicalmente

207

comprometidas em valorizar o papel do organismo na geração de tais significados, como aquelas desenvolvidas pelas três abordagens investigadas na presente tese. Trataremos a seguir de pesquisas psicolinguísticas que influenciaram, sobretudo, a abordagem corpóreo-conceitual – e nas quais deve ser destacado o papel pioneiro para toda a cognição corpórea de Eleanor Rosch, que trata, diferentemente de Gibson, de como as experiências corpóreas influenciam a geração de significados cognitivos. Quem testemunha desta vez o valor desta influência é George Lakoff: Em torno de 1975, um grande número de coisas chamou minha atenção (...). Uma delas foi o trabalho de Charles Fillmore na semântica de enquadramentos78, no qual ele mostrou que não se pode fornecer uma explicação do significado condicionada à verdade, mas ainda assim explicar corretamente a distribuição de itens lexicais. O trabalho de Eleanor Rosch na teoria de protótipos atraiu minha atenção em 1972, e em 1975 eu tomei conhecimento da obra dela e de Brent Berlin na categorização de nível básico (BAUMGARTNER & PAYR, 1995, p. 119).

A necessidade de destacar esta vertente de influências é basicamente a de apontar o momento de seu aparecimento histórico. Enquanto as influências biofisiológicas, tal como foi aqui explanado, tiveram sua origem no início do século 20, e os trabalhos de Merleau-Ponty que foram considerados pioneiros para a cognição corpórea vieram à luz na década de 1940, os antecedentes da cognição corpórea de natureza psicolinguística ocorreram sobretudo nos anos 1970, sendo o ano de 1975 especialmente marcante neste quadro. Por outro lado, esta constatação nos leva a justificar por que razão elas ocuparão menos espaço nesta seção: o fato de serem quase que parte integrante da abordagem corpóreoconceitual, o que nos motivará a estudá-las mais profundamente na seção 2.4. Contudo, será aqui apresentado um breve panorama do que elas significaram. Vemos nas palavras de Fillmore que a semântica de enquadramentos já nasceu articulada com a teoria dos protótipos: A ideia de protótipo é mais ou menos esta. Em vez de o significado de uma forma linguística ser representada em termos de uma lista de condições que têm de ser satisfeitas para que a forma seja utilizada de maneira apropriada ou verdadeira, afirma-se que a compreensão do significado requer, pelo menos em um grande número casos, um apelo a um exemplar ou protótipo – este protótipo sendo possivelmente algo que é disponível de maneira inata para a mente humana, possivelmente algo que, em vez de ser analisado, precisa ser apresentado, demonstrado ou manipulado. A ideia de quadro é esta. Há certos esquemas ou estruturas de conceitos ou termos que se articulam como um sistema, que impõem estrutura ou coerência em algum aspecto da experiência humana, e que podem conter elementos que são, simultaneamente, partes de outras tais estruturas (FILLMORE, 1975, p. 123).

Segundo Lakoff e Johnson, a semântica de enquadramentos de Fillmore permite que se supere uma abordagem representacional do significado, propondo a concepção de que os 78

Esta foi a tradução provisória para frame semantics que se decidiu utilizar no presente trabalho.

208

significados são constituídos através da formação de campos de conceitos que se misturam, combinam e geram o sentido dos termos que são aprendidos. Para eles, a semântica de enquadramentos fornece uma maneira de explicar a formação de significados de maneira não consciente: Uma estrutura conceitual geral que define as relações semânticas entre "campos" inteiros de conceitos relacionados e as palavras que os exprimem. Nosso quadro “restaurante”, que caracteriza o nosso conhecimento geral de restaurantes, não só é intencional e representacional, mas também proposicional. O quadro caracteriza o conhecimento de background estruturado em relação ao qual conceitos como restaurantes, garçons, maitres, menus e contas fazem sentido. Ele contém informações proposicionais: um garçom lhe traz um menu, anota seu pedido, trazlhe sua comida, e assim por diante. A informação proposicional é intencional: Tratase de garçons, menus, comida e assim por diante. O quadro representa a estrutura da experiência de restaurantes. Adicionalmente, os quadros conceituais que habitam nosso inconsciente cognitive contribuem semanticamente para os significados de palavras e sentenças. Assim, uma palavra como garçom é definida relativamente ao quadro “restaurante” (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 116).

Contudo, a ideia de categorização prototípica, de Eleanor Rosch, já é mais propriamente corpórea do que a semântica de enquadramentos de Fillmore. Levemos em consideração, mais uma vez, a narrativa de Lakoff: [Em] 1975, eu ouvi Eleanor Rosch dar uma de suas primeiras palestras sobre categorias de nível básico, que são as categorias de nível intermediário, como cadeira, ao contrário da superordinada móvel e da subordinada cadeira de balanço ou de automóvel ao invés de veículo ou automóvel esporte. Rosch demonstrou que as categorias de nível básico têm diferentes propriedades cognitivas das categorias hierarquicamente superiores. Elas são definidos por nossas capacidades de percepção gestáltica, movimento motor e imagens mentais. Compare cadeira e móvel. É possível obter uma imagem mental de uma cadeira, mas não de uma peça de mobiliário em geral (ao contrário de uma cadeira, cama, mesa ou sofá). Há esquemas motores para interagir com cadeiras, mas nenhum para interagir com peças de mobiliário em geral. Em suma, o nível básico é o mais alto nível em que as imagens mentais, esquemas motores e percepção gestáltica caracterizam toda a categoria e o nível básico é o nível ideal em que as pessoas interagem com os objetos (LAKOFF, 2003, p. 57).

Voltaremos a tratar de categorização prototípica na seção 2.4. Mas é importante registrar que tipo de pesquisa científica levou a esta noção. De acordo ainda com Lakoff, Brent Berlin, ao estudar culturas selvagens, concluiu que “nível básico [de categorias] parece ser o nível em que nós evoluímos para funcionar em condições ótimas no ambiente físico dados nossos sistemas sensório-motores”. (Ibid.) Ele acrescenta, ainda, que, segundo Berlin, o nível básico é o que se caracteriza pelo melhor aprendizado, por ser corpóreo e interacional. Trataremos, na próxima seção, da influência da teoria de categorização de cores de Berlin e Paul Kay sobre a abordagem corpóreo-enativista.

209

Com a menção às influências psicolinguísticas sobre a abordagem corpóreoconceitual, chega-se ao final da investigação sobre os antecedentes da cognição corpórea. Há outras influências que serão mencionadas diretamente nas próximas seções, por serem mais intimamente articuladas com as abordagens nelas explanadas. É o caso, por exemplo, da importância da noção de homeostasia, criada por Walter Cannon (CANNON, 1915) no início do século 20, para a abordagem corpóreo-afetiva ou, mais especificamente, para a obra de António Damásio. Assim como, para este, o foram as pesquisas ligadas às cirurgias psiquiátricas dos médicos portugueses Egas Moniz e Almeida Lima e as teoria pioneiras que relacionaram emoções ao corpo, como aquelas desenvolvidas por William James e Carl Lange. Há um antecedente cultural-institucional da cognição corpórea cuja importância deve também ser mencionada: a Lindisfarne Association. Fundada por William Thompson em 1972, estabeleceu-se em 1976 no prédio onde funcionara uma igreja, na cidade de Nova York. Sua atividade foi voltada para discutir e estudar filosofia, ciência, artes e religiões, especialmente as orientais. Francisco Varela e Evan Thompson tiveram participação intensa na associação, sendo o último filho de seu fundador. Várias obras importantes para a cognição corpórea tiveram origem nas conferências e debates acontecidos em Lindisfarne, com destaque para Mind and nature, de Gregory Bateson e “Principles of biological autonomy”, de Francisco Varela (THOMPSON, s/d). Bateson teve destacada liderança na associação, e sua influência sobre a cognição corpórea é reconhecida, especialmente quando referida a importância da etologia, ciência fundada por ele, Konrad Lorenz e Jakob Von Uexküll, para o enativismo (THOMPSON, 2005, p. 57 a 59). De 1985 a 1988, a Lindisfarne realizou um programa em biologia, cognição e ética, que originou os livros The embodied mind e Mind in life. Tendo sido uma crucial referência da contracultura nos antecedentes da cognição corpórea, a Lindisfarne Association encerrou suas atividades em 2009. Torna-se bastante claro que Francisco Varela não apenas fundou a abordagem enativista da cognição corpórea, como foi o principal responsável pela radicalização de algumas teses da Segunda Cibernética a ponto de extrapolar esta última e inaugurar uma nova frente de pesquisas já muito diferente. O fato de ter fundado, juntamente com Evan Thompson e Eleanor Rosch, a abordagem corpóreo-enativista, significou, também, algo muito relevante: um redirecionamento do caminho inaugurado pela Segunda Cibernética de volta às ciências cognitivas. Isto porque, como vimos, embora a Segunda Cibernética tivesse uma forte preocupação com a cognição, seus autores, como Von Foerster, Pask, Bateson ou Maturana,

210

não trabalharam e não se apresentaram como cientistas cognitivos. Por outro lado, Varela – sobretudo a partir do livro The embodied mind (VARELA et al, 1991)–, afirmou-se como um cientista cognitivo, desde o início propondo que as ciências cognitivas seguissem um rumo divergente daquele empreendido pelo cognitivismo. Sendo assim, ele realizou algo que poderíamos considerar como que um recuo hipotético para o momento em que, da primeira cibernética, nasceram as ciências cognitivas, o cognitivismo e a Segunda Cibernética, a fim de propor que a partir daquela bifurcação de posicionamentos se desenhasse um outro rumo para as ciências cognitivas – ainda que anos depois. Em outras palavras: sua proposta pode ser interpretada como a afirmação de que as ciências cognitivas têm como prosseguir em consonância com as intuições da Segunda Cibernética ou, inversamente, de que as divergências da Segunda Cibernética em relação à primeira não precisariam abdicar das ciências cognitivas – e que estas últimas, por tal motivo, podem se tornar radicalmente diferentes de sua primeira feição mas, ainda assim, continuarem a ser chamadas pelo mesmo nome. Outra característica importante da contribuição de Varela foi, como se demonstrou acima, ter enfatizado o caráter experiencial da cognição. Como vimos, no âmbito das ciências cognitivas foi Varela que promoveu aquilo que Tom Froese chama de guinada experiencial (FROESE, 2011) ao incorporar a suas pesquisas uma vertente filosófica de peso: a fenomenologia – de Husserl, sobretudo, mas também de William James, Martin Heidegger e Merleau-Ponty. Como teremos ocasião de examinar com maior minúcia mais à frente, a abordagem enativista é aquela que, dentre as principais da cognição corpórea, tem sido responsável por manter o enfoque experiencialista e fenomenológico com maior empenho. Além disso, não se percebe nos autores das abordagens corpóreo-conceitual e corpóreoafetiva o mesmo envolvimento com a fenomenologia – embora, como veremos, todos se preocupem em enfatizar o caráter experiencial da cognição, de uma forma ou de outra. Considerando estes pontos, podemos afirmar que se deve predominantemente ao enativismo o fato de que a cognição corpórea seja chamada adequadamente de cognição corpóreoexperiencial. Estas considerações reforçam duas hipóteses que vêm sendo defendidas neste trabalho: de que o enativismo pode ser compreendido como a abordagem pioneira da cognição corpórea e que, levando-se em conta especialmente a já mencionada guinada ontológica proposta por Varela e sua atuação política, este pioneirismo (que se transformou em liderança, ao menos durante o período inicial) comportou desde o princípio a proposta de continuidade das

211

ciências cognitivas – agora sobre outras bases, não mais em torno de um modelo dominante da cognição, como no cognitivismo, e sim a partir de motivações ontológicas e políticas. Por outro lado, deve ser destacado papel fundamental que o filósofo Mark Johnson tem desempenhado na articulação das diversas abordagens da cognição corpórea, sobretudo em seu livro The meaning of the body, de 2007. Neste livro, como veremos nas próximas seções, Johnson realiza uma síntese filosófica das três abordagens que se destacam no presente trabalho. Ele incorpora à sua própria abordagem os trabalhos de António Damásio e Joseph LeDoux sobre os aspectos afetivos da cognição, e chega a adotar para si o termo enação. Como base de suas afirmações, lança mão das influências tanto do anti-objetivismo de Hilary Putnam e Richard Rorty, quanto do pragmatismo deste último, de John Dewey e William James, entre outros – as quais serão amplamente exploradas nas seção 2.4 e, por esta razão, deixaram de ser tratadas neste momento. E, como veremos, Johnson realiza uma síntese mantendo a firme orientação ao mesmo tempo política e ontológica já encontrada em Varela. Este novo caráter de unidade das ciências cognitivas, de acordo com a orientação corpórea, será o principal objeto da próxima seção. 2.2.

A orientação corpórea como conjunto integrado de abordagens da cognição

2.2.1. Características gerais da cognição corpórea Esta seção apresenta a hipótese principal deste trabalho: de que, mesmo tendo rejeitado o modelo lógico-proposicional da cognição, próprio do cognitivismo e unificador das ciências cognitivas desde seu surgimento, a cognição corpórea demonstra que ainda pretende manter coeso este campo de estudos. De início, esta intenção se evidencia no simples fato de que a cognição corpórea se apresenta como uma corrente das ciências cognitivas, e não como uma rejeição a este campo multidisciplinar. Todavia, o que se busca investigar aqui é o modo como este engajamento ocorre. Quando neste trabalho se fala em cognição corpórea está sendo referida a orientação corpórea das ciências cognitivas, como já foi assinalado, e esta orientação se dá na forma da atividade de pesquisa, no posicionamento teórico e na atuação pública de diversos autores. Porém, não se pode afirmar que todos os autores que têm contribuído para as teses da cognição corpórea assumam os dois compromissos: criar e manter uma corrente em especial, e defender a unidade das ciências cognitivas. De fato, grande parte dos cientistas e filósofos que neste trabalho são compreendidos como envolvidos na construção das teses da cognição corpórea não atuam explicitamente em favor das ciências

212

cognitivas, ou mesmo da cognição corpórea. Por outro lado, o que aqui se considera que caracteriza um pesquisador como participante da orientação corpórea são dois critérios principais: defender teorias que ao mesmo tempo enfraqueçam o modelo lógico-proposicional da cognição, e buscar, ainda que não explicitamente, a unificação desta orientação ou de suas teses essenciais. Assim, é preciso compreender o que significa dizer que a cognição corpórea pretende manter a unidade das ciências cognitivas. Com esta ideia não se supõe, por certo, que a cognição corpórea seja um sujeito com pretensões próprias, acima de seus praticantes. A suposição é de que há duas atitudes: i) o esforço declarado e constante de alguns autores de, adotando uma postura de liderança, advogarem as deficiências do cognitivismo e de seus pressupostos, assim como as vantagens da abordagem corpórea para compreender a cognição humana (este tem sido o caso – só para apresentar os exemplos mais notórios – de Francisco Varela, Evan Thompson, Alva Noë, Shaun Gallagher, Raymond Gibbs Jr., George Lakoff, Mark Johnson e António Damásio); ii) a pressuposição mais ou menos tácita que muitos autores demonstram assumir das principais teses da cognição corpórea, mesmo que se dediquem primordialmente a defender suas teorias específicas e não uma nova concepção geral da cognição79. Desta maneira, o que é aqui chamado de cognição corpórea é um conjunto de noções que se pode abstrair da atividade concreta, seja experimental ou teórica, de um conjunto de pesquisadores, difundidos em diversos locais de pesquisa no mundo, exercida basicamente desde os anos 1980. E é, portanto, através da identificação de atitudes, explícitas ou não, dos referidos pesquisadores, que a presente pesquisa defende que há um esforço coletivo de ao mesmo tempo modificar os compromissos teóricos das ciências cognitivas e manter a coesão destas. Há também dois pontos a destacar, quanto à atitude aqui definida como defesa da unidade das ciências cognitivas sobre novas bases: em primeiro lugar, salvo raras exceções80, não se encontra nos trabalhos dos diversos pesquisadores da orientação corpórea um empenho em traçar articulações entre suas diferentes abordagens de tal modo que se constate uma totalidade coerente de ideias; em segundo lugar, os pesquisadores que se destacam na liderança da orientação corpórea têm procurado defender sua concepção da cognição lançando mão de argumentos ontológicos – que ao mesmo tempo criticam pressupostos sobre a noção de realidade que identificam no cognitivismo e apresentam novas teses a respeito da questão – e argumentos políticos – que se dirigem, com frequência, às aplicações das ciências cognitivas 79

Para ter notícia de um grande número destes autores, v. os diversos exemplos de pesquisas apresentados em GIBBS JR., 2005. 80 Um caso notável é o de JOHNSON, 2007, conforme será explorado adiante e já foi mencionado ao final da seção anterior.

213

e suas consequências para os seres humanos. No presente trabalho, três movimentos serão realizados quanto a estes pontos: 1) Analisar-se-á a série de argumentos ontológicos e políticos apresentados pelos autores da orientação corpórea, nos quais se evidencia um esforço de unificação das ciências cognitivas, com forte preocupação com suas aplicações e repercussões na vida social; 2) Propor-se-á a articulação entre as diversas frentes de pesquisa da orientação corpórea, de modo a demonstrar que cada uma das frentes se complementa através das demais, o que permite identificar uma totalidade coerente de ideias que as abrange; 3) Defender-se-á que as preocupações ontológicas e políticas analisadas no item 1 se compõem com a articulação proposta no item 2, de tal modo que esta composição reforça o quadro da unidade das ciências cognitivas sob o prisma da orientação corpórea. Contudo, a fim de realizar este empreendimento, é necessário estabelecer que concepção de cognição corpórea norteia este trabalho. A seguinte definição fornece adequadamente uma primeira aproximação das características principais da cognição corpórea aqui consideradas: Dizer que a cognição é corpórea significa que ela surge a partir de interações corpóreas com o mundo. Sob este ponto de vista, a cognição depende dos tipos de experiências que se originam do fato de se ter um corpo com determinadas capacidades motoras e perceptivas – que são indissociáveis –, e que em conjunto formam a matriz dentro da qual raciocínio, memória, emoção, linguagem, e todos os outros aspectos da vida mental são articulados. A noção contemporânea de uma cognição corpórea contrasta com a postura predominante cognitivista, que considera a mente como um dispositivo de manipular símbolos e, assim, preocupa-se com as regras formais e processos pelos quais os símbolos apropriadamente representam o mundo real (THELEN et al, 2001, p. 1).

A partir desta descrição, propõe-se o entendimento da orientação corpórea como aquela que considera ser a experiência individual o meio através do qual o corpo do indivíduo não apenas condiciona as suas crenças, conceitos, pensamentos e ações, como vai sendo modificado ao longo de interações cognitivas em um mundo natural e social. Isto será feito através da articulação de três perspectivas de compreensão da cognição como corpóreoexperiencial, que aqui se defende serem as mais completas na crítica à orientação cognitivista e na elaboração de teses a ela alternativas, para as quais são adotadas as seguintes denominações: 1) Abordagem corpóreo-enativista – que se ocupa sobretudo da dimensão biológica e evolutiva da cognição, vinculada à concepção da experiência como codeterminação entre o ser humano individual e o mundo natural e social, fruto dos trabalhos de

214

Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch, assim como de contribuições de Tom Froese, Ezequiel Di Paolo, John Stewart, Olivier Gapenne, Hanne de Jaegher, Giovanna Colombetti, Edwin Hutchins, Antoine Lutz, entre outros; 2) Abordagem corpóreo-conceitual – que se dedica a estudar a origem corpórea dos conceitos e da linguagem, através da concepção de uma articulação temporal das experiências, desenvolvida sobretudo nas obras de George Lakoff e Mark Johnson, e para a qual têm contribuído também autores como Leonard Talmy, Rafael Núñez, Mark Turner, Gilles Fauconnier, Ronald Langacker, Vittorio Gallese, Teennie Matlock, Eve Sweester, Raymond Gibbs, Jr, Srini Narayanan, Lawrence Barsalou e Arthur Glenberg; e 3) Abordagem corpóreo-afetiva – que tem como principal foco o modo como a cognição resulta de processos fisiológicos que integram corpo e cérebro, com a mediação de emoções e sentimentos entendidos como processos orgânicos, cujo principal formulador é António Damásio, e que vem recebendo também subsídios de pesquisadores como Jaak Panksepp, Walter Freeman, Gerald Edelman, Joseph LeDoux, Luiz Pessoa, V. S. Ramachandran, Richard Davidson, Antoine Bechara, Giovanna Colombetti, Eugene Gendlin e Vittorio Gallese. Além disso, aqui se pretende evidenciar que a orientação corpórea das ciências cognitivas tem se caracterizado por apresentar, mediante a participação das três principais abordagens mencionadas, três dimensões principais para a cognição, que definiriam mais precisamente esta última como corpórea: a) A dimensão ontológica, decorrente da ideia de que a cognição consiste na codeterminação entre sujeito e objeto; b) A dimensão vital e evolutiva, decorrente da ideia de que a cognição consiste em um processo organicamente integrado às atividades biorreguladoras do ser humano, sendo essencial para a sobrevivência do indivíduo e da espécie; c) A dimensão temporal, decorrente da ideia de que a cognição consiste na articulação, no tempo, de experiências individuais do corpo – do qual são entendidos como partes o cérebro e o sistema nervoso –, que dependem da estrutura deste, mas também contribuem para transformá-la. Como já foi dito de forma semelhante anteriormente, uma das características fundamentais da cognição corpórea tem sido promover a redefinição dos conceitos de cognição, corpo e experiência, uns em relação aos outros. As três frentes acima são as que têm proporcionado – mesmo em separado, porém mais ainda quando articuladas entre si – estas

215

redefinições de maneira mais profunda e ampla. Estas redefinições envolvem a compreensão do corpo como organismo que dinamicamente produz significados para ações e pensamentos – para a cognição – e também é modificado por meio de ações e pensamentos.

Os

acontecimentos em fluxo por meio dos quais os corpos orgânicos produzem e adquirem significados são chamados de experiências. E as três abordagens se caracterizam por compartilhar esta compreensão de processo cognitivo, o sentido do corpo neste processo e a acepção de experiência que ele considera. Contudo, cada uma delas enfatiza um aspecto desta compreensão. Por isso são diferentes, mas pelo mesmo motivo são complementares. Uma outra maneira de compreender estas frentes é como diferentes conjuntos de programas de pesquisa, cuja afinidade de enfoque recomenda seu agrupamento. Isto não quer dizer que todos os pesquisadores classificados neste trabalho como afinados com cada uma das abordagens realizem seus trabalhos de modo programático, se reconhecendo como membros de uma coletividade de pesquisadores com os mesmos compromissos teóricos e experimentais. A seguir, são apresentadas caracterizações resumidas das três frentes acima referidas. Como já foi tratado na seção anterior, os autores da abordagem corpóreo-enativista se baseiam nas teorias sobre o acoplamento entre organismo e ambiente, oriundas do trabalho de Francisco Varela e Humberto Maturana, das etologias de Jakob Von Uexküll e Gregory Bateson, além da fenomenologia tal como surge das obras de autores como Edmund Husserl, William James, Martin Heidegger, Hans Jonas e Maurice Merleau-Ponty, e postulam a inseparabilidade entre sujeito e objeto, e entre percepção e ação. O corpo, nesta perspectiva, é um organismo em permanente processo de codeterminação com o ambiente – a enação –, e essencialmente um elemento criador de sentido, num “domínio relacional” (THOMPSON, 2007, p. 13). O modelo lógico-proposicional é tido pelos autores enativistas como estreito, sobretudo na medida em que se limitaria a servir à representação de um mundo dado a um sujeito dado, ambos assumidos como discerníveis, fixos e independentes. Ao contrário disso, a cognição, para o enativismo, é um processo de transformação complexa em que corpo e mundo se criam reciprocamente, essencial à viabilização da vida. A mútua transformação é entre corpo (organismo) e mundo (ambiente natural e social), com a ênfase na relação. Deste modo, se por um lado é uma abordagem que recorre mais intensamente à biologia, por outro recusa o naturalismo objetivista, no sentido do que nos mostra a seguinte definição:

216

Em linhas gerais, o enativismo pode ser interpretado como uma espécie de naturalismo não reducionista e não funcionalista. Ele vê as propriedades da vida e da mente como parte de um contínuo e, consequentemente, defende um programa científico que explora várias fases desta dimensão (DI PAOLO et al, 2010, p. 36).

A formulação central da abordagem corpóreo-conceitual é mais bem situada na obra de Lakoff e Johnson, e pode ser descrita a partir do seu conceito de metáfora conceitual (LAKOFF & JOHNSON, 1980, p. 136-139, 154; 1999, 45-49). Esta ideia defende que as metáforas são os processos analógicos mediante os quais, a partir de experiências sensóriomotoras de indivíduos no mundo e com outros indivíduos, os conceitos se constituem e compartilham, com base na concepção expressa na seguinte passagem: A metáfora é, para a maioria das pessoas, um dispositivo da imaginação poética e de floreio retórico – uma questão mais da linguagem extraordinária do que da ordinária. Além disso, a metáfora é normalmente vista como característica da linguagem por si só, uma questão de palavras, e não de pensamento ou ação. Por esta razão, a maioria das pessoas pensa que pode viver perfeitamente bem sem metáforas. Descobrimos, ao contrário, que a metáfora é onipresente na vida cotidiana, não apenas na linguagem, mas no pensamento e na ação. Nosso sistema conceitual comum, em termos do qual tanto pensamos como agimos, é metafórico por natureza. Os conceitos que governam nosso pensamento não são apenas questões de intelecto. Eles também regem o modo como funcionamos cotidianamente, até nos detalhes mais mundanos. Nossos conceitos estruturam o que percebemos, como vamos de um lugar a outro no mundo e como nos relacionamos com as outras pessoas. Nosso sistema conceitual, portanto, desempenha um papel central na definição de nossa realidade cotidiana. Se estamos certos em sugerir que nosso sistema conceitual é em grande parte metafórico, então o modo como pensamos, o que sentimos e o que fazemos todos os dias é muito mais uma questão de metáfora (LAKOFF & JOHNSON, 1980, p. 4).

Se, para Lakoff e Johnson, as metáforas na cognição são elementos geradores dos conceitos, é necessário deixar patente qual a importância, o papel e a natureza dos conceitos em sua abordagem, conforme as duas passagens seguintes de suas obras: O importante não é apenas que tenhamos um corpo e que o pensamento seja, de algum modo, corpóreo. O importante é que a natureza peculiar dos nossos corpos molda nossas próprias possibilidades de conceituação e categorização (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 19) Nossa capacidade comum de pensamento metafórico se origina das projeções neurais que vão das partes sensoriais e motoras do nosso cérebro às regiões corticais mais altas, responsáveis pelo pensamento abstrato. Os universais surgem das metáforas porque a nossa experiência no mundo faz com que, regularmente, certos domínios conceituais ajam conjuntamente em nossos cérebros, permitindo o estabelecimento de conexões entre eles. (...) Não há um domínio fregueano abstrato de sentidos desencarnados e não há relações místicas entre esses supostos sentidos e objetos e categorias em um suposto mundo independente da mente. Nossos cérebros e mentes não operam usando símbolos formais abstratos cujo sentido seria dado por correlações com um mundo supostamente independente da mente, que viria com categorias e essências embutidas. É do corpo e do cérebro que surgem os significados, através de nossas interações com o meio ambiente e as outras pessoas. (...) Metáforas são produtos do corpo, do cérebro, da mente e da experiência (...). Elas só podem obter o seu significado através da experiência encarnada (Ibidem, p. 463).

217

Para explicar a cognição, Lakoff e Johnson dão ainda especial valor à imaginação como elemento constitutivo da razão (JOHNSON, 1987, 139-172; LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 395-412). Mark Johnson dá destaque ao papel da imaginação na constituição de uma cognição de natureza corpórea, já anunciando seu caráter social, como se constata no trecho a seguir: A imaginação é central para a racionalidade e significação humanas pelo simples motivo de que aquilo que podemos experimentar e conhecer como tendo sentido, e também a forma como podemos raciocinar sobre isto, são dependentes de estrutura de imaginação que tornam nossa experiência o que é. Segundo esta visão, o sentido não se encontra apenas nas proposições; ao contrário, ele permeia nossa compreensão corpórea, espacial, temporal, culturalmente formada e carregada de valores. As estruturas de imaginação são parte do que é compartilhado quando compreendemos uns aos outros e quando somos capazes de nos comunicar dentro de uma comunidade (JOHNSON, 1987, p. 172).

e ao fato de considerarem a maioria dos processos cognitivos não conscientes (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 9-15). Segundo tal perspectiva, as experiências sensório-motoras passadas de um indivíduo transformam seu corpo, ficando nele inscritas. Por meio desta inscrição, são valoradas de maneira a dar sentido às experiências individuais futuras. Sendo assim, encontramos na abordagem corpóreo-conceitual uma primeira versão da ideia que atribuo ao conjunto das propostas aqui apresentadas da cognição corpórea, de que o corpo é transformado no processo cognitivo, mas também o transforma. Estes autores fundamentam, assim, os conceitos em experiências corpóreas, recusando os modelos lógico-proposicionais da cognição por compreenderem a cognição a partir de vivências irredutíveis a proposições: as proposições e o sentido de seus termos é que se originariam de vivências corpóreas. A mútua transformação é entre corpo e conceitos, com a ênfase em como os conceitos se transformam. A abordagem corpóreo-afetiva defende a participação central de emoções e sentimentos na constituição corporal do processo cognitivo – com maior ênfase às decisões racionais. Seu principal argumento, de António Damásio, é de que o corpo interfere na cognição através do papel nela desempenhado pelas emoções e pelos sentimentos, estes entendidos como processos de transformação do corpo – sendo o cérebro concebido como parte do corpo, ainda que com funções centrais para a cognição. Em tais processos, as experiências são vividas inseparavelmente das emoções e sentimentos que provocam, sendo assim marcadas somaticamente (isto é, no corpo), e recuperadas, em parte inconscientemente, quando o indivíduo vive experiências identificadas como semelhantes, com vistas a decisões e ações (DAMÁSIO, 2004 [1994]; DAMÁSIO, 1996). Damásio fornece também uma hipótese sobre como a memória se constitui

218

corporeamente, a partir das marcas deixadas pela experiência sensório-motora vivida pelo organismo individual na interação com uma entidade – que será devidamente explorada na seção 2.5.2. Deste modo, corpo e cérebro são modificados conforme as experiências se dão, de modo significativo para as próximas experiências. Este processo cognitivo-afetivo é interrelacionado com um processo mais amplo, envolvido na promoção da homeostasia, ou equilíbrio bioquímico essencial à manutenção da vida. Na abordagem corpóreo-afetiva, a principal atenção é dada à mútua transformação entre conceitos e corpo, com ênfase em como o corpo se transforma afetivamente. Damásio caracteriza o corpo e o cérebro como integrando inseparavelmente o organismo – o que é fundamental para que se compreenda o processo cognitivo como um processo orgânico e, assim, vital. Para ilustrar e reforçar esta ideia, utilizemos, por exemplo, a seguinte afirmação de Gerald Edelman sobre como o cérebro opera na geração de conceitos corpóreos, executando desta forma um processo importante para a sobrevivência do organismo (característica que é essencial também na abordagem enativista, como veremos nas próximas linhas): As memórias conceituais são afetadas por valores – uma característica importante no aperfeiçoamento da sobrevivência. Com essa noção de conceito, em que o cérebro categoriza suas próprias atividades (particularmente suas categorizações perceptivas) torna-se possível ver como as categorias e imagens generalizadas podem ser incorporadas. (...) Não há necessidade de qualquer ordem lógica inerente, categorização clássica, ou programação explícita a priori. (EDELMAN, 1992, p. 110).

Descritas resumidamente estas três abordagens principais, seguem breves notas sobre as articulações entre elas, destinadas a reforçarem a relevância de cada uma e apontarem para a unidade das ciências cognitivas que se opõem à orientação cognitivista. Deixando de comentar, dados os limites deste trabalho, as numerosas referências recíprocas entre os autores das três abordagens, ressaltam-se as seguintes confluências entre suas obras: 1) A abordagem corpóreo-conceitual compartilha com a corpóreo-enativa, sobretudo, uma compreensão da cognição como um processo em que tanto percepção e ação, quanto sujeito e objeto, são inseparáveis – o que envolve uma ontologia realista, porém manifestamente não objetivista e não subjetivista; 2) As abordagens corpóreo-conceitual e corpóreo-afetiva compartilham principalmente a compreensão da cognição como um processo de formação analógica de conceitos e crenças, nos corpos individuais, realizados através das marcas – necessariamente afetivas, e em grande parte não conscientes – neles deixadas e recuperadas pelas experiências vividas; 3) As abordagens corpóreo-enativa e corpóreo-afetiva compartilham, de forma bastante nítida, a compreensão da cognição como continuidade do processo de constituição e

219

sustentação da vida, baseada na necessidade de equilíbrio e conservação do organismo. Mas, além destas conexões, que apontam para uma integração da orientação corpórea mediante compartilhamentos bilaterais de compreensões da cognição, e destas três dimensões, identifica-se nas três abordagens um princípio comum: a concepção da cognição como processo de transformação mútua entre corpo, conceitos e mundo. Neste sentido, a recusa da cognição corpórea ao modelo lógico-proposicional – e ao fato de que, neste modelo, se supõe como suficiente e adequada a compreensão da cognição apenas como transformação de conceitos e representações, independentemente do corpo ou do dispositivo físico adstrito – implicaria a extensão da ideia de transformação para os elementos que, na abordagem cognitivista, foram supostos constantes. Além disso, para os autores que contribuem para a cognição corpórea, os significados da cognição humana não são inequívocos nem fixos, como supõe o modelo lógico-proposicional. A aquisição de sentido a partir das experiências, para os seres humanos, é marcada pela variação e impossibilidade de tomar como exatos os valores semânticos envolvidos no processo cognitivo. Nas palavras de Gerald Edelman,

Em primeiro lugar, não há dois cérebros iguais. E no desenvolvimento do cérebro há uma enorme quantidade de variabilidade. Ele não é determinado somente pelos genes do indivíduo, mas pela história do desenvolvimento do indivíduo, e isso o segue pelo resto da vida. Essa variabilidade é muito difícil de ser explicada em qualquer modelo do cérebro. Em segundo, o mundo não é como uma fita de computador. Os sinais vindos do mundo não são inequívocos como devem ser os sinais colocados em um computador. Eles (os computadores) precisam receber definições exatas em seu programa, enquanto com o cérebro os modos como o mundo pode apresentar seus sinais são enormes e variados (GRECO, 2001, p. 75).

A dinâmica do desenvolvimento orgânico individual e a variabilidade de significados com que cada ser humano lida em sua vida cognitiva estariam, segundo Edelman, intrinsecamente entrelaçadas. A cognição consistiria, assim, na autotransformação contínua dos corpos nela envolvidos, de crenças e conceitos através de tais corpos, e também transformação do mundo mediante a atividade cognitiva. Evidentemente, a ampliação do alcance da ideia de transformação, aumentando o número de variáveis do processo cognitivo, exige novos modelos e perspectivas que permitam representar a cognição de modo alternativo ao modelo mais simples adotado pela orientação cognitivista. Isto poderia explicar por que a orientação corpórea precisou lançar mão de noções como de auto-organização, emergência e complexidade, e ferramentas como os sistemas dinâmicos não lineares – além de sua inclinação pela fenomenologia, como visto

220

anteriormente. Por outro lado, como foi ressaltado na seção anterior, algumas pesquisas recentes em neurociências, biologia, linguística e inteligência artificial81 criaram condições para a eclosão de novos modos de pensar a cognição. Mas em que medida estes modelos teriam deixado de depender de uma explicação reducionista da cognição a processos cerebrais – assim como ocorreu na orientação cognitivista? Além disso, em que sentido se pode dizer que a orientação corpórea não apresenta uma compreensão trivial da fundação da cognição em processos neurofisiológicos? Ambas as perguntas podem ser respondidas a partir da seguinte afirmação de António Damásio, em que ele, de início, identifica um pressuposto dualista na apropriação das ideias de Descartes pelas ciências cognitivas tradicionais, no processo de superação do reducionismo fisicalista: Pode bem ter sido a ideia cartesiana de uma mente separada do corpo que esteve na origem, na metade do século 20, da metáfora da mente como programa de software. De fato, se a mente pudesse ser separada do corpo, talvez fosse possível compreendê-la sem recorrer à neurobiologia, sem nenhuma necessidade de saber neuroanatomia, neurofisiologia e neuroquímica. É interessante e paradoxal que muitos investigadores em ciências cognitivas, que se julgam capazes de investigar a mente sem nenhum recurso à neurobiologia, não se considerem dualistas (DAMÁSIO, 2004 [1994], p. 281)

A partir deste trecho poderíamos ser levados a supor que a orientação corpórea – ao menos aquela adotada por Damásio – se fundamentaria em um naturalismo restrito ao cérebro ou, no máximo, ao sistema nervoso. Mas o próprio Damásio repele esta suposição, ao prosseguir: A separação cartesiana pode estar também subjacente ao modo de pensar de neurocientistas que insistem em que a mente pode ser perfeitamente explicada em termos de fenômenos cerebrais, deixando de lado o resto do organismo e o meio ambiente físico e social – e, por conseguinte, excluindo o fato de parte do próprio meio ambiente ser também um produto das ações anteriores do organismo. Protesto contra essa restrição, não porque a mente não esteja diretamente relacionada com a atividade cerebral, pois obviamente está, mas porque esta formulação restritiva é forçosamente incompleta e insatisfatória em termos humanos. (...) Não só a mente tem de passar de um cogitum não físico para o domínio do tecido biológico, como deve ser também relacionada com todo o organismo que possui cérebro e corpo integrados e que se encontra plenamente interativo com um ambiente físico e social (Ibid., p. 281-285)

O que fica claro nesta posição de Damásio é que a orientação corpórea não apenas assume o desafio de combater o reducionismo neurobiológico mais trivial – como aquele que Damásio critica acima –, mas o faz a partir da firme disposição em suplantar a solução dada pelo modelo lógico-proposicional, no qual Damásio identifica uma feição incorpórea de 81

Para abordagens corpóreas da inteligência artificial, ver PFEIFER & BONGARD, 2007.

221

inspiração dualista. E isto passa pela concepção de novos modelos que exigem uma inovadora perspectiva ontológica que, como acabamos de ver, corresponde à recusa das separações entre mente e corpo, sujeito e objeto e percepção e ação. Antes de se passar mais detalhadamente à questão ontológica tal como apresentada pela cognição corpórea, é preciso apontar ainda três dimensões que se destacam na compreensão da cognição como transformação – e autotransformação.

Na primeira, se

evidencia uma forte crítica à noção de cognição como transformação simbólica (tal como afirma a citação de Jerry Fodor no final da seção 1.2.2), apenas. E esta crítica pode ser exemplificada até mesmo na obra de um autor que se notabilizou como um dos pioneiros da inteligência artificial, como Marvin Minsky. Nela, Minsky aponta para um fato extremamente importante que considera ocorrer na cognição humana, e que tem o poder de contestar profundamente orientação cognitivista da cognição: Por que processos são tão difíceis declassificar? Em épocas anteriores, usualmente podíamos julgar máquinas e processos pela forma com que transformam matériasprimas em produtos acabados. Mas não faz sentido falar de cérebros como se fabricássemos pensamentos da mesma maneira como fábricas fazem carros. A diferença é que os cérebros usam processos que mudam a si mesmos, e isso significa que não podemos separar tais processos dos produtos que eles produzem. Em particular, os cérebros produzem memórias, que mudam as formas com que vamos pensar subsequentemente. As principais atividades do cérebro consistem em fazer mudanças em si mesmo. Porquea idéia de automodificação dos processos é nova para a nossa experiência, ainda não podemos confiar em nosso julgamento comum sobre tais questões (MINSKY, 1985, p. 288).

Como podemos observar, os argumentos de Minsky apresentam bons motivos para que os cientistas cognitivos passem a desconfiar do modelo fabril de transformação de inputs em outputs, ou mesmo renunciar a seu poder preditivo, já que o cérebro, ao contrário das fábricas, não modificaria constantemente apenas suas matérias primas, mas suas próprias linhas de produção, o que aumenta enormemente a complexidade de seu objeto – a cognição – e enfraquece o modelo lógico-proposicional. Na segunda dimensão, de acordo com o que se extrai do que foi dito até aqui, a cognição não se resume ao que ocorre apenas do cérebro – ainda que, nem mesmo ao cérebro, como mostrou Minsky, se possa aplicar o modelo que se baseia unicamente nas transformações simbólicas. Para a orientação corpórea, a cognição se dá no corpo, que é pensado antes como um conjunto de processos autotransformadores, em grande parte não conscientes, imanentes a todos os acontecimentos de percepção, pensamento e ação, do que como um objeto destacável, ou substrato físico pré-determinado, da dimensão cognitiva dos seres humanos. Isto implica reconhecer, também, a presença nas crenças e decisões humanas

222

de pressupostos não apenas tácitos, mas que tendem a se manter em parte inapreensíveis, ou intraduzíveis na forma de sentenças proposicionais, às tentativas de sua observação ou captura conceitual. Na terceira, e de acordo com alguns dos trechos de obras acima citados, os corpos dos indivíduos são entendidos em sua necessária condição de produtos e produtores de relações sociais e políticas. Os autores da orientação corpórea apontam insistentemente para o fato de que compartilharmos: a) certas configurações de corpos, que permitem (ou determinam) o compartilhamento de conceitos, crenças e ações – com todas as limitações decorrentes das diferenças individuais; e b) a condição de que nossos corpos são continuadamente alterados e moldados pelas relações cognitivas com outros corpos. Dedicados a este sentido social da cognição corpórea há trabalhos relevantes como os de Shaun Gallagher, Ezequiel Di Paolo, Hanne de Jaegher, Thomas Csordas e Edwin Hutchins. Esta dimensão supra-individual da cognição corpórea é especialmente importante quando se trata de almejar, e empreender, a construção de conhecimento socialmente partilhado – inclusive o conhecimento científico (e a objetividade possível a ele associada), como o que os próprios autores da orientação corpórea buscam estabelecer. Contudo, como o objetivo central do presente trabalho é delinear os contornos principais da cognição corpórea, através de sua crítica ao cognitivismo, do entrelaçamento entre as suas três abordagens mais importantes e de sua busca política por unificação, para tal é suficiente a concentração de nossa atenção à cognição do organismo individual. Por esta razão, e considerando que esta tese necessita respeitar, ao máximo possível, limites que a permitam dedicar-se de modo satisfatório aos seus propósitos principais, não será feito aqui um estudo específico da dimensão social da cognição corpórea. Pelos mesmos motivos, não se fará nesta tese uma investigação dedicada à robótica corpórea – correspondente principalmente à construção de robôs autônomos móveis –, tal como documentada nas obras de Rodney Brooks (BROOKS, 2010), Randall Beer (BERR, 1995), Mark Tilden

(HASSLACHER & TILDEN, 1995), Valentino Braitenberg

(BRAITENBERG, 1986) e Maja Mataric (MATARIC, 2007), nem ao conceito de mente estendida, tal como presente nas obras de Andy Clark e David Chalmers (CLARK e CHALMERS, 1998). Ambos os temas podem ser encontrados no livro Embodied cognition, de Larry Shapiro (SHAPIRO, 2011), cujo enfoque sobretudo crítico da cognição corpórea difere significativamente do adotado na presente tese.

223

2.2.2. A ontologia crítica da cognição corpórea Como se pode extrair do exame das três dimensões da cognição como transformação, o modelo lógico-proposicional, com elas, se vê profundamente questionado. Mas isso também ocorre com a noção de representação, defendida sobretudo na Teoria Computacional da Mente – mas, de resto, em todo o cognitivismo. Outro sentido que se pode dar às três dimensões da cognição como transformação é seu caráter de criação, e não apenas de conhecimento, da realidade: não apenas porque elas implicam a autocriação dos processos cognitivos, mas também porque, na esteira desta ideia, são incompatíveis com a concepção de representação como espelho do mundo.82 Assim, dentre as três dimensões aqui apontadas a ontológica sobressai. Isto porque, ao se penetrar mais diretamente nos aspectos ontológicos da cognição corpórea, mais uma vez deve ser evidenciado o teor das críticas que a orientação corpórea faz ao cognitivismo, dado que, como já afirmado anteriormente, não se deve considerar a concepção ontológica da orientação corpórea independente das críticas que faz a outras concepções. Em outras palavras, trata-se de uma ontologia essencialmente crítica. 2.2.2.1. A crítica corpórea ao objetivismo O primeiro ponto a ser considerado nesta crítica é a rejeição ao que a cognição corpórea tem chamado de “objetivismo”. Em vários trechos de seus textos os teóricos da orientação corpórea estendem suas contestações à noção de representação no cognitivismo, como conjunto de regras lógico-proposicionais, à suposta função da representação de se referir adequadamente aos objetos do mundo. Como apontam Lakoff e Johnson, isto leva a um duplo sentido de representação mental:

O termo representação mental possuía dois diferentes significados [nas ciências cognitivas tradicionais]. No primeiro, uma representação era vista como a representação de um conceito que, por seu turno, era definido somente em termos de seu relacionamento com outros conceitos dentro de um sistema formal. Logo, nesta teoria, uma representação era uma expressão simbólica puramente interna a um dado sistema formal. No segundo, uma representação era entendida como uma representação simbólica de algo fora do sistema formal (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 76).

82

A alusão ao livro Filosofia e o espelho da natureza, de Richard Rorty, nesse caso, não é casual. Veremos esta correspondência na próxima seção.

224

Mas estes dois sentidos de representação não seriam independentes entre si, segundo as objeções da orientação corpórea. Ao contrário, a noção de representação mental, constitutiva dos modelos lógicos, estaria fundada em pressupostos ontológicos. Isto equivale a dizer que a representação é intrinsecamente associada ao objetivismo (e também, como será discutido à frente, a outra face que lhe é atribuída, o “subjetivismo”). Mas o que seria o objetivismo para os autores da orientação corpórea? Seria o mesmo que realismo? A crítica ontológica à noção de representação mental corresponderia a um antirrealismo? Mas, se corresponder, como a orientação corpórea defenderia o corpo, o ambiente, a experiência como conceitos adequados para compreender a percepção? Estes conceitos se refeririam a algo irreal? Para tentar responder a estas questões, vejamos em primeiro lugar como Lakoff demarca a diferença entre realismo em geral e objetivismo: O realismo básico apenas assume que existe uma realidade de algum tipo. (...) Na visão objetivista, a realidade vem como uma única, correta e completa estrutura de entidades, propriedades e relações. Esta estrutura existe independente de qualquer compreensão humana (LAKOFF, 1987, p. 159).

Assim, como aparecerá em outros argumentos da orientação corpórea, começamos a responder as questões anteriores com a ideia de que ela não recusa que haja um mundo real. Discorda, contudo, que este mundo seja assumido como um conjunto dado de coisas e relações, anterior à cognição, e que esta se limite a ser apenas um espelho deste conjunto. Mark Johnson acrescenta a esta ideia outros aspectos, afirmando, sobre a forma básica de objetivismo, que: A orientação objetivista é profundamente enraizada na tradição filosófica e cultural do Ocidente, e recentemente foi elaborada de maneira altamente sofisticada por filósofos, linguistas, psicólogos e cientistas computacionais em geral. (...) Em sua manifestação não sofisticada, (...) ela toma a seguinte forma geral: (...) o mundo é como é, não importando o que qualquer pessoa acredite sobre ele, e há um correto "ponto de vista de Deus" sobre o que o mundo realmente é. Em outras palavras, há uma estrutura racional da realidade, independente das crenças de pessoas em particular, e uma razão correta espelha essa estrutura racional. Para descrever uma realidade objetiva desse tipo, precisamos de uma linguagem que expresse conceitos que possam mapear objetos, propriedades e relações de modo literal, unívoco e independente de contexto. Raciocinar para obter conhecimento de nosso mundo exigiria a ligação de tais conceitos a proposições que descrevem aspectos da realidade. A razão é, portanto, uma pura capacidade formal para conectar-se, fazendo inferências, a esses conceitos literais de acordo com as regras da lógica. As palavras são símbolos arbitrários que, embora sem significado em si mesmos, obtêm o seu sentido em virtude de sua capacidade de corresponderem-se diretamente com as coisas do mundo. E o pensamento racional pode ser visto como uma manipulação algorítmica de tais símbolos (JOHNSON, 1987, p. x).

225

Johnson descreve o objetivismo que basearia a orientação cognitivista como a crença em uma realidade de coisas, existentes de modo independente da cognição, cuja transcendência ele expressa de duas maneiras: a) É assegurada por uma imparcial e suposta visão divina, isto é, como algo que apresenta naturalmente a propriedade de dissipar prováveis divergências decorrentes de variados pontos de vistas humanos sobre si mesma; e b) Possui uma estrutura racional em seu âmago. A estas descrições da transcendência dos objetos ele acrescenta mais duas observações sobre o objetivismo que o relacionam diretamente à representação: c) À estrutura racional do mundo corresponde uma homóloga razão humana; d) A correspondência entre a racionalidade do mundo objetivo e a do pensamento é uma condição para que uma linguagem do pensamento simbólica e racional descreva adequadamente o mundo objetivo. Porém, ao que parece, esta condição de homologia não é suficiente: a correspondência das sequências lógico-proposicionais com o mundo dos objetos somente pode ser garantida se regras corretas forem obedecidas pelo pensamento. E após uma série de elaborações teóricas a partir desta suposição –ou desta exigência –, as ciências cognitivas clássicas teriam se considerado capazes de estabelecer a manipulação algorítmica de símbolos como a forma adequada de representar mentalmente o mundo objetivo. Isto é, elas teriam estabelecido para este fim exatamente aquilo que foi descrito na seção 1.2 deste trabalho como sendo o modelo lógico-proposicional. O enativismo faz uma crítica semelhante ao objetivismo, mas acrescenta um outro polo à crítica do que seria a abordagem incorpórea da cognição: [A alternativa que defendemos] questiona a centralidade da ideia de que a cognição é fundamentalmente representação. Por trás dessa ideia encontram-se três pressupostos fundamentais. O primeiro é o de que habitamos um mundo com propriedades particulares, como extensão, cor, movimento, som, etc. O segundo é o de que selecionamos ou recuperamos essas propriedades representando-as internamente. O terceiro é o de que existe um “nós” subjetivo separado que realiza essas tarefas. Esses três pressupostos, juntos, constituem um compromisso forte, frequentemente tácito e inquestionável, com o realismo ou o objetivismo/subjetivismo sobre a forma como é o mundo, sobre o que somos e como chegamos a conhecer o mundo. Entretanto, mesmo o biólogo mais intransigente teria que admitir que o mundo é de muitas formas – que efetivamente há muitos mundos diferentes da experiência – dependendo da estrutura do ser envolvido e dos tipos de distinções que é capaz de fazer. (...). A abordagem enativista assume então, seriamente, a crítica filosófica da ideia de que a mente é um espelho da natureza, e vai além dela ao abordar a questão do interior do domínio central da ciência (VARELA et al, 1991, p. 9).

226

Assim, o outro polo é o que Varela e outros autores chamam de subjetivismo. Mas, neste caso, a crítica não é ao subjetivismo do idealismo solipsista83, em que se supõe todas as experiências estarem limitadas a invenções da mente do sujeito (e que pode ser associado a um relativismo absoluto), mas à contrapartida do objetivismo que é a crença na existência de um sujeito separado e preexistente, assim como as coisas que lhe são dadas conhecer. Desta sorte, o enativismo se opõe a um realismo que classifica de objetivista/subjetivista, incluindo em sua crítica o que chama de subjetivismo, um elemento que Lakoff e Johnson endossam, citando a abordagem de Varela et al e atribuindo as raízes desta ideia a Maurice MerleauPonty (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 25, 97) – tal como já foi sublinhado na seção anterior. Para continuar a responder às questões acima formuladas sobre a perspectiva ontológica da orientação corpórea, é importante que se caracterize também por que ela inclui em seus questionamentos a suposta existência fixa do sujeito. Porém, isto será mais bem enfocado quando da descrição que será feita da concepção de realismo corpóreo, ou enação, na seção 2.3.1. Antes, é necessário aprofundar a investigação da crítica de autores da orientação corpórea às convicções ontológicas atribuídas por eles à orientação cognitivista. E esta crítica se apresenta de duas formas. Primeiramente, dirigida à crença na existência transcendente de objetos, cuja representação na cognição geraria os significados com os quais os sujeitos – também existentes “objetivamente” – lidam. Em segundo lugar, ela é voltada para o pressuposto tácito de que há a realidade transcendente não apenas dos objetos e dos sujeitos, mas da própria estrutura racional do mundo e dos sujeitos cognoscentes. Tratemos, inicialmente, da primeira crítica. A segunda será o tema da próxima seção. A primeira crítica é formulada de diversas maneiras nas obras dos autores de orientação corpórea. Mas, neste trabalho, se dará ênfase aos argumentos de George Lakoff e Mark Johnson, tendo em vista que nas obras destes autores esta crítica se faz de modo mais extenso e estreitamente vinculado à sua concepção corpóreo-experiencial da cognição humana. No livro Philosophy in the flesh, Lakoff e Johnson fazem esta crítica como uma objeção à “teoria da verdade por correspondência”. Um dos problemas que estes autores identificam nos pressupostos realistas das ciências cognitivas ortodoxas reside na questão do que chamam de “lacunas”, formadas não apenas entre as proposições e o mundo, mas também

83

A crítica ao idealismo solipsista será retomada na seção 2.3.1., quando for abordada a concepção ontológicoepistemológica do enativismo e, mais especificamente, aquilo que Varela, Thompson e Rosch chamam de “posição do ovo”.

227

na própria relação das línguas com as proposições. Esta crítica é aqui ressaltada porque se dirige a uma suposta neutralidade das proposições, que se atribui, também, ao modelo lógicoproposicional. Para eles, está equivocado o pressuposto de que a verdade decorre da correspondência entre símbolos e um mundo independente da mente, do cérebro e do corpo. Mas o exemplo que utilizam diz respeito à relação entre uma suposta estrutura neutra das proposições e as falas reais humanas. Isto é, eles identificam nos pressupostos do cognitivismo (embora se refiram explicitamente à filosofia analítica, à qual atribuem, por sua vez influência à abordagem tradicional das ciências cognitivas) um tipo de problema que não se limita à correspondência entre o mundo e as estruturas cognitivas. Segundo Lakoff e Johnson, o problema provém de um realismo “técnico” em que a constatação de que afirmações, com as quais as sentenças são ou faladas ou escritas, expressam proposições. As proposições, por sua vez, são estruturas compostas por símbolos, e são estas estruturas simbólico-proposicionais que são tomadas como correspondendo, ou deixando de corresponder, à realidade. A estrutura interna das proposições é vista, de diversas maneiras, como tendo uma das várias estruturas: estrutura sujeito-predicado, estrutura predicado-argumento, e assim por diante. A alegação é de que, em virtude dessa estruturação dos símbolos, a proposição pode ser elaborada para corresponder à estrutura do mundo e, assim, fazer afirmações verdadeiras sobre o mundo. As proposições são introduzidas para neutralizar as diferenças entre as linguagens. Os exemplos típicos são bastante simples: "A neve é branca" e "Schnee ist weiss" devem nomear a mesma proposição, ou seja, a afirmação de que os conceitos para o que chamamos de neve e o que chamamos de ser branco andam juntos de uma forma que corresponde à forma com que a brancura e a neve andam juntas no mundo. A introdução de proposições, assim, transforma a lacuna entre as palavras e o mundo em duas lacunas: Lacuna 1: Aquela entre as sentenças das línguas naturais e as proposições, que são estruturas de linguagem neutras compostas de símbolos abstratos; Lacuna 2: Aquela entre as estruturas de símbolos e o mundo. (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 99-100).

Deste trecho extraímos a objeção da cognição corpórea não apenas de que os significados cognitivos não nascem diretamente dos objetos do mundo, mas também de que tais significados não dependem de uma estrutura proposicional neutra e abstrata, subjacente às linguagens efetivamente utilizadas por seres humanos concretos. Este problema remete ao que será abordado a seguir, a respeito da rejeição da cognição corpórea à existência de uma suposta estrutura transcendente do pensamento e uma possível correspondência desta estrutura a uma estrutura do mundo. Contudo, neste momento é fundamental tratar-se aqui do polo da crítica corpórea à posição tradicional que vincularia os objetos do mundo às proposições – isto é, à segunda lacuna acima descrita. Mark Johnson lança mão de críticas ao Positivismo Lógico para fundamentar sua crítica ao objetivismo – e à teoria da verdade por correspondência – nas ciências cognitivas.

228

Tal procedimento é coerente com a hipótese assumida no presente trabalho de que o Positivismo Lógico teve papel basal na constituição do cognitivismo. A ideia subjacente a esta hipótese, e à crítica proferida por Johnson, decorre da suposição de que, através do Positivismo Lógico, os autores que gestaram o cognitivismo teriam aplicado à cognição humana, em geral, princípios que os positivistas lógicos adotaram em relação à constituição do conhecimento científico. De acordo com Mark Johnson, o Positivismo Lógico (chamado por ele de “Empirismo Lógico”), a partir de uma investigação da racionalidade científica, supunha que a ciência, graças ao rigor lógico e à fundamentação empírica próprios a ela, constituiria a mais elevada forma de investigação racional. Em suas palavras, para o Positivismo Lógico A ciência tinha uma parte formal (a estrutura lógica das teorias) e uma parte empírica (seu fundamento em dados objetivos). O Empirismo Lógico estava, desta forma, diante de duas tarefas necessárias para a defesa da objetividade científica. (i) Tinha de mostrar que a racionalidade da ciência poderia ser analisada em termos da lógica matemática, uma vez que a lógica era considerada como a essência da racionalidade. (ii) Tinha de mostrar que as teorias científicas eram baseadas em dados empíricos independentes da teoria, e testáveis em relação a estes. Em outras palavras, os pressupostos objetivistas poderiam ser defendidos mostrando-se que a ciência estava firmemente enraizada no solo da evidência empírica e que suas teorias e leis foram conectadas a esse fundamento empírico via relações logicamente corretas (JOHNSON, 1987, p. 198-199).

Porém, para Johnson o Positivismo Lógico deixou de realizar ambas as tarefas. Sustenta esta convicção nos trabalhos de autores como Thomas Kuhn, Frederick Suppe, Harold Brown, Richard Rorty, Paul Feyerabend e Hilary Putnam (Ibid., p. 226 nota 6), acrescentando que, segundo Hempel, “a teoria verificacionista do significado falhou em vincular os significados empíricos a dados observacionalmente independentes” (Ibid., p. 199). Tal afirmação se complementa com a ideia de que o Positivismo Lógico teria sido mal sucedido, também, ao se basear no pressuposto de que há dados empíricos neutros. Para Johnson, os inputs perceptivos somente são compreensíveis a partir de julgamentos proposicionais carregados de teoria – no que reconhece a influência de Norwood Hanson, e também de Paul Feyerabend (Ibid., p. 266, nota 10). A partir das considerações de Lakoff e Johnson, identifica-se um quadro em que determinados problemas são apontados na concepção de ciência do Positivismo Lógico e que teriam se propagado no cognitivismo. Segundo Johnson, as dificuldades do Positivismo Lógico se encontram em “uma inadequada visão objetivista do significado e da racionalidade” (Ibid., p. 199). Neste sentido,

229

A visão empirista lógica do significado tentou fundamentar termos ou frases à realidade objetiva independente e neutra em relação a teorias, de uma forma unívoca. Na "reconstrução racional das teorias" nenhum papel foi permitido às estruturas imaginativas de compreensão que venho examinando. Além disso, a visão objetivista da racionalidade também excluiu a compreensão deste tipo, através da busca por uma estrutura lógica "pura", algoritmicamente governada. Em suma, foi uma teoria objetivista insatisfatória do significado, da compreensão e da racionalidade que minou todo o projeto (Ibid.).

Após criticar, também, o que chama de “relativismo vicioso” – que seria um oposto “anárquico” do objetivismo –, Johnson (Ibid.) conclui que os filósofos da ciência vêm reconhecendo que a racionalidade científica se distingue não por manifestar um quadro decorrente de um “ponto de vista de Deus”, ou da neutralidade em relação a valores, mas, ao contrário, pela natureza crítica de suas investigações, que envolvem valores e são direcionadas a objetivos. Esta nova imagem da ciência serve, segundo Johnson, para desenvolver as críticas, também, ao objetivismo adotado pelas ciências cognitivas ortodoxas. Nesta argumentação, Johnson lança mão, sobretudo, das refutações ao objetivismo efetuadas por Hilary Putnam e Richard Rorty. Como na menção feita acima à sua posição, juntamente com Lakoff, em Philosophy in the flesh, ele alude ao que seria um “realismo técnico”, ou um “novo objetivismo”, baseado em uma “nova teoria da referência”. O termo “realismo técnico”, utilizado por Johnson, provém do pragmatismo de Richard Rorty, que atribui a criação de uma “nova teoria da referência” verificacionista a Quine e Wittgenstein – ainda que originada em Saul Kripke, e a uma supostamente equivocada leitura de Frege –, como podemos constatar na seguinte passagem de Rorty, aqui ampliando uma citação de Johnson: Com base da "nova teoria da referência" originada em Saul Kripke, dizem [Quine e Wittgenstein], podemos agora construir uma imagem melhor, não-fregeana, das relações entre palavra e mundo. (...) Kripke vê o mundo como já dividido não só em particulares, mas em tipos naturais de particulares, e mesmo nas características essenciais e acidentais desses particulares e tipos. A pergunta "É verdade que 'X é . Data de acessso: 12/08/2013. ____________________. “Reflections on my collaboration with Francisco Varela”, In: Constructivist Foundations, n°3, vol. 7, 2012. MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. De máquinas y seres vivos - autopoiesis, la organización de lo vivo. Santiago: Editorial Universitaria, 1998. _______________________________________. A árvore do conhecimento – as bases biológicas da compreensão humana. Trad. MARRIOTTI, H. e DISKIN, L. São Paulo: Palas Athena, 2010. MCCULLOCH, Warren S. Embodiments of mind. Cambridge: The MIT Press, 1988. MCCULLOCH, Warren S. e PITTS, Walter.“A logical calculus of the ideas immanent in nervous activity”. Disponível em: < http://www.grappa.univlille3.fr/~ppreux/ensg/aeac/papiers/mculloch-pitts.pdf>. Data de acesso: 10/09/2011. MCCORDUCK, Pamela. Machines who think.Natick: A. K. Peters, 2004. MERLEAU-PONTY, Maurice. A estrutura do comportamento. Trad. AGUIAR, M. V. M. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ________________________. A fenomenologia da percepção. Trad. MOURA, C. A. R. São Paulo: Martins Fontes, 2006. METROPOLIS, Nicholas. “The beginning of the Monte Carlo Method”. In: Los Alamos Science Special Issue, p. 125-130, 1987. METROPOLIS, Nicholas e ULAM, Stanislaw. “The Monte Carlo Method”. In: Journal of The American Statistical Association, nº 247, vol. 44, p. 335-341, 1949. MILLER, George. “The cognitive revolution - a historical perspective”. In: Trends of Cognitive Science, vol. 7, nº 3, p. 141-144, 2003 _______________. “The magical number seven, plus or minus two: some limits on our capacity for processing information". In: The psychological review, vol. 63, p. 81-97, 1956. MINSKY, Marvin. “Matter, mind and models”. In: Semantic information processing" Cambridge: The MIT Press, 1968 ________________. The society of mind. Nova York: Simon & Schuster, 1985. MORRIS, Richard e TARASSENKO, Lionel. Cognitive systems – information processing meets brain science. Amsterdam: Elsevier, 2006.

337

MÜLLER, Albert. “A brief history of the BCL. Heinz von Foerster and the Biological Computer Laboratory”. Disponível em , 2000. Data de acesso: 10/01/2014. MUMFORD, Lewis.Technics and civilization.Londres: Routlegde, 1934. NERSESSIAN, Nancy. Creating scientific concepts. Cambridge: The MIT Press, 2008. ___________________. “Model-based reasoning in conceptual change”. In: Model-based reasoning in scientific discovery, MAGNANI, L. et al. Nova York: Kluwer Academic/Plenum Publishers, 1999. NEWELL, Allen. “The knowledge level”. In: Artificial Intelligence Magazine, vol. 2, nº 2, 1981. NEWELL, Allen e SIMON, Herbert A. “Human problem solving - the state of the theory in 1970”, 1971. Disponível em: < http://www.cog.brown.edu/courses/cg195/pdf_files/fall07/Simon and Newell (1971).pdf>.Data de acesso: 01/10/2012. _______________________________. “Computer science as empirical inquiry”, 1976. Disponível em: . Data de acesso: 10/09/2011. NEWTON, Isaac. Philosophiae naturalis principia mathematica. Londres: S. Pepis, 1686. Digitalizado por “The Project Gutenberg”, 2009. NOË, Alva. “Direct perception”. In: Encyclopedia of Cognitive Science. Disponível em < http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/0470018860.s00170/full>. Data de acesso: 12/09/2011. NOË, Alva e THOMPSON, Evan (org.).Vision and mind: selected readings in the Philosophy of Perception. Cambridge: The MIT Press, 2002. NORMAN, Donald. “Twelve issues for cognitive science”. In: Cognitive Science, nº 4, p. 132, 1980. OXFORD DICTIONARIES. Disponível em: . PASK, Gordon. “The meaning of cybernetics in the behavioural sciences (The cybernetics of behaviour and cognition; extending the meaning of ‘goal’)”, In: ROSE, J. (org.) Progress of cybernetics, vol 1. Londres: Gordon and Breach, 1969. PANKSEPP, Jaak. Affective neuroscience: the foundations of human and animal emotions. Oxford: Oxford University Press, 1998. PECHER, Diane e ZWAAN, Rolf.(org.).Grounding cognition: the role of perception and action in memory, language, and thinking. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

338

PESSOA, Luiz. “On the relationship between emotion and cognition”. In: Nature Reviews – Neuroscience, vol. 9, nº 2, p. 148–158, 2008. ____________.“Emotion and cognition and the amygdala: from ‘what is it?’ to ‘what’s to be done?’”. In: Neuropsychologia, nº 48, vol. 12, p. 3416–3429, outubro de 2010. PESSOA, Luiz e ADOLPHS, Ralph. “Emotion processing and the amygdala: from a ‘low road’ to ‘many roads’ of evaluating biological significance”. In: Nature Reviews. Neuroscience, 11(11), 773–783. 2010. PESSOA JR., Osvaldo. “Auto-organização e complexidade: uma introdução histórica e crítica”, 2001. Disponível em . Data de acesso: 10/11/2013. PFEIFER, Rolf e SCHEIER, Christian. Understanding intelligence. Cambridge: The MIT Press, 1999. PFEIFER, Rolf e BONGARD, Josh. How the body shapes the way we think: A new view of intelligence. Cambridge: The MIT Press, 2007. PICCININI, Gualtiero. “The first computational theory of mind and brain: A close look at McCulloch and Pitts’s ‘Logical calculus of ideas immanent in nervous activity’”. In: Synthese, nº 141, p. 175–215, 2004. PICCININI, Gualtiero e SCARANTINO, Andrea. “Computation vs. information processing: why their difference matters to cognitive science”. In: Studies in History and Philosophy of Science, nº 41, p. 237–246, 2010. PICKERING, Andrew. The cybernetic brain. Chicago: The University of Chicago Press, 2010. PINKER, Steven e PRINCE, Alan. “On language and connectionism: analysis of a parallel distributed processing model of language acquisition”. In: Cognition, nº 28, p.73-193, 1988. POLANYI, Michael. Personal knowledge. Londres: Routledge, 1962. PRINZ, Jesse. Gut reactions: a perceptual theory of emotion. Oxford: Oxford University Press, 2004. PUTNAM, Hilary. “Minds and machines”. In: HOOK, S. (org.), Dimensions of mind. Nova York: New York University Press, 1960. PYLYSHYN, Zenon. “Computation and cognition: issues in the foundations of cognitive science”. In: The Behavioral and Brain Sciences, nº 3, p. 111-169, 1980. RAMSAY, William M. Representation reconsidered. Cambridge: Cambridge Press, 2007.

University

339

REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Volumes 01 a 05. Trad. STORNIOLO, I. São Paulo: Paulus, 2007. REISCH, George A. How the Cold War transformed philosophy of science: to the icy slopes of logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. RESNIK, Michael D. Mathematics as a science of patterns. Oxford: Clarendon Press, 1997. ROGERS, JR , Hartley. Theory of recursive functions and effective computability. Nova York: McGraw-Hill, 1967. ROGERS, T. & MCCLELLAND, J. Semantic cognition: a parallel distributed processing approach. Cambridge: The MIT Press, 2004. _____________________________. “The parallel distributed processing approach to semantic cognition.”, 2003. Disponível em: >. Data de acesso: 10/09/2011. RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Trad. TRÂNSITO, A. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. _______________. Consequences of Pragmatism (Essays: 1972-1980). Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982. ROSCH, Eleanor. “Principles of categorization”. In: ROSCH, E. e LLOYD, B. B. Cognition and categorization. Hillsdale: Lawrence Erlbaum, 1978. ROSENBLUETH, Arturo e WIENER, Norbert. “The role of models in science”. In: Philosophy of Science, nº 4, vol. 12, p. 316-321, outubro de 1945. ROSENBLUETH, Arturo et al. “Behavior, purpose and teleology”. In: Philosophy of Science, nº 1, vol. 10, p. 18-24, 1943. ROSNAY, J. de. “History of cybernetics and systems science”. Disponível em: < http://pespmc1.vub.ac.be/CYBSHIST.html>. Data de acesso: 04/08/2014, RUMMELHART, David e MCCLELLAND, James. Parallel distributed processing. Cambridge: The MIT Press,1986. RUSSELL, Bertrand. The basic writings of Bertrand Russell. Londres: Routledge Classics, 2009. SEARLE, John. Minds, brains, and programs. In: The Behavioral and Brain Sciences, nº 3, p. 417-457, 1980. ____________. Intencionalidade. Trad. brasileira de FISCHER, J. e BUENO, T. R. São Paulo: Martins Fontes, 2002. SEMIN, Gün R. e SMITH, Eliot R. Embodied grounding social, cognitive, affective, and neuroscientific approaches. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

340

SHANNON, C. E. “A symbolic analysis of relay and switching circuits”. In: Transactions of the American Institute of Electrical Engineers, nº 57, p. 1-11, 1938. _______________. “A mathematical theory of communication”. In: The Bell System Technical Journal, nº 3, p. 379-423, 1948. SHANNON, C. E. e WEAVER, W. The mathematical theory of communication. Chicago: University of Illinois Press, 1949. SHAPIRO, Larry. Embodied cognition. Nova York: Routledge, 2011. SHAPIRO, Stewart. Thinking about mathematics. Nova York: Oxford University Press, 2000. SIEGELMANN, Hava T. Neural networks and analog computation beyond the Turing limit. Nova York: Springer, 1999. SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. SILBERSTEIN, Michael e MCGEEVER, John. “The search for ontological emergence”. In: The Philosophical Quarterly, nº 195, vol. 49, p. 182-2200, abril de 1999. SIMON, Herbert. “On the forms on mental representations”. In: SAVAGE, C.W. (org.). Minnesota studies in the philosophy of science. Vol. IX: Perception and cognition: issues in the foundations of psychology. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1978. ______________. Models of my life. Cambridge: The MIT Press, 1996. SLOAN FOUNDATION. “Cognitive science 1978”. Report of the State of the Art Committee. Nova York: Sloan Foundation, 1978. _____________________. Alfred P. Sloan Foundation - A grantmaking History 1934-2009. Nova York: Sloan Foundation, 2009. SLOMAN, Aaron. The computer revolution in philosophy: philosophy science and models of mind. Nova York: The Harvester Press, 1978. _______________, “What's information, for an organism or intelligent machine? How can a machine or organism mean?”, 2011. Disponível em: . Data de acesso: 10/10/2012. SMART, J.J.C. “Physicalism and emergence”. In: Neuroscience, vol. 6, p. 109-113, 1981. SMOLENSKY, Paul.“On the proper treatment of connectionism”.1987. Disponível em: < http://commonsenseatheism.com/wpcontent/uploads/2011/04/Smolensky-on-the-proper-treatment-of-connectionism.pdf>. Data de acesso: 8/11/2011.

341

SPERRY, R. W. “Mind-brain interaction: mentalism, yes; dualism, no”. In: Neuroscience,vol. 5. p. 195-206, 1980. _____________. “Psychology’s mentalist paradigm and the religion/science tension”. In : American Psychologist, nº 08, vol. 43, p. 607-613, 1988. STENGERS, Isabelle. “Les généalogies de l’auto-organisation”. In: Cahiers du CREA, nº 8, p. 7-104, 1985. _________________. A invenção das ciências modernas. Trad. ALTMAN, M. São Paulo: Ed. 34, 2002. STEPHAN, Achim “Emergence: a systematic view on its historical facets”. In: Emergence or reduction - essays on the prospects of nonreductive physicalism, BECKERMANN, Ansgaret al (org.). NovaYork : De Gruyter, 1992 STEPP, Nigel et al. “Philosophy of the Rest of Cognitive Science”. In: Topics in Cognitive Science, nº 3, p. 425-437, 2011. STERELNY, Kim. The representational theory of mind. Oxford: Blackwell, 1990. STEWART, John et al. Enaction: toward a new paradigm for cognitive science. Cambridge: The MIT Press, 2010. STILLINGS, Neil et al. Cognitive Science: An introduction. Cambridge: The MIT Press, 1985. STICH, Stephen. From folk psychology to cognitive science: the case against belief. Cambridge: The MIT Press, 1983. STUART MILL, John. A system of logic. Disponível em: , 2011. Data de acesso: 12/05/2014. SUÁREZ, Mauricio e CARTWRIGHT, Nancy. “Theories: tools versus models”. In: Studies in History and Philosophy of Modern Physics, nº 39, p. 62–81, 2008. SWEETSER, Eve. “Blended spaces and performativity”. Disponível em: < http://www.cogsci.ucsd.edu/~faucon/BEIJING/sweetser.pdf>. Data de acesso: 02/010/2013. TAKIMOTO, Elika. “O que há de metafísica na Mecânica do Século XVIII?”, Tese de doutorado em Filosofia, 258 p., Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. THAGARD, Paul. Computational philosophy of science. Cambridge: The MIT Press, 1988. _______________. Mind: introduction to cognitive science. Cambridge: MIT Press, 2005.

342

______________. “Cognitive science”. In: Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2010. Disponível em: < http://plato.stanford.edu/entries/cognitive-science/ >. Data de acesso: 10/11/2012. THELEN, Esther et al. “The dynamics of embodiment: A field theory of infant perseverative reaching”. In: Behavioral and Brain Sciences, nº 24, p.1-86, 2001. THOMPSON, Evan. Mind in life: biology, phenomenology, and the sciences of mind. Cambridge: The Harvard University Press, 2007. THOMPSON, William Irwin. “History of the Lindisfarne Association: 1972-2009”. Disponível em: < http://www.williamirwinthompson.org/lindisfarne/history.html>. Data de acesso: 26/09/2014. TORRANCE, Steve. “In search of the enactive - introduction to special issue on enactive experience” TUDICO, Christopher. The History of the Josiah Macy Jr. Foundation. Nova York: Sloan, 2012. TURING, Alan. “On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem”. In: Proceedings of the London Mathematical Society, séries 2 e 42, p. 230-65, setembro de 1936. TURNER, Mark. “The embodied mind and the origins of human culture”. In: Cognition and culture: an interdisciplinary dialogue, ABRANTES, A. M. e HANENBERG, P. Frankfurt: Peter Lang, 2011. TURVEY, Michael. “Affordances and prospective control: An outline of the ontology”. In: Ecological Psychology, nº 4, p. 173-187, 1992. TVERSKY, Amos e KAHNEMAN, Daniel. “Judgment under uncertainty: Heuristics and biases. In: Science, New Series, nº 4157, vol. 185, p. 1124-1131, 1974. VAN GELDER, Tim.“The dynamical hypothesis in cognitive science”. In: Behavioral and brain sciences, nº 21, p. 615–665, 1998. VARELA, Francisco. “The creative circle: sketches on the natural history of circularity”. In: WATZLAVICK, Paul (org). The invented reality. Nova York: Norton Publishing, 1984. _________________“Whence perceptual meaning? A cartography of current ideas”. In: VARELA, F. e DUPUY, J.-P. (org.), Understanding origins: contemporary views on the origin of life, mind and society. Dordrecht: Kluwer, 1992. _________________. “The reenchantment of the concrete”. In: STEELS, Luc e BROOKS, Rodney. The artificial life route to artificial intelligence: building embodied, situated agents. Hillsdale: L. Erlbaum, 1995. _________________. “The early days of autopoiesis: Heinz and Chile”. In: Systems Research, vol. 13, nº 3, p. 407-416, 1996.

343

_________________. “El fenómenos de la vida: Cuatro pautas para el futuro de las ciencias cognitivas”. In: WIENS, B. (org.). Envissioning knowledge, Colônia: Dumont, 2000. _________________. Conocer - Las ciencias cognitivas: tendencias y perspectivas. Cartografía de las ideas actuales. Trad.: GIARDINI, C. Barcelona: Gedisa, 2005. VARELA, Francisco, MATURANA, Humberto e URIBE, R. “Autopoiesis: The organization of living systems, its characterization and a model”. In: Biosystems, nº 5, p. 187-196, 1974. VARELA, Francisco; THOMPSON, Evan e ROSCH, Eleanor.The embodied mind: cognitive science and the human experience. Cambridge:The MIT Press, 1991. VARELA, Francisco et al. “The brainweb: phase synchronization and large-scale integration”. In: Nature Reviews – Neuroscience, vol. 2, p. 229-239, abril de 2001. VIDEIRA, Antonio A. P. “Transdisciplinaridade, interdisciplinaridade e disciplinaridade na história da ciência”. In: Scientiæ Ztudia, São Paulo, v. 2, nº 2, p. 279-93, 2004. ____________________.“A filosofia da ciência sob o signo dos Science Studies”. In: Abstracta, nº 2, vol. 1,p. 70 – 83, 2005 ____________________. “Metafísica, físicos, valores: Um ensaio sobre a crise dos fundamentos das ciências naturais na passagem do século XIX para o século XX” In: Ensaios Filosóficos, Volume IV – outubro de 2011. VON BERTALANFFY, Ludwig. “The theory of open systems in physics and biology”. In: Science, vol. 111, 1950. __________________________. “An outline of general system theory”. In: The British Journal for the Philosophy of Science, nº 2, vol. 1, p. 134-165, 1950. VON ECKARDT, Barbara. What is Cognitive Science? Cambridge: The MIT Press, 1995. _____________________. “Multidisciplinarity and cognitive science”. In: Cognitive Science, nº 25, p. 453-470, 2001. VON ECKARDT, Barbara e POLAND, Jeffrey S. “Mechanism and explanation in cognitive neuroscience”. Disponível em: Data de acesso: 09/05/2012. VON FOERSTER, Heinz. Cybernetics: circular causal and feedback mechanisms, biological and social systems. New Jersey: The Josiah Macy Foundation, 1952. ____________________. “Perception of the future and the future of perception”, 1971. Disponível em: . Data de acesso: 10/07/2013.

344

____________________. “On constructing a reality”, 1973. Disponível em: . Data de acesso: 02/02/2013. ____________________. Understanding understanding: essays on cybernetic and cognition. New York: Springer-Verlag, 2003 VON NEUMANN, John. The computer and the brain. New Haven: Yale University Press, 1958. WAEVER, Warren. "Science and complexity", In: American Scientist, nº 36, vol. 536, 1948. WARE, Willis H. RAND and the information evolution: A history in essays and vignettes. Santa Monica: RAND, 2008. WEBB, Barbara e CONSI, Thomas R. Biorobotics: methods and applications. Menlo Park: AAAI Press/The MIT Press, 2001. WECKOWICZ, Thaddus E. “Ludwig von Bertalanffy (1901-1972): a pioneer of General Systems Theory”. Disponível em: < http://www.richardjung.cz/bert1.pdf>. Data de acesso: 01/09/2013. WEISS, Paul A. Dynamics of development: experiments and inferences. Nova York: Academic Press, 1968. WHITEHEAD, Alfred N. e RUSSELL, Bertrand. Principia mathematica. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. WIENER, Norbert. Cybernetics: Or control and communication in the animal and the machine. Cambridge: The MIT Press, 1961. WILLIAMS, Mary-Anne. “Representation = grounded information”, 2008. Disponível em: . Data de acesso: 8/11/2011. WILSON, Robert A. e KEIL, Frank C. (org.).The MIT encyclopedia of cognitive sciences. Cambridge: The MIT Press, 1999. WILSON, Robert A. e FOGLIA, Lucia, "Embodied Cognition", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2011 Edition), Edward N. Zalta (ed.), Disponível em . Data de acesso: 22/02/2014. WINOGRAD, Terry e FLORES, Fernando. Understanding computers and cognition, Reading: Addison-Wesley, 1986. YU, Qiming. “Model-Based Reasoning and Similarity in the World”. In: MAGNANI, L. et al (org.). Model-Based Reasoning: Science, Technology, Values. Nova York: Springer, 2002.

345

ZIEMKE, Tom. “Are robots embodied?”. Disponível em . Data de acesso: 27/03/2013. ____________. “What’s that thing called embodiment?” Disponível em Data de acesso: 27/03/2013.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.