A cognição da norma sociolinguística

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ISSN: 2178-1486 • Volume 6 • Número 18 • Maio 2016

Edição Especial • Homenageada MARIA CECÍLIA MOLLICA

A COGNIÇÃO DA NORMA SOCIOLINGUÍSTICA Marcos Gonzalez1 [email protected]

RESUMO: Tomando as palavras de Maria Cecília Mollica a respeito de Sociolinguística, apresento uma estrutura epistêmica primitiva, Sistema – Fôrma – Fórma, que seria subjacente ao planejamento da fala, segundo descrição do fenômeno linguístico elaborada pelo Eugenio Coseriu em meados da década de 1950. A despeito da heterogeneidade inerente, a línguas também revelam, segundo Mollica, uma “contraparte fixa”, de forma a exibir “unidade em meio à heterogeneidade”, condição básica para a noção de comunidade linguística, “caracterizada por padrões estruturais e estilísticos”. Essas estruturas e estilos são, portanto, um “mecanismo normatizador”, que não está previsto no fenômeno linguístico descrito por Saussure, mas consta da concepção dada pelo linguista romeno. São arroladas evidências de que temos consciência da norma sociolinguística e, para nos referirmos a ela, utilizamos expressões metafóricas envolvendo os conceitos vulgares de forma. PALAVRAS-CHAVE: Metáfora Conceptual; Conceito de Língua; Linguística Histórica

ABSTRACT: Base on the words of Maria Cecilia Mollica about Sociolinguistics, I present a primitive epistemic structure, SYSTEM – MOLD – FORM that could underlie the planning of speech, according to the description of the linguistic phenomenon developed by Eugenio Coseriu in the mid-1950s. Despite an inherent heterogeneity, languages also reveals, according to Mollica, a “fixed counterpart” in order to show “unity amid diversity”, basic condition for the notion of linguistic community, “characterized by structural and stylistic standards”. These structures and styles are therefore a “normalizing mechanism”, which is not foreseen in the Saussure’s linguistic phenomenon description, but appears in Coseriu’s one. I list evidences that we are aware of sociolinguistic norm and we use metaphoric expressions involving the common concepts of form to refer it. KEYWORDS: Conceptual Metaphor; Concept of Language; Historic Linguistics

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Introdução Maria Cecilia Mollica, minha orientadora no doutorado no programa de pós-

graduação em Ciência da Informação do IBICT/UFRJ (2010-2013), deixou marcas indeléveis em minha formação. Das leituras que me indicou a partir de minhas inquietações, sempre precisas, e de nossas conversas em sua casa, que giravam não

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Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Doutor em Ciência da Informação.

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apenas em torno de Sociolinguística, mas – e talvez o mais importante – sobre a língua em toda sua complexidade, pude construir amparo teórico robusto para minhas perscrutações científicas dali por diante. Nessa justa homenagem, quis compartilhar algo desse aprendizado com aqueles que não tiveram o privilégio de desfrutar, como eu, dos conhecimentos referenciais acumulados por essa professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autora, até a redação desse artigo, de 90 artigos em periódicos, 28 livros e 33 capítulos de livros, muitos sobre Sociolinguística. Os números falam por si e meu propósito não poderia ser mais do que contribuir para essa extensa pesquisa, que Mollica vem empreendendo com grande brilho em sua memorável carreira. Para introduzir a questão sobre a qual posso contribuir, resgatemos a fundamentação teórica que a professora Mollica (2010) expôs no texto de abertura de Introdução à Sociolinguística: o tratamento da variação, livro seu em co-autoria com Maria Luisa Braga. Conforme Mollica, a Sociolinguística toma como princípio teórico o dinamismo (ou heterogeneidade) inerente às línguas naturais humanas. Nessa perspectiva, são objetos de estudo as variações linguísticas, que podem ser encontradas tanto no nível do vocabulário, quanto da sintaxe, do subsistema fonético-fonológico ou do domínio pragmático-discursivo. As concordâncias nominal (“os estudos sociolinguísticos”) e verbal (“eles estudam Sociolinguística”), por exemplo, convivem com a possibilidade de ocorrência de enunciados em que marcas sintáticas estão ausentes (“os estudoØ sociolinguísticoØ”, “eles estudaØ Sociolinguística”). Trata-se, na perspectiva sociolinguística, de uma “variável linguística” (ou um fenômeno variável), que se realiza através de duas variantes, duas alternativas possíveis e semanticamente equivalentes: a marca de concordância no verbo ou a ausência da marca de concordância.

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Vejamos outros exemplos apresentados pela professora acerca desse dinamismo. No sul do país, o pronome tu é o tratamento preferido quando o falante interage com o ouvinte. Na medida que seu uso escasseia em diferentes lugares, onde o “normal” é usar variações de você, toma-se o fenômeno como evidência de uma diferenciação linguística influenciada pela geografia. O mesmo não se pode afirmar, no entanto, sobre a realização de “framengo”, “andano”, “Øtá”, “falaØ”, “paia”, coexistindo, no português do Brasil, com “flamengo”, “andando”, “está”, “falar”, “palha”. Admitem-se, ainda, a alternância de construções sintáticas como “eu vi ele ontem”, “nós fomos no Maracanã”, “é o tipo de matéria que eu não gosto dela” ou “a Linguística, ela é muito difícil” com seu equivalente semânticos “eu o vi ontem”, “nós fomos ao Maracanã” etc. A Sociolinguística vem demonstrando, há mais de 40 anos, que os fenômenos variáveis estão condicionados, positiva ou negativamente, por uma rede de fatores, internos à língua (fonomorfossintáticos, semânticos, discursivos, lexicais) ou externos, como os fatores inerentes ao indivíduo (etnia, sexo, idade), os propriamente sociais (escolarização, nível de renda, profissão, classe social) e os contextuais (grau de formalidade, tensão discursiva), esses últimos considerados circunstanciais, que ora envolvem o falante, ora o evento de fala – a escolha se impõe ao falante, a fim de se acomodar ao seu interlocutor. Há casos, portanto, em que a variação linguística ocorre no eixo diatópico, em que as alternâncias se expressam regionalmente, considerando-se os limites fisicogeográficos, e também no diastrático, em que ela se manifesta segundo os diferentes estratos sociais. Daí serem temas de interesse dos sociolinguistas a “estigmatização linguística” e a “mobilidade social”. Qualquer que seja o eixo, diatópico/geográfico, diastrático/social, ou de outra ordem, a variação é contínua, sendo impossível, portanto, demarcarem-se nitidamente as fronteiras em que ela ocorre – “é preferível falar em tendências a empregos de formas alternantes motivadas simultaneamente por condicionamentos diversos” (MOLLICA, 2010, p.13).

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A metodologia, visando sistematizar o fenômeno, que é probabilístico e não estatístico, busca localizar no fenômeno variáveis observáveis cientificamente. Identificaram-se traços descontínuos nos polos “rural” e “urbano”, por exemplo, recursos comunicativos próprios de discursos “monitorados” e “não monitorados”, estilos “formais” e “informais” na fala e na escrita, em conformidade com o controle e o monitoramento da produção linguística. Como resultados, demonstrou-se que “o falante adquire primeiro as variantes informais e, num processo sistemático e paulatino, pode vir a apropriar-se de estilos e gêneros mais formais, aproximando-se das variedades cultas e da tradição literária”. A despeito da heterogeneidade inerente, a línguas também revelam uma “contraparte fixa”, de forma a exibir “unidade em meio à heterogeneidade”. A unidade é, de acordo Mollica, “a base para a noção de comunidade linguística, caracterizada por padrões estruturais e estilísticos”. A variação é estruturada de acordo com as propriedades sistêmicas das línguas e se implementa porque é contextualizada com regularidade. Essas estruturas atuam de tal modo que, enquanto o impulso à variação produz inovações, o impulso à convergência mantém a língua coesa. Podemos extrair das palavras de Mollica que o fenômeno linguístico manifesta uma fala por um lado heterogênea, por outro, organizada por necessidade de coesão. A fala, ademais, possui “propriedades sistêmicas”, como já previa Saussure, mas também está sujeita a um mecanismo normatizador (“estrutural e estilístico”) que tanto é coercitivo quanto agregador, garantindo que as comunidades em que essa fala heterogênea possa compreendê-la. Saussure define fórma como a “combinação” produzida por elementos de duas ordens diferentes, a fala e a língua, ou seja, o sistema (SAUSURRE, 1974, p.131). Se a ideia de um “mecanismo normatizador” não está prevista no fenômeno linguístico descrito por Saussure, ela consta da concepção dada por Eugenio Coseriu.

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O linguista romeno o descreve por meio de uma tríade Sistema – Norma – Fala, “uma tripartição, teoricamente aclaradora e metodologicamente útil, partindo de uma concepção monista da linguagem e tendo-a sempre presente” (COSERIU, 1967, p.18). Concretamente, “existe somente o falar, a atividade linguística, atividade que é ao mesmo tempo individual e social, que é de por si assistemática, pois é perpétua criação de expressões inéditas correspondentes a intuições inéditas”. O sistema é, em linhas gerais, um “sistema de possibilidades”, “um conjunto de liberdades, já que admite infinitas realizações e só exige que não se afetem as condições funcionais”, isto é, aquelas que atendem às necessidades da comunicação humana. A norma, por fim, é formada pelas “características normais, comuns e mais ou menos constantes, independentemente da função específica dos objetos”. Existiriam, ainda segundo Coseriu, “normas gerais (de uma sociedade global, de nação) e normas parciais, regionais, ou de grupos minoritários dentro da comunidade, e sua presença pode ser identificada em qualquer nível da análise linguística”. Para demonstrar a plausibilidade da tese, o linguista romeno aplica-a aos níveis fonético, morfológico, sintático e léxico do espanhol. Para Biderman (2001), cabia aí uma aproximação com o “mecanismo normatizador” da Sociolinuística, conforme sugerida por essa pesquisadora, na medida que “a observação dos fatos de linguagem evidencia uma enorme variedade na utilização da norma e do sistema linguísticos”. Seguindo por outro caminho, preferi observar se temos (ou não) consciência da norma tal como a descreve Coseriu, a força social que organiza aquilo que, numa comunidade de fala, se considera “normal”. Advogo que sim, que temos consciência do conceito de norma. Em minha tese de doutoramento (GONZALEZ, 2013), observei que a semântica e a etimologia da palavra forma e lexemas derivados (especialmente enformação) pareciam sustentar, por meios metafóricos e metonímicos, uma comunicação inspirada na relação fórma-fôrma. É comum que se descreva a fala como fórma e que se sugira a existência de “modelos”, “moldes”, “formas ideais”, ou seja fôrmas na fala. Atestam-

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no, sem perceber, mesmo os grandes linguistas. Mollica fala de “estilos e gêneros formais e in-formais [sem fórma ou sem fôrma?]” e “produção das formas de prestígio”; Biderman afirma que “uma comunidade elege um modelo de linguagem”. Nem o emérito Émile Benveniste escapou dessa sina, querendo assim evidenciar a relação entre fórma-fala e fôrma-norma: Isso a que chamamos “o que queremos dizer” ou “o que temos no espírito” ou “o nosso pensamento” (seja como for que o designemos) é um conteúdo de pensamento, bem difícil de definir em si mesmo, a não ser por características de intencionalidade, ou como estrutura psíquica, etc. Esse conteúdo recebe forma quando é enunciado, e somente assim. Recebe forma da língua e na língua, que é o molde de toda expressão possível; não pode dissociar-se dela e não pode transcendê-la. [...] Essa grande estrutura, que encerra estruturas menores e de muitos níveis, dá a sua forma ao conteúdo de pensamento (BENVENISTE, 2005 [1958], p.69, grifos nossos).

A Coseriu não interessam as determinações externas da linguagem, físicas e psíquicas, pois nessas “não se estabelecem relações múltiplas, mas binárias, relações gerais de forma e conteúdo, tais como som-significado, material-imaterial ou articulação-impulso expressivo”. Tais conceitos, explica, pertencem “à psicologia da linguagem, mais do que à linguística propriamente dita”. No meu caso, fui buscar respostas nas teses da Linguística Cognitiva, uma área de investigação que está ancorada na linguística e, ainda assim, faz fronteira epistemológica com a “psicologia da linguagem” a que se refere Coseriu. 2

Teoria e Metodologia Na perspectiva da Linguística Cognitiva, as categorias conceituais humanas e o

significado das estruturas linguísticas, em qualquer nível, são considerados “motivados e fundamentados, de alguma forma, diretamente nas nossas experiências corporais, físicas e socioculturais” (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p.259). Um novo conceito emerge via o uso de um lexema socialmente selecionado, uma escolha que não é aleatória: haveria uma tendência, universal, de selecionar palavras que expressassem conexões cognitivas com a experiência corporal que é viver no mundo. A Linguística Cognitiva consegue observar, a partir desse pressuposto, as estruturas do “senso

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comum”, que correspondem, segundo Ibarretxe-Antuñano (2009), às “propriedades e expressões metafóricas baseadas na psicologia dos sentidos”, isto é, em como as pessoas pensam que utilizam os sentidos. Apoio-me particularmente no conceito de mapeamento (mapping) metafórico, isto é, do mapeamento cognitivo socialmente convencionado que se insere entre dois domínios conceptuais, introduzido pela Teoria da Metáfora Conceptual, de Lakoff e Johnson (2002). Afirma-se aí que um domínio cognitivo de origem ou fonte (source domain), concreto e experiencial, é usado para conceptualizar entidades cognitivas que estão inseridas em outro domínio, alvo (target domain), mais abstrato. A Linguística Cognitiva é uma linguística centrada no uso, um tipo de abordagem que observa a relação estreita entre a estrutura das línguas e o uso que os falantes fazem delas em contextos reais de comunicação (TORRENT; BYBEE, 2012). Para sustentar afirmações a respeito da “ubiquidade e da compreensão realista da linguagem metafórica”, é preciso que os pesquisadores explorem “metáforas no mundo real”, na medida em que são produzidas na fala e na escrita, em diferentes contextos (GRUPO PRAGGLEJAZ, 2009). Seguindo tais recomendações, apoiamos as análises em dados reais contendo os lexemas derivados de forma, extraídos principalmente do Corpus do Português (DAVIES; FERREIRA, 2006-) escritos entre os séculos XIV e XVII, período em que a língua, menos influenciada pela escrita, melhor espelhava suas origens conceptuais. A língua portuguesa, deve-se destacar, mostrou-se particularmente útil, na medida que preservou a diferença fonética entre dois sentidos primitivos de forma, os conceitos metonimicamente relacionados de fôrma (“molde, modelo”) e fórma (“aparência visível”), , ao contrário do espanhol, por exemplo. 3

A anatomia do fenômeno linguístico: Saussure, Hjelmslev e Coseriu Saussure buscava uma explicação para o fenômeno linguístico que independesse

da perspectiva de análise – fonológica, fisiológica, psicológica etc. – e foi encontrá-lo

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na distinção dos “lados” individual e social. Saussure descobre o objeto língua e, nesse momento, toma-se consciência de que a linguística da época só considerava a fala. O genebrino desenvolveu, a partir daí, sua famosa distinção fala (francês parole, alemão Rede, inglês speech) e língua (langue, Sprache, language), depositando nelas as respectivas facetas individual e social. A relação que une as duas, admitia Saussure, “é tão estreita que é difícil separálas”, no sentido de que “não se pode conceber uma sem conceber a outra”. Ainda assim, elas podiam ser separadas. A fala (ou linguagem), pertencente ao domínio individual, é “multiforme e heteróclita”, na medida que é uma manifestação concreta da língua, uma “atualização real do sistema abstrato” (BIDERMAN, 2001, p.13), isto é, da língua. A fala é uma práxis individual, concreta, que está sujeita a fatores que compõem a herança social, como a cultura e a estrutura da sociedade; a língua, em contraste, é um objeto bem definido, uma “parte determinada do fenômeno”. Como “instituição social”, a língua é, para Saussure, “um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos” (SAUSURRE, 1974, p.17). Sendo a parte social do fenômeno, a língua é exterior ao indivíduo, que por si só não pode criá-la nem modificá-la: ela existe em virtude de um “contrato” estabelecido entre os membros da comunidade. O indivíduo, para tornar-se parte de uma comunidade, precisa saber como a língua funciona e a criança, de fato, assimila-a pouco a pouco. Essa “cristalização social” é “um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes a uma mesma comunidade”, um sistema gramatical virtualmente existente nos cérebros de um conjunto de indivíduos: “a língua não está completa em nenhum, e só na massa ela existe de modo completo” (SAUSURRE, 1974, p.21). Pois a língua é “uma soma de cunhagens depositadas em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, idênticos, foram distribuídos entre os indivíduos”.

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Nas décadas seguintes à sua morte, as palavras de Saussure foram submetidas a revisões críticas. Seu livro póstumo continha ideias preciosas e intuições suscetíveis de desenvolvimento, “em sentido positivo ou negativo” (COSERIU, 1967, p.43), que serviram de embrião e semente de muitas doutrinas e atitudes da Linguística daquela época. Com efeito, “quase todas as declarações sobre linguagem e da fala representam paráfrase, desenvolvimentos ou interpretações, em geral unilaterais, de pontos de vista saussureana”. Uma importante revisão foi a Glossemática, teoria desenvolvida ao longo de décadas pelo já citado Hjelmslev. O linguista dinamarquês pretendia instaurar uma gramática estrutural e declara a língua de Saussure como um fenômeno triádico2. Como uma forma pura, independente de suas realizações sociais e de suas manifestações materiais, a qual denomina de esquema. Na maior parte das vezes que Saussure se refere à língua, diz ele, “o faz com esse sentido”. Como o “conjunto de hábitos de uma determinada comunidade linguística definidos pelas manifestações observadas”, Hjelmslev define então como uso. Norma, uma novidade em relação a Saussure que Hjelmslev chegou a considerar o “único verdadeiro objeto da linguística” (apud LIMA, 2010, p.75), é “uma ideia que se impõe a todos os sujeitos que fazem parte de um mesmo grupo social”, “um conjunto de regras que estão baseadas no sistema e que fixa o limite necessário de variabilidade para cada elemento”, “exterior às irregularidades da fala”, mas dentro do “conjunto de possibilidades” que é o sistema. O linguista dinamarquês classifica-a como uma forma material, “já definida por certa realização social, mas independente ainda dos traços pormenorizados de sua manifestação” (HJELMSLEV, 1971, p.218). Uma conferência de semântica, realizada em março de 1951 em Niza, por iniciativa de Emile Benveniste, reuniu nove linguistas de vários países europeus e dos Estados Unidos, entre eles o próprio Hjelmslev, para discutir uma anatomia dos 2

O conceito de fala de Hjelmslev é praticamente o mesmo de Saussure.

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aspectos na linguagem no lugar da distinção saussureana língua e fala. No ano seguinte, o linguista romeno Eugenio Coseriu, um dos convidados, publicou Sistema, norma, y habla (COSERIU, 1967) e, em 1954, Forma y substância en los sonidos del lenguaje, com suas reflexões sobre a questão. Coseriu distingue três conceitos de língua em Saussure, que respondem a diferentes oposições, sinal de que representam diferentes perspectivas: a) como “acervo linguístico”, opõe a realidade psicofísica da realidade psíquica, b) como “instituição social” (opõe aspecto individual/aspecto social) e c) “sistema funcional” (opõe concreto/abstrato ou realização/sistema). No Curso..., o genebrino não estabelece os contornos desses conceitos, porque ainda são, segundo o linguista romeno, “tentativas de caracterização de uma intuição importante, ainda algo imprecisa”. Saussure penderia, porém, para a terceira das concepções, que é aplicada sobre a distinção entre linguística interna e externa e, em geral, na discussão dos problemas da linguística sincrônica (COSERIU, 1967, p.46-47). Para Coseriu, no entanto, o plano em que se há de fazer as distinções é aquele em que o fenômeno linguístico se manifesta (o “plano da conformação da linguagem”) e não o plano da sua essência. O elemento social deve ser verificado no falar individual, abandonando-se porém “toda a fictícia oposição entre um indivíduo anti-social e uma sociedade extraindividual” (COSERIU, 1967, p.43). A tríade de Hjelmslev podia resultar “útil, proveitosa e mesmo necessária na linguística teórica e na linguística histórica, tanto sincrônica como diacrônica”, embora tenha sido desenvolvida “sobre outras bases e em termos algo distintos” da sua (COSERIU, 1967, p.14). Para clarear a distinção entre sistema normal e sistema funcional (ou, simplesmente, sistema), Coseriu parte da célebre analogia de Saussure entre a língua e xadrez: “tudo o que concerne ao sistema e às regras é de ordem interna da língua”; se substituirmos “peças de madeira por peças de marfim”, que são de ordem externa, a troca será “indiferente para o sistema”, mas se reduzirmos ou aumentarmos o número de

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peças, “essa mudança atingirá profundamente a ‘gramática’ do jogo” (SAUSURRE, 1974, p.32). Coseriu extrai daí a norma, “certos aspectos constantes”, tais como o número de peças, que caracterizam a maneira de jogar de um indivíduo ou grupo de indivíduos mais ou menos amplo e constituem, assim, realizações “normais” pelos indivíduos considerados. A norma é uma tradição continuada e reiterada no falar e no escrever de uma determinada comunidade linguística. Contém o sistema e os elementos “normais no falar de uma comunidade”. Engloba aquilo que na fala real (e na escrita) constitui repetição de modelos anteriores. Coseriu recorre a outra analogia para exemplificá-lo, desta vez entre o fenômeno linguístico e uma viagem de trem. No “expresso de Paris das 8h20”, explica o linguista, “se mantêm certas características funcionais”, como a de sair a uma hora determinada, chegar a Paris a uma hora determinada, parar em determinadas estações. É sempre o mesmo “expresso de Paris das 8h20”, mesmo se mudarmos o número, a ordem, a forma, os vagões, o pessoal de serviço, etc. No entanto, os que viajam no expresso sabem que os elementos não-funcionais não são todos indiferentes e ocasionais. Por exemplo, sabem que “o trem tem sempre dez vagões, que os vagões D, E, A, B se encontram sempre nessa ordem, que o segundo e o quinto vagão, contando desde a locomotiva, são sempre de primeira classe; que todos os sábados muda o turno do pessoal em serviço, etc”. Todos os passageiros conhecem toda uma série de aspectos sem valor funcional que caracterizam o expresso de Paris, e achariam “anormal” um trem que não os apresentasse: “aqui também, entre a viagem de trem abstrata [sistema, língua], como função, e a viagem concreta [fala] que o senhor X tomou ontem ou tomará amanhã, se interpõe uma ‘realizacão’ normal e mais ou menos constante do trem mesmo” (COSERIU, 1967, p.61). Há sempre três características nessas analogias, “segundo o grau de abstração ou formalização” que também podem ser verificados no fenômeno linguístico: 1) as características concretas, infinitamente variadas e variáveis, dos objetos observados (uma rodada do jogo, uma viagem de trem, um ato de fala); 2) as características

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normais, comuns e mais ou menos constantes, independentemente da função específica dos objetos (norma, primeiro grau de abstração); 3) as características indispensáveis, as funcionais (sistema, segundo grau de abstração), que proporcionam ao falante “formas ideais, desligadas do uso concreto” (COSERIU, 1967, p.76). Observemos a norma na sintaxe. O sistema da língua portuguesa permite certa liberdade na colocação das palavras na oração. São semanticamente equivalentes, por exemplo, sentenças como “O menino caiu da escada”, “O menino da escada caiu”, “Caiu o menino da escada”, “Caiu da escada o menino”, “Da escada caiu o menino” ou “Da escada o menino caiu”. No sistema latim, a ordem das palavras também era, em principio, totalmente livre, uma vez que as desinências indicam a função sintática das palavras na oração. Assim, a sentença “Pedro ama Paulo” admitiria seis variantes combinatórias: “Petrus Paulum amat”, “Paulum Petrus amat”, “Petrus amat Paulum”, “Paulum amat Petrus”, “Amat Petrus Paulum” ou “Amat Paulum Petrus”. Entre as variantes de um esquema sintático permitidas pelo sistema, porém, uma é considerada como a realização normal numa língua dada (“O menino caiu da escada”, “Petrus Paulum amat”), enquanto que, em outras línguas, “ou são anormais, ou adquirem normalidade em uma determinada convenção estilística” (COSERIU, 1967, p.84). Não são do mesmo tipo a maioria das inovações poéticas? – pergunta-se Coseriu (1967, p.62). Tais ousadias são consideradas, portanto, “violações da norma, permitidas, porém, pelo sistema, ou existentes em estado latente na língua, aguardando apenas o impulso criador de um homem para trazê-las à existência” (BIDERMAN, 2001, p.20). 4

As metáforas de fôrma As categorias conceituais são, como vimos, motivadas e fundamentadas

diretamente nas nossas experiências corporais, físicas e socioculturais. Por esse princípio da Linguística Cognitiva, é necessário conhecer a base experiencial da metáfora aqui sugerida, NORMA É FÔRMA, projetá-la em um nível apropriado de generalidade. O processo envolve a busca de metáforas primárias que sejam plausíveis e

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diretamente motivadas pela experiência. São caracterizadas, em geral, por mapeamentos simples, que conectam apenas poucos elementos, propriedades e relações, enquanto se mantêm referindo a cenas coerentes (esquemáticas) e compreendendo estrutura suficiente para suportar certas expressões linguísticas (GRADY, 1998). Mostrei acima indícios de que a experiência sociocultural de norma está associada ao processo cognitivo relacionado à enformação. Retornemos então ao tempo do latim, quando o conceito mais saliente associado à palavra forma fazia referência a “molde, modelo, tipo” (fôrma), e não à “figura” enquanto “aparência exterior” (AUERBACH, 1997), isto é, à fórma. Horácio usou “forma” em referência a um molde para sapatos; Ovídio, a um molde para fazer moedas (MONLAU, 1856, p.123; ERNOUT; MEILLET, 1951, p.247). O normal era pensar em fôrma. Apenas na virada da Idade Média para a Moderna que a mudança se deu: segundo Williams (1975, p.50), fórma é, no francês e no português, uma pronúncia “erudita ou semi-erudita”, introduzida na era Moderna. Sabe-se que o conceito de fôrma já estava disponível para os falantes do latim arcaico, ou talvez antes, desde o indo-europeu. Há milhares de anos, foi útil na invenção do tijolo na Turquia (~7500 a.C.), para o desenvolvimento dos moldes de areia para a fabricação de vidraria (~1500 a.C.) ou na fabricação das moedas romanas (~300 a.C). “Formae” era, no latim, um dos sinônimos de “moeda” (TERREROS Y PANDO, 1793) e efformare, assim como exprimere, era sinônimo de “cunhar”. Contudo, a experiência humana que se associou ao som de “fôrma” está relacionada, no Ocidente, à invenção do “queijo duro”. A relação fica óbvia nos nomes dados para esse alimento no francês antigo, furmaige ou fromache, no provençal

formatge ou fromatge, no catalão formatje e no italiano formaggio. A origem desses nomes está no latim formaticum, que significava, literalmente, “feito em uma fôrma” (BRACHET, 1870, p.250), ou seja, enformado. Segundo Alinei (2010), a trajetória da palavra remonta a regiões franco-italianas, que se alternaram como fonte de surtos de

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inovações, tanto de diversidade cultural quanto linguística. Evidências arqueológicas ali enfatizam a importância de vasos de cerâmica no processamento de produtos lácteos na “revolução de produtos secundários” do médio Período Neolítico, ~4500 a.C. (SALQUE et al., 2012). O queijo duro é uma inovação europeia no processamento de leite e sua influência na cognição do europeu promoveu extensões metafóricas em vários domínios abstratos distintos. Tomemos, visando uma sistematização, a metáfora sugerida por Lakoff e Johnson (2002, p.149) SUBSTÂNCIA ENTRA DENTRO DO RECIPIENTE (SUBSTANCE GOES INTO A CONTAINER), que licenciaria, entre outros, o verbo enformar “meter (ou pôr) na fôrma”. A etimologia desse verbo pode ser rastreada até o latim efformare. Trata-se de um verbo do “latim vulgar”, um verbo que, garante Dumesnil (1809), “não é encontrado nos grandes autores [Ovídio, Cícero, Virgílio, Horácio], que preferem formare, informare”. No Diccionario de la lengua Castellana da Real Academia Española (1732), efformatio está registrada como “forjadura”, pois “forjar” era como “ruditer efformare, effingere”, termos usados tanto com sentidos de “fabricar” ou “formar alguma coisa no material”, principalmente moedas, mas também “mentiras”. O Nouveau Dictionnaire de Sobrino, françois, espagnol et latín..., de Francisco Sobrino (1775) registra assim o verbo francês enformer: “v.a. ahormar, poner en la horma, lat ad formam aptare”. Esta última expressão aparece também no Hieronymi Cardosi Lamacensis Dictionarium ex Lusitanico in latinum sermonem, de Jeronimo Cardoso (1562, p.296) (“formis aptare, vel inducere”). No Diccionario castellano con las voces de ciencias y artes y sus correspondientes en las tres lenguas francesa, latina e italiana, de Esteban Terreros y Pando (1793), as expressões do latim “formae indere e ad formam aptare” significam “enhormar, ajustar una cosa, zapato, &c. á la horma”. Em sentido literal, enformação (“meter na fôrma”) é, enfim, um caso simples de causalidade direta, como a fabricação, a construção ou a criação de objetos, conceitos

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estruturados pela metáfora SUBSTÂNCIA ENTRA DENTRO DO RECIPIENTE. Como qualquer fabricação, a enformação envolve manipulação direta prototípica, com uma característica adicional que a diferencia de outras manipulações diretas (tal como tocar): como resultado, vê-se o objeto (leite, ouro, couro) como um tipo diferente de coisa (queijo, moeda, sapato), isto é, categorizado de maneira diferente, “com forma e função diferentes”. Pela via das metáforas, observa Ernst Cassirer (1992 [1924], p.102), somos capazes de estabelecer um “vínculo intelectual entre a linguagem e o mito”. Nossa tão primitiva experiência a enformação de queijos parece ter suscitado, com efeito, uma “percepção de mundo” que podemos chamar de “mundo enformado”. Seguindo o mitólogo Mircea Eliade, essa percepção corresponderia a um mundo “fundado” pelo sagrado (processo que Eliade chama de “hierofania”), no sentido de que lhes fixa os limites e, assim, estabelece a ordem cósmica. Subentende-se nesse mundo a oposição entre o território habitado e o espaço desconhecido e indeterminado que o cerca: o primeiro é “o nosso mundo”, o cosmos, que pode estar representado por uma região (por exemplo, a Palestina), uma cidade (Jerusalém) ou um santuário (o templo de Jerusalém). O território habitado por esse homo religiosus é propriamente um “cosmos”, do grego kósmos “ordem, conveniência, organização, ordem do universo, mundo, universo”, na medida que foi consagrado previamente, é obra dos deuses ou está em comunicação com o mundo deles. Nesse mundo enformado, “ter forma” significa “ter uma fôrma perfeita”. O melhor molde, o modelo mais belo, o mais justo, é tradicionalmente Deus. Daí o ditado “Quando fez você, Deus jogou a fôrma fora”, quando de uma “beleza rara”, associação encontrada não apenas no português, como também no francês e no latim desde pelo menos o séc. XVIII (BERTHELIN, 1762, p.910). Fremoso era uma fórma criada a partir de uma “bom molde” ([1]). No Horto (ou Orto) do esposo, uma compilação de

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histórias e contos tradicionais com um certo caráter moral, ascético e edificante, encontramos “enformar [...] para haver fremusura” ([2]). [1] [...] ca tomarõ aqueles maestres pedras çafíjs et esmeraldas et almarinas et sardis et topazas, et fezérõnas todas moer en poluos, et desí fondérõnas cõ ouro, et deytarõ delas en hû molde uão que fezerõ d'ouro, o mays fremoso et o mellor feyto que poderõ fazer, a fegura d'ome. Et en esta maneyra fezerõ a mays fremosa ymagẽ que nûca ẽno mundo fuy feyta. (Cronica Troyana, 1388), [2] A esposa de Jhesu Christo, que he a egreya, demãda marido que aja de seguir e consentir pera corregimẽto e per que seja alumeada pera auer conhecimento e a quẽ se ẽcoste pera auer uirtude e que seia tal per que ella seja enformada pera auer sabedoria e ao qual se conforme pera auer fremusura e cõ que se casse pera auer fruyto auõdoso de filhos spirituaes e que seja tal cõ que ella huse pera auer prazer spiritual. (Horto do esposo, Livro 4, cap. 47)

Ao contrário, a falta de forma, ou um desvio dela (amorphia/amorphos; informis/deformis), podia significar, portanto, “feiura” ou mesmo “monstruosidade”. Isto porque, fora do “nosso mundo” já não é um cosmos, mas uma espécie de “outro mundo”, o caos, um espaço estrangeiro, povoado de espectros, monstros, demônios, “estranhos” (ELIADE, 1992, p.21). Qualquer ataque exterior ameaça transformar o “nosso mundo” em “caos”; toda vitória contra o atacante, por sua vez, reitera a vitória exemplar do Deus contra o dragão (quer dizer, contra o “caos”). Os adversários que o atacam são equiparados aos inimigos dos deuses, aos demônios e, sobretudo, ao arquidemônio, o dragão primordial vencido pelos deuses nos primórdios dos tempos. O dragão é símbolo exemplar das trevas, da noite e da morte – “numa palavra, do amorfo e do virtual, de tudo o que ainda não tem uma ‘forma’”. Um “mundo enformado” como esse pode ser identificado em um grande número de mitos, ritos e crenças diversas, de diferentes civilizações, tendo sido identificado em todos os domínios do pensamento antigo, medievo e até entre os modernos (ELIADE, 1992, p.25). Plotino (séc. III d.C.) descrevia o “conhecimento” como uma “batalha pela vitória da forma sobre o informe”; Shakespeare (Romeu e Julieta) define o “amor” como “Misshapen chaos of well-seeming forms” (STANCO, 2007).

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A mesma ideia se aplicava à educação. Em Cícero e na Idade Média europeia, enformar foi interpretado como “formação ou modelagem da mente ou do caráter,

treinamento, instrução e ensino” (CAPURRO; HJØRLAND, 2007). No seu Glossaire de langue d'oïl, Alphonse Bos (1891) reconhece, para os sécs XI a XIV, “enformëor” e “enformer”

como

“informador,

instrutor”,

“enformement”

como

“formação,

ensinamento, informação, instrução”. Em Portugal, a concepção de educação em termos de fabricação permaneceria por muito tempo prestigiada: no Dictionarium Lusitanico Latinum de Agostinho Barbosa (1611), temos “dar enformação” com o sentido de docere, isto é “dar formação, educar”; no Thesouro da Lingoa Portuguesa, de José Bento Pereira (1697), temos enformador como docens, entis (ou seja, como “professor”); enformado, como edoctus, a, um; enformar como doceo, es (“ensinar”). Estes sentidos estão nos tokens abaixo: [3] Cathezizas que quer dizer ensynar ou ẽformar ou doctrinar por que qual quer que he ja de discriçom & ven aho bautismo primeira mente deue seer enformado & ensynado & doctrinado en a ffe & em a crença e na ẽcarnaçon de jhesu xpisto (Clemente Sanches de Vercial, Sacramental, 1488?) [4] Enforma a tua mente tenra com estudos mais ásperos (Boosco deleitoso, séc. XV)

Se o cosmos e a mente são enformados, e tudo que neles há também o é – seja o queijo, o conhecimento ou o amor – seria também a fala “enformável”, como sugerem as palavras de Benveniste? 5

NORMA É FÔRMA Traugott e Dasher (2001) haviam observado padrões de direcionalidades

históricas em mudança semântica no sentido de verbos relacionados ao senso deslocamento ou movimento físico para sensos sobre o ato de fala; Semino (2005) também encontrou no discurso sobre a atividade de comunicação um domínio-fonte construção física (de objetos) que estrutura a produção de enunciados e os atos de fala, citando como exemplo, “fazer um comentário”. O verbo efformare se alinha a outros

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verbos análogos do latim, tais como exprimere (“espremer” e “exprimir”), mittere (“meter”, “emitir”) ou inducere (“introduzir”, “induzir). Daí sugerir que FALAR É ENFORMAR, metáfora que estrutura a enformação da fala a partir de SUBSTÂNCIA ENTRA DENTRO DO RECIPIENTE. Para Saussure, a fala é, de fato, uma substância porque, psicologicamente, o pensamento, tanto quanto o som, é “caótico por natureza”, “não passa de uma massa amorfa e indistinta”, uma “nebulosa onde nada está necessariamente delimitado” (SAUSURRE, 1974, p.130). Como qualquer outra substância enformada (leite, ouro), a fala dá origem a uma fórma (os queijos, as moedas, os sapatos, os atos de fala), objeto que, como os demais, pressupõe uma fôrma (no caso da fala, uma norma) estruturante – daí as metáforas FALA É FÓRMA e NORMA É FÔRMA. Resta-nos compreender que normas são essas, capazes de “enformar” a fala, fabricando assim uma fórma linguística. Lei, regra, norma e seus derivados legal, regular e normal, que contrastam com os símbolos de antivalores expressos por ilegal, irregular, anormal, são tidos como termos polissêmicos e para-sinônimos, semanticamente associáveis ao adjetivo anômalo3. Os conceitos abstratos de regra e norma, “representação do que deve ser realizado”, segundo Celso Cunha (1985, p.42, grifo nosso), têm origem nos “modelos geométricos” concretos: a primeira provém do latim regula, uma “reta materializada que permite criar outras retas”; norma, por sua vez, é um latinismo que traduz o grego gnomon “esquadro” e desempenha o mesmo papel em relação ao encontro de retas. Segundo Cunha, será apenas no século XX que norma vai transmigrar do campo conceptual de “bom”, “justo”, “desejável” (modelo, fôrma) para o de “habitual”, “frequente”, “usual”, semas pertinentes às definições tomadas de Hjelmslev e Coseriu.

3

Nomos, explica Georges Canguilhem (1971, p.97-98), significa lei.

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Embora conceptualizada em termos de “modelos geométricos”, costuma-se fazer menção à norma como se fossem fôrmas a orientar a aplicação delas. Observam-se, no português do séc. XVI, expressões licenciadas pela primitiva metáfora FALAR É ENFORMAR, que licencia expressões metafóricas estruturadas pelo sentido de “pôr (um texto) na fôrma”: [5] E como elles não tem nenhuma noticia de logica nem filozofia, nem sabem pôr hum argumento em forma, não fazem mais que perguntar em breves palavras alguma couza sobre o texto de suas leys, e o outro lhe há-de responder tambem em poucas palavras (Frois, Historia do Japam 3, 1560-1580) [6] [...] parando mentes aas rrellaçoões que nos trouverom alguus nossos messegeiros que enviamos em Itallia [...], e vista sobre o dito juramento sua enformaçom das pallavras que nos disserom por a parte de cada huu dos ditos enleitos (Fernão Lopes, Cronica de Dom Fernando, séc. XV). [7] E por que isto os ditos abades & capellães milhor possam fazer & nõ tenhã escusa dizendo que nõsabem nẽ teẽ escritas as ditas cousas.as quaes ante de serem promouidos aa hordẽ saçerdotal sam obrigados de saber.has mandamos poeer ẽ forma em estas nossas cõstituições (Dom Diogo de Sousa, Constituições do Bispado do Porto, 1497)

O tokens a seguir sugerem que não só dispomos do recurso da norma, como quer Coseriu, mas também que temos ciência dele, expressando-o em termos de forma: [8] Teerão os juizes grande cuidado de saber, se alquem [...] pagou aos pastores Castelhanos sua soldada em gado cõtra forma das ordenações. E cada vez que o souberem, tirarão sobre isso deuassa, & procederão cõtra os culpados como for justiça, dando appellação & aggrauo. E as inquirições deuassas tirarão os juizes segundo a forma desta lei (Duarte Nunes Lião, Leis extravagantes, 1569) [9] Despois de haver tres vezes, em vão, intentado sair a Armada (cujo repetido impedimẽto, se declarou apresagio) ultimamente se fez á vèla, quarta feira pella menham, vinte e quatro de Setembro, seguindo em tudo a forma de seu Regimento; pello qual se lhe ordenava (Francisco Manuel de Melo, Epanaphora politica primeira, 1637)

A noção de “conformidade” ganha um novo sentido com a tese. Exemplos distantes, em português, mostram que conforme a podem, de fato, ser interpretados como “produzido pela mesma norma”. Lucena fornece um exemplo em Historia da vida

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do Padre S. Francisco Xavier (1600): “Quem há-de disputar sobre lei tão conforme a toda a boa razão como esta é, não há-de estar fora dela como vós outros vindes”. Afonso X faz referência a uma “forma” como uma “maneira que devem ser feitas” as cartas: [10] Outrossy deue guardar que as cartas que lhis mãdarõ fazer. em hûã forma. de qual maneira quer que seiã que nõ a cãbë em outro mays façã cada hûã secundo maneyra que deuẽ seer feitas. (Afonso X, Terceyra Partida, séc. XIV)

A distinção Sistema – Norma – Fala se faz notável quando se toma um gênero literário como norma. Afinal, para Bakhtin (2003), “todo estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e às formas típicas de enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso” (grifo nosso). Gêneros corresponderiam, assim, “aos recursos expressivos preexistentes ao escritor, dos quais lança mão para lançar suas intuições; em síntese, um molde no qual deposita o conteúdo de sua imaginação” (MOISÉS, 1982, p.298, grifo nosso). Coseriu teve os primeiros vislumbres de sua teoria ao estudar um poeta romano cujas inovações, especialmente sintáticas e semânticas, “embora absolutamente sem precedentes, ousadas e surpreendentes, e de certa forma ‘anormais’”, não violavam o sistema. Concluiu que o sistema permite a extensão de usos particulares a outros casos, logicamente semelhantes, mas que diferem no que, convencionalmente, os romanos consideravam uma poesia normal. Com base nessas evidências, propomos a metáfora NORMA É FÔRMA. No caso da fala, a norma/fôrma não é uma lei, em seu sentido mais estrito, pode ser um gênero literário, um estilo, um modelo socialmente desenvolvido e imposto. A noção de enformação, aplicada à fala poética, expressaria a metáfora FALAR É ENFORMAR em termos de uma “submissão a um gênero”. Licenciando um gênero textual, “a fôrma soneto”, por exemplo, “seria o tema, com infinitas variações, em princípio previstas no próprio fato de se manifestarem dentro do soneto” – explica Massaud Moisés (1982, p.310-311). Com mittere, a noção fica clara em expressões como as francesas “mettre un argument en forme” e “mise en forme” (ACADÉMIE FRANÇAISE, 1694), ambas com o sentido de “dar forma a um argumento segundo com

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as regras da lógica” (donner la forme qu'il doit avoir selon le regles de la logique), sendo as “regras da lógica” obviamente uma norma, uma fôrma, o modelo que submete a argumentação. O francês do século XII parece ser, a propósito, a sincronia em que a metáfora emerge nas línguas modernas. Segundo a 9ª edição do dicionário da Academia Francesa, enformer foi introduzido na língua em 1174 (Guernes de Pont-SainteMaxence, St. Thomas) com o sentido de “mettre sur la forme”. Por volta de 1180, por coincidência (ou não), emerge a expressão “mettre en roman”, que Paul Zumthor (1993, p.268-269) identificou como o “nascimento” de um gênero textual, o “romance”. O termo, romance, era originariamente advérbio provindo do latim romanice, referia-se “ao vernáculo”, à língua falada. Mas os “romancistas” passaram a opor seus “romances” às narrativas disseminadas pelos contadores de histórias, que eram afastados com desprezo. O novo gênero era, portanto, “irrealizável sem a intervenção do escrito”. A expressão “mettre en roman” passou a significar “glosar” em língua vulgar, ou seja “pôr, clarificando o conteúdo, ao alcance dos ouvintes”, marca de um processo de recusa da oralidade das tradições antigas, que terminarão marginalizando-se sob o rótulo de “cultura popular”. Talvez não seja coincidência que a emergência observada por Zumthor envolva o verbo meter, a preposição em (dentro) e o nome de um gênero: trata-se de uma metáfora do verbo enformar “meter na fôrma”. Em português, vamos encontrá-la em Fernão Lopes, segundo quem, como cronista régio, cabia-lhe “poer em caronyca [crônica] as estorias dos Reys” (apud SERRÃO, 1998, p.11). 6

Considerações finais A metáfora da enformação evoca um léxico que tem como referência o próprio

fenômeno linguístico de que a fala é apenas uma parte. Ao conceptualizar outra parte, a norma em termos de fôrma, percebe-se a rica estrutura cognitiva que apoia esse metadiscurso. Observa-se a fôrça dos conceitos que lhe dão lastro, francamente

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amparado em aspectos solidificados no senso comum, como a fabricação e a criação por intermédio de uma fôrma. Destaca-se aí a norma, como um elemento coercitivo essencial à comunicação. Seu aspecto coercitivo é claramente o promotor de tensões ideológicas de todo espectro. Mollica já alertava para o “preconceito linguístico” que é ler o fenômeno linguístico a partir de “diretrizes maniqueístas” do tipo certo/errado, quando se toma como “certo” o padrão culto. Está cientificamente comprovado, porque é sistemático, que as estruturas de maior “valor de mercado” tendem a ser aquelas que se parametrizam com grau alto de monitoramento e de letramento. Maior sensibilidade, percepção e planejamento linguístico são, via de regra, pré-condição à produção das “formas de prestígio” e disposição

adequada para eliminarem-se estigmas

sociolinguísticos na fala ou na escrita. Mollica aponta para uma das frentes onde a Sociolinguística contemporânea vem atuando, na desconstrução daquelas normas que impõem o “culto” como “normal”. Vêse, nessa corrente, eco de uma crítica de movimentos sociais contra a ideia de “normalidade” em campos da cultura. Nesse processo de revisão crítica da nossa era, já chamada de “pós-convencional”, insere-se essa contribuição, um vislumbre das complexas relações entre nossos comportamentos sociolinguísticos e nosso aparato sociocognitivo, uma discussão que me pareceu apropriada para o momento, em que se homenageia minha querida orientadora. Bibliografia

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Recebido Para Publicação em 06 de março de 2016. Aprovado Para Publicação em 28 de agosto de 2014.

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