A Coleção Perseverança do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas e a Memória da Devassa

August 12, 2017 | Autor: Ulisses Rafael | Categoria: Colections, Religiões Afro-Brasileiras
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CULTURA AFRO-ALAGOANA: UMA DIGRESSÃO


Na noite de primeiro de fevereiro de 1912, nas ruas da pequena
capital, Maceió, voltada ainda ao provincianismo das intrigas e fofocas
domésticas, se verificaria um dos episódios de perseguição contra os cultos
afro-brasileiros mais violentos de que se tem notícia na história dessa
vertente religiosa em Alagoas e, quiçá, no Brasil. O acontecimento
extraordinário em questão, que ficaria conhecido como "quebra-quebra",
culminou com a invasão e destruição dos principais terreiros de xangô[1] da
capital do estado, por elementos populares capitaneados pelos sócios da
Liga dos Republicanos Combatentes.
As razões dessa perseguição contra os cultos religiosos em Alagoas
constituem o objeto principal deste trabalho. Além de expormos os contornos
da "Operação Xangô", outro nome pelo qual também ficou conhecido o mesmo
episódio, discutiremos as razões porque os estudiosos alagoanos silenciaram
a respeito desse episódio.
Os acontecimentos que culminaram com a revolta popular de 1912 têm
sua origem ainda nos primeiros anos daquele século, quando se inaugura o
período denominado "Era dos Maltas". Ele irá marcar a longa trajetória de
Euclides Vieira Malta à frente da política alagoana, o qual exerceu pôr
três mandatos entre 1900-1912 o cargo de Governador do Estado, garantindo
ainda que seu irmão, Joaquim Vieira Malta, o alternasse em mandato
intermediário (1903/1905).
A longa permanência de Euclides Malta no poder estivera marcada pelo
estilo oligárquico de administração, pautado na forma de relacionamento
personalista e tradicional, em detrimento de uma presença crescente, na
esfera urbana, de uma pequena burguesia comercial, que reinvindicava uma
participação maior nos projetos políticos do estado e da nacão.
Quando a partir do sul do país desencadeia-se a campanha
salvacionista, idealizada pôr Plínio Machado – também fundador do mesmo
Partido Republicano Conservador presidido em Alagoas por Euclides Malta - ,
com a finalidade de "salvar" as instituições republicanas ameaçadas pela
Política dos Governadores instituídas pelas oligarquias estaduais, o
movimento, que em Alagoas recebe a denominação de "soberania" ganha grande
adesão, sobretudo entre as camadas populares.
A oposição que até então se mantivera passiva, reúne nesse momento as
condições de articulação e reage com extrema agressividade contra o "Corvo
da República", como também ficara conhecido o representante máximo da
oligarquia maltina. Surgem as primeiras manifestações de revolta, cuja
característica maior será o fato de congregarem os mais distintos segmentos
da sociedade: elementos não conformistas da própria classe dominante,
representada pelos coronéis do interior que há bem pouco tempo integravam
as hostes oligárquicas no estado; uma camada média urbana, composta de
bacharéis, jornalistas, artistas e estudantes, que lideraram as
concentrações na cidade e, por fim; uma grande massa de trabalhadores
pobres de bairros populares - canoeiros, pescadores, operários,
comerciários, ferroviários, estivadores – todos mobilizados numa única
causa comum.
Em fins de 1911, tem início em Maceió a campanha eleitoral que
definiria o quadro político de Alagoas para o próximo mandato (1912/1914),
cujo pleito se realizaria em 12 de março do ano seguinte. O clima de
disputa se intensifica. Facções políticas oposicionistas, praticamente
neutralizadas pelas gestões prolongadas de Euclides Malta, recobram os
ânimos e passam a reunir-se em torno do nome de Clodoaldo da Fonseca,
coronel do Exército, primo legítimo e cunhado do Presidente da República na
época, o Mal. Hermes Rodrigues da Fonseca.
Contudo, quem vai capitanear a campanha oposicionista é Fernandes
Lima, chefe do Partido Democrático em Alagoas e importante liderança
política da região Norte do Estado, justamente onde se concentravam os
maiores proprietários da empresa açucareira, sequiosos do controle
político, até então conservado nas mãos dos proprietários do sul. A
campanha deflagrada pelo candidato a vice na chapa de oposição, de forte
apelo populista, concorreu para arrebatar a simpatia dos alagoanos,
sobretudo nas camadas mais baixas, segmento do qual despontará a Liga dos
Republicanos Combatentes, cuja participação nos episódios desenvolvidos, a
partir de então, merece uma consideração especial.
A "Liga dos Republicanos Combatentes em homenagem a Miguel Omena",
tipo de milícia particular foi criada em 17 de dezembro de 1911, sob os
auspícios de Fernandes Lima, a quem os integrantes da Liga tinha em grande
conta. A principal finalidade da liga era fornecer suporte físico à
campanha de estilo persecutório inaugurada em Maceió contra o governador
Euclides Malta, e em favor da eleição de Clodoaldo da Fonseca, nome em
torno do qual todos as frações oposicionistas se reuniram. Cumpriu a
contento sua missão, haja vista ter transformado a disputa política em
Alagoas após seu aparecimento, num verdadeiro confronto armado.
Com a instalação da Liga, se verificará uma série de ações arbitrárias
promovidas por essa associação em Maceió, mas dentre todas, a que maior
abalo provocou na até então sólida estrutura de poder da oligarquia maltina
foi a ação ousada dos oposicionistas que assaltaram o Palácio dos
Martírios, sede oficial do Governo. Segundo testemunhos da época, Euclides
Malta, cercado de seus correligionários mais próximos e da Guarda do
Palácio, enfrentou e repeliu seus desafetos, armados de rifles e fuzis,
resultando desse confronto vários feridos e algumas detenções.
Os assaltantes não se intimidam com as prisões. Um mês depois, mais
precisamente no dia 29 de janeiro de 1912, uma nova ofensiva é feita ao
Palácio e desta feita, o aparato policial não foi suficiente para evitar o
avanço dos revoltosos, que desarmam a guarda e forçam a fuga do governador
pelos fundos da residência oficial para tomar, no bairro de Bebedouro, um
trem para a capital de Pernambuco.
Durante o curto período em que Euclides Malta esteve afastado do
poder, entre janeiro e março de 1912, mais precisamente, Maceió se
transformou numa verdadeira praça de guerra, sem que a força policial
disponível pudesse acalmar os ânimos. Depois de invadir residências e
prédios públicos, os integrantes da Liga passaram em seguida a perseguir os
correligionários do Partido Republicano nas ruas principais da cidade e a
surrar os suspeitos de integrarem cultos marginais[2].
No dia 10 de Março de 1912, Euclides retorna à Maceió, sob forte
esquema de segurança e, embora ainda convencido de que a situação no
Palácio dos Martírios voltaria a lhe ser favorável, não iria concluir o seu
mandato. A população, agora em grande número favorável à sua renúncia,
promove inúmeras manifestações públicas de repúdio, para marcar o retorno
do governador a capital alagoana. Os comerciantes fecharam as portas dos
seus estabelecimentos, prevendo quebra-quebras e tumultos. Estudantes,
caixeiros e operários ocupavam as igrejas cujos sinos tocavam o dobre de
finados. A população acompanhava o percurso cantando hinos e dando gritos
hostilizando os 'lebas[3]'. As provocações acompanharam o cortejo oficial
do governador, que seguira numa limousine escoltada, do Jaraguá até o
centro da cidade. Segundo relatos da época, os manifestantes, em vários
momentos romperam o isolamento, quebraram os vidros do carro e cobriam o
ilustre viajante de iodofórmio, lama de sururu, ovos podres. A tropa
responsável pela segurança do governador continha os ânimos dos
manifestantes, mas ainda sem lançar mão da força[4]
O ponto culminante dessas manifestações seria a realização, a 10 de
março de 1912, exatamente no dia em que o governador reassumiria seu
mandato, de um comício político previsto para acontecer na Praça dos
Martírios, depois que uma enorme passeata percorresse as principais ruas de
Maceió. Numa das paradas do cortejo, na praça Montepio dos Artistas, reduto
de grandes manifestações políticas na cidade, o advogado Bráulio
Cavalcante, exímio orador, encanta a multidão com seu discurso
oposicionista. O Ten. Brayner, Secretário do Interior convocado para
reforçar a segurança do governador e na tentativa de evitar novos
confrontos entre manifestantes e força policial, ordena o encerramento do
comício. Como o orador se recusasse a atender a ordem, um clima de tensão
se instaura, resultando em discussão, tiroteio e as mortes, do advogado e
do secretário, este vindo a falecer dias depois do ocorrido[5].
Sob tais circunstâncias, torna-se inviável a permanência do governador
no poder e em Alagoas. Três dias depois de ter reassumido o cargo, ele
renuncia ao mandato e buscar refúgio, pela segunda vez em menos de três
meses, na capital do estado vizinho. Um cronista da época nos passa suas
impressões do que deve ter sido esse período:
Para os objetivos que nos propomos analisar aqui, convém determo-nos
sobre um aspecto específico da agitação política que culminou com a queda
de Euclides Malta. Trata-se das "caçadas humanas" promovidas pela Liga,
contra os chamados 'lebas', integrantes dos cultos afro-brasileiros de
Maceió que sofreram as piores conseqüências das campanhas persecutórias
desenvolvidas pôr aquela entidade.
Segundo Lima Junior, pôr volta de 1910 e 1911 existia em Maceió cerca
de 50 terreiros de xangô, 'toques' e casas de pais-de-santo, espalhados
pelos mais diferentes bairros da cidade. Assim sendo, a existência desses
grupos não podia passar desapercebida para o restante da população que, sem
participar diretamente dos cultos tomava conhecimento da sua existência
durante a realização dos toques, haja vista o volume dos batuques e
cânticos que ecoavam daquelas casas. Para muitos moradores da cidade que
não compartilhavam de tais credos, aquelas manifestações certamente, soavam
como provocação. Primeiro pôr se originar no interior de um grupo
minoritário da sociedade que não desfrutava de qualquer tipo de
reconhecimento social no meio; em seguida, pelo tipo de ritual desenvolvido
naquelas casas de culto, francamente associadas à "magia diabólica" e
outros estigmas dessa natureza; e, pôr fim, pelo incômodo mesmo que os
atabaques causavam em decorrência do som ensurdecedor e da extensão dos
rituais, sobretudo para os moradores das redondezas das casas de culto[6].
No entanto, apesar da antipatia que tais práticas provocavam na
maioria católica da população, pelo menos é o que a crônica local deixa
antever, não parece que os terreiros de xangô tenham sofrido qualquer tipo
de repressão legal até aquele fatídico 02 de fevereiro. Não encontramos até
agora registros de denúncias, devassas, prisões e reprimendas contra pais-
de-santo ou suas casas, promovidas pelo Estado, sob a orientação da lei[7].

É possível que somente pôr volta do último mandato de Euclides Malta
/1912) é que se desencadeia a campanha difamatória contra ele e contra os
xangôs, acusados de promover e assegurar a sua longevidade política,
apodado de soba[8] e de leba pelos seus opositores, numa evidente
associação do seu nome com a tradição afro-religiosa.
Uma série de artigos, intitulados "Bruxaria", foi publicada no Jornal
de Alagoas, nos dias imediatamente posteriores à invasão das casas de
culto. Não obstante o seu caráter tendencioso, trata-se de uma importante
referência para acompanhar o rumo dos acontecimentos políticos que
açambarcaram as práticas religiosas afro-brasileiras em Alagoas, sobretudo
pelo fato do próprio jornalista Oseas Rosas, responsável pelas matérias, se
encontrar num dos terreiros, poucas horas antes de sua invasão.
Procede desses artigos a primeira denúncia formalizada da ligação de
Euclides Malta com os terreiros, não só como colaborador, mas também como
freqüentador daquelas casas:
O conjunto de reportagens publicadas no Jornal de Alagoas, não
obstante seu caráter etnocêntrico, constitui um precioso documento
etnográfico que preza pela descrição minuciosa das casas de culto e dos
rituais ali realizados, embora não deixe de enquadrar seus informantes e o
ambiente em que circulam, num rol de categorias depreciativas, como se pode
depreender do trecho a seguir. Um fato divulgado na última matéria, datada
de 08 de fevereiro, sugere a utilização daqueles espaços religiosos para
fins não tão sagrados como se pode supor à primeira vista:
Mas a acusação mais grave contra Euclides Malta e as ditas casas e que
parece ter provocado ainda mais a ira dos revoltosos, é a de que os pais e
filhos-de-santo foram convocados para empreender todos seus esforços em
assegurar ao governador ameaçado a permanência no poder, pelo menos até o
fim do seu mandato. Assim sendo, ao mesmo tempo em que descreve as casas de
culto, o jornalista também revela vestígios de "trabalhos" encomendados
pelo governador contra seus desafetos políticos, cujos detalhes, parecem
querer atenuar a violência dos atos praticada dias antes contra os
terreiros:
"Dizia-se que o 'Xangô', o pupilo do sr. Euclides Malta,
trabalhava pôr ordem deste para que morressem antes das respectivas
eleições os intemeratos cel. Clodoaldo da Fonseca e o dr. José
Fernandes de Barros Lima(...)Em muitas dessas casas foram encontrados
documentos preciosos que a sofreguidão do povo destruiu e nos quartos
reservados e escondidos as vistas dos profanos, ardiam velas em redor
de figuras grotescas que eles fantasiavam ser o cel. Clodoaldo da
Fonseca ou o dr. José Fernandes.
"Debaixo das vestes de um 'leba', ídolo com chifres, foi
encontrado um retrato do cel. Clodoaldo da Fonseca, virado de cabeça
para baixo, como refém de futuros acontecimentos"
"Um bode preto sacrificado a 'oxalá' tinha pendurado no pescoço o
retrato do cel. Clodoaldo da Fonseca a esse bode, entre acaçás,
moringas, pratos, moedas de cobre e outros ingredientes, estava
destinado a ser enterrado na praia".
"Em outras foram achados os dois retratos do cel. Clodoaldo e do
dr. Fernandes Lima, sob um montículo de barro fedorento e aluminado
pôr quatro velas de sebo. Eis todo o cortejo bestial que cercava e
prestava mão forte ao governo do sr. Euclides Malta".[9]
Com base nas informações contidas nessas matérias, algumas
considerações merecem ser tecidas. Mesmo que as edições publicadas pelo
jornal oposicionista reflitam a ignorância do seu autor no manejo de
categorias do universo religioso afro-brasileiro, como afirma Abelardo
Duarte em sua acerba crítica, não podemos desconsiderar o fato de que, a
riqueza de detalhes com que o repórter descreve o ambiente, as práticas e a
demanda pôr trabalhos mais eficazes apresentada pôr Euclides Malta aos
"xangôs" dos Estado, demonstra que esse repórter provavelmente já
freqüentava espaços religiosos semelhantes, a ponto de conhecer minimamente
sua dinâmica de funcionamento, ou fora realmente confidente da mãe-de-santo
como se depreende da descrição acima.
Não estamos aqui corroborando o conjunto das informações contidas nos
artigos. O fato de ter estado presente num desses terreiros, poucas horas
antes do ocorrido, não delega ao jornalista autoridade máxima sobre os
dados apresentados. Pode ser que nada do que foi descrito em termos de
"magia negra" tivesse mesmo ocorrido. É possível que as matérias do jornal
tenham sido escritas com o propósito último de justificar a violência da
ação movida pela Liga contra os terreiros, em obediência às determinações
de Fernandes Lima. Tudo isso, porém, não invalida o caráter etnográfico
das reportagens.
Com base então no que foi descrito, estavam dadas as condições para
que os terreiros fossem invadidos. O quebra-quebra se dá na noite do dia 2
de fevereiro de 1912, coincidentemente ou não, durante o período em que
Euclides Malta se encontrava afastado do poder[10]. Reportemo-nos mais uma
vez sobre as matérias do jornalista Oseas Rosas para reconstituir o
episódio:
"...o povo, que não via com bons olhos essas casas de bruxaria,
auxiliados pôr alguns praças de guarnição investiu anteontem contra a
'panela do feitiço', tudo quebrando, extinguindo e fazendo recolher à
cadeia, em nome da tranqüilidade, os mais afamados 'pais de
santo[11]".


Segundo a reportagem de Oseas Rosas, foram mais de quinhentas pessoas
que invadiram aquele terreiro específico pôr ele visitado no dia 02, embora
numa matéria anterior o mesmo jornalista tenha se referido à participação
de 2 mil pessoas na destruição de 30 focos de "bruxaria". Os revoltosos
arrancaram tudo que pudesse servir de prova do tipo de cerimônias ali
práticas e, em alguns casos, como o que foi testemunhado pelo repórter,
poucas horas depois de encerrada a função dos terreiros.
O historiador Luiz Sávio de Almeida, importante referência sobre o
quebra, haja vista ter localizado e conversado com vários pais-de-santo em
Maceió, vinte anos depois do quebra, confirma a versão de que a mãe de
santo a que se referira o Jornalista Oséas Rosas era mesmo a Tia Marcelina.
Ele dedicou a ela um artigo, no qual relata as atrocidades cometidas pela
soberania, revelando inclusive que a mãe de santo fora assassinada no
interior do próprio terreiro onde se encontrava na hora do ataque:
'O João, preto velho, amigo de fé, morando naquelas ruinhas de
Ponta Grossa, moço bom mas que trabalhava, também, pelas canhotas, foi
quem me contou. No meio da pancadaria toda, a tia Marcelina não
aceitou fugir. Para onde? Distante do ache? Longe dos filhos? A
polícia veio com um monte de gente gritando. Entraram , todos,
invadindo terreiro e a tia foi para o peji. Que melhor lugar, havia?
Foi assassinada lá dentro, no peji com o sangue correndo no meio da
comida do santo. E a tia sustentou; a cada chute que levava do
soldado, gemia para Xangô(Eiô, cabecinha!) a sua vingança e, no outro
dia, a perna do soldado foi secando, até que ele mesmo secou todo"[12]
.


Esse artigo é importante, pôr apresentar outras fontes de referência
do ocorrido. Através dos depoimentos recolhidos de tantos pais-de-santo que
testemunharam a história da perseguição, ficamos sabendo que, tanto a
devassa aos terreiros parece ter se estendido pôr vários dias do mês
fevereiro, como também a perseguição não se restringiu à invasão dos
terreiros. Aqui pela primeira vez temos a confirmação de que foram
realizadas também prisões:
"Este período ficou conhecido como o quebra e ainda estava
presente na memória dos terreiros de Maceió, há uns vinte anos
passados, quando conversávamos com o Luiz Marinho, Joça, João e tantos
que já se foram. Eles recontavam a história da perseguição, falavam
das ialorixás humilhadas e das fugas que se procediam. Anacleto, que
tinha um terreiro na Rua de Santo Antonio, foi preso. Prisão que foi
anunciada no Jornal de Alagoas de 27.02.1912. Maria da Cruz que parece
ser a mesma identificada pôr Duarte(1974), com um terreiro no Frechal
de Cima, escapou. Varejaram Maceió e queriam varejar o interior"[13]
Depois disso, se instaura a anarquia. Os exaltados 'salvacionistas'
desfilam o repertório de atrocidades e intolerância. Não satisfeitos em
devassar os redutos sagrados, destruindo objetos de culto, espancaram os
integrantes das casas, realizaram prisões arbitrárias e difamaram a
religião, levantando suspeitas sobre as práticas ali realizadas, acusando-
as de bruxaria:
"O que se registrou então, foi vergonhoso! Além de quebrarem os
objetos de culto, alguns caríssimos e raros, trabalhos perfeitos, de
elevado custo, danificaram os móveis e utensílios das casas. Em frente
à residência de Chico Foguinho(...) fizeram uma pilha de móveis,
santos, cabaças, atabaques, tambores, palmatórias, capacetes,
pulseiras, paramentos, peças artísticas e de valor, e puseram fogo. E
não se contentaram com isso: arrancaram o cavanhaque do babalorixá
Manoel Martins; feriram, com sabre, a cabeça de Tia Marcelina,
africana, com mais de cem anos de idade. O que não foi quebrado ou
queimado, a Liga ofertou, depois, à Sociedade Perseverança e Auxílio
dos Empregados no Comércio, em cujo museu permaneceu, pôr muito tempo,
sendo depois entregue ao Instituto, onde ainda está"[14].


Assim sendo, é provável que a perseguição, que a fonte principal até
aqui utilizada afirma ter ocorrido no segundo dia do mês de fevereiro, pode
ter se estendido pelos dias seguintes e até se iniciado antes, uma vez que
o cronista acima narra os mesmos acontecimentos como tendo acontecido no
dia 1º. Segundo Abelardo Duarte, o fato teria ocorrido mesmo a 1º de
fevereiro de 1912. Data esta que marcaria a extinção das velhas casas de
culto afro-brasileiro de Maceió:


"A 1º de fevereiro de 1912, ocorreu o fato, e essa data
marca a extinção das velhas casas de cultos afro-brasileiros de
Maceió, implantando-se daí em diante, com a queda do antigo governo e
a ascensão do Partido Democrata e a influência da Liga dos Combatentes
no novo Governo, o terrorismo político-policial contra os adeptos
daqueles cultos, impedindo igualmente sua reorganização. Os suspeitos
eram surrados barbaramente, como no tempo de Escravidão, pela polícia
civil em sua sanha de extermínio dos Xangôs".
"Os sacerdotes e sacerdotizas mais visados na nojenta campanha
fugiram para outros Estados, diante da perseguição tenaz, omissão ou
conivência do Governo".
"A ialorixá conhecida como Tia Marcelina, africana, dona do
terreiro que tinha seu nome, recebeu na ocasião do quebra-quebra, em
sua casa, um golpe de sabre na cabeça, violento golpe que a deixou
prostrada e banhada em sangue. Também, um outro adepto dos cultos afro-
brasileiros de Maceió, o velho Manoel Martins, negro retinto,
descendente de africanos puros, teve seu cavanhaque "arrancado com
epiderme e tudo", fato que ficou registrado, desse modo, como o
anteriror, na imprensa. Os dois casos citados acima, desenrolados pôr
ocasião dos sucessivos ataques aos Terreiros de Maceió, servem para
ilustrar a crônica dolorosa que constitui o massacre de 1912.
Representam dois exemplos apenas, pois não tiveram conta as
atrocidades que se seguiram, nas quais ocupou saliente papel a
instituição governamental das famigeradas geladeiras, nas delegacias e
sub-delegacias policiais, na época.
"Depois de andar em passeata pelas ruas de Maceió, depois de
permanecer à mostra na redação do "Jornal de Alagoas", que fazia
oposição ao governo decaído, a referida coleção foi oferecida pela
Liga dos Combatentes à Sociedade Perseverança e Auxílio. Porém, fê-lo
unicamente com intuito depreciativo, de chacota e a significação
política que falsamente lhe emprestou".
"Ao que parece, muitas peças e objetos daqueles cultos
fetichistas perderam-se ou foram desviados, propositalmente, nas
batidas da "soberania"; insígnias, paramentos, colchas, panos usados
nos cultos foram logo incinerados na via pública; pulseiras e
braceletes de ouro e de prata, colares de coral, anéis de ouro
cravejados de pedras semi-preciosas, roubadas não se sabe pôr quem, e
de paradeiro até hoje desconhecido. Igualmente os ilús e ingomes
(atabaques) foram queimados na via pública, numa estranha cerimônia
medieval, lembrando os tempos ignomiosos da Inquisição, defronte da
sede da Liga dos Combatentes, que era a própria residência do seu
presidente, sargento reformado Manoel Luiz da Paz, na rua Pernambuco
Novo" [15].
Quanto à seqüência desses atos, Oseas Rosas confirma sua extensão:
"Continua a caça aos covis dos feiticeiros e dos Pratagy, em
Atalaia, Santa Luzia do Norte, Taboleiro do Pinto, Alagoas e outros
lugares tem sido destruídos esses focos de prostituição, indolência e
bruxaria"[16]
Em meio a todas essas atrocidades, algumas particularidades marcam
esse episódio, concorrendo para inscrever Alagoas no rol dos estados em que
mais violência se praticou contra os cultos afro-brasileiros. Um primeiro
fato inusitado diz respeito ao fato de que depois do massacre, muitos dos
objetos sagrados, imagens e instrumentos que resistiram à destruição dos
terreiros, foram recolhidos pelos revoltosos, exibidos em passeatas pela
cidade, queimados em via pública e o que restou foi exposto à visitação
pública, inicialmente, na redação do Jornal de Alagoas, e depois na Sede da
Liga dos Republicanos Combatentes. Segundo Oseas Rosas: "À tarde de ontem
dois homens do povo estiveram no nosso escritório cobertos de alfaias e
ídolos para mostrar-nos parte das bugingangas encontradas nas casas de
Xangô"[17].
Outra curiosidade verificada no tocante ao desfecho do episódio:
Depois de expostos os objetos na sede da Liga, foram os mesmo organizados
segundo os critérios do próprio sistema religioso a que pertenciam. Segundo
a matéria jornalística, um dos visitantes, pôr integrar um dos inúmeros
xangôs existentes na cidade, concordou em orientar a sistematização das
peças, dando-lhe nomes e atribuindo-lhes significados, tal qual como quando
se encontravam nos terreiros:
"Anteontem fomos completar as nossas informações na exposição
que se fez na sede da 'Liga dos Republicanos Combatentes'. A sala da
'Liga' estava transformada em museu e tinha o aspecto alegre de um
presepe em noite de natal. Tudo muito bem arrumado e, espalhadas pelo
chão, algumas gamelas com um 'santo' (uma pedra) mergulhado em azeite
de dendê. Um 'filho de santo', desses muitos que ali foram contemplar
os preciosos despojos, tudo explicou e a 'Liga' fez escrever em
pedacinhos de papel os diversos mistérios daquele aluvião de
bugingangas"[18]


Segundo Abelardo Duarte, responsável pela recuperação e catalogação
desses objetos constitutivos da coleção que há muito se encontravam
abandonados na extinta Sociedade de Perseverança e Auxílio aos Empregados
do Comércio de Maceió, e que o Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas,
para homenagear aquela instituição, batizou com o "sugestivo" nome de
Coleção Perseverança, todo esse movimento favorável à preservação dos
objetos, significou mais um traço do insulto moral de que foram vítimas
aquelas práticas religiosas, uma extensão da violência iniciada quando da
invasão dos terreiros. Segundo ele, o conjunto de peças:


Foi oferecida pela Liga dos Combatentes à Sociedade Perseverança
e Auxílio. Porém, fê-lo unicamente com o intuito depreciativo, de
chacota e a significação política que falsamente lhe emprestou. Foi
providencial essa doação. Salvaram-se, com isso, os restos da mais
importante coleção de peças e objetos daqueles cultos existentes no
Brasil[19]


Quanto aos pais e mães de santos dessas casas, tiveram quase todos que
abandonar a cidade sob o risco de sofrerem mais represálias. A partir da
"Operação Xangô" que marcou a extinção de mais tradicionais casas de culto
afro-brasileiro em Maceió e nas cidades próximas, instaurou-se um clima de
terrorismo, cujas conseqüências políticas já mencionamos, mas que no caso
dos xangôs, implicou em que prisões, torturas, delações, interrogatórios
capciosos dos seus membros pôr parte da polícia eram comuns. Segundo
Tenório:


"Os suspeitos eram surrados barbaramente em plena via pública e
seus praticantes fugiram para outros Estados, diante da perseguição
implacável. Qualquer denúncia implicava em prisões, constrangimentos,
sevícias, nas enxovias policiais"[20].


Depois dessa debandada geral daqueles agentes religiosos, concorrendo
para o silencio quase absoluto dos terreiros, timidamente algumas casas vão
retomando suas obrigações, desta feita sob novas condições de culto,
inaugurando na cidade um modelo de ritual que dispensava os atabaques,
prática que se convencionou chamar de "xangô rezado baixo"[21].
O que se depreende disso é que, não obstante o massacre sofrido pelas
casas de culto afro-brasileiro em Alagoas, a repressão não foi suficiente
para silenciar os terreiros locais. Tanto que no mesmo ano, menos de seis
meses depois, mais especificamente no dia quatro de Agosto, o mesmo Jornal
de Alagoas, prevenia seus leitores com a noticia da existência de xangôs em
áreas mais afastadas da cidade. O teor da matéria continua depreciativo,
confundindo as casas com antros de prostituição, mas nem acusações dessa
natureza, impediram o reaparecimento dos toques de xangô em Maceió.
Esse é um dos episódios mais violentos de perseguição contra os cultos
afro-brasileiros de que se tem notícia no Estado de Alagoas e,
provavelmente, no Brasil. Uma série de particularidades concorre para
incluí-lo no rol das maiores atrocidades praticadas no país contra
manifestações dessa natureza, demandando, portanto, esclarecimento
imediato.
A primeira delas diz respeito ao fato da perseguição ter se
desencadeado com o fim de solucionar querelas políticas entre famílias
oligárquicas do estado. Esse traço da perseguição já justificaria um estudo
sobre o tema, haja vista ser um caso explícito de associação entre o
universo político e as casas de culto, razão pela qual, conflitos comuns
entre vertentes oposicionistas, resultaram, no caso específico de Alagoas,
na destruição das casas de terreiros, espaço sagrado pôr excelência de
possível fortalecimento do poder vigente. Uma vasta bibliografia consultada
demonstra com que freqüência se verificar o trânsito entre esses dois
campos. A alcunha de "leba" e outros epítetos depreciativos com que se
costumou designar o governador e seus correligionários, ainda que resulte
de mera especulação sobre a sua ligação com os xangôs, não deve ser de todo
desconsiderada, haja vista estar tão presente no discurso oposicionista.
Some-se a isso o estranho fato de, durante o longo período de da
administração maltina, não ser ter qualquer registro de perseguições contra
pais e filhos-de-santo ou sobre suas casas de culto, tampouco parece ter
existido na época uma Delegacia de Costumes voltada para o serviço de
repressão ao baixo espiritismo, tão comum em outras localidades onde se
registraram perseguições parecidas.
O segundo traço a se destacar, refere-se ao fato de que, enquanto em
outros casos apresentados pela historiografia ou etnografia brasileira, as
perseguições se referem a iniciativas isoladas, contra indivíduos
específicos, acusados de curandeirismo ou baixo espiritismo, conforme
teremos oportunidade de discutir mais adiante, em Maceió, a campanha
deflagrada contra os referidos cultos implicou, num curto espaço de dias,
na destruição temporária de quase todos os terreiros da capital e de mais
alguns localizados cidades próximas.
Em lugares como a Bahia e o Rio de Janeiro, só para citar dois dos
mais ilustrativos casos estudados pôr antropólogos e historiadores, a
repressão aos terreiros, tendo se restringido a cada casa pôr vez, não se
revestiu do aspecto violento que em Maceió ela assumiu. Ali, a notícia que
se tem é que as devassas, além de se darem em cumprimento a determinações
legais para apurarem denúncias, verifica-se a invasão das casas de culto, a
apreensão de objetos sagrados e prisão dos seus integrantes. No mais a
violência consistira no "esforço de diabolização" de tais práticas, durante
a instauração do inquérito e dos processos criminais. Em Maceió, pôr sua
vez, o que se verifica é uma invasão violenta e destruição dos terreiros,
exposição zombeteira dos objetos que resistiram ao aniquilamento,
espancamento dos pais e filhos-de-santos encontrados nos recintos durante a
devassa.
Some-se a isso o fato de que, apesar da crônica local mencionar a
presença de alguns praças de guarnição, a responsabilidade principal pelo
ataque deve ser atribuída exclusivamente à Liga dos Republicanos
Combatentes que, como vimos, era uma espécie de guarda revolucionária
popular, criada com a finalidade de exercer a força e espalhar o terror
entre os simpatizantes do governo maltista, sem qualquer vínculo com
instituições públicas oficiais e que já vinha incitando a população a se
rebelar contra os desmandos do governador através dos boletins ultrajantes
fartamente distribuídos na capital. Nesse ponto atingimos um terceiro
aspecto marcante da Operação Xangô, que a seguir avaliaremos com mais
rigor.
Ao contrário de outros processos exemplares de acusação relacionados à
bruxaria verificados no país, e que se desenvolveram sob o olhar
complacente do Estado, tendo inclusive a sua participação e inserção nos
assuntos da magia através dos órgãos oficiais da justiça e de todo um
arsenal de leis e códigos formais, em Alagoas, temos também um caso de
acusação e vingança associados a feitiçaria. Contudo, e esta é talvez a
maior a particularidade do caso alagoano, o processo de perseguição
desencadeada pela Liga dos Republicanos Combatentes, embora com o
consentimento e até a participação da polícia, se dá de uma maneira
totalmente arbitrária. Um único artigo consultado (Almeida, 1983) dá conta
de prisões realizadas durante o quebra-quebra, mas tanto quanto a exposição
pública dos objetos apreendidos, sua intenção deve ter sido a de
desmoralizar o governador destituído, acusado de alçar babalorixás e
ialorixás, à condição de guardiões do Palácio dos Martírios e seus rituais
e crenças "marginais" ao patamar de religião oficial.
A Operação Xangô atingiu de forma marcante os cultos afro-brasileiros,
mas não de modo definitivo. Como já foi visto acima, alguns meses após esse
episódio, o mesmo jornal que narrou o quebra, noticiou a continuação dos
cultos em áreas ainda mais afastadas da cidade. Claro que sem o aparato de
tempos passados. As cerimônias agora, passaram a se cercar de mistério e
segredo, inclusive sem a utilização de atabaques durante os toques, fato
que concorreu para inaugurar uma nova modalidade de culto que se
convencionou chamar de "Xangô rezado baixo"[22]. Esse fato parece ter
repercutido sobre a crônica local, pois o silêncio que paira sobre ele e
sobre seus desdobramentos chega a ser constrangedor.
Esta seria, então, a última particularidade que destacaríamos nesse
episódio. A ausência quase que total de estudos voltados para o registro
dessas práticas religiosas em Alagoas, denota a atenção que elas estimam no
meio. Tendo sido um tema bastante explorado em estados vizinhos como
Pernambuco, Bahia e Sergipe, sem também deixar de ser analisado em
localidades como Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul,
locais onde uma vasta produção etnográfica foi obtida no acompanhamento de
candomblés, xangôs, tambores-de-mina, umbandas, macumbas, batuques – a
designação se relaciona à tradição a que pertence o pesquisador -, causa
espanto que aqui, onde as manifestações religiosas de orientação africana
foram tão intensas, pouquíssimos autores tenha lhe dedicado atenção. E não
é apenas com relação a esse episódio específico que a historiografia
alagoana silenciou. Segundo Dirceu Lindoso, cuja contribuição, contida no
magnífico estudo sobre a guerra dos Cabanos, utilizaremos fartamente ao
longo dessa pesquisa, o "esquecimento" dos fatos, pôr parte da
historiografia da dominação concorre para a formação de uma
intelectualidade que adota a canonização operada no discurso tradicional.
Isso quando não incorre diretamente num discurso de difamação histórica, de
conteúdo criminal, cujo efeito é a redução do poder de oralidade dos grupos
perseguidos. Foi assim com a Cabanagem e podemos dizer, por extensão, com
os terreiros de xangô em Alagoas. O resgate dessa descontinuidade na
historiografia alagoana é o que buscaremos resgatar com essa pesquisa, fato
esse que julgamos suficientemente plausível para a realização dessa
pesquisa. [23]



Gostaríamos aqui de nos determos sobre esse aspecto específico do episódio,
qual seja, o silêncio que sobre ele se fez, justamente no lugar de onde se
esperava pelo menos uma atenção redobrada, ou seja, nos meios intelectuais,
de onde se espera, surjam iniciativas de explicar fatos inusitados como o
que acabamos de relatar.
Assim sendo, não obstante todo o estardalhaço que deve ter sido essa
operação, afinal estamos falando de "quase 2 mil pessoas" invadindo "mais
de trinta focos de 'bruxaria'" só na capital; paira sobre o episódio um
silêncio no mínimo aterrador. Com exceção do jornalista Oseas Rosas e de
algumas notas posteriores, em alguns casos baseadas na própria série de
reportagens pôr ele escritas, como é o caso de Arthur Ramos, apenas
referências esparsas são encontradas na crônica local sobre o episódio.
Esse silêncio decorreu realmente da falta de interesse dos cronistas pelo
ocorrido ou seria algo tão vergonhoso que não valeria a pena registrar?
Será que se trata de mais um caso de "esquecimento" e "desmemória
histórica"?
No que se refere às religiões afro-brasileiras, o tema da repressão
foi objeto da atenção de alguns estudiosos do assunto. Contudo, nos
deteremos aqui, para alcançar os propósticos desse encontro e dessa
apresentação, apenas sobre a contribuição daqueles estudiosos que
supostamente se debruçaram sobre a realidade alagoana ou deveriam ter
feito, pela proximidade demográfica e afetiva com o objeto em questão,
como é o caso de Arthur Ramos.
No seu livro O Negro Brasileiro, Arthur Ramos nos fornece uma
etnografia completa das religiões e cultos negros fetichistas, assumindo a
árdua tarefa de reinterpretar os conceitos racistas do mestre Nina
Rodrigues à luz das teorias culturalistas norte-americanas, em voga no país
entre os anos 30 e 40.
A descrição de Arthur Ramos é importante pois, tendo vivido no estado
toda a infância e adolescência, pode pontuar suas análises com depoimentos,
ainda que superficiais, do que presenciou em sua terra: "Ouvia em menino,
dizer muitas vezes, em Maceió: 'No Alto do Jacutinga há um xangô', 'A
polícia varejou um xangô', no sentido de culto fetichista ou local de
terreiro"[24]. Em outra obra, outra passagem espantosa: "De uma neta de
africanos, que ainda vive em Pilar (Alagoas), a velha Gervásia, ouvi que
"Olorum (ela pronuncia olóro e olólo) é o Deus do céu, o Padre
Eterno"[25].
Nesta segunda obra vamos encontrar referências mais diretas ao
ocorrido em Alagoas. Nesse caso Arthur Ramos se debruça sobre a figura de
Exu dos iorubanos e Leba (Elegbara) dos jejes, cuja influência no Brasil, e
mais especificamente em Alagoas, teria sido enorme, haja vista Ter sido ele
o pomo da discórdia que culminou com a destruição dos terreiros de xangô
naquele estado:


"Para exemplo, basta citar o caso de um político no Estado de
Alagoas, que tomou o nome popular de Leba. Ora, o chefe desse partido
freqüentava xangôs do Estado onde era figura proeminente. Nesses
xangôs, um dos orixás mais temidos e respeitado era Leba"[26]


Em seguida Arthur Ramos transcreve uma das matérias publicadas à época
da devassa no mesmo órgão já visto, o Jornal de Alagoas e, provavelmente,
pelo mesmo jornalista que até então vinha amparando nossas observações
sobre o episódio. Convém destacar que tal matéria data de 10 de fevereiro
de 1912, ou seja, desconhecida para nós, tanto em termos de cronologia como
em termos de conteúdo. Destacaríamos também que, segundo Abelardo Duarte,
cujas contribuições para nossos estudos apontaremos a seguir, o fato de ter
se apoiado exclusivamente nas informações contidas nessas matérias, põe em
dúvida a seriedade das conclusões de Artur Ramos:


"É com tristeza que registro haver Arthur Ramos inadvertidamente
lançado mão deste subsídio falso, como é a citada 'reportagem', para
tirar conclusões científicas, que no caso pecam pela base. Há um
propósito de maldade em todo aquele arrazoado do Jornal que não
poderia escapar a um espírito penetrante como foi Arthur Ramos. Dar
crédito ao que certa imprensa, em fases de exaltação política, em
épocas diversas, tem veiculado sobre os nossos homens público é
endossa calúnias e mentiras. A 'reportagem' bruxaria, a que fez alusão
o cientista alagoano, não pode oferecer nenhum valor para servir de
argumento a qualquer tese: é um testemunho falso, absolutamente falso,
contra o qual depõe os fatos"[27]


No trabalho de Abelardo Duarte a que estamos nos referido, vamos
encontrar uma primeira contribuição em nível local, cuja importância reside
no fato de levantar uma discussão pioneira sobre a presença em Alagoas de
práticas religiosas afro-brasileiras. Trata-se de um estudo sobre a
influência daomeana nos antigos terreiros de xangô do estado:


"A existência de objetos ligados ao culto daomeiano da cobra-deus
nas Alagoas coloca-nos diante de uma das formas pelas quais o escravo
negro resistiu pacificamente à força niveladora do seu novo habitat:
teimando em conservar as raízes das suas crenças e superstições, todo
o fundo místico de sua alma, de vez que fora impossível, por
circunstâncias várias independentes de sua vontade, manter os mesmos
moldes anteriores de vida espiritual"


Temos então que reconhecer a contribuição desse autor como um dos
poucos que a esse universo religioso se refere no Estado, tanto por
relacionar o panteão de divindades africanas ali encontradas, como também
por denunciar as perseguições de que foram vítimas as casas de xangô
alagoanas:


A destruição das casas de culto afro-brasileiro existentes em
Maceió, em 1912, acto de puro vandalismo e atentório da liberdade
religiosa, pela 'soberania', não permitiu que nenhum estudioso podesse
analisar a cultura negra na nossa terra, sob o aspecto das
sobrevivências do fetichismno afro-brasileiro. Houve nesse caso, uma
verdadeira exploração política, habilmente planejada e executada pela
corrente oposicionista ao Governo de então, que não se pejava de
colocar o próprio Governador do Estado como protector e freqüentador
dos xangôs"
Abelardo Duarte é ainda o responsável pela catalogação do material que
compõe a "Coleção Perseverança", onde retoma seus ataques contra os
responsáveis pela destruição das peças que compunham o acervo dos velhos
xangôs de Maceió, cujas passagens já reproduzimos anteriormente, além de
fornecer uma nominata dos pais e mães-de-santo do passado. O valor
documental desse catálogo consiste no fato de ser a referência mais
completa sobre o corrido naqueles fatídicos dias de fevereiro, bem como
sobre os antigos terreiros existentes na época, já que nos fornece dados
acerca de suas lideranças e de suas localizações[28]
Outro suporte à nossa pesquisa, são aqueles trabalhos que mesmo sem
tratar especificamente do quebra-quebra, reservam em suas análises atenção
a fatos relacionados à destituição do governador do poder, por exemplo,
cujas referências nos são úteis para pensar o episódio como um todo. Entre
essas obras destacaríamos dois trabalhos de Félix Lima Júnior; Guedes de
Miranda, Moacyr Sant'ana, Pedro Motta Lima, Dirceu Lindoso, Pedrosa J. F.
Maya, Douglas Apratto Tenório, além dos artigos de jornais escritos na
época, sobretudo a série de artigos intitulados "Bruxaria" escritos pelo
jornalista Oseas Rosas, que como vimos, noticiam com estardalhaço o dito
episódio. Lembrando que a contribuição desses autores já foi referida na
primeira parte desse projeto, onde inclusive lhes fazemos referência[29].
Vale salientar que a contribuição desses estudiosos alagoanos sobre o
episódio em tela é, de um modo geral, superficial, deixando em torno do
assunto uma lacuna que aliás, deve ser interpretada como um sintoma desse
"esquecimento" a que já nos referimos antes, ou seja, uma indiferença
dissimulada, que não disfarça o desprezo pôr aquelas práticas e, pôr que
não dizer, legitima seu ostracismo e todo tipo de ação repressora contra as
mesmas.
Depreende-se desse fato, as razões para discussão de algumas questões
que durante a pesquisa pretendemos aprofundar, mas que já nesse momento do
debate se impõem pôr marcarem a trajetória das religiões afro-brasileiras
em Alagoas e no Brasil. Trata-se da constante ameaça desses grupos,
conforme era percebida pelos analistas de plantão e dos mecanismos mais
sutis de violência contra as práticas ali desenvolvidas, com a finalidade
de inibir suas manifestações.
Nesse caso, não nos voltaremos apenas para o aspecto em si da
destruição dos terreiros, narrado pela crônica local, ora com desprezo, ora
com a dramaticidade que o acontecido exigia, mas nos dedicaremos também à
análise de outras modalidades de violência que despontam desse espisódio.
Partiremos, nesse caso de um autor alagoano, que nos fornece uma
categoria fundamental para entendermos isso de que vimos tratando. Estamos
nos referindo a Dirceu Lindoso, que é quem trabalha com essa categoria
fundamental do "esquecimento", que significa "essa redução do poder da
oralidade associada à reduzida escrita restaurador [e que] provocou uma
descontinuidade na memória historiográfica". No caso da guerra
insurreicional dos cabanos que ele analisa em particular, tal
"esquecimento" funciona como uma elaboração da técnica da desmemória que
alcançou toda a consciência social de uma região". Ou seja,para esse autor,
a historiografia oficial, dita estamental, através daquilo que ele chama de
"técnica gráfico-discursiva", tende a estender o espaço do empobrecimento
ao espaço do esquecimento[30].
Essa categoria não difere muito da que outros autores vêm
trabalhando, ainda que sob outra denominação. Estamos nos referindo agora
às idéias de "desconsideração" e "insulto moral" que, no primeiro caso, tem
significado a rejeição e desvalorização da identidade do outro; e, no
segundo caso, se refere àquilo que não pode ser traduzido na linguagem de
uma agressão a direitos legais, que não pode facilmente ser transformado
numa indenização moral, mas que possui o mesmo efeito desestabilizador,
sobre a dignidade das vítimas[31]
Do que foi discutido até aqui, temos então que em no caso analisado,
se nos apresenta um contexto altamente hierarquizado onde conflitos
incontornáveis e tensões insuportáveis incidem sobre o cotidiano de seus
agentes sociais, dando margem a que ideologias, discursos imaginários,
mitos conspiratórios, perseguições e violência, mas também alianças,
parceria e negociações, sejam desencadeados sob o argumento de que o mal
está do outro lado e que é preciso impedi-lo de passar para o lado de cá.

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[1] Esta é a expressão pela qual os cultos afro-brasileiros são conhecidos
nos estados de Pernambuco e Alagoas, embora, como nos chama a atenção
Ivonne Maggie, em seu excelente Guerra de Orixá: um estudo de ritual e
conflito. Rio de Janeiro, Zahar, 1975,.tais categorias não refletem a
dinâmica das classificações fornecidas pelos próprios informantes, já que
muitas vezes, numa única entrevista, percebemos a utilização de todas essas
expressões por um informante para se referir ao mesmo conjunto de práticas
rituais. Até mesmo ao termo afro-brasileiro são feitas algumas objeções,
como nos alerta Dantas(1988), cuja utilização ali, como aqui, é feito com a
precaução que tal iniciativa exige.
[2] Altavilla, Jayme de. História da Civilização das Alagoas.Maceió:
Edufal, 1988, pp. 86/87; Tenório, Douglas Apratto.Imetamorfose das
Oligarquias. Curitiba: HD Livros, 1997. pp. 116/117.
[3] Variação de Legbá que segundo Verger, na análise que faz dos
significados dos orixás africanos, se enquadra no panteão dos Exús e foi
associado, por parte dos antigos viajantes, ao deus da fornicação, devido a
forma como é representado, ou seja, um montículo de terra em forma de homem
acocorado, ornado com um falo exagerado. Segundo esse autor, "esse falo
ereto nada mais é do que a afirmação de seu caráter truculento, atrevido e
sem-vergonha e de seu desejo de chocar o decoro"(Cf. Verger, Pierre
Fatumbi. Orixás: Deuses na África e no novo mundo. São Paulo: Corrupio/
Círculo do livro, 1981). Segundo Bastide, esse Legbá daomeano, não deve ser
confundido com o Exu ioruba, em cujo país se verifica o seu caráter fálico
no cajado do Exu nagô, mas sem a dramatização do coito nas cerimônias
públicas com um grande falo de madeira como fazem os sacerdotes de Legba. (
Cf. Bastide, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo,
Pioneira/EdUSP, 1971. Pp. 348/349). Teríamos assim uma primeira associação
entre os xangôs alagoanos e a influência daomeana. Infelizmente, entre os
objetos apreendidos e que hoje compõem o acervo da Coleção Perseverança,
não se encontra uma escultura ritual de Exú que possa nos esclarecer, com
base nas características descritas acima, a procedência da entidade
cultuada em Alagoas. Coincidentemente ou não esse foi um dos poucos objetos
apreendidos, que depois de exposto ao escárnio da população foi totalmente
destruído.Voltaremos a esse ponto adiante.
[4] Lima, Pedro Motta. Fábrica de Pedra. Rio de Janeiro: Ed. Vitória, 1962.
pp. 43.. .
[5] Tenório, Douglas Apratto. Metamorfose das Oligarquias Op. Cit. pp. 126
[6] Esse parece ser o caso do próprio Manoel Luiz da Paz que, segundo
testemunhas, residia na rua do Pernambuco Novo, a mesma onde se localizava
o terreiro de Chico Foguinho, um dos mais afamados da capital e dos mais
punidos durante o quebra-quebra. (Duarte, Abelardo. Catálogo Ilustrado da
Coleção Perseverança. Maceió: Instituto Histórico e Geográfico de
Alagoas/SENEC: 1974; p.20).
[7] Consultamos o Relatório Governamental de 1913, referentes ao exercício
anterior, no qual se nota um grande número de detenções para averiguações
relatadas pelos três subcomissários do Município. Convém consultar
inquéritos e prontuários policiais para conferir se esse tipo de ocorrência
tem alguma relação com a prática da magia e com o curandeirismo, previstos
nos artigos 157 e 158 do primeiro Código Penal Republicano decretado em
1890.
[8] Segundo Guedes de Miranda, sobismo é tirania africana, boçal e alarve
(op. Cit. pp. 108). Trata-se de um termo "nativo" angolano que significa
régulo (sugestão de Peter Fry).
[9] Rosas, Oseas. "Bruxaria" in Jornal de Alagoas, 04.12.1912.
[10] Na Bahia, o dia de Iemanjá é comemorado no dia 02 de fevereiro, embora
em Alagoas, a data dedicada a essa entidade seja o dia 08 de dezembro, uma
vez que na confluência mística, a deusa-mãe africana sincretizou-se com a
santa católica Nossa Senhora da Conceição, comemorada nessa data. (cf.
Bastide, Roger. "Contribuição ao Estudo do Sincretismo Católico-Fetichista"
in Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo: Ed. Perspectiva. ?, pp. 159/191).
[11] Rosas, Oseas. "Bruxaria" in Jornal de Alagoas, 04.02.1912
[12] Almeida, Luiz Sávio. "Uma Lembrança de Amor para Tia Marcelina" in
Revista de Letras. Maceió: Edufal, 1980. pp. 53
[13] Op. cit. pp. 52
[14] LIMA JUNIOR, Felix. Op. cit. pp. 154/155.
[15] Duarte, Abelardo. Catálogo Ilustrado da Coleção Perseverança. Maceió:
Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas/ SENEC, 1974, 11/13.
[16] Rosas, Oseas. "Bruxaria" in Jornal de Alagoas ,07.02.1912.
[17] Rosas, Oseas, "Bruxaria" in Jornal de Alagoas, 04.02.1912
[18] Rosas, Oseas. "Bruxaria"in Jornal de Alagoas, 08.02.1912
[19] Duarte, Aberlardo. Op. cit. pp. 11-17.
[20] Tenório, Douglas Apratto. Op. cit.pp. 123.
[21] Tenório, Douglas Apratto. Op. cit.pp. 124. João José Reis (1988:71) no
estudo já referido de perseguição a um terreiro de candomblé na Bahia no
século XVIII, também atesta a realização ali de cultos obedecendo a regra
da discrição: o toque sobre a boca de um pote. Pode ser que tanto em Maceió
como em Cachoeira estejamos na presença de práticas semelhantes.
[22] É certo que, como já vimos acima, a obrigação de dissimular as
práticas religiosas deu margem a que se utilizassem ou se improvisassem
instrumentos mais silenciosos como o que foi anotado por Reis (1987/99) no
calundu do Pasto de Cachoeira, em 1785.
[23] Lindoso, Dirceu. A Utopia Armada: Rebelião de Pobres nas Matas do
Tombo Real (1832-1850). Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1983.
[24] Ramos, Arthur. O Negro Brasileiro. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1934, vol. I, pp. 33.
[25] Ramos, Arthur. Folclore Negro Brasileiro. São Paulo: Gráfica Carioca,
1954, p. 13
[26] Ramos, Arthur. Op. Cit. pp. 22/23.
[27] Duarte, Abelardo. "Sobrevivências do Culto da Serpente (Dãnh-Gbi) nas
Alagoas. In Revista do Instituto Histórico de Alagoas. Vol , ano 1940/1950,
Maceió, pp. 65.
[28] Duarte, Abelardo. Duarte, Abelardo. Catálogo Ilustrado da Coleção
Perseverança. Maceió: Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas/ SENEC,
1974.
[29] Lima Junior, Felix. Episódios da História de Alagoas. Maceió: Imprensa
Oficial, 1975 e Maceió de Outrora (vol II). Maceió: Edufal, 2001; Miranda,
Guedes de. Op. cit.; Sant'ana, Moacyr Medeiros de. Zaluar, um Homem de
muitas Artes. Maceió: Sergasa, 1985; Lima, Pedro Motta. Fábrica de Pedra.
Rio de Janeiro: Ed. Victória, 1962; Lindoso, Dirceu. Op. cit.; Maya,
Pedrosa J. F. Alfredo Maya e seu Tempo. Maceió, Gráfica S. Pedro. 1969;
Rosas, Oseas. Op. cit. Fora de Alagoas, temos a contribuição de Yvonne
Maggie, em cuja obra já referida aqui, O Medo do Feitiço, dedica um
capítulo à análise de alguns casos de processos de acusação de bruxaria,
entre os quais conta o caso alagoano. Vale salientar que, como no caso de
Arthur Ramos, a autora em questão toma como referência as mesma matérias
publicadas no Jornal de Alagoas a que já fizemos menção.
[30] Lindoso, Dirceu. Op. cit. pp. 18.
[31] BERGER, Peter. (1983). "On the Obsolescence of the Concept of Honor"in
HAUERWAS, S. & MACINTIRE, A. (eds.) Revisions: Changing Perspectives in
Moral Philosophy. Indiana: University of Notre Dame Press.
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