A colonialidade do pensamento jurídico brasileiro: o mito do bandeirante nos tribunais

August 2, 2017 | Autor: Wilson Rocha | Categoria: Derecho constitucional, Supremo Tribunal Federal, Povos Indígenas
Share Embed


Descrição do Produto

A COLONIALIDADE DO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: O MITO DO BANDEIRANTE NOS TRIBUNAIS Wilson Rocha Assis

OS ÍNDIOS NO BRASIL E NA CONSTITUIÇÃO O Conselho Indigenista Missionário, instituição vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, enumera 240 povos indígenas no Brasil. São eles: Aikanã, Akunsu, Amanayé, Amondawa, Anacé, Amambé, Apiaká, Apinajé, Apolima Arara, Apurinã, Aranã, Arapaso, Arapium, Arara, Araweté, Arikapu, Aripuaná, Aruá, Ashaninka, Asurini, Atikum, Aturaiu, Avá-Canoeiro, Avá Guarani, Awá Guajá, Aweti, Bakairi, Banawa Yafi, Baniwa, Barasana, Baré, Bororo, Cara Preta, Chiquitano, Cinta Larga, Deni, Desano, Diahoi, Enawenê-Nawê, Fulni-ô, Galibi do Oiapoque, Galibi Marworno, Gavião, Geripankó, Guajajara, Guarani Kaiowá, Guarani M’Bya, Guarani Ñhandeva, Guarani Xiripá, Guató, Himarimã, Hixkaryana, Ingarikó, Iantxe, Jabuti, Jamamadi, Jaminawa Arara, Jaminawá, Jarawara, Jaricuna, Javaé, Jenipapo-Kanindé, Juma, Juriti, Juruna, Ka´apor, Kadiwéu, Kaimbé, Kaingang, Kaixana, Kalabaça, Kalapalo, Kamayurá, Kamba, Kambeba, Kambiwá, Kanamari, Kanamati, Kanela, Kanindé, Kanoé, Kantaruré, Kapinawá, Kapivari, Karafawyana, Karajá, Karapanã, Karapotó, Karipuna, Kariri-Xokó, Karitiana, Karuazu, Katawixi, Katokim, Katuena, Katukina Pano, Katukina, Katwená, Kaxarari, Kaxinawá, Kaxixó, Kaxuyana, Kayabí, Kayapó, Kayuisana, Kinikinao, Kiriri, Kobema, Koiupanká, Kokama, Korubo, Krahô, Krahô-Kanela, Kre Pym Kateye, Kre, Pym Kateye, Krenak, Krikati, Kuikuro, Kujubim, Kulina, Kuruaya, Kwaza, Laiana, Maku, Makurap, Makuxi, Manairisu, Manchineri, Manuri, Marimam, Marubo, Matis, Matipu, Mawaiâna, Maxakali, Mayá, Mayongong, Mayoruna, Maytapu, Mehináku, Miguelem, Miranha, Miriti, Morcego, Munduruku, Mura, Myky, Nahukuá, Nambikwara, Naravute, Naua, Nukini, Ofayé Xavante, Oro Win, Pakáa-Nova, Palikur, Paraná, Pankará, Pankararé, Pankararu, Pano, Parakanã, Paresi, Parintintin, Patamona, Pataxó, Pataxó,

Hã-ha-hãe, Paumari, Pipipan, Pirahça,

Piratapuya, Pitaguary, Potiguara, Poyanáwa, Purubora, Rikbaktsa, Sakyrabiat, Salamãi, Sateré-Mawé, Shanenawa, Suriana, Suruahã, Suruí, Suyá, Tabajara, Tapayuna, Tapeba, Tapirapé, Tapuia, Tariano, Taurepang, Tembé, Tenharim, Terena, Tikuna, Timbira, TinguiBotó, Tiryó, Torá, Tremembé, Truká, Trumai, Tukano, Tumbalalá, Tupaiu, Tupari, Tupinambá, Tupinikim, Tuxá, Tuyuca, Txikão, Txukaramãe, Umutina, Uru-Eu-Wau-Wau,

Waiãpi, Waimiri Atroari, Waimiri, Wanano, Wapichana, Warekena, Wassu, Waurá, Wayana-Apalaí, Wayurú, Xakriabá, Xavante, Xerente, Xereu, Xetá, Xipaia-Curuaia, Xokleng, Xokó, Xukuru, Xukuru-Kariri, Yanomami, Yawanawá, Yawalapiti, Yekuana, Zo'é, Zoró1. Já o Instituto Socioambiental2 apresenta relação contendo 236 povos indígenas. Os órgãos públicos IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)3 e FUNAI (Fundação Nacional do Índio)4 mencionam cerca de 220 povos indígenas no território brasileiro. Segundo o Censo IBGE 2010 são 817.963 índios, dos quais 315.180 encontram-se em áreas urbanas e 502.783, na zona rural. As etnias indígenas correspondem a 0,43% da população brasileira. Quanto às terras indígenas, o Instituto Socioambiental aponta um total de 673 terras indígenas no Brasil, das quais 400 estão regularizadas, com registro no Cartório de Registro de Imóveis e/ou na Secretaria do Patrimônio da União. As 673 terras indígenas somam uma extensão de 111.566.009 hectares, ou seja 13,1% da extensão territorial do país. Desse total, mais de 108 milhões de hectares, cerca de 98,6% da extensão total das terras indígenas, estão localizadas na Amazônia Legal, onde estão cerca de 350 mil indígenas. O restante distribui-se pelas demais regiões brasileiras. Já o Conselho Indigenista Missionário declina um total de 1024 terras indígenas no Brasil, das quais apenas 359 encontram-se registradas. Segundo o Conselho, há 323 terras indígenas sobre as quais não há nenhuma providência para o seu reconhecimento e regularização como terra indígena. A demora na regularização das terras indígenas contraria o disposto no artigo 67, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição de 1988, que estabelece que a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição. Nos autos do MS 25.566-2/DF, publicado em 28 de maio de 2004, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o prazo previsto no referido dispositivo não é peremptório. 1

Disponível em . Acessado em 18 de novembro de 2011. 2

Disponível em . Acessado em 18 de novembro de 2011.

3

Disponível em . Acessado em 18 de novembro de 2011.

4

Disponível em . Acessado em 18 de novembro de 2011.

Uma publicação estrangeira resumiu da seguinte forma a situação dos índios no Brasil: “Although the government has committed itself to defend these Indian societies since 1930s, and specifically legitimated their lands in the Constitution of 1988, there is a little question that this Indians have experienced every type of exploitation, as the agricultural frontier has progressively moved into the interior of the country. Exploited in the rubber boom of the pre-1914 period, devasted by the trans-Amazonian road construction projects of the military era, and facing invasions by cattle ranches and gold miners on a constant basis, the national Indian agency FUNAI (Fundação Nacional do Índio) has barely been able to defend the Indian communities. But greater national attention to this issue in the twentieth century, increasing protective legislation, and, more importantly effective delivery of medical services and a serious commitment to the maintenance of Indian societies has finally stopped the decline of the Indian population and led to the slow but steady positive growth of their populations from census to census. This clearly does not mean that constant land conflict does not go on today; far from it, even in territories that have been completely demarcated and surveyed. [...] But the Indian nations have become more able to articulate their demands, and there are increasingly a large number of private groups that have emerged to defend the Indians. [...] But from the 1930s to today, the official political line of recognizing the legitimacy of these societies has been progressively an accepted position and today there is no legal or political challenge to the legitimacy of these societies.”5

Atualmente, um dos maiores desafios das comunidades indígenas brasileiras diz respeito a grandes obras públicas de infra-estrutura, em cuja execução não se respeitam os direitos das comunidades afetadas. Após a tragédia Yanomami

-

decorrente da construção da rodovia federal BR-210, na década de 70, quando milhares de índios foram contaminados e mortos por doenças letais para a comunidade -, assistimos nos dias de hojea o avanço das obras da usina hidrelétrica de Belo Monte em prejuízo dos povos indígenas da região do Xingu, que questionam a obra desde a década de 1980. A usina hidrelétrica, que será a terceira maior do mundo, afetará a vazão de rios e o estoque pesqueiro da região, essenciais à vida de diversas comunidades. Diversas medidas necessárias à proteção das comunidades não foram tomadas pelas autoridades, que, mesmo assim, tem concedido as licenças ambientais necessárias ao avanço das obras. Da mesma forma, o avanço da fronteira agrícola, estimulada pelas obras de infra-estrutura, gera conflitos entre os “povos da floresta” e a expansão das pastagens e dos desmatamentos. No sul do estado de Mato Grosso do Sul, a consolidação da lavoura

5

LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S.. Brazil since 1980. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 131-132.

canavieira acelera o processo de pauperização e exclusão das comunidades indígenas, afetando particularmente o povo Guarani Kaiowá. Os choques envolvem crimes de assassinato, sequestro e violência contra os povos indígenas6. Poucas vezes os reclames dos povos indígenas são ouvidos pelas autoridades, que tem feito valer os interesses de setores econômicos dominantes e o avanço de mega-projetos de desenvolvimento nacional. A Constituição republicana de 05 de outubro de 1988 assinalou avanços importantes no trato da questão indígena. Surgida da derrocada do regime ditatorial instaurado com o golpe militar de 1964, a Assembleia Nacional Constituinte7 marcou o abandono do integracionismo que caracterizou a política indigenista brasileira desde o período colonial. A República brasileira, desde os seus primórdios profundamente influenciada pelo ideário positivista, concebia a condição de indígena como uma situação transitória, fadada ao desaparecimento pela gradativa evolução dessas comunidades e incorporação à sociedade nacional. O artigo 22, inciso XIV, da Constituição de 1988, ao prever que compete privativamente à União legislar sobre “populações indígenas”, simboliza, de forma discreta, um dos mais importantes avanços do novo texto constitucional. As constituições anteriores, ao definirem a competência da União para legislar sobre a questão indígena, faziam menção expressa ao propósito de “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”8. Por mais de

400 anos, pelo menos entre 1570 e 1988, legislar sobre a

questão indígena no Brasil significava definir os termos legais pelos quais dar-se-ia a assimilação dos povos autóctones à sociedade majoritária/dominante. A Constituição de

6

Em 20 de novembro de 2011, o Jornal Correio do Estado, de Mato Grosso do Sul, noticiava: “Até o final da tarde ontem - 24 horas depois do ataque contra os índios Guarani Kaiowá que ocuparam parte da Fazenda Ouro Verde, em Amambai - a Polícia Federal ainda não tinha pistas que pudessem levar aos autores do atentado. Conforme a comunidade indígena, cerca de 40 jagunços fortemente armados invadiram o acampamento na sexta-feira (18), pegando homens, mulheres, idosos e crianças de surpresa. [...] O Ministério Público Federal e o Conselho Indigenista Missionário estão acompanhando as investigações [...]. Conforme o MPF, o cacique Nísio Gomes, de 59 anos, teria sido executado por pistoleiros e o corpo levado da área do conflito. Também estariam desaparecidas outras quatro pessoas, sendo uma mulher e uma criança.” 7

“A rigor, como já vimos, o que se fez, pela Emenda Constitucional 26, de 27.11.1985, foi convocar instituições constituídas, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, inclusive com senadores biônicos (senadores eleitos indiretamente, com candidatura imposta pelo Governo Central) para elaborar a nova Constituição. Não era uma autêntica Assembleia Nacional Constituinte, mas um Congresso Constituinte”. SILVA, 2011, p. 86. 8

Ver nota 137.

1988 marca o abandono desse secular paradigma, reconhecendo a condição de indígena como um marco de diferença cultural duradoura e enriquecedora da sociedade brasileira. Durante a segunda metade do século XX, especialmente a partir de 1970, com a obra do antropólogo teuto-americano Franz Boas, tornou-se cada vez mais claro que “os chamados ‘povos primitivos’ dispunham de culturas completas e funcionais, que em nada ficam atrás das chamadas ‘culturas dos civilizados’, no que diz respeito ao desenvolvimento e à perspicácia de seu pensamento”9. A teoria do relativismo cultural, fortalecida no Brasil pela ação dos irmãos Cláudio e Orlando Villas Boas, responsáveis pela criação do Parque Nacional do Xingu, prevaleceu no seio da Constituinte de 1987/88. Resultado de um lento e profundo processo de amadurecimento democrático da sociedade brasileira, a Constituinte foi palco de um inédito embate de forças na história do Brasil. Grupos de pressão, representando os mais diversos setores da sociedade brasileira, mobilizaram-se vigorosamente para imprimir na Carta Constitucional suas reivindicações e interesses. Apesar de não contarem com representantes na Assembléia Constituinte, “as atividades dos indígenas e das organizações ligadas a eles foram caracterizadas, nesta fase dos trabalhos das Comissões e da Subcomissão, por uma estratégia de intervenções diretas na forma de declarações de caciques, principalmente dos Caiapó e dos Kaingang, assim como de representantes, entre eles, o índio Krenak, Ailton Krenak, nas sessões públicas”10. Uma das questões mais controvertidas da Assembléia Constituinte foi a questão das terras indígenas e os direitos de exploração de suas riquezas minerais. Contando com indisfarçado apoio do poder executivo, então nas mãos do senhor José Sarney, o setor minerador conseguiu impor aos povos indígenas um retrocesso histórico. Se a Constituição de 1967/69, por seu artigo 186, dispunha que “É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao

9

KAYSER, 2010, p. 210.

10

KAYSER, 2010, p. 193. O autor acrescenta ainda: “É, no entanto, justo observar que o poder popular encontrou na Constituinte um novo e forte concorrente: o poder corporativo. Novamente o procedimento tolheu o princípio popular, que só teve um momento para atuar diretamente, com propostas perante a Comissão de Sistematização, enquanto as organizações corporativas atuaram permanentemente em forma de lobby junto a deputados e senadores constituintes. Foi uma pressão ousada e terrível de associações e organizações de toda espécie, formadas às vezes especialmente para obter vantagens na Constituinte. A verdade é que, enquanto as propostas populares receberam - quando receberam - formulações de eficácia limitada, as corporações conseguiram assegurar seus interesses de maneira concreta”. Idem, p. 87.

usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes”; a Constituição de 1988 determinava, em seu artigo artigo 176, § 1o, que a pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, que estabelecerá as condições específicas dessas atividades quando se desenvolverem em terras indígenas. O retrocesso é evidente. Do exclusivo usufruto indígena das riquezas naturais de seus territórios, passou-se à possibilidade de sua exploração por não-índios, sob condições que caberá à União estabelecer. Os bastidores da votação do capítulo sobre os direitos indígenas na Assembléia Constituinte foram nebulosos, incluindo a publicação de uma série de reportagens, a partir de 09 de agosto de 1987, no jornal O Estado de São Paulo, sobre o tema “Os índios na nova Constituição - Conspiração contra o Brasil”. Ensina Hartmut-Emanuel Kayser que “o conteúdo principal da série era a acusação de que existia uma conspiração internacional contra o Brasil. Esta utilizava o pretexto

da defesa dos interesses indígenas para realizar a separação do território

nacional e a fundação de um estado independente, ou seja, para realizar uma internacionalização da Amazônia, possibilitando assim a exploração, por consórcios financeiros multinacionais, das matérias-primas encontradas nas terras indígenas, [...]”11. O episódio contou, inclusive, com a apresentação de documentos falsificados, noticiando a existência de um “Conselho Mundial de Igrejas Cristãs” que, efetivamente, não existia. As reportagens, apesar de objeto de investigação que, à época, já comprovavam a falsidade das informações veiculadas, foi capaz de influenciar a opinião pública e os deputados constituintes, imprimindo o retrocesso assinalado. Apesar dos inegáveis avanços da Constituição de 1988 - frutos muito mais do avançar dos tempos que do compromisso real da classe política e dos grandes grupos econômicos com a promoção dos direitos humanos -, pode-se aplicar também à questão indígena a conclusão pessimista de José Afonso da Silva: “Em suma, a Constituição de 1988 não concluiu a reforma do Estado e deixou intacta a estrutura arcaica de poder, por meio da qual as elites conservadoras realizaram a contrarreforma”12.

11

KAYSER, 2010, p. 197.

12

Idem, p. 90.

Em lugar de estabelecer o pleno domínio dos índios sobre as terras em que vivem, a Constituição de 1988 estabeleceu, em seu artigo 20, inciso XI, que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios constituem bens da União. Sem desconsiderar que diversos autores justificam a opção do constituinte como uma forma de proteção dos territórios indígenas, particularmente, sustento que a atribuição das propriedade das terras indígenas à União serve para legitimar medidas como a possibilidade de exploração das riquezas minerais e potenciais hidrelétricos contidos no interior desses territórios por não-índios. No ponto, pode-se registrar nítido retrocesso em relação à teoria do indigenato, sustentada e aceita em nosso ordenamento jurídico, ao menos desde a publicação da obra de João Mendes Júnior, em 1912. O instituto do indigenato reconhece e declara em favor das comunidades indígenas poderes amplos e congênitos sobre suas terras, como reconhecimento de que as violências históricas que marcaram a chegada dos europeus na América não geram título jurídico de expropriação das comunidades indígenas. De forma alguma a concepção do indigenato conforma-se ao reconhecimento do tímido direito de posse das comunidades sobre as terras em que habitam.13 Doutro lado, em diversos dispositivos, delega-se a órgãos estatais externos à comunidade a decisão sobre questões que a afetam diretamente. Assim, complementando o já citado dispositivo do artigo 176, § 1o, da Constituição de 1988, o artigo 49, inciso XVI, estabelece que é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais. O processo e julgamento das disputas sobre direitos indígenas, segundo o artigo 109, inciso XI, da Constituição, é da competência dos juízes federais. Doutro lado, a Constituição Federal atribui ao Ministério Público, especialmente ao Ministério Público Federal, a função institucional de defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas, conforme o seu artigo 129, inciso V. A atuação do Ministério Público para a tutela judicial de populações indígenas não tem precedentes nas Constituições anteriores. Portanto, ao lado da FUNAI, órgão administrativo de proteção das comunidades indígenas, tem-se a atuação judicial do Ministério Público Federal no amparo aos direitos mais amplos e gerais das comunidades, inclusive em face da 13

O constituinte deu solução diversa ao caso das comunidades remanescentes de Quilombos. Sobre os quilombolas, a Constituição Federal estabeleceu no artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

recorrente inércia do próprio órgão administrativo encarregado da proteção indígena, a FUNAI. Segundo Hartmut-Emanuel Kayser, “os artigos 129, V e 232 autorizam o MPF apenas a reivindicações judiciais e à representação dos interesses indígenas. Para a representação extrajudicial de interesses, esta competência cabe à Funai, como de costume, de acordo com o artigo 35, do Estatuto do Índio”14. Prossegue o autor afirmando que “mesmo que não seja possível uma avaliação numérica da atividade do MPF, existe porém unanimidade, entre as organizações indígenas, em relação ao fato de que sua atividade tenha tido efeito positivo na imposição dos direitos indígenas no Brasil”15. Em gesto de autêntica emancipação das comunidades indígenas, a Constituição de 1988, em seu artigo 232, estabeleceu que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.” O ordenamento jurídico brasileiro abandonava a tese da incapacidade indígena para os atos da vida civil e reconhece a plena capacidade jurídica dos índios e de suas comunidades para pleitearem em juízo seus direitos. A tese da incapacidade indígena estava em vigor desde 27 de outubro de 1831, quando o Império editou norma considerando os índios órfãos para os efeitos da lei. Portanto, a Constituição de 1988 não recepcionou o artigo 6º, inciso VI, do Código Civil de 1916 que dizia serem relativamente incapazes a certos atos ou à maneira de os exercer os silvícolas16. Os direitos culturais das comunidades indígenas obtiveram amplo reconhecimento na Constituição de 1988. Na educação, assegurou-se, na forma do artigo 209, § 2o, a utilização, no ensino fundamental regular, das línguas maternas indígenas, bem como o emprego de seus processos próprios de aprendizagem. O artigo 215, § 1o, estabelece especial proteção às manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. Já o artigo 216 dispõe que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de

14

KAYSER, 2010, p. 273.

15

Idem, p. 274.

16

O Parágrafo Único do artigo 6º, do Código Civil de 1916, estabelecia ainda: “Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do país”.

referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artísticoculturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Os direitos culturais das comunidades quilombolas também receberam atenção especial do Constituinte. O § 5o do artigo 216 estabelece que “Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”17. Os povos indígenas gozam ainda de capítulo específico no título relativo à ordem social. O artigo 231 reconhece “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Conforme veremos adiante, esse dispositivo constitui uma cláusula de abertura que integra ao ordenamento jurídico pátrio as instituições e formas de exercício de poder indígenas. O caput do artigo 231 não é apenas o reconhecimento do valor cultural das instituições e formas de organização social das comunidades indígenas, já expresso no artigo 216. O dispositivo expressa a estatura constitucional das instituições indígenas, bem como a vigência e normatividade jurídica dos atos que emanam das formas de organização social, dos costumes e das tradições de suas comunidades. O artigo 231 é o dispositivo fundamental do estatuto constitucional dos povos indígenas no Brasil. Acolhendo o instituto do indigenato, de amplo reconhecimento no constitucionalismo brasileiro, declara o direito dos índios às terras que tradicionalmente ocupam. Segundo importante lição de José Afonso da Silva, “essas considerações, só por si, mostram que a relação entre o indígena e suas terras não se rege pelas normas do Direito Civil. Sua posse extrapola da órbita puramente privada, porque não é e nunca foi uma simples ocupação da terra para explorá-la, mas base de seu habitat, no sentido ecológico de interação do conjunto de elementos naturais e culturais que propiciam o

17

O tombamento está previsto no Decreto-lei nº 25/37, sendo o ato administrativo pelo qual a Administração reconhece o valor histórico-cultural de um bem, submetendo-o a especial regime jurídico de proteção, com restrições à sua comercialização, conservação, uso e alteração.

desenvolvimento equilibrado da vida humana. Esse tipo de relação não pode encontrar agasalho nas limitações individualistas do direito privado, daí a importância do texto constitucional em exame, porque nele se consagra a ideia de permanência, essencial à relação do índio com as terras que habita.”18 O § 1º do artigo 231 esclarece que ocupação tradicional não diz respeito à posse imemorial da terra, mas ao estabelecimento de morada permanente e utilização segundo o modus vivendi da comunidade. A extensão da terra indígena, segundo esse mesmo dispositivo, deve alcançar todas as áreas necessárias à preservação dos recursos ambientais imprescindíveis ao bem-estar da comunidade, bem como aquelas necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Portanto, “o tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelo qual se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realize segundo seus usos, costumes, tradições”19. O usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras tradicionalmente ocupadas, previsto no § 2º do artigo 231, não alcança as riquezas minerais e os potenciais hidrelétricos. Conforme visto alhures, e realçado pelo § 3º do artigo 231, “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.” Não obstante as notícias recorrentes de conflitos decorrentes de exploração mineral em terras indígenas, até a presente data o legislador ordinário não dignou-se a editar a norma específica prevista na Constituição, razão pela o Congresso Nacional jamais emitiu a autorização prevista20. 18

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 859-860. 19 20

Idem, p. 858.

“No entanto, até o momento, ainda não foi aprovada uma lei pelo Congresso. Autorizações conforme o artigo 231, § 3º, em conexão ao artigo 49, XVI CF não puderam, por isso, ser expedidas pelo Congresso desde a entrada em vigor da Constituição de 1988. A inexistência de tal lei torna ilegal qualquer pesquisa e exploração de recursos minerais realizada por não-índios, configurando-se crime previsto no Código de Mineração”. KAYSER, 2010, p. 254.

O § 4º do artigo 231, ao dispor que as terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis, bem como imprescritíveis os direitos sobre elas, reconhece sua natureza de bem vocacionado à existência digna, permanente e duradoura das comunidades indígenas, afastando a natureza de mercadoria que a terra adquire dentro dos sistemas capitalistas de produção. A remoção dos grupos indígenas é vedada pelo § 5º, do artigo 231, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. Já o § 6º do artigo 231 - ao estabelecer que são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas - estabelece a supremacia do título jurídico congênito ostentado pelas comunidades indígenas sobre as terras americanas, conforme preconizado pelo instituto do indigenato. De fato, como título originário e congênito, os direitos da comunidade índia sobre a terra prevalecem sobre os atos privados ou públicos que atentem contra eles. Referidos direitos sequer encontram supedâneo na Constituição, porque são anteriores a ela. A Constituição apenas reconhece o direito primordial e congênito dos índios às terras que as comunidades necessitam para sua sobrevivência física e cultural. A ressalva é feita apenas em relação a relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar. A nulidade e a extinção de títulos emitidos em prejuízo de direitos indígenas não gera direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. Por fim, o § 7o do artigo 231 estabelece uma proibição constitucional da atividade de garimpeiros em terras indígenas. Segundo Hartmut-Emanuel Kayser, “o motivo da proibição constitucional da garimpagem em terra indígena, que não admite exceções, é a falta de fiscalização pelo Estado. Enquanto as sociedade mineradoras podem perder suas concessões no caso de prejuízos ambientais ou a pessoas, a atividade de garimpeiros isolados quase não pode ser fiscalizada”21. Apesar da proibição 21

KAYSER, 2010, p. 241.

constitucional, registra-se a presença constante e numerosa de garimpeiros em terras indígenas, com grande dificuldade de os poderes públicos fazerem valer o dispositivo constitucional. A garimpagem em áreas indígenas representa, além da violação de seus territórios, grave risco à saúde e à segurança das comunidades. As Constituições, contudo, são obras inacabas, prenhes de possibilidades latentes que serão construídas ou desconstruídas no momento de sua aplicação. O potencial libertador de uma Constituição é entregue à sociedade e aos operadores do Direito com um apelo por sua concretização. No próximo capítulo, analisaremos, a partir do emblemático caso da demarcação da Raposa Serra do Sol, o que o Supremo Tribunal Federal, Corte responsável pela guarda da Constituição no Brasil, tem feito em relação às possibilidade da Carta de 1988 no que concerne aos povos indígenas. Antes de passar ao próximo item, apenas uma advertência. A velocidade e o desembaraço com que o Congresso brasileiro tem lançado mão das faculdades que lhe são atribuídas como titular do poder constituinte reformador causa receio e espanto. A edição de 66 Emendas Constitucionais, grande parte delas editadas por pressão de poderosos grupos econômicos, faz-nos acreditar que a obra do Constituinte de 1988 não constitui um marco irredutível dos direitos e garantias dos povos indígenas brasileiros22. Vale citar a valiosa lição de Emer de Vattel, que nos adverte, em sua obra O Direito das Gentes: “As revoluções repentinas impressionam a imaginação dos homens: escreve-se a história, sublinham-se os eventos; negligenciam-se, no entanto, as mudanças que ocorrem imperceptivelmente por uma longa seqüência de ações graduais escassamente notadas. Seria um grande serviço prestado às Nações mostrar, pela história, quantos Estados mudaram completamente de natureza e perderam a sua primeira constituição. Despertar-se-ia a atenção dos povos e estes, conscientes da excelência do início, não menos essencial em política que em moral, obsta, não fechariam mais os olhos para inovações, por vezes pouco relevantes em si mesmas, mas que servem de etapas para se chegar a empreendimentos mais substantivos e mais perniciosos”.

O risco de que as sucessivas emendas constitucionais desnaturem o significado histórico das conquistas de 1988 exigem da sociedade em geral e dos povos indígenas, em particular, uma vigilância atenta e constante.

22

Nesse sentido, destaca Hartmut-Emanuel Kayser: “A possibilidade de autorização do uso e da exploração dos recursos localizados em terras indígenas pelo Congresso Nacional, assim como a possibilidade de sanar, por lei complementar, a nulidade dos atos que infrinjam as normas de propriedade e posse, ocultam, apesar de suas altas barreiras, o risco de uma revogação pós-constitucional efetiva dos direitos indígenas. Também falta, na Constituição de 1988, uma “cláusula pétrea” com respeito aos direitos indígenas”. Idem, p. 278.

A PRÁXIS DOS DIREITOS CULTURAIS: O CASO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL E A COLONIALIDADE DO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A concretização dos direitos culturais nos tribunais brasileiros, especialmente no que concerne aos direitos indígenas, não traz bons augúrios. Não raro, os julgados deixam entrever preconceitos arraigados e compromissos ideológicos com o desenvolvimentismo, o nacionalismo e o integracionismo, plêiade de ideias que permeiam a história dramática do aniquilamento das diferenças culturais e dos povos indígenas na América Latina. A especificidade da condição indígena, bem como da legislação que a serve, alcançou pouca compreensão dos operadores do direito no Brasil, reflexo do que se estuda nas academias de direito, bem como dos preconceitos ainda latentes em nossa sociedade. Via de regra, os critérios de ponderação e balanceamento pelos quais os Tribunais tem decidido os conflitos interculturais no Brasil pendem reiteradamente para o aniquilamento ou duras violações a direitos de minorias étnicas e culturais. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal debruçou-se sobre o direito indígena à terra, no espinhoso caso da delimitação da terra indígena Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima. Se, ao final, a mais elevada corte brasileira reconheceu o pleito indígena pela demarcação contínua das terras, as razões de decidir do julgado causam profunda preocupação23. Senão, vejamos. Primeiro, adiantemos que o julgamento do caso foi resultado de meses de discussão e debates ferozes na Corte brasileira, acompanhada com apreensão pelos setores sociais envolvidos. O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal através de Ação Popular que questionava a constitucionalidade e legalidade da Portaria nº 534/2005, do 23

Sobre o assunto, manifestou-se Bartolomé Clavero: “El Supremo Tribunal Federal de Brasil ha hecho finalmente pública en audiencia abierta la sentencia sobre el caso Raposa Serra do Sol. Sus términos son favorables a la reclamación indígena, reintegrándosele el territorio que había sido invadido. La sentencia también se extiende al establecimiento de unas reglas generales sobre los derechos indígenas que resultan contrarias a los mismos. La alta corte hace uso de unos poderes extraordinarios de carácter normativo que le fueran conferidos en 2004 para la defensa de los derechos humanos aprovechando tales facultades para efectuar un ataque en toda regla contra los derechos de los pueblos indígenas, contra estos concretos derechos humanos. Es una operación de política de derecho, pues no de un carácter jurisdiccional, que dicha corte no se hubiera atrevido a plantearse y llevar a cabo respecto a ningún otro sector de la población de Brasil”. Disponível em . Acessado em 20 de novembro de 2011.

Ministro da Justiça, e do Decreto Presidencial, de 15 de abril de 2005, que homologaram a demarcação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol, onde vivem cerca de 20 mil índios, das comunidades indígenas Socó, Barro, Maturuca, Jawari, Tamanduá, Jacarezinho e Manalai, que compõem parte dos povos Ingaricó, Taurepang, Macuxi, e Wapichana. O decreto homologatório publicado em 2005 estabeleceu prazo para a desocupação da área por não-índios, instalados em grande número na região, desrespeitando a Portaria nº 820/98, do Ministério da Justiça, que declarou a posse permanente da terra aos povos indígenas. A Ação Popular foi proposta pelo senador da República, senhor Augusto Affonso Botelho Neto, e pretendia a nulidade da Portaria e do Decreto Presidencial que homologaram a demarcação contínua da área de 1.747.464 hectares reconhecida como de ocupação tradicional indígena. Pretendia-se, então, a demarcação da terra em “bolsões”, “ilhas”, “blocos” ou “clusters”, de modo a assegurar a permanência das ocupações de não-índios já instalados no interior do território indígena. O amplo acervo de direitos reconhecido aos índios pela Constituição de 1988 foi invocado em prol da demarcação contínua da área. Como já dito, a sentença do Supremo Tribunal Federal reconheceu o pleito indígena, todavia, a Corte percorreu um caminho sinuoso e confuso, valendo-se de conceitos antropologicamente equivocados e superados, estabelecendo premissas que, uma vez aplicadas, levariam ao aniquilamento dos mesmos direitos que a sentença cuidou de tutelar. As razões da decisão lembra-nos os dizeres de Edgardo Lander, quando afirma que “existe una extraordinaria continuidad entre las diferentes formas en las cuales los saberes eurocéntricos han legitimado la misión civilizadora/normalizadora a partir de las deficiencias-desviaciones respecto al patrón normal de lo civilizado de otras sociedades. Los diferentes discursos históricos (evangelización, civilización, la carga del hombre blanco, modernización, desarrollo, globalización) tienen todos como sustento la concepción de que hay un patrón civilizatorio que es simultáneamente superior y normal. Afirmando el carácter universal de los saberes científicos eurocéntricos se ha abordado el estudio de todas las demás culturas y pueblos a partir de la experiencia moderna occidental, contribuyendo de esta manera a ocultar,

negar, subordinar o extirpar toda experiencia o expresión cultural que no ha correspondido con este deber ser que fundamenta a las ciencias sociales.”24 A sentença dá péssimas lições de antropologia, quando afirma, por exemplo, que silvícolas são “índios ainda em primitivo estádio de habitantes da selva”. Doutro modo, a Corte deixa de lado diplomas internacionais firmados pelo Brasil, bem como experiências do direito comparado, para reduzir a existência dos povos indígenas a uma realidade sócio-cultural que não deve ter qualquer expressão político-territorial. A corte se apega aos conceitos clássicos e cada vez mais frágeis de soberania estatal e nação para reafirmar, em termos nitidamente autoritários, a exclusividade do “Direito nacional” nas terras indígenas. Dispõe a Corte: “5. AS TERRAS INDÍGENAS COMO PARTE ESSENCIAL DO TERRITÓRIO BRASILEIRO. 5.1. As terras indígenas versadas pela Constituição Federal de 1988 fazem parte do território estatal-brasileiro sobre o qual incide, com exclusividade o Direito nacional. E como tudo o mais que faz parte do domínio de qualquer das pessoas federadas brasileiras, são terras que se submetem unicamente ao primeiro dos princípios regentes das relações internacionais da República Federativa do Brasil: a soberania ou ‘independência nacional’ (inciso I do art. 1º da CF). 5.2. Todas as ‘terras indígenas’ são um bem público federal (inciso XI do art. 20 da CF), o que não significa dizer que o ato em si da demarcação extinga ou amesquinhe qualquer unidade federada. Primeiro, porque as unidades federadas pós-Constituição de 1988 já nascem com seu território jungido ao regime constitucional de preexistência dos direitos originários dos índios sobre as terras por eles ‘tradicionalmente ocupadas’. Segundo, porque a titularidade de bens não se confunde com o senhorio de um território político. Nenhum terra indígena se eleva ao patamar de território político, assim como nenhuma etnia ou comunidade indígena se constitui em unidade federada. Cuidase, cada etnia indígena, de realidade sócio-cultural, e não de natureza políticoterritorial”.

Das muitas possibilidades interpretativas oferecidas pela Constituição de 1988, observa-se que a Corte brasileira optou por referendar aquelas que reestabelecem nos termos mais duros e inflexíveis as clássicas teorias da soberania nacional. Ao afirmar, por exemplo, a exclusividade de um “Direito nacional” sobre todo o território, a Corte atribui alcance bastante limitado, quando não ignora solenemente, o disposto no caput do artigo 231, da Constituição Republicana de 1988, que reconhece aos índios sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. A necessidade de reafirmar a soberania brasileira sobre as terras indígenas evoca os fantasmas que rondaram a

24

LANDER, Edgardo. Ciencias sociales: saberes coloniales y eurocéntrico. En libro: La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. LANDER, Edgardo (comp.). CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales: Buenos Aires, Julio de 2000. Disponível em . Acessado em 17 de agosto de 2011.

Assembléia Constituinte de 1988, com seus boatos de internacionalização da Amazônia e ameaças à integridade territorial do Brasil. A Corte também trai o propósito de emancipação das comunidades indígenas quando afirma o “papel de centralidade institucional desempenhado pela União” dentro das terras indígenas, que deve ser “coadjuvado pelos próprios índios, suas comunidades e organizações, além da protagonização de tutela e fiscalização pelo Ministério Público”. No mesmo sentido, o julgado afirma que “A exclusividade de usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indígenas é conciliável com a [...] instalação de equipamentos públicos, a abertura de estradas e outras vias de comunicação, a montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública, desde que tudo se processe sob a liderança institucional da União, controle do Ministério Público e atuação coadjuvante de entidades tanto da Administração Federal quanto representativas dos próprios indígenas. Ora, em um modelo autenticamente democrático e respeitador das diferenças culturais resguardadas pela Constituição, o protagonismo das ações dentro dos territórios indígenas deve caber às próprias comunidades. Ademais porque a centralidade institucional da União na promoção dos povos indígenas tem servido, em inumeráveis casos, à negação de seus mais primordiais direitos. Ao mencionar ainda o Ministério Público como órgão tutelar das comunidades, faltou pouco para que a Corte ressuscitasse o modelo instaurado pela lei imperial de 27 de outubro de 1831, que considerava os índios órfãos, o que foi definitivamente abolido pela Constituição de 1988. O Supremo Tribunal Federal também menoscaba as particularidades culturais e históricas que conformam as comunidades indígenas ao desabonar a utilização dos vocábulos “povo”, “país”, “território”, “pátria” ou “nação”, para descrever a realidade indígena. O enunciado da Corte aparta o direito brasileiro de toda a realidade, porque contraria a narrativa histórica de todo o continente americano, na qual os índios foram reconhecidos como autênticas nações, aptas inclusive a firmar tratados internacionais, como foi bastante comum nas áreas de colonização inglesa. Contrariando a história e a própria realidade, o Supremo Tribunal Federal pretende constituir o índio e suas territorialidades como um mero dado da paisagem sócio-cultural brasileira, despindo-o de qualquer significação política. Da forma mais nefasta e espúria, a Corte brasileira se

permite ingressar na luta das representações de modo a garantir que permaneçam cindidas as representações da realidade e a própria realidade histórica. Ora, conforme ensina Pierre Bourdieu, as lutas a respeito da identidade étnica dizem respeito a “propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar de origem e dos sinais duradoiros que lhes são correlativos, [...], são um caso particular das lutas das classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e desfazer os grupos”25. Albagli e Maciel, definem que “a noção de territorialidade procura evidenciar a interface entre as dimensões territorial e sociocultural, referindo-se às relações entre um indivíduo ou grupo social e seu meio de referência”26. Assim, fica evidente a pretensão do Supremo Tribunal Federal ao reprovar a utilização da expressão território indígena: quer a Corte excluir toda a densa carga de tensões e significações implicada na afirmação dos direitos territoriais indígenas. Ao sustentar a pretensa opção do constituinte pela expressão “terras indígenas”, o Tribunal desconsidera a rede de relações antropolócias, sócio-culturais, históricas e ambientais que ligam o índio ao seu habitat. Ao definir a “terra indígena” como o espaço de reprodução física e cultural dos povos indígenas está claro que a Constituição está a tratar de territórios indígenas e não apenas de espaços territoriais ou terras indígenas. A própria ementa do julgado afirma que “terra indígena, no imaginário coletivo aborígene, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetanidade e posteridade de uma etnia” . Resta claro que se está a falar de território indígena, não de terra ou simples espaço geográfico. Trata-se de espaço territorial humanizado e, portanto, território. Não prospera, ou não deve prosperar, a intenção de afastar do mundo jurídico todas as implicações que os conceitos, debates e ferramentas teóricas desenvolvidos em outros ramos das ciências humanas implicam no próprio direito. Da mesma forma, ao reprovar a utilização dos conceitos “povo” ou “nação” para designar as comunidades indígenas no Brasil, o Supremo Tribunal, sem que cuide 25 26

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 113.

ALBAGLI, Sarita e MACIEL, Maria Lúcia. Informação e conhecimento na inovação e no desenvolvimento local. Ciência da Informação, v. 33, n. 3, p. 9-16, set/dez, Brasília, 2004.

ao menos de justificar sua legitimidade para tanto, engaja-se novamente nas lutas simbólicas dos conceitos. E o faz na contramão dos mais recentes diplomas internacionais subscritos pelo Brasil, entre os quais vale citar a Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 2007. A despeito da utilização de expressões como povo ou nação, resta claro que, em alguma medida, deve-se assegurar aos povos indígenas direitos de autogoverno, sob pena de aniquilar a diversidade cultural tutelada constitucionalmente. Reduzir os índios às mesmas categorias de cidadania que válidas para a sociedade envolvente é o caminho mais curto e mais certo para a destruição de suas comunidades. Como já longamente assentado pelo Tribunal Constitucional colombiano, mesmo a supremacia da Constituição não se estende a todas as suas normas, sendo possível menoscabar algumas de suas regras ou princípios de modo a assegurar a integridade de manifestações humanas associadas a contextos interculturais27. Noutro ponto, a Corte compreende a demarcação das terras indígenas e o próprio estatuto básico dos direitos indígenas, insculpido nos artigos 231 e 232 da Constituição, como capítulo avançado de um constitucionalismo fraternal, voltado para a “efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. [...] Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências”. Ora, para qualquer acepção que se procure dar à expressão aculturação, não me parece que a mesma possa ser empregada ao tratamento constitucional dado à questão indígena no Brasil desde 1988. Portanto, não há aculturação de que trate a Constituição. O que existe ali é o reconhecimento duradouro da legitimidade de todas as formas de expressão cultural, devendo o estado velar pela sua manutenção e integridade, através de políticas públicas e instituições adequadas à sua promoção.

27

Vide Caso Embera-chamí. Sentença T-349/96.

Em seguida, causa espanto que o Tribunal estabeleça um marco temporal de ocupação tradicional para fins de reconhecimento do território indígena. Dispôs o julgado que “a Constituição Federal trabalhou com data certa - a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) - como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Ora, conforme a lição de José Afonso da Silva, já exposta neste capítulo, o critério da tradicionalidade adotado pela Constituição não diz respeito a um critério temporal de ocupação, mas à relação com o território segundo os usos, costumes e tradições de cada comunidade indígena. A Corte ressalva que a “tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das fazendas situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico ‘Raposa Serra do Sol’”. Ora, em face da realidade empírica vivenciada pelas comunidades indígenas brasileiras, será muito difícil vislumbrar hipótese que não seja de violência e usurpação de suas terras. Ora, a própria constituição de uma colônia portuguesa na América, com partilha territorial feita pelo Sumo Pontífice católico, sobre a qual se realizou mais tarde a criação de um “estado nacional” independente, constitui um inegável ato de esbulho, condenável sob a ótica do Direito Internacional, conforme já exposto alhures. Mais ainda, se a Constituição de 1988 não outorgou o direito das comunidades indígenas sobre os seus territórios, mas apenas o declarou ou o reconheceu, acolhendo o instituto do indigenato, fruto de longa evolução no constitucionalismo brasileiro, estabelecer a data de outubro de 1988 como o critério temporal para a aferição deste direito, consiste em recepcioná-lo, ao mesmo tempo que abolir, para o futuro, a sua validade. Portanto, a considerar os critérios do julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal, a Constituição de 1988, ao mesmo tempo que acolhe o instituto do indigenato, o extingue, usurpando dos índios o direito ao futuro, por meio de sua reprodução física e cultural. A tese sustentada pela Suprema Corte brasileira é ilógica, inconsistente, incoerente em seus próprios termos e absurda

Não há qualquer critério temporal para a validade do direito indígena à terra. Se o indigenato é anterior à Constituição de 1988, é também posterior a ela. Os índios brasileiros terão, ad aeternum, o direito aos territórios de que necessitem para sobreviver, sendo o único requisito para o seu reconhecimento a ocupação da terra segundo seus usos, costumes e tradições, aferidos também em cada momento histórico. Antever a forma como cada geração irá resolver isso é tarefa estranha ao exercício da jurisdição, muito mais quando do julgamento de um caso concreto. Parece-nos que o Supremo Tribunal Federal, para tranquilizar os setores sociais que hostilizavam a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, violou todo o direito e a própria lógica jurídica. O precedente, no ponto, não há de ser acolhido pela doutrina e pelos tribunais brasileiros. Em um dos trechos mais infelizes da ementa do acórdão, ao enfrentar o tema dos direitos territoriais indígenas em face da questão da segurança nacional na faixa de fronteira, o Tribunal desconsidera o direito de consulta estabelecido pela Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho, ao afirmar que as instituições do estado não precisam de autorização de quem quer que seja para adentrar a terra indígena. A Corte reaviva ainda o assimilacionismo de cores nacionalistas, abolido pela Constituição de 1988. O Tribunal assentou: COMPATIBILIDADE ENTRE FAIXA DE FRONTEIRA E TERRAS INDÍGENAS. Há compatibilidade entre o usufruto de terras indígenas e faixa de fronteira. Longe de se pôr como um ponto de fragilidade estrutural das faixas de fronteira, a permanente alocação indígena nesses estratégicos espaços em muito facilita e até obriga que as instituições de Estado (Forças Armadas e Polícia Federal, principalmente) se façam também presentes com seus postos de vigilância, equipamentos, batalhões, companhias e agentes. Sem precisar de licença de quem quer que seja para fazê-lo. Mecanismos, esses, a serem aproveitados como oportunidade ímpar para conscientizar ainda mais os nossos indígenas, instruí-los (a partir dos conscritos), alertá-los contra a influência eventualmente malsã de certas organizações não-governamentais estrangeiras, mobilizá-los em defesa da soberania nacional e reforçar neles o inato sentimento de brasilidade. Missão favorecida pelo fato de serem os nossos índios as primeiras pessoas a revelar devoção pelo nosso País (eles, os índios, que em toda nossa história contribuíram decisivamente para a defesa e integridade do território nacional) e até hoje dar mostras de conhecerem o seu interior e as suas bordas mais que ninguém.

Em lugar de aplicar o direito, assegurando os marcos firmados pela Assembléia Constituinte de 1988, a Corte parece transacionar com os setores mais conservadores da sociedade brasileira. As “salvaguardas institucionais” agregadas ao Acórdão pelo relator, Ministro Ayres Britto, ampliadas pelo Ministro Menezes Direito, fazem recuar aos menores standards da história brasileira os direitos dos povos indígenas. Consta do acórdão:

“Declarada, então, a constitucionalidade da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e afirmada a constitucionalidade do procedimento administrativo-demarcatório, sob as seguintes salvaguardas institucionais majoritariamente aprovadas: a) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (§ 2o do art. 231 da CF) não se sobrepõe ao relevante interesse público da União, tal como ressaído da Constituição e na forma de lei complementar (§ 6o do art. 231 da CF); b) o usufruto dos índios não abrange a exploração mercantil dos recursos hídricos e dos potenciais energéticos, que sempre dependerá (tal exploração) de autorização do Congresso Nacional; c) o usufruto dos índios não alcança a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, que sempre dependerão de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, tudo de acordo com a Constituição e a lei; d) o usufruto dos índios não compreende a garimpagem nem a faiscação, devendo-se obter, se for o caso, a permissão de lavra garimpeira; e) o usufruto dos índios não se sobrepõe aos interesses da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho igualmente estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa, ouvido o Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas, assim como à Fundação Nacional do Índio (Funai); f) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito das respectivas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às respectivas comunidades indígenas, ou à Funai; g) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação; h) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, respeitada a legislação ambiental; i) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades aborígines, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, tradições e costumes deles, indígenas, que poderão contar com a consultoria da Funai, observada a legislação ambiental; j) o trânsito de visitantes e pesquisadores não índios é de ser admitido na área afetada à unidade de conservação, nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; l) admitem-se o ingresso, o trânsito e a permanência de não índios em terras indígenas não ecologicamente afetadas, observados, porém, as condições estabelecidas pela Funai e os fundamentos desta decisão; m) o ingresso, o trânsito e a permanência de não índios, respeitado o disposto na letra l, não podem ser objeto de cobrança de nenhuma tarifa ou quantia de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; n) a cobrança de qualquer tarifa ou quantia também não é exigível pela utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou outros equipamentos e instalações públicas, ainda que não expressamente excluídos da homologação; o) as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que atente contra o pleno exercício do usufruto e da posse direta por comunidade indígena ou pelos índios (art. 231, § 2o, CF, c/c art. 18, caput, Lei 6.001/1973);p) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha às etnias nativas a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativista (art. 231, § 2o, CF, c/c art. 18, § 1o, Lei 6.001/1973); q) as terras sob ocupação e posse das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto no art. 49, XVI, e art. 231, § 3o, da CR/1988, bem como a renda indígena (art. 43 da Lei 6.001/1973), gozam de imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros; r) é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada; s) os direitos dos índios sobre as suas terras são imprescritíveis, reputando-se todas elas como inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4o, CR/1988); t) é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, situadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento”.

Causam especial preocupação a vedação à ampliação de terras indígenas já demarcadas; a afirmação da desnecessidade de consulta prévia à comunidade indígena para realização de intervenções militares, expansão da malha viária e a exploração de alternativas energéticas; bem como a sobreposição de unidades de conservação a terras indígenas, com subordinação do usufruto indígena a regras estabelecidas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Segundo a clarividente avaliação de Bartolomé Clavero “En buena práctica constitucional, las normas sentadas debieran haberse producido por el poder legislativo, ante el cual hubiera podido ponerse de manifiesto que ni siquiera él mismo cabría que las adoptase, dado su tenor contrario a la Constitución y a tratados internacionales ratificados por Brasil. Ante el poder legislativo se podría también haber hecho valer el derecho indígena a la consulta. Así no sólo resulta que la sentencia constituya la coartada de una operación de política legislativa sustancialmente anticonstitucional. Es también que los otros poderes constitucionales, tanto el legislativo como el ejecutivo, se escudan y ocultan tras el poder judicial para hacer lo que, conforme al derecho constitucional y al derecho internacional, no pueden en absoluto llevar a cabo”28.

28

Disponível em . Acessado em 20 de novembro de 2011.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBAGLI, Sarita e MACIEL, Maria Lúcia. Informação e conhecimento na inovação e no desenvolvimento local. Ciência da Informação, v. 33, n. 3, p. 9-16, set/dez, Brasília, 2004. BARBOSA, Marco Antônio. Direito Antropológico e Terras Indígenas no Brasil. São Paulo: Plêiade, 2001. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004 BRAZIL, Maria do Carmo. Fronteira Negra. Dominação, resistência e violência escrava em Mato Grosso (1718-1888). Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2002 BRIGGS, Herbert W.. The Law of Nations. New York: Appleton Century Crofts, 1955. BULL, Heddley. A sociedade anárquica. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Edições Almedina, 2003. _________. Estudos sobre Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Portugal: Coimbra Editora, 2007. CLAVERO, Bartolomé. Nota sobre el Alcance del Mandato Contenido en el Artículo 42 de la Declaración sobre los Derechos de los Pueblos Indígenas y el Mejor Modo de Satisfacerlo por Parte del Foro Permanente para las Cuestiones Indígenas. Apresentada na Reunião Preparatória do Foro Permanente da ONU sobre Questões Indígenas, em Madri, entre os dias 12 e 14 de fevereiro de 2008. _________. Happy Constitution. Cultura y lengua constitucionales. Madrid: Editorial Trotta, 1997. _________. El Orden de los Poderes. Madrid: Editorial Trotta, 2007. _________. Presentación. MATTEUCI, Nicola. Organización del poder y libertad. Historia del constitucionalismo moderno. Madrid: Editorial Trotta, 1998. _________. Celebración Indígena y Contraofensiva Judicial en Brasil. Disponível em . Acessado em 20 de novembro de 2011.

_________. Multiculturalismo, Derechos Humanos y Constitución. Disponível em: . Acessado em 21/03/2011. DENNINGER, Erhard e GRIMM, Dieter. Derecho Constitucional para la sociedad multicultural. Madrid: Editorial Trotta, 2007. FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Editora Globo, 2001. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade São Paulo, 1999. FERNANDES, Hélènemarie Dias. A (Re)Territorialização do patrimônio cultural tombado do Porto Geral de Corumbá-MS. Campo Grande: Fundo de Investimentos Culturais do Estado de Mato Grosso do Sul, 2010. GOMES, Renata Andrade. Com que direito? Análise do debate entre Las Casas e Sepúlveda - Valladolid, 1550-1551. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2006, p. 51 (Dissertação de Mestrado). HARRISE, Henry. The Diplomatic History of America. Its First Chapter. London: B. F. Stevens Publisher, 1897. HÖFFNER, Joseph. Colonização e evangelho: ética da colonização espanhola no século de ouro. Rio de Janeiro: Editora Presença, 1977. KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os direitos do Povos Indígenas do Brasil. Desenvolvimento histório e estágio atual. Tradução de Maria da Glória Lacerda Rurack, Klaus-Peter Rurack. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. LIMA, Oliveira. O Descobrimento do Brasil - Suas Primeiras explorações e negociações diplomáticas a que deu origem. Memorias Annexas do Descobrimento do Brasil. Livro do Centenário. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900. LION, Gaston. Concienciación sobre la Situación Mapuche. Discurso proferido ante o Parlamento Europeu, em Bruxelas, em 24 de março de 2011. LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S.. Brazil since 1980. Cambridge: Cambridge University Press, 2006 MAGALHÃES, Luiz Alfredo Marques. Rio Paraguay - Da Gaíba ao Apa. Campo Grande: Editora Alvorada, 2008.

MATTEUCI, Nicola. Organización del poder y libertad. Historia del constitucionalismo moderno. Madrid: Editorial Trotta, 1998. MALDONADO, Daniel Bonilla. La Constitución Multicultural. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad de los Andes - Facultad de Derecho; Pontificia Universidad Javeriana - Instituto Pensar, 2006. MANDELL, Louise. Indian Nations: Not Minorities. Les Cahier de Droit, vol. 27, n. 1, mars 1986, p. 103. Disponível em . Acessado em 26 de junho de 2011. MENDES JÚNIOR, João. Os indigenas do Brazil, seus direitos individuaes e políticos. São Paulo, Typ. Hennies Irmãos, 1912. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. São Paulo: Max Limonad, 2000. NETO, A. B. Cotrim. Constituição, Poder Constituintes e os participantes de sua realização. In CLÈVE, Clèmerson Merlin e BARROSO, Luiz Roberto. Direito Constitucional: Teoria geral da Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. PÉREZ, Demetrio Ramos. In SALMORAL, Manuel Lucena (coord.) Historia de Iberoamérica. II - Historia Moderna. Madrid: Cátedra, 2008. RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. ROTHENBURG, Walter Claudius. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Verbatim, 2010. SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2010. SARMIENTO, Daniel. Livres e iguais. Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. SILVA, José Afonso. O constitucionalismo brasileiro. Evolução institucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. _________. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2007

TAVARES, André Ramos. Reflexões sobre a legitimidade e as limitações do Poder Constituinte, da Assembléia Constituinte e da competência constitucional reformadora. In CLÈVE, Clèmerson Merlin e BARROSO, Luiz Roberto. Direito Constitucional: Teoria geral da Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. TULLY, James. Strange Multiplicity - Constitutionalism in an age of diversity. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. VALLÉS, Estrella Figueras. Las contradicciones de la conquista española en América: el requerimiento y la evangelización en Castilla del Oro. Universidad de Barcelona. Disponível em . Acessado em 17/06/2011. VATTEL, Emer de. O direito das gentes. Tradução: Vicente Marotta Rangel. Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2004, p. 136. WATSON, Blake A.. John Marshall and Indian Land Rights: A Historical Rejoinder to the Claim of “Universal Recognition” of the Doctrine of Discovery. WIESSNER, Siegfried. Rights and Status of Indigenous Peoples: A Global Comparative and International Legal Analysis. WIGHT, Martin. A política do poder. Tradução: Carlos Sérgio Duarte. Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.