A colonização em cartões postais: fotografia como certificação de uma presença1

June 26, 2017 | Autor: Mailsa Passos | Categoria: Africa, Colonialism, Estudos Culturais, Leitura De Imagens
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1 A colonização em cartões postais: fotografia como certificação de uma presença1 Mailsa Carla Pinto Passos2 Ver é o que se quer ver José de Souza Martins

O movimento de turistas na escada Daru, uma das que dá acesso ao Museu do Louvre em Paris parecia, - aos meus olhos de latino-americana recém chegada à Europa - uma romaria. Os romeiros seguiam em peregrinação para sacralizarem ali seu gosto estético e seu “verniz artístico”. No topo da escadaria, no primeiro andar da Ala Denon, La Victoire de Samothrace – imponente – torna-se quase uma miragem, ofuscada pelos incessantes flashs que indicam que não basta somente estar lá, “o romeiro” tem que levar como lembrança-prova de que esteve ali, de que a viu: uma fotografia, como eu mesma tenho aqui agora, no arquivo de fotos de viagem capturadas de minha máquina digital, alocadas em meu computador. Hoje La Victoire descansa imóvel no alto da escadaria. Se já representou um dia a viagem que precede a conquista, ela hoje espera. Seu destino é estar ali, aguardando os os visitantes, exposta no topo da escadaria Daru, no caminho da “sala de visitas”. Hoje os turistas-romeiros passam por ela, fotografam-na, e seguem rumo à Gioconda, ou quem sabe à Vênus de Milus, ou ainda em busca das telas de Giotto. Hoje ela habita o alto da escada da sala-visitas. Posso eu também hoje – em poder de minhas fotografias - provar que a vi, e provo ainda que continuei seguindo os romeiros fiéis. Segui-os através dos corredores. Eles que vindo de todas as partes do mundo, veneravam aquele Mundo. Aquele foi um momento muito especial. Haja visto o volume de imagens que capturei naquele dia e o que fiz de pronto ao chegar no hotel no fim da tarde: telefonei para a família para dizer que estive no Louvre. Estas duas ações – fazer as fotos e narrar o que se viu - têm um caráter cultural e estão relacionadas a um conjunto de práticas, códigos e valores do mundo ocidental 1

Este texto foi produzido com material do acervo do INRP (Institute National de Recherche Pedagogique), na oportunidade do IV Colloque Laboratoire Civiic, na Universidade de Rouen, quando a autora lá esteve como professora visitante em abril/maio de 2009. 2 Graduada em Letras pela UFRJ, doutora em Educação pela PUC-Rio, professora adjunto da Faculdade de Educação da UERJ e membro do Laboratório Educação e Imagem/UERJ.

2 contemporâneo: ao viver os momentos que consideramos significativos em nossa história, registramo-los para contar aos nossos como foi importante e para dizer “eu estive lá”. O fato de ter “estado lá”, tendo inclusive fotografado, modifica completamente a sua experiência e dá o caráter de verdade ao que é narrado. Todo discurso da Antropologia, desde Malinowski, se legitima nas provas do antropólogo de que esteve no campo e que viu. Isso dá confiabilidade neste processo de conhecimento do “outro”, além da comprovação da experiência privilegiada de “ter estado lá” e ter vivido como um nativo – a observação participante. As fotografias assim importam mais porque provam a presença. Como diria Barthes (1984) “a vidência do fotógrafo não consiste em ver, mas em estar lá”(p.76). Viajantes e pesquisadores em ciências humanas têm atribuído ao registro fotográfico uma forma de comprovação do vivido: eu ali estive, eu vi e essa experiência me coloca em um patamar diferenciado porque posso falar sobre o que vi e vivi. A supremacia deste discurso de quem “esteve lá” vem ao encontro de duas práticas extremamente valorizadas na Modernidade: o olhar e o conhecer. Quem olha, observa, conhece melhor. Se tem registro, tem melhores meios para divulgar este conhecimento. As imagens que capturei naquele dia no Louvre - algumas guardadas ainda nesse computador que ora uso para escrever este texto, e algumas outras já impressas enfeitando o álbum de família - me servem para contar a minha própria história mas dizem um pouco mais. Elas dizem também da história das relações entre o sujeito colonizador e o sujeito colonizado. É uma História particular e coletiva, na medida em que se repete e que reflete sentimentos, valores, interpretações, processos identitários. O sentimento de pertencimento experimentado por mim na visita ao museu, a sensação de estar em um lugar que traduzia toda a cultura da civilização ocidental e a quase que obrigação que um turista se impõe em, uma vez estando em Paris ir ao Louvre é uma construção histórica, que tem no contexto colonial um marco importante. Nos processos de colonização discursos, imagens e representações foram acionados no sentido de construir um “outro”, tendo sido estes mesmos discursos, imagens e representações servido para que este outro assumisse os gostos, desejos, valores enfim, que pertencem ao colonizador. A Victoire, a Gioconda, a Vênus de Milus não pertencem nem aos gregos, nem aos italianos, nem tão pouco aos franceses, eles pertencem à nossa humanidade e à nossa civilização: são meus também.

3 Memmi (1977, p.94) afirma que “o colonizado parece condenado a perder progressivamente a memória” já que a memória que lhe foi determinada é a do outro, é a memória imposta pelo colonizador, a memória dos heróis e dos grandes feitos no ponto de vista do colonizador. A memória, como fenômeno social, reflete e refrata, tal como a linguagem, as relações sociais e os processos de opressão existentes na sociedade. Em contextos coloniais a memória dos heróis, dos grandes feitos, via de regra, diz respeito ao herói do colonizador, como se toda a Historia e o fatos que lhe dizem respeito e lhe transformam/transformaram os destinos tivessem ocorrido longe dali, distante dele, em um território que não é o seu. Mas para além disso, todos esses fatos e heróis que não são do seu lugar, são dele, do colonizado, que os assume como seus. A distância entre colonizador constitui-se em uma produção discursiva para garantir o protagonismo de um e a subalternailização do outro. Entretanto, colonizador e colonizado são protagonistas do drama colonial, estabelecendo uma relação na qual um dos lados só compreende a sua condição na presença do outro. Um é fundamental na compreensão que o outro tem de si. Como nos orienta Bakhtin (2003) não existe uma individualidade sem alteridade. Aquele que “é”, sempre o é em relação a um outro. E só para o “outro” é possível ver o “mesmo” em sua inteireza, em sua completude. Os processos identitários se fundam na relação. Neste artigo, dialogando com três fotografias e um pequeno texto de jornal – material do acervo do INRP (Institute National de Recherche Pedagogique), de Rouen – que datam do período da França colonial, pretendo discutir como as identidades vêm se constituindo na relação colonizador X colonizado. São imagens e textos com os quais penso que podemos compreender também os nossos processos identitários no Brasil contemporâneo, já que também nós vivemos processos de colonização senão iguais, parecidos. 1. Fotografias, produção de sentidos e de incertezas. A fotografia não é de maneira alguma um substituto do real. Ela é interpretação deste, que se realiza quando se opta por um recorte a ser fotografado. A fotografia ensina coisas sobre outras pessoas e outros lugares, outros tempos, mesmo que o

4 fotógrafo nunca tenha tido essa intenção. Na maioria das vezes o operator3 não tem condição de imaginar os rumos que sua imagem vai tomar, e os sentidos que vai produzir. A fotografia é um dos meios pelos quais podemos nos ver na História, como defende Barthes (1984) e eu diria ainda que ela vai permitir também que vejamos e reconheçamos o “outro” na História – o que é a minha proposta aqui neste texto. Ela é a interpretação do fotógrafo sobre um dado contexto/realidade em diálogo com aquele que observa e com os usos que vão ser dados à fotografia-objeto. É essa dinâmica de diálogos complexos e incessantes que vão produzir os sentidos da/na fotografia. Ao interpretar as imagens, crio eu também – spectator4 (Barthes, opus cit.) – a partir da realidade que interpreto vendo a foto. No caso das imagens que escolhi aqui e que serão discutidas mais adiante, estas configuram um discurso sobre o colonizado, no período da colonização francesa em África, que acreditamos que seja não somente um discurso do colonizador francês sobre o colonizado. Mais do que isso é uma forma recorrente de ver, compreender e se relacionar com o “outro”, no chamado período colonial. Isto, no meu modo de ver, trazemos como heranças para o contexto pós-colonial. Utilizarei para dialogar com as imagens que trago para o texto algumas categorias anunciadas por Barthes (1984). Um de meus principais objetivos é o de trazer aqui minhas interpretações sobre essas imagens, discutindo as negociações de sentido entre o operator – aquele que fotografa - e o spectator – aquele que vê. Barthes (opus cit.) vai sugerir a idéia de studium, como o interesse, o gostar da foto, aquilo que está em um campo vasto do desejo. No caso dessas imagens o studium consistiu no meu interess pelas fotos que representavam a presença do colonizador francês na África Ocidental, em especial através da escola colonial francesa. Uma outra categoria também utilizada será o punctum, que corresponde àquilo que atravessa minha relação com a imagem e se impõe-se; é o detalhe que atrai, o que me punge (BARTHES, opus cit., p. 71), um objeto parcial que carrega uma força de expansão. O punctum é o que acrescento à foto e que todavia já está nela (opus cit. p.85), mas que só a partir da experiência e dos significados atribuídos a ela pelo spectator, emerge. 3

O operator é uma das categorias desenvolvidas por Roland Barthes para discutir a imagem. Diz respeito àquele que fotografa, o fotógrafo. Mais à frente tratarei de outras categorias do autor com as quais trabalharei neste texto. 4 O spectator é o que vê a fotografia, somos todos nós que a consumimos.

5 Quero tratar das imagens no que elas mobilizam em mim, como me mobilizou a estada no Louvre e a visão da Victoire. Quais os sentidos produzidos quando vejo a foto? O que consigo compreender daquilo que quis registrar para a História o operator?5 O que a imagem me ensina sobre as relações entre colonizador e colonizado? A fotografia é sempre feita em contextos culturais e sociais específicos e está sempre investida de objetivos que têm a ver com esses contextos. Não existe neutralidade nem no processo de produção – de parte do operator -nem tão pouco na interpretação do spectator. Produtores, receptores da imagem e fotografados formam uma rede polifônica de produção de sentidos, na qual estão em diálogo. Fotógrafo, sujeito fotografado e o apreciador são agentes, são “interpretadores” não somente das imagens, mas também do contexto em que elas são produzidas e do que elas significam. Soma-se a isso, as maneiras de circulação dessas imagens que vão dizer também muito sobre elas. Àquelas que tornam-se cartões postais são atribuídos diferentes significados daquelas que são elaboradas para serem cerradas em um álbum de família, ou as que circulam nos livros didáticos. No INRP, eu procurava imagens de situações de ensino-aprendizagem em que estivessem presentes colonizadores e colonizados para compreender as relações. Me interessava a organização do contexto escolar, o número de crianças que situavam-se em torno de um professor ou professora, aquilo que se ensinava e como estavam vestidos adultos e crianças. Esse era afinal o conjunto que formava o meu studium. Em meio ao processo de coleta das imagens ocorreu que outras fotos, que não traziam situações de ensino-aprendizagem mais formais foram entrando da seleção, pelo fato de que eram imagens que me diziam muito sobre como se educa um “outro”, sobre as relações nos contextos coloniais. Eu fui modificando meu studium no processo de coleta do material; em um dado momento eram as fotos que me “diziam”que eu deveria escolhe-las. Separei para este texto duas imagens de contextos educativos em colônias francesas na África Oceidnetal, e uma que não consiste em uma situação de escola, mas que tem também a função de material de divulgação daquilo que aconteceu nas colônias e da ação civilizatória francesa. Em meu ponto-de-vista elas funcionam “mais como documento da incerteza e não da certeza [...] no cumprimento de seu papel de meio de compreensão imaginária da sociedade”. (Martins, 2008, p. 37 e p.65), mas minha

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Se é que ele o quis.

6 intenção é divulgá-las para que elas possam servir de material para outros educadores e pesquisadores preocupados com essas questões e dividir com o leitor minhas impressões sobre essas imagens do encontro entre colonizados e colonizadores Estas três imagens nos ensinam sobre os tipos humanos, os costumes e as relações entre colonizados e colonizadores, e ainda, como não podemos pensar em um sem pensar no outro. Elas ainda tem a característica comum de serem cartões postais que circularam entre o final do século XIX e as três primeiras décadas do século XX. Período em estes postais funcionavam, tanto como divulgação do que eram as colônias, como serviam de propaganda da ação civilizatória da Europa nas colônias. 2. Relações coloniais: deslocamentos entre o ver e o ser visto Uma fotografia, celebrizada pela Antropologia Clássica, não está aqui nesse texto, mas é importante de ser lembrada para que compreendamos algumas questões que serão tratadas mais à frente. Trata-se da fotografia que ilustra o frontispício de “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, de Malinowski. Ali, o cenário é uma passagem de uma cerimônia do Kula terrestre, um momento no qual os nativos participam de um ritual de oferta dos soulava – colares feitos de conchas. Ela apresenta seis homens enfileirados, curvados num gesto de reverência, oferecendo os colares a um chefe nativo que está a sua frente. A objetividade do registro fotográfico do ritual e o distanciamento do operator em relação à cena estariam preservados se a sexta pessoa da fila de nativos não estivesse olhando para o pesquisador que fotografa. Esse olhar denuncia o “outro” que olha a cena e que a registra. O sujeito que a para a câmera deflagra a presença daquele que realiza a foto e que deveria permanecer invisível para garantir o lugar de “objeto” daquele que é fotografado. Quando o indivíduo fotografado olha para a câmera, neste exato momento, ele se transforma em sujeito, já que estabelece uma relação nessa troca de olhares, com o operator e com o spectator. A condição confortável de invisibilidade é do operator é colocada. No momento em que o fotografado olha para quem o fotografa se institui como sujeito nessa relação. 3. Retratos, diálogos e encontros: imagens e narrativas em contextos coloniais.

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Figura 1 – Foto anônima de uma lição de catecismo no Congo – Missão católica de Brazzaville – 1900 (cartão postal)

Um pequeno artigo de jornal, de autoria de alguém que assina A. D., sob o título de “A França civilizadora - Uma escola no Senegal”, narra o seguinte: Apesar de se falar muito da colonização que é feita a golpes de fuzil, pela força, através da guerra, existe uma outra que custa muito menos e é muito mais vantajosa, uma política que faz honra a França e se insere eficazmente na causa da humanidade: é a política do professor e da professora de escola primária, o missionário, o verdadeiro representante de influência francesa. Estes conquistadores que nos tornam amigos e que nos conseguem impérios sem precisar derramar uma só gota de sangue. O hábito – que não faz o monge – diz um velho provérbio – aqui não faz nenhuma diferença. No lugar das duas mulheres leigas que aparecem na gravura, poderiam estar duas irmãs de caridade ou dois padres da doutrina cristã, a missão civilizadora não seria menos bem cumprida: esses pequenos negrinhos, que aprenderam a amar a França falando sua língua, ensinarão mais tarde a seus filhos tudo que a África deve a ela. Então este reconhecimento derrubará as barreiras da ignorância e da barbárie sobre a costa ocidental da grande península, [...] e a civilização francesa e a civilização cristã circularão pela velha terra de Cam. Esta é uma página da futura história da África.”6 (La France civilisatrice – une école au Sénégal. A . D., 1886 – acervo INRP)

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Tradução da autora

8 A figura 1 representa uma aula de catecismo sobre a Santíssima Trindade, em uma missão católica no lugar que hoje conhecemos como Congo-Brazzaville. Esta aula está sendo ministrada por um padre e tem como audiência um grupo de 8 meninos que o cercam. Nem todos os meninos portam um crucifixo, somente quatro deles. A aula acontece em um espaço aberto, sem a proteção de qualquer cobertura. Talvez por isso missionário porte um chapéu. Ele está sentado em uma cadeira e traz ao colo uma bíblia aberta. Uma das mãos está sob a bíblia e a outra ergue-se num gesto representativo do número 3, que simboliza, provavelmente, o tema da aula, a Santíssima Trindade. Mas, e o punctum? O que poderia me pungir nessa fotografia? O que me atravessa e paralisa quando olho a imagem? O que ali me provoca? O gesto do padre representando o assunto que está registrado no texto de referência da fotografia – à direita, no alto - denuncia uma provável encenação para a foto. O texto que transcrevi anteriormente nos oferece alguns dados para uma contextualização necessária aqui. Para entender melhor a imagem e pensar um pouco sobre ela, muito embora no artigo o autor não esteja se referindo ao Congo, que é o território-cenário da ftografia em questão. Um trecho do artigo diz que Apesar de se falar muito da colonização que é feita a golpes de fuzil, pela força, através da guerra, existe uma outra que custa muito menos e é muito mais vantajosa, uma política que faz honra a França e se insere eficazmente na causa da humanidade: é a política do professor e da professora de escola primária, o missionário, o verdadeiro representante de influência francesa. Estes conquistadores que nos tornam amigos e que nos conseguem impérios sem precisar derramar uma só gota de sangue.

Se a conversão tem um custo menor que a guerra - além de agir a longo prazo - o convertido, tornado amigo, garante o futuro da colônia já que, o autor registra mais à frente que esses pequenos negrinhos que aprenderam a amar a França falando sua língua, ensinarão mais tarde a seus filhos tudo que a África deve a ela. É esse então o papel que o missionário cumpre aqui: ensinando o catecismo ele ensina a amar a França. Entretanto, há algo nessa foto que escapa à encenação: o olhar do menino que está em pé à direita e que se dirige à câmera. Todos os outros meninos estão voltados para o padre, para o centro, para a bíblia, me parece que ouvem atentamente o discurso da conversão, preparando-se para aquilo a que o autor do artigo se referia acima – ensinar mais tarde aos filhos tudo o que a África deve à França. Mas

9 o menino que olha a câmera, ao contrário, está voltado para o operator, não para o círculo e revela que, se ele está sendo visto, também pode ver. Ao olhar para quem fotografa, ele estabelece um outro tipo de relação, não somente com o operator mas com todo aquele que o vê na foto dali para a frente. Comigo inclusive, que a olho agora. Seu olhar atravessa o tempo e encontra o nosso tempo. Um século depois trocamos olhares e me mobiliza o fato de que ele não esteja mais lá, e de que muitos outros como ele tenham se negado a portar o crucifixo e a assistir com atenção a catequese. Este mesmo olhar, com o qual o sujeito força um diálogo, que provoca um deslocamentoo no tempo e no espaço, um olhar que é quase um grito de “perceba que eu estou aqui”, um olhar que re-significa a relação entre colonizador e colonizado está presente ainda na fotografia que se segue.

10 Figura 2 – Autor: Fortier - Jovem feiticeira - África Ocidental Francesa - cartão postal – 1920 (Images e Colonies, 1880 –1962)

Toda fotografia é um certificado de presença (Barthes, 1984). Talvez também por isso tantas imagens do colonizado tenham sido realizadas pelo colonizador. Justifica-se pelo fato de que o colonizador só se torna um, se existe um outro, registrado e tornado público. As fotografias são uma certificação de que realmente existe um “outro” e guardá-lo em uma foto é mantê-lo sob controle, catalogado, devidamente explicado em suas práticas estranhas, seus corpos que eles resistem em cobrir. É uma forma de manter os pares (de “mesmos”) informados da existência de “outros”, em outras partes. Como já anunciei, um punctum para mim nessa fotografia é o olhar da jovem. Mais uma vez, o fotografado deflagra a relação com o operator quando o olha. Um olhar que promove um encontro. Aqui também, mais uma vez, o fotografado “escapa” e recupera o lugar de sujeito, quando, ao olhar, estabelece uma relação. Um outro punctum ainda importante é o ventre da jovem, coberto de escarificações. Estas são prática comum em muitos grupos na África negra; elas podem assumir diferentes significados dependendo da cultura, da região, do grupo. Em alguns grupos esses rituais documentam/registram estágios importantes na vida da pessoa: a fertilidade, a maturidade, a mudança de fases na vida. Em outras culturas são símbolo de feminilidade, de atrativos físicos e status social. Essas marcas, que são marcas da cultura e da sociedade na natureza humana, como existem em outros grupos culturais, mobilizam em mim uma grande curiosidade: quem era esta moça? Teria filhos? Por que as escariações na região do ventre? Obviamente que o texto que a define como “feiticeira”, registrado na legenda, não me satisfaz e tão pouco me convence: uma legenda é sempre muito pouco para uma foto. Lembremo-nos que por muito tempo eram denominadas de feiticeiras na Europa aquelas mulheres que assumiam determinadas práticas consideradas proibidas ou ameaçadoras ao clero e ao poder hegemônico.7 Usar o termo “feiticeira” aqui provavelmente está relacionado com a falta de compreensão em relação ao universo cultural e simbólico dessa pessoa.

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Sobre essa questão, em A história do medo no Ocidente – Cia das Letras, 1990 - Jean Delumeau traz um estudo sobre a demonização da figura feminina ao longo da história.

11 Mas o que mais me interessa aqui são dois outros fatos: o primeiro deles, ao qual já me referi, é que a moça também olha quem a olha. Como nas fotografias anteriores, o olhar do sujeito objetificado na imagem levanta-se e diz “eu estou aqui, eu também te vejo, o “outro” aqui é aquele que fotografa e não a moça. Isso reformula os sentidos produzidos pela imagem e inaugura uma outra relação. E um outro fator importante: o uso que é feito dessa imagem. Se cremos, como Certeau (1994), que nos usos é que as práticas são re-inventadas, cotidianamente, parece possível que transformar a imagem da jovem da África Ocidental em um postal, pode significar, a grosso modo, uma tentativa de mantê-la no lugar de objeto, muito embora ela já tenha rejeitado este lugar quando denunciou a câmera. Isso problematiza um pouco mais minha tentativa de compreensão, já que sei, informada por Fabris (1991, p.35) que Instrumento de democratização do conhecimento numa sociedade liberal que acredita no poder positivo da instrução, o cartão postal leva às últimas conseqüências a ‘missão civilizadora’ conferida à fotografia por sua capacidade de popularizar o que até então fora apanágio de poucos. A viagem imaginária e a posse simbólica são as conquistas mais evidentes de uma nova concepção do espaço e do tempo, que abole as fronteiras geográficas, acentua similitudes e dessimilitudes entre os homens, pulveriza a linearidade temporal.

Ao oferecer a possibilidade de uma viagem imaginária através da fotografia e da posse simbólica de uma realidade distante, o cartão postal vai oferecer também a quem o porta a possibilidade de viver uma experiência com o “outro” impossível antes da fotografia. Agora seria possível ver sem “estar lá” e seria possível ver sem ser visto e imaginar realidades e situações possíveis somente para que quem viveu o contexto da foto. Mais ainda, agora seria possível ter o “outro” em casa, como souvenir, fixado na fotografia, reforçando e reproduzindo estereótipos, tão comuns na sociedade colonial. Segundo Bhabha (1998) o estereótipo representaria a principal estratégia do discurso colonial e consiste em uma maneira de identificar os sujeitos, que transita entre aquilo que está sempre ‘no lugar’, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido (p.105). E o autor afirma ainda que, Um aspecto importante do discurso colonial é sua dependência do conceito de “fixidez” na construção ideológica da alteridade. A fixidez, como signo da diferença cultural/histórica racial no discurso do colonialismo, é um modo de representação paradoxal: conota rigidez e ordem imutável, como também desordem, degeneração e repetição demoníaca. (p.105)

12 No contexto colonial “o outro”, colonizado, é representado como fixado em um passado remoto e primitivo, como sem um sem-História. Num discurso contraditório, o colonizado é compreendido e tratado como aquele que traz em sua cultura rigidez e uma ordem imutável, mas que é também representado como desordem, caos, como nãocultura. Independentemente das contradições e de toda a complexidade que envolve as relações colonizador/colonizado, o importante, no discurso colonial, é manter o colonizado no lugar do folclore, um elo perdido.

Figura 3 - África Ocidental - Escola de crianças da tropa de Tirailleurs – cartão postal (1915)

Como escreveu Todorov (2003) não é somente com armas que os conquistadores conquistam e dominam o mundo, mas, antes, com e pelas palavras. A figura 3 também é um cartão postal, anônimo. Na fotografia, um grupo de crianças que parecem bem pequenas, olha para um jovem que aponta para uma lousa na qual um alfabeto está escrito. Algumas crianças parecem acompanhar em um livro ou caderno aquilo que o rapaz está demonstrando na lousa. Este rapaz tem um graveto nas mãos com o qual aponta as letras, muito bem desenhadas, no quadro. Outros dois rapazes estão ao lado da lousa – um deles com o caderno aberto parecendo orientar a

13 leitura das crianças. No canto esquerdo da fotografia, um homem branco, vestido com roupas ocidentais e de chapéu, sorri. Como um punctum, o fato de que só o homem que sorri calça sapatos. E, ainda um outro: a visão de crianças muito pequenas aprendendo a ler e a escrever na língua do colonizador; que não representa sua cultura, suas práticas mas que lhes é imposta. Não são somente palavras que pronunciamos, mas sim verdades, mentiras, maneiras de ver o mundo (Bakhtin, 2004); portanto aprender uma língua não significa somente enunciar fonemas, juntar letras, decodificar. Aprender uma língua é inventariar e compartilhar com outros o conjunto de significados, os valores, os modos de ser experimentados pelo grupo que usa esta língua. Noto algo mais: no contexto que a foto do cartão postal representa, as duas formas de conquista anunciadas anunciadas no artigo “A França civilizadora - Uma escola no Senegal”, co-existem: a colonização “feita a golpes de fuzil” e a “política que se insere na causa da humanidade”. Tirailleurs é a palavra que define os atiradores recrutados para servir ao exército francês. Assim, as crianças que fazem parte dessa escola são filhos das tropas de senegaleses que servem à França na guerra. Ou seja, enquanto os pais vão à guerra pelo colonizador, suas crianças aprendem a língua e aproveitam a educação, a civilização que o colonizador oferece. Preparam-se para ensinar a seus filhos a amar a França falando sua língua e a ensinar mais tarde a seus filhos tudo que a África deve a ela. Desses processos somos herdeiros diretos. Aprendemos também a amar e agradecer aos colonizadores pelo que somos - inclusive pelas memórias apagadas, pelas línguas mortas. Nos contextos pós-coloniais essas imagens e esses discursos ecoam. As imagens que foram alvo de discussão aqui neste texto, não falam de um passado. Elas são o hoje. Muitas delas e outras equivalentes construíram/constroem nossas subjetividades, os significados que atribuímos a nossas práticas, nossos saberes, nossa memória. Documentos de cultura e de barbárie essas imagens sugerem não só a imagem que o colonizador faz do outro, mas também a sua auto-imagem; sugerem também o sentimento contraditório de desejo e repulsa que envolve as relações coloniais e ainda que, se havia dificuldades do colonizador em falar ao colonizado reconhecendo nele um sujeito, o colonizado por sua vez enunciava, colocando-se em diálogo.

14 Referências bibliográficas: BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004. (10a Edição). ________ Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 1984. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994 FABRIS, Annateresa (org.). A invenção da fotografia: repercussões sociais. Fotografia – usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991. MARTINS, José de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo: Editora Contexto: 2008 MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. (2a edição) RIOUX, Jean Pierre (sous la direction de). Dictionaire de la France Coloniale. Flammarion, 2007. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América – a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003

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