A Comissão de Anistia e a Concretização da Justiça de Transição no Brasil - Repercussão na Mídia Impressa Brasileira - Jornal O Globo - 2001 a 2010
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A Comissão de Anistia e a Concretização da Justiça de Transição no Brasil -‐ Repercussão na Mídia Impressa Brasileira -‐ Jornal O Globo -‐ 2001 a 2010 ∗
José Carlos Moreira da Silva Filho ∗∗
1. Introdução
A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça foi criada através da
Medida Provisória Nº 2.151/2001 que, no ano seguinte, seria transformada na Lei Nº 10.559/2002. Esta lei, por sua vez, regulamenta o Art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias -‐ ADCT da Constituição Republicana de 1988. Neste dispositivo constitucional está previsto o direito à reparação econômica devida pelo Estado aos que sofreram perseguição política no período de 18 de setembro de 1946 a 05 de outubro de 1988, demarcando a partir da nova ordem constitucional um também novo conceito de anistia, não mais voltado aos agentes públicos que praticaram crimes de lesa humanidade e não mais associado ao esquecimento. O conceito constitucional de anistia agora se volta à ideia de reparação, econômica, moral e política, e ao reivindicar o olhar dos que foram perseguidos e atingidos pela repressão do Estado ditatorial demarca a forte vinculação entre anistia e memória.
Tal aspecto memorialístico da anistia, contudo, não se revelou evidente
desde o início. Foi na medida em que as atividades da Comissão de Anistia foram se desenvolvendo que tal faceta foi se fortalecendo mais e mais. Ao se abrir um Este artigo é fruto de projeto de pesquisa desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Direito à Memória e à Verdade e Justiça de Transição, com sede no Programa de Pós-‐Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul -‐ PUCRS. O projeto de pesquisa, do qual resultou este artigo, intitulado "Dever de Memória e a construção da História Viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do Direito à Memória e à Verdade", obteve auxílio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e contou com bolsas de iniciação científica da Federação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul -‐ FAPERGS e do CNPq. ∗
Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná -‐ UFPR; Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina -‐ UFSC; Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília -‐ UnB; Bolsista Produtividade CNPq Nível 2; Professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul -‐ PUCRS (Programa de Pós-‐graduação em Ciências Criminais – Mestrado e Doutorado -‐ e Graduação em Direito); Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; Membro-‐Fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST. ∗∗
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espaço institucional para o testemunho dos que foram direta e indiretamente atingidos pela repressão da ditadura foi sendo criado e consolidado na atuação da Comissão de Anistia um protagonismo institucional em termos de resgate da memória política, o que não é difícil de entender, já que para cumprir a missão constitucional da reparação a Comissão precisava ouvir os requerentes e ler as suas manifestações nos autos dos processos.
Assim, paulatinamente, algumas práticas e ações que a princípio não
foram explicitadas na lei, nem no próprio regulamento e nas normas procedimentais da Comissão1, começaram a surgir e a se aprofundar. Dentre elas destacam-‐se as Caravanas da Anistia e o pedido de desculpas realizado ao final de cada requerimento aprovado sempre que o requerente e/ou seus familiares se encontram presentes na sessão de apreciação do requerimento de anistia2.
A trajetória da Comissão de Anistia tem sido acompanhada pela grande
mídia nacional. Em um primeiro momento o que salta aos olhos, desde o início das atividades da Comissão, são as notícias que destacam o aspecto monetário das reparações, chamando atenção em muitos casos para o que seria considerado um excesso ou a prática de valores exorbitantes para reparar os ex-‐
1 O Regimento Interno da Comissão de Anistia foi instituído pela Portaria do Ministério da Justiça
Nº 253 de 23 de Fevereiro de 2006. As Normas Procedimentais da Comissão de Anistia, por sua vez, foram instituídas pela Portaria Ministerial Nº 756 de 26 de Maio de 2006. 2 Uma descrição mais pormenorizada dessas e outras ações da Comissão pode ser encontrada nos seguintes artigos (também fruto do Projeto de Pesquisa que originou o presente texto): SILVA FILHO, José Carlos Moreira da . O anjo da história e a memória das vítimas: o caso da ditadura militar no Brasil. In: Castor Bartolomé Ruiz. (Org.). Justiça e memória: para uma crítica ética da violência. Justiça e memória: para uma crítica ética da violência. São Leopoldo: UNISINOS, 2009, p. 121-‐157; ABRÃO, Paulo; CARLET, Flávia; FRANTZ, Daniela; FERREIRA, Kelen Meregali Model; OLIVEIRA, Vanda Davi Fernandes de. As Caravanas da Anistia: um mecanismo privilegiado da justiça de transição brasileira. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Ministério da Justiça, n.2, jul/dez 2009, Brasília, p.112-‐149; ABRÃO, Paulo; CARLET, Flávia; FRANTZ, Daniela; FERREIRA, Kelen Meregali Model; OLIVEIRA, Vanda Davi Fernandes de. Educação e Anistia Política: idéias e práticas emancipatórias para a construção da memória, da reparação e da verdade no Brasil. In: SANTOS, Boaventura de; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília MacDowell; TORELLY, Marcelo D. (orgs.). Repressão e Memória Política no contexto Íbero-‐Brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da Justiça; Coimbra: Universidade de Coimbra, 2010. p.60-‐87; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; PISTORI, Edson Claudio. Memorial da Anistia Política do Brasil. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Ministério da Justiça, n.1, jan/jun 2009, Brasília, p.114-‐133. Para uma análise mais recente: ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo. O programa de reparações como eixo estruturante da justiça de transição no Brasil. In: REÁTEGUI, Félix (Org.). Justiça de Transição -‐ Manual para a América Latina. Brasília: Ministério da Justiça; New York: International Center for Transitional Justice, 2011. p.473-‐516.
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perseguidos políticos 3 . Em não raras vezes, muitas dessas notícias abriam também o espaço para diferentes interpretações quanto ao significado tanto da repressão praticada pelo Estado ditatorial quanto da oposição a ela.
Este artigo nasce de uma suspeita quanto ao alcance e abrangência das
notícias veiculadas na grande mídia impressa a respeito da atuação da Comissão de Anistia. Embora, a um primeiro olhar possa parecer que a cobertura da mídia assume um predomínio do tom negativo, censurando a realização de despesas públicas voltadas à reparação de ex-‐perseguidos políticos, a presente pesquisa partiu da suspeita de que também não passaram desapercebidas as ações voltadas ao resgate da memória, mesmo quando tais ações apontavam, em grande parte, para as apreciações dos pedidos de reparação e nem tanto para as políticas de memória e para os projetos educativos desenvolvidos.
Para averiguar e dimensionar tais suspeitas e suposições, realizou-‐se uma
análise da cobertura feita por parte da grande mídia impressa nacional sobre as atividades da Comissão de Anistia. Em seguida, a explicação da metodologia utilizada e a apresentação de alguns dos resultados obtidos. 2. Metodologia
Devido à sua grande circulação no território nacional, foram selecionados
para investigação os jornais Folha de São Paulo e O Globo4, bem como os semanários Veja, Isto É e Carta Capital. Neste artigo, serão apresentados apenas os resultados obtidos na pesquisa feita junto ao Jornal O Globo5. 3 Para uma resposta a este tipo de crítica ver: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. A ambiguidade da Anistia no Brasil: memória e esquecimento na transição inacabada. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virgínia Prado (Orgs.). Direito à Verdade e à Justiça. Belo Horizonte: Fórum, 2013. 4 Segundo dados fornecidos pela Associação Nacional de Jornais, o jornal Folha de São Paulo atingiu em 2011 a circulação média de 286.398 exemplares e o jornal O Globo de 256.259 exemplares (Disponível em: http://www.anj.org.br/a-‐industria-‐jornalistica/jornais-‐no-‐ brasil/maiores-‐jornais-‐do-‐brasil . Acesso em 18/01/2013). Isto sem mencionar o acesso às versões digitais dos jornais. Importa também esclarecer que o jornal O Estado de São Paulo também estava nos planos originais da pesquisa, mas na época da sua realização os arquivos do jornal O Estado de São Paulo não estavam disponíveis para consulta, sob a alegação fornecida pelo setor de arquivos do jornal de que o Setor passava por uma grande reforma física. 5 Os resultados obtidos nos demais veículos serão oportunamente divulgados em outros artigos. Importante registrar que para a tarefa do levantamento e da organização dos dados contou-‐se com o trabalho e o auxílio de Rodrigo Lentz, então bolsista PIBIC/CNPq vinculado ao projeto de pesquisa.
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A metodologia empregada partiu inicialmente de algumas expressões-‐
chave para a busca junto aos arquivos dos veículos selecionados. As expressões-‐ chave utilizadas foram as seguintes: "comissão de anistia"; "lei de anistia"; "bolsa ditadura"; "caravana da anistia"; "caravanas da anistia". Tais expressões relacionam-‐se diretamente à atuação da Comissão de Anistia, como será detalhado abaixo. O período selecionado para a busca foi de 01/01/2001 até 31/12/2010. Este período cobre em seu termo inicial o ano no qual foi criada a Comissão de Anistia6 e em seu termo final o momento no qual a pesquisa e a coleta de dados foi realizada.
À época da realização desta pesquisa, para que se pudesse fazer uma
busca por expressões-‐chave em relação ao arquivo de notícias do Jornal O Globo, foi necessário obter a autorização do setor competente e ir pessoalmente à redação do Jornal, localizada na Rua Irineu Marinho, 35, na cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa pôde ser feita no próprio jornal em sistema de busca interno mediante computadores destacados especialmente para este fim. A partir do emprego das expressões-‐chave da pesquisa, havia duas formas de coletar os dados: ou comprar os arquivos de cada reportagem selecionada, contendo fotos e a diagramação original da notícia, ou então pagar uma taxa para poder copiar apenas os textos das notícias selecionadas. A primeira opção revelou-‐se impraticável pelo alto valor cobrado por cada arquivo, optando-‐se assim pela segunda modalidade. Deste modo, foi informado ao sistema o recorte temporal da pesquisa e foram salvos em arquivos de texto o teor de todas as notícias obtidas com as expressões-‐chave, com exceção dos resultados obtidos com a expressão "lei de anistia", pois neste caso foram armazenados apenas os resultados obtidos entre 2008 e 2010, por motivos que são explicados mais adiante.
6 Conforme já registrado acima a Comissão de Anistia foi criada pela Medida Provisória Nº
2.151 de 31 de Maio de 2001, depois transformada na Lei Nº 10.559 de 14 de Novembro de 2002, regulamentando o Art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Republicana de 1988, que prevê o direito à reparação pela perseguição política sofrida e utiliza a palavra "anistia" como sinônimo de reparação.
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Para realizar a análise qualitativa e quantitativa das notícias obtidas com
esses parâmetros foram criadas categorias a partir dos conhecidos quatro pilares do conceito de Justiça de Transição7, obtendo-‐se as seguintes categorias: quadro 1 – categorias e subcategorias
1) Direito à
2) Reparação
Memória e à
3) Justiça
Instituições de
Verdade 1A)
Abertura
4) Reforma das Segurança
dos 2A) Valores e Critérios
Arquivos
3A) Responsabilização 4A) Continuidade da penal dos agentes da violência policial ditadura
1B)
Homenagens
Políticas de Memória
e 2B) Reparação Moral e 3B) Interpretação da 4B) Autoritarismo das Reconhecimento
Anistia
instituições
1C) Interpretações do 2C) Interpretações do
4C) Democratização das
Passado
instituições militares
Passado
Como critério de categorização 8 do primeiro bloco de categorias
procurou-‐se incluir aquelas notícias que tivessem relação com a atuação da Comissão de Anistia mas que não estivessem voltadas diretamente para as apreciações de pedidos de reparação realizadas. Assim, as notícias incluídas 7 A
Justiça de Transição foi denominada da seguinte forma em documento produzido pelo Conselho de Segurança da ONU: “A noção de ‘justiça de transição’ discutida no presente relatório compreende o conjunto de processos e mecanismos associados às tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legado de abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas de seus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. Tais mecanismos podem ser judiciais e extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais, reparações, busca da verdade, reforma institucional, investigação de antecedentes, a destruição de um cargo ou a combinação de todos esses procedimentos” (NAÇÕES UNIDAS – Conselho de Segurança. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-‐conflito. Relatório do Secretário Geral S/2004/616. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.1, p.320-‐351, jan.-‐jun. 2009. p.325). Sobre o tema da Justiça de Transição e uma explicação sucinta dos seus quatro pilares, conferir, ainda: ABRÃO, Paulo. (Org.) ; VIEIRA, Jose Ribas (Org.) ; LOPES, J. R. L. (Org.) ; TORELLY, M. D. (Org.). Dossiê: o que é justiça de transição? In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n.1, p.31-‐112, jan.-‐jun. 2009; e ZYL, Paul van. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-‐conflito. In: REÁTEGUI, Félix (Org.). Justiça de Transição -‐ Manual para a América Latina. Brasília: Ministério da Justiça; New York: International Center for Transitional Justice, 2011. p.47-‐72. 8 BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Paris: Edições 70, 2008. pág.146.
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neste bloco traziam referências a outras ações da Comissão, voltadas para políticas de memória ou para o aprofundamento do processo transicional brasileiro. Em meio a essas notícias, procurou-‐se catalogar aquelas que traziam referências à abertura de arquivos (1A), destacavam a dimensão do resgate político simbólico e/ou da realização de homenagens aos que resistiram à ditadura (1B), e que abriam o flanco para diferentes interpretações sobre o significado da ditadura e da oposição feita a ela (1C).
Como critério de categorização do segundo bloco de categorias foram
incluídas aquelas notícias que traziam a dimensão da reparação, aspecto central da atuação da Comissão de Anistia. Na categoria 2A foram inseridas aquelas notícias que discutiam os valores e critérios praticados pela Comissão de Anistia, na categoria 2B o destaque dado para as homenagens aos requerentes e ao aspecto simbólico e moral da reparação, e na categoria 2C as diferentes interpretações sobre o significado da ditadura e da oposição feita a ela a partir das apreciações de requerimentos de reparação realizadas pela Comissão.
Como critério de categorização do terceiro bloco de categorias foi
enfatizado o debate a respeito da responsabilização criminal dos agentes públicos que praticaram crimes contra a humanidade durante a ditadura civil-‐ militar brasileira (3A). Como será observado mais adiante, a Comissão de Anistia teve uma forte participação neste debate, contribuindo para alavancar, igualmente, a discussão acerca da interpretação e do sentido da Lei de Anistia de 1979 (3B).
Por fim, o critério de categorização do quarto bloco de categorias
contempla o pilar da Reforma das Instituições de Segurança Pública. Assim, dentre as notícias pesquisadas, associadas direta ou indiretamente à atuação da Comissão de Anistia, foram incluídas neste grupo as que faziam referência ao elevado índice de violências praticadas hoje pelas forças de segurança pública (4A), que identificavam práticas ou pensamentos autoritários presentes na cultura pública e institucional do país (4B), ou que chamavam atenção para a necessidade de democratização das Forças Armadas (4C).
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Utilizando terminologia proposta por Bardin, a categorização realizada na
pesquisa obedece ao processo de "categorização por caixas"9, no qual já se parte de um quadro pré-‐determinado de categorias para examinar e classificar o material coletado. Importante também esclarecer que a pesquisa apresenta uma clara justificativa para relativizar a regra da "exclusão mútua", segundo a qual cada elemento do conjunto a ser classificado na grade de categorias não pode figurar em mais de uma divisão10.
Uma mesma notícia coletada pode trazer mais de uma categoria. As
notícias, em geral, podem apresentar diferentes aspectos em um mesmo texto, como se pode verificar a partir dos critérios e categorias utilizados. Assim, por exemplo, uma mesma notícia poderá discutir e criticar os valores atribuídos pela Comissão de Anistia a título de reparação a um grupo de ex-‐perseguidos políticos e na sequencia do texto abrir espaço para tratar da história de perseguição política desses anistiados, reconhecendo sua militância política e a violência da qual foram vítimas. Neste caso, teríamos em uma mesma notícia a incidência de duas categorias, a 2A (Valores e Critérios) e a 2B (Reparação Moral e Reconhecimento).
Tal circunstância explica porque o número de incidências ou ocorrências
de categorias é maior do que o número de notícias obtidas. Esta pesquisa não tem por objetivo classificar as notícias dentro de uma categoria única ou predominante, mas sim de verificar a diversidade ou não de aspectos e significados que são apresentados nas notícias, ainda mais em um tema tão dado a ambiguidades, polarizações e polêmicas como é o da transição política brasileira diante da ditadura civil-‐militar. Assim, para fins de classificação das notícias e quantificação das categorias incidentes, optou-‐se por não fazer uma avaliação do tom predominante dos textos ou uma interpretação sobre a 9 Explica
Bardin que, de acordo com este processo, "é fornecido o sistema de categorias e repartem-‐se da melhor maneira possível os elementos à medida que vão sendo encontrados. Este é o procedimento por 'caixas'" (BARDIN, op.cit., p.147). 10 Bardin registra que a "exclusão mútua" é um dos aspectos que caracteriza uma boa categorização. Segundo tal qualidade as "categorias deveriam ser construídas de tal maneira que um elemento não pudesse ter dois ou vários aspectos susceptíveis de fazerem com que fosse classificado em duas ou mais categorias. Em certos casos, pode pôr-‐se em causa esta regra, com a condição de adaptar o código de maneira a que não existam ambiguidades no momento dos cálculos (multicodificação)" (BARDIN, op.cit., p.147-‐148). Pelos motivos explicitados neste artigo, entendemos que é o caso de "pôr-‐se em causa esta regra" e tomamos as devidas precauções para evitar as ambiguidades, como será adiante descrito.
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prevalência de um significado negativo ou positivo na notícia analisada. Fatores como a chamada da notícia, o seu título, o lugar onde aparece no jornal, entre outros aspectos, não foram considerados para se indicar a incidência predominante de uma categoria em relação a outras. Procurou-‐se, tão somente, identificar na notícia quais categorias, dentre as utilizadas na análise, estavam presentes no texto.
Segue abaixo o resultado quantitativo desse esforço de categorização e na
sequencia uma análise qualitativa das notícias pesquisadas.
Inicialmente, faz-‐se referência ao número de notícias obtidas por ano de
publicação. Somando-‐se o que foi encontrado no Jornal O Globo com a utilização de todas as expressões de busca mencionadas chegou-‐se ao número total de 337 notícias coletadas dentro do recorte temporal proposto na pesquisa.
Importante registrar que algumas destas notícias são repetidas, isto é,
uma mesma notícia traz duas ou mais expressões de busca no seu texto11. São ao todo 23 repetições, distribuídas do seguinte modo por ano de publicação: 18 em 2008; 4 em 2009; e 1 em 2010. Assim, o número real de notícias obtidas foi o de 314.
Feitos os devidos descontos das repetições, verificou-‐se que o ano com
maior volume de notícias foi o de 2008 (86 – 27,4%), seguido pelos anos de 2010 (75 – 23,9%), 2009 (37 -‐ 11,8%) e 2005 (31 -‐ 9,9%). Tais dados permitem construir algumas conclusões que serão expostas adiante em item específico.
Trata-‐se agora de identificar no universo de notícias encontradas com
cada uma das expressões de busca utilizadas a quantidade e a distribuição das categorias de análise.
No jornal O Globo, do universo de 179 notícias obtidas com a expressão
de busca "Comissão de Anistia", registraram-‐se 294 ocorrências de categorias, distribuídas do seguinte modo: 11 Praticamente
todas trazem no máximo duas expressões. Apenas uma notícia trouxe três expressões de busca. Foi o caso da notícia publicada em 05/04/2008 que diz respeito à Caravana da Anistia ocorrida na sede da Associação Brasileira de Imprensa -‐ ABI, na cidade do Rio de Janeiro, quando Ziraldo e Jaguar foram anistiados (AUTRAN, Paula; DUTRA, Marcelo. Criticaram a ditadura e ganharam R$ 1 milhão. O Globo, Rio de Janeiro, 05 abr. 2008. Primeiro Caderno, p.18). Como se verá adiante, este episódio mereceu grande repercussão no Jornal, que via de regra assumiu um tom crítico em relação aos valores recebidos pelos jornalistas a título de reparação por perseguição política. Esta notícia tem como título a seguinte frase: "Criticaram a ditadura e ganharam R$ 1 milhão", e trouxe em seu texto três das expressões de busca utilizadas: "Comissão de Anistia", "Bolsa-‐Ditadura" e "Caravana da Anistia".
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quadro 2 -‐ ocorrências de categorias nas notícias coletadas com a expressão "Comissão de Anistia" Comissão de Anistia
4C -‐ 0,3%
4A -‐ 0,7%
1B -‐ 1%
3B -‐ 3% 2C -‐ 6%
3A -‐ 3%
1A Memória e Verdade -‐ Abertura dos Arquivos
1A -‐ 2% 1C -‐ 1%
1B Memória e Verdade -‐ Homenagens
4B -‐ 0%
1C Memória e Verdade -‐ Interpretações do Passado 2A Reparação -‐ Valores e Critérios 2A -‐ 40%
2B -‐ 43%
2B Reparação -‐ Reparação Moral e Reconhecimento 2C Reparação -‐ Interpretações do Passado 3A Justiça -‐ Responsabilização dos Torturadores 3B Justiça -‐ Interpretação da Anistia 4A Reforma das Instituições -‐ Violência Policial
No caso da expressão de busca "Lei de Anistia", a pesquisa feita nas
notícias do Jornal restringiu-‐se aos anos de 2008 a 2010. Quando feita a pesquisa com o indexador "Lei de Anistia" para os anos de 2001 a 2007 a quase totalidade das notícias faziam referências aos processos de anistia de outros países. Aquelas poucas que traziam uma referência às atividades da Comissão de Anistia foram incorporadas na busca feita com a expressão "Comissão de Anistia", como ocorreu, por exemplo, com a matéria especial publicada em 08/08/2004, um domingo, sobre os 25 anos da Lei de Anistia. Foram ao todo nove notícias entre 2003 e 2007 que apresentaram as expressões de busca "Comissão de Anistia" e "Lei de Anistia". A tabulação e análise dos resultados da busca com a expressão "Lei de Anistia" só foi realizada com o que foi obtido no recorte entre 2008 e 2010 porque foi somente a partir do ano de 2008 que se iniciou nos grandes veículos da mídia nacional um amplo debate sobre a interpretação/revisão da Lei de Anistia de 1979, motivado por uma clara iniciativa da Comissão de Anistia em pautar a discussão em torno da invalidade da Lei de Anistia brasileira para os
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agentes torturadores e assassinos da ditadura militar. Por este motivo, todos as notícias desse período que traziam esta discussão, mesmo quando não mencionavam explicitamente a Comissão de Anistia, foram incluídas nos resultados da pesquisa, pois são compreendidas como resultado direto das ações promovidas pela Comissão.
Utilizando-‐se o indexador "Lei de Anistia" e levando-‐se em conta apenas o
período de 2008 a 2010 obteve-‐se o resultado de 88 notícias, nas quais foram registradas 245 incidências de categorias, distribuídas do seguinte modo: quadro 3 -‐ ocorrências de categorias nas notícias coletadas com a expressão "Lei de Anistia" Lei de Anistia
2A -‐ 3% 1A Memória e Verdade -‐ Abertura dos Arquivos
4B -‐ 2% 4A -‐ 2%
1B Memória e Verdade -‐ Homenagens
4C -‐ 3% 1A -‐ 11%
1C Memória e Verdade -‐ Interpretações do Passado
1B -‐ 3%
2A Reparação -‐ Valores e Critérios
1C -‐ 7% 3B -‐ 34%
2B -‐ 3%
2B Reparação -‐ Reparação Moral e Reconhecimento 2C Reparação -‐ Interpretações do Passado
3A -‐ 31% 2C -‐ 1%
3A Justiça -‐ Responsabilização dos Torturadores 3B Justiça -‐ Interpretação da Anistia 4A Reforma das Instituições -‐ Violência Policial 4B Reforma das Instituições -‐ Autoritarismo Institucional
Quanto à expressão "Bolsa Ditadura", importa esclarecer que ela surgiu
pela primeira vez em texto do jornalista Elio Gaspari publicado no Jornal O Globo em 12 de março de 2008, intitulado: "Em 2008 remunera-‐se o terrorista de 1968". O texto comentava a reparação recebida por Diógenes Carvalho de Oliveira, apontado como uma das pessoas que teria colocado uma bomba no Consulado Estadunidense em São Paulo e cuja explosão vitimou Orlando Lovecchio Filho, que veio a perder uma perna. O jornalista compara a reparação recebida por Diógenes com uma pensão especial recebida por Lovecchio (que
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não provém da Comissão de Anistia), sendo esta menor que aquela. Neste texto, mesmo reconhecendo o direito de Diógenes, Gaspari critica a reparação menor recebida por Lovecchio e utiliza pela primeira vez o termo "Bolsa-‐Ditadura" para se referir à reparação pecuniária determinada pela Comissão de Anistia, demarcando sem dúvida um tom pejorativo para ela12.
Como a expressão só surgiu em 2008, a busca feita com a expressão
"Bolsa-‐Ditadura"só encontrou resultados a partir deste ano. Na pesquisa feita com a expressão "Bolsa-‐Ditadura", foram encontradas 57 notícias com 93 ocorrências de categorias, distribuídas do seguinte modo: quadro 4 -‐ ocorrências de categorias nas notícias coletadas com a expressão "Bolsa Ditadura" Bolsa-‐Ditadura 4A -‐ 1% 3A -‐ 6%
3B -‐ 2%
4C -‐ 1% 1A -‐ 4%
1B -‐ 2% 1C -‐ 7%
1A Memória e Verdade -‐ Abertura dos Arquivos 1B Memória e Verdade -‐ Homenagens 1C Memória e Verdade -‐ Interpretações do Passado
2C -‐ 17%
2A Reparação -‐ Valores e Critérios
2A -‐ 57%
2B Reparação -‐ Reparação Moral e Reconhecimento 2C Reparação -‐ Interpretações do Passado
2B -‐ 3%
3A Justiça -‐ Responsabilização dos Torturadores 3B Justiça -‐ Interpretação da Anistia 4A Reforma das Instituições -‐ Violência Policial
Por fim, a escolha da expressão "Caravana da Anistia" ou "Caravanas da
Anistia" deu-‐se em virtude da repercussão que teve o principal projeto educativo elaborado e executado pela Comissão de Anistia. Em síntese, nas Caravanas a Comissão se propõe a realizar audiências de apreciação de requerimentos nas cidades nas quais as perseguições ocorreram, ocupando auditórios de 12 GASPARI, Elio. Em 2008 remunera-‐se o terrorista de 1968. O Globo, Rio de Janeiro, 12 mar. 2008. Seção Elio Gaspari, p.7.
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Universidades, praças públicas, prefeituras, assembléias legislativas e outros espaços de visibilidade local para realizar a tarefa, contando sempre com a presença dos próprios requerentes, muitos deles notórios e emblemáticos, e seus depoimentos e testemunhos. O impacto das Caravanas será analisado mais adiante em item específico.
Assim, na pesquisa feita com as expressões "Caravana da Anistia" e
"Caravanas da Anistia", foram encontradas 13 notícias, que totalizaram 33 ocorrências de categorias, distribuídas do seguinte modo: quadro 5 -‐ ocorrências de categorias nas notícias coletadas com as expressões "Caravana/Caravanas da Anistia" Caravanas da Anistia/Caravana da Anistia 1A Memória e Verdade -‐ Abertura dos Arquivos 1C -‐ 3%
4C -‐ 4B -‐ 3% 3% 1A -‐ 3%
2C -‐ 3% 3B -‐ 3%
4A -‐ 6%
1B -‐ 15%
1B Memória e Verdade -‐ Homenagens 1C Memória e Verdade -‐ Interpretações do Passado 2A Reparação -‐ Valores e Critérios
3A -‐ 6% 2A -‐ 15%
2B Reparação -‐ Reparação Moral e Reconhecimento 2C Reparação -‐ Interpretações do Passado
2B -‐ 40%
3A Justiça -‐ Responsabilização dos Torturadores 3B Justiça -‐ Interpretação da Anistia 4A Reforma das Instituições -‐ Violência Policial 4B Reforma das Instituições -‐ Autoritarismo Institucional
3. Reparação Predomina.
Uma das hipóteses das quais a pesquisa partiu, antes de realizar a coleta
de dados e a sua análise, foi a de que a cobertura feita pela maior parte da mídia impressa selecionada a respeito das atividades da Comissão de Anistia iria
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predominantemente destacar a questão pecuniária, ou seja, daria maior visibilidade para os valores das reparações e a discussão sobre os critérios utilizados, sugerindo, na maior parte das reportagens, uma abordagem negativa quanto ao dispêndio de recursos públicos para o pagamento das reparações aos perseguidos políticos.
Por outro lado, esperava-‐se também que as referências midiáticas às
atividades da Comissão de Anistia, apesar do tom crítico quanto ao aspecto econômico, pudessem ter aberto algum espaço para a promoção de olhares positivos sobre a implementação de mecanismos transicionais no Brasil.
Tais hipóteses confirmaram-‐se em parte e, quando submetidas à
verificação, revelaram um resultado surpreendente.
Os dados indicam que as notícias relacionadas diretamente à Comissão de
Anistia priorizam, dentre as quatro dimensões da Justiça de Transição, a dimensão da reparação, o que é perfeitamente compreensível, já que se trata de uma Comissão cuja tarefa constitucional é exatamente a de realizar as reparações pelas perseguições políticas empreendidas pelo Estado.
Foi possível constatar também que embora as críticas quanto aos valores
e critérios praticados pela Comissão fosse uma constante nas notícias, houve uma incidência ainda maior de notícias destacando o papel político exercido pelos requerentes ou a perseguição que eles sofreram, resultado que surpreendeu a expectativa inicial da pesquisa. De um modo geral, a maior parte das notícias que destacavam a polêmica sobre os valores e critérios também fazia uma referência ao reconhecimento da perseguição sofrida e da militância exercida.
Há casos, inclusive, no qual o tema das críticas ao valores e à indenização
é totalmente deixado de lado em prol apenas do realce do papel político exercido e da perseguição sofrida. Um bom exemplo disto é o caso de Maria da Graça Senna. No dia 18/09/2003 foi publicada notícia no Jornal O Globo do julgamento do requerimento de Anistia de Maria da Graça Senna 13 . A requerente era perseguida política e vivia no exílio em Portugal no ano de 1977, quando 13 No dia 20 de agosto do mesmo ano, Zuenir Ventura publicou no mesmo jornal artigo no qual
denunciava a difícil situação da requerente e incitava a Comissão de Anistia a julgar o seu requerimento (VENTURA, Zuenir. Ecos do sufoco. O Globo, Rio de Janeiro, 20 ago. 2003. Seção Zuenir Ventura, p.7). Ao artigo sucederam-‐se cartas de apoio.
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descobriu que, grávida, havia contraído leucemia e lúpus. Os médicos lhe deram pouco tempo de vida e ela decidiu mandar o seu filho recém nascido, José Júlio, para a avó no Brasil. Em janeiro de 1978, no aeroporto de Lisboa, abordou a pesquisadora Maria Helena Moreira Alves que retornava ao Brasil após ter ido visitar seu irmão, o deputado cassado Márcio Moreira Alves, e lhe pediu que levasse o seu filho. A notícia relata que após entregar o seu filho, Maria da Graça soltou um grito tão pungente que Maria Helena Moreira Alves jamais esqueceu. Contudo, três meses após chegar ao Brasil o bebê foi expulso do país pelo governo ditatorial e voltou ao convívio da sua mãe, que, apesar da grave doença, conseguiu sobreviver.
Eis algumas das referências feitas a pessoas que foram perseguidas
políticas durante a ditadura, nas quais se faz menção, na maior parte dos casos, tanto aos valores recebidos como à história de perseguição: Zezinho do Araguaia (21/08/2003); Frei Chico (10/10/2003); Apolônio de Carvalho (10/12/2003); Anita Leocádia Prestes (25/08/2004); Maria Tereza Goulart (30/09/2004); Carlos Heitor Cony (15/01/2011); Lydia Monteiro (27/08/2005); Tenório Cavalcanti (31/03/2005); Miguel Arraes (26/04/2005); Virgílio Gomes da Silva (20/10/2005); Augusto Boal (27/10/2005); filhos de Brizola e Jango (02/11/2005); Samuel Iavelberg (08/12/2005); José Genoíno (13/04/2006); Maria Lúcia Petit e irmãos (14/04/2006); Jessie Jane (08/12/2006); o pugilista Ralph Zumbano (17/12/2006); Raimundo Cardoso (14/01/2007); Paulo Frateschi (10/02/2007); Carlos Pavan Lamarca (15/09/2007); Jean Marc von Der Weid (07/07/2007); Aldo Arantes (07/07/2007); Nancy Mangabeira (08/03/2008); Mário Covas (14/03/2008); Manuel Fiel Filho (19/04/2008); Celso Furtado (19/06/2008); João Cândido (25/07/2008); Nilmário Miranda (27/09/2008); Leonel de Moura Brizola (14/10/2008); Chico Mendes (09/12/2008); Carlos Minc (25/02/2010), entre outros.
É bem verdade que há algumas notícias encontradas com o indexador
"Comissão de Anistia" que trazem apenas o aspecto negativo relacionado aos custos das reparações. É sintomático, ainda, que com este enfoque foram encontrados quatro Editoriais do Jornal O Globo, dois com o indexador "Comissão de Anistia" e dois com o indexador "Bolsa-‐Ditadura". Em 26/10/2004 o Jornal publica um Editorial contrário à abertura dos arquivos da ditadura e
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aproveita para criticar os valores praticados pela Comissão de Anistia, além de defender a ideia de anistia bilateral e reforçar a conhecida teoria dos dois demônios14. Eis um trecho representativo: Quem vê vantagens para a democracia na abertura dos arquivos agora deve lembrar-‐se da prudência demonstrada por líderes políticos e militares no período de transição. Para aliviar a pesada herança dos anos de chumbo, que poderia ter representado um obstáculo ao progresso da democracia, recorreu-‐se à anistia política, sábio instrumento consensual de pacificação que beneficiou os dois lados e permitiu ao país entrar numa nova fase da sua história. Não bastasse o perdão geral, criou-‐se a Comissão de Anistia no Ministério da Justiça, em 2001, para examinar pedidos de compensação financeira. Até agora a crítica que se pode fazer ao trabalho da comissão diz respeito à generosidade das indenizações concedidas em casos notórios pela disparidade entre os supostos prejuízos e os valores autorizados. Também pode-‐se registrar a falta de
14A conhecida expressão "Teoria dos dois demônios" surgiu no contexto da transição política
argentina e indica a ideia de que durante uma ditadura tem-‐se um conflito semelhante a uma guerra, só que de dimensões internas, havendo a demarcação de dois lados que se confrontam. Esta figura da "guerra interna" ou "guerra suja" é, porém, completamente inadequada para retratar o estabelecimento de uma ditadura militar na qual o governo, munido de todos os recursos do Estado, desde seu patrimônio e organização burocrática até o seu poderio de fogo, com milhares de homens fortemente treinados e grande quantidade de armamentos e instalações, deflagra uma política de perseguição e extermínio a um grupo da sociedade considerado subversivo e, portanto, "inimigo da sociedade". Tal prática caracteriza a figura jurídica dos crimes contra a humanidade e não da ocorrência de uma guerra, pois enquanto nesta pressupõem-‐se uma mínima proporcionalidade entre as forças que se enfrentam, naquela há uma total assimetria entre elas. Nas notícias pesquisadas foi muito comum, inclusive em manifestações editoriais do Jornal, recorrer ao discurso dos "dois lados", especialmente no debate relacionado à interpretação da Lei de Anistia e nos textos de artigos e de cartas enviadas à Redação. Estas notícias foram também marcadas com as categorias 1C e 2C, que trazem a referência a "interpretações do passado", a depender, no segundo caso, se o enfoque se relacionava mais diretamente com a análise de requerimentos de reparação pela Comissão de Anistia ou, no primeiro caso, não estivesse diretamente associado à apreciação dos requerimentos. Quando a expressão de busca utilizada foi "Comissão de Anistia", como já se assinalou, o número total de ocorrências de categorias foi de 294 em 179 notícias coletadas. Neste universo, o número de ocorrências da categoria 2C (17 -‐ 5,8%) foi maior que o da categoria 1C (2 -‐ 0,7%), o que reforça a conclusão já apresentada de que as notícias que trazem a menção expressa à Comissão de Anistia referem-‐se em sua maioria ao tema das reparações. Com a expressão de busca "Lei de Anistia", por outro lado, o resultado foi o inverso. Nas 88 notícias coletadas houve a incidência de 245 categorias, das quais 16 (6,5%) foram 1C e apenas 2 (0,8%) foram 2C. Esta proporção volta a se inverter quando a expressão de busca é "Bolsa-‐Ditadura". Neste caso as notícias coletadas foram 57, nas quais houve 93 incidências de categorias. Destas, 16 foram 2C (17,2%) e 6 foram 1C (6,4%). Tais números mostram que nas notícias que continham a expressão "Bolsa-‐Ditadura" houve uma maior espaço para a apresentação das leituras que reforçam a ideia dos "dois lados", tanto em números absolutos (22 ocorrências contra 19 das que houve com a busca em "Comissão de Anistia") como relativos, já que o número de notícias com a expressão "Bolsa-‐Ditadura" é bem menor do que as com a expressão "Comissão de Anistia".
16 equanimidade na distribuição dessa justiça retroativa: não se tem notícia de que vítimas ou parentes de vítima da guerrilha tenham recebido reparações milionárias15.
Já em 18/02/2006, na Seção "Tema em Discussão", o Jornal publica um
texto em "Nossa Opinião" que, apesar de dizer que é defensável o conceito de reparação econômica aos perseguidos políticos, acusa de desproporcionais e desmesurados os valores determinados pela Comissão de Anistia . Polemizando com o seu próprio texto, o Jornal publica em "Outra Opinião" texto do ator Herson Capri. Eis um trecho significativo deste último: É preciso que se saiba que as pessoas que sofreram perseguição política tiveram suas carreiras profissionais profundamente atingidas. As perdas foram enormes. Se as indenizações são realmente "milionárias", como dizem, é porque essas pessoas deixaram de receber, durante muitos anos, por conta das perseguições, grande parte do dinheiro que lhes cabia pelo seu trabalho. Então é um dinheiro que lhes pertence. As perseguições políticas tiveram conseqüências dramáticas para alguns indivíduos e suas famílias, que tiveram de se deslocar de sua cidade, ou do país, depois de enfrentar prisões, torturas físicas e morais, demissões, ou "abandono" obrigatório do emprego, corte nos rendimentos, necessidades básicas não supridas, interrupção na escolaridade dos filhos, separações e divórcios. Quanto custou a cada indivíduo perseguido? Quanto cada um deixou de receber? Os anistiados de hoje tiveram, ontem, suas carreiras interrompidas pela ditadura. Eles poderiam ter atingido o topo. Não deixaram que isso acontecesse16.
Nos resultados obtidos com a expressão “Bolsa-‐Ditadura” o tom
predominante das notícias era o de mera crítica aos valores e critérios da Comissão, o que já era de se esperar, dado o tom altamente pejorativo da expressão de busca, cunhada pelo jornalista Elio Gaspari em 2008. Como já apontado acima, foram 57 notícias com 93 ocorrências de categorias entre 2008 e 2010, com 53 (57%) ocorrências da categoria 2A e apenas 16 (17,2%) da categoria 2B. De todo modo, como pode ser verificado, o número de notícias que
15 INOPORTUNO. O Globo, Rio de Janeiro, 26 out. 2004, Editorial, p.6. 16 CAPRI, Herson. Nova perseguição. O Globo, Rio de Janeiro, 18 fev. 2006, Tema em discussão, p.6.
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fez uso da expressão foi relativamente pequeno dentro do universo de notícias pesquisadas.
Dentre as notícias que traziam o termo "Bolsa-‐Ditadura", destacam-‐se os
seguintes casos: a) a discussão sobre os valores definidos a título de reparação para os jornalistas Ziraldo e Jaguar durante a primeira Caravana da Anistia, realizada na sede da ABI em 04/04/2008 -‐ caso que foi muito explorado na seção de cartas com direito a manifestações do próprio Ziraldo e com o tom predominantemente negativo das cartas e notícias sobre o episódio; b) várias manifestações do criador do termo e também colunista do jornal Elio Gaspari (em 06/04/2008, em uma simples chamada, o jornalista chega a fazer uma comparação entre os gastos para indenizar o Holocausto e os custos das indenizações decididas pela Comissão de Anistia17), acompanhado em número menor de manifestações pelo filósofo Denis Rosenfeld e pelo colunista Ancelmo Góis; c) utilização da expressão em dois Editoriais do Jornal (05/08/2008 e 08/07/2009), sendo que no mais recente a expressão é utilizada no título. No texto verifica-‐se a explícita opinião negativa sobre as reparações feitas pela Comissão de Anistia. O Editorial de 05/08/2008 tem o foco na discussão sobre o questionamento da abrangência da Lei de Anistia para agentes do regime, dizendo que a Anistia no Brasil beneficou a todos indistintamente, e que se privilegiados há seriam justamente os que recebem as indenizações determinadas pela Comissão. Afirmam os editorialistas:
Aliás, se privilegiados há, tem sido um grupo de egressos da militância de esquerda daqueles tempos que conseguiram ser beneficiados por generosas indenizações, a tal da Bolsa Ditadura, que converte o passado oposicionista de alguns em rentável investimento18.
Já no Editorial de 08/07/2009 lê-‐se o seguinte:
17 GASPARI, Elio. O Globo, Rio de Janeiro, 06 abr. 2008. Chamada, p.2.
18 FORA DA REALIDADE. O Globo, Rio de Janeiro, 05 ago. 2008. Editorial, p.6.
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Chamadas de Bolsa Ditadura, as generosas pensões e indenizações definidas pela Comissão de Anistia, desde 2002, já subtraíram do Tesouro R$2,5 bilhões. E a cifra deve continuar em ascensão, podendo chegar a R$4 bilhões, por causa da fila ainda existente e da eficiência com que a indústria criada entre políticos e advogados com passado de militância na esquerda consegue descolar essas 'bolsas' em Brasília19.
d) Apesar de toda a carga negativa presente nos Editoriais acima mencionados, em 18/07/2009 foi publicado artigo de Cecília Coimbra criticando a utilização da expressão "Bolsa-Ditadura". Ela afirma que: "aquilo que hoje enfaticamente alguns alardeiam como sendo 'indenizações milionárias' — ou mais perversamente 'bolsa ditadura' — é apenas uma pequena parte de um processo de reparação que, em nosso país, ainda não ocorreu"20. e) Ações do TCU questionando as decisões da Comissão de Anistia, o que é registrado no Jornal em dois grandes momentos: em Abril de 2008, quando a Comissão, instada pelo TCU, revê a reparação atribuída à Maria Augusta Carneiro Ribeiro; e em Agosto de 2010 quando o TCU questiona mais abertamente as decisões da Comissão de Anistia e ameaça dar início a um processo de revisão das decisões. f) Por fim, há alguns artigos isolados que também reproduzem o termo, como o de Rodrigo Constantino (19/01/10), o de Guilherme Fiúza (25/12/10) e uma entrevista feita com o General Leônidas Pires Gonçalves (04/04/10).
Os dados acima confirmam, portanto, uma das hipóteses assumidas na
pesquisa, a de que as notícias trariam tanto um enfoque calcado no tema dos valores, critérios e críticas de gastos públicos, quanto também trariam algum espaço para o conhecimento da história de perseguição política dos requerentes. O dado surpreendente foi que o volume desta última abordagem foi muito maior do que se supunha. Considerando-‐se o universo pesquisado a partir dos 19 BOLSA DITADURA. O Globo, Rio de Janeiro, 08 jul. 2009. Editorial, p.6. 20 COIMBRA, Cecilia Maria Bouças. Memória e reparação. O Globo, Rio de Janeiro, 18 jul. 2009. Primeiro Caderno, p.7.
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indexadores "Comissão de Anistia" e "Bolsa-‐Ditadura" chega-‐se a quase uma igualdade entre o número de ocorrências das categorias 2A e 2B.
Conclui-‐se, pois, que mesmo com o grande volume de críticas à atuação da
Comissão e até o questionamento da legitimidade da sua tarefa, a atuação da Comissão permitiu que a dimensão de reconhecimento e reparação moral das vítimas da ditadura ganhasse a esfera da grande mídia impressa, o que, a partir dos referenciais teóricos adotados na pesquisa21 também exprime um modo
21 O projeto de pesquisa do qual resultou este artigo traz entre os seus objetivos o de contribuir teoricamente para a construção dos conceitos relacionados ao tema da Justiça de Transição. Os autores e as referências trabalhadas na pesquisa podem ser consultados diretamente nos artigos publicados como fruto deste projeto de pesquisa coletivo, a saber: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da . Memória e Reconciliação Nacional: o impasse da anistia na inacabada transição democrática brasileira. In: Leigh Payne;Paulo Abrão;Marcelo D. Torelly. (Org.). A Anistia na Era da Responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília;Oxford: Ministério da Justiça;Oxford University, 2011, v. , p. 278-‐307; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da . Dever de Memória e a construção da História Viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do Direito à Memória e à Verdade. In: Boaventura de Sousa Santos;Paulo Abrão Pires Junior;Cecília MacDowell; Marcelo D. Torelly. (Org.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-‐Brasileiro -‐ Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Coimbra;Brasília: Universidade de Coimbra-‐Centro de Estudos Sociais;Ministério da Justiça-‐ Comissão de Anistia, 2010, v. , p. 185-‐227; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da . O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira. In: Wilson Ramos Filho. (Org.). Trabalho e Regulação -‐ as lutas sociais e as condições materiais da democracia. Trabalho e Regulação -‐ as lutas sociais e as condições materiais da democracia. Belo Horizonte-‐MG: Fórum, 2012, v. 1, p. 129-‐177; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da . Entre a Anistia e o Perdão: memória e esquecimento na transição política brasileira -‐ qual reconciliação?. In: Bethania Assy;Carolina de Campos Melo;João Ricardo Dornelles;José María Gómez. (Org.). Direitos Humanos: Justiça, verdade e memória. Direitos Humanos: Justiça, verdade e memória. 1ed.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, v. , p. 451-‐468; ABRÃO, P. ; BELLATO, S. A. ; ALVARENGA, R. V. ; TORELLY, M. D. . Justiça de Transição no Brasil: O Papel da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, v. 1, p. 12-‐21, 2009; ABRÃO, P. ; TORELLY, M. D. . Justiça de Transição no Brasil: a dimensão da reparação. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, v. 3, p. 108-‐139, 2010; ABRÃO, P. ; TORELLY, M. D. . As razões da eficácia da lei de anistia no Brasil e as alternativas para a verdade e a justiça em relação às graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar (1964-‐1985). In: PRADO, Alessandro Martins; BATISTA, Cláudia Karina Ladeia; SANTANA, Isael José.. (Org.). Direito à Memória e à Verdade e Justiça de Transição no Brasil -‐Uma história inacabada! Uma República inacabada!. Curitiba: CRV, 2011, v. 1, p. 189-‐219; TORELLY, M. D. . Justiça transicional, memória social e senso comum democrático: notas conceituais e contextualização do caso brasileiro. In: SANTOS, B.S.; ABRÃO, P.; MACDOWELL, C.; TORELLY, M.. (Org.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-‐Americano -‐ estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Brasília/Coimbra: Ministério da Justiça/Universidade de Coimbra, 2010, v. , p. 102-‐121; BAGGIO, Roberta Camineiro. Anistia e Reconhecimento: o processo de (des)integração social da transição política brasileira. In: Leigh Payne;Paulo Abrão;Marcelo D. Torelly. (Org.). A Anistia na Era da Responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília;Oxford: Ministério da Justiça;Oxford University, 2011. pp. 250-‐277; BAGGIO, Roberta Camineiro; MIRANDA, Lara Caroline. Poder Judiciário e estado de Exceção no Brasil: as marcas ideológicas de uma cultura autoritária. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica: (In)justiça nas transições políticas, v. 08, n. 08, pp. 149-‐170, Belo Horizonte: IHJ, 2010; BAGGIO, Roberta Camineiro; MIRANDA, Lara Caroline. A incompletude da transição política brasileira e seus reflexos na cultura jurídica contemporânea: ainda existem perseguidos políticos no Brasil? Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n. 03, jan-‐jun, Brasília: Ministério da Justiça,
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privilegiado de concretizar o Direito à memória e à verdade, já que abre espaço para as narrativas dos fatos de violência e perseguições promovidas pelo Estado ditatorial a partir do olhar das vítimas. 4. Lei de Anistia e Punição dos Torturadores
A maior incidência de notícias tratando do pilar da Justiça inserido no
conceito de Justiça de Transição, ou seja, da discussão acerca do julgamento penal ou da punição dos agentes estatais que praticaram torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados e outras violações de direitos humanos, foi encontrada através do indexador "Lei de Anistia". As categorias que representam a questão, conforme já explicitado, são: "3A -‐ Responsabilização dos Torturadores" e "3B -‐ Interpretação da Anistia".
No dia 31 de Julho de 2008, a Comissão de Anistia realizou uma audiência
pública no Salão Negro do Palácio da Justiça em Brasília. A audiência reuniu um grupo expressivo de juristas com a finalidade de discutir as possibilidades jurídicas para que os agentes torturadores e seus mandantes a serviço da ditadura militar pudessem ser julgados no âmbito penal pela prática de crimes contra a humanidade. Antes mesmo da realização da audiência e tão logo foi publicamente anunciada, a imprensa começou a noticiar o fato e a polemizar sobre o tema.
O Jornal O Globo, por exemplo, traz já uma notícia, datada de 25 de Julho,
sobre a audiência e que contém uma entrevista com Paulo Abrão, o Presidente da Comissão de Anistia, na qual ele defende a não recepção da anistia aos torturadores por parte da Constituição de 198822. No dia seguinte, já sai uma nota no jornal com o título "Insanidade", que taxa a realização da audiência de um "desserviço à democracia" e na qual se afirma que: "É INSANO, pois o país não deseja resgatar do passado esse capítulo vergonhoso da História, o que também teria de prever a ida ao banco dos réus de beneficiários da Bolsa
2010. pp. 244-‐273. 22 ÉBOLI, Evandro. Governo debaterá punição a militares por tortura. O Globo, Rio de Janeiro, 25 jul. 2008. Primeiro Caderno, p.12. Esta notícia foi encontrada tanto pelo indexador "Comissão de Anistia" quanto pelo indexador "Lei de Anistia".
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Ditadura"
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. Veja-‐se, portanto, que as críticas à possibilidade de
responsabilização dos agentes públicos que praticaram crimes de lesa-‐ humanidade durante a ditadura civil-‐militar costumam facilmente reeditar a teoria dos dois demônios, e reivindicar algum tipo de reciprocidade entre o governo ditatorial e os grupos que resistiram a ele.
De todo modo, no dia 01 de Agosto de 2008 é publicada reportagem que
sintetiza os argumentos pró e contra o julgamento criminal dos torturadores e demais criminosos a serviço da ditadura24. No dia 02 de Agosto de 2008 foram publicadas notícias que davam conta das reações negativas à realização do debate e que vieram do então Ministro da Defesa, Nelson Jobim, dos Clubes Militares (anunciando que fariam um debate semelhante mas defendendo a não responsabilização civil e criminal dos agentes da ditadura25) e de Ministros do STF. Neste último caso, a notícia traz, inclusive, declaração do então decano da Corte, o Ministro Celso de Mello:
23INSANIDADE. O Globo, Rio de Janeiro, 26 jul. 2008. Primeiro Caderno, p.12. Como se pode deduzir, esta nota apareceu tanto no indexador "Lei de Anistia" como no indexador "Bolsa Ditadura". 24 WEBER, Demétrio; OLIVEIRA, Germano. Tarso e Vanucchi defendem punição de torturadores da ditadura. O Globo, Rio de Janeiro, 01 ago. 2008. Primeiro Caderno, p.12-‐13. 25 Esta audiência foi noticiada no Jornal no dia 07 de Agosto de 2008, suscitando apoios e críticas. No sentindo crítico à realização da Audiência pelos Clubes Militares, interessante o texto de Ricardo Noblat, publicado em 11/08/2008 com o título "Tarso na Berlinda". Fazendo menção aos efeitos gerados pela Audiência Pública convocada pela Comissão de Anistia e pelo então Ministro da Justiça Tarso Genro para debater a responsabilização penal dos torturadores, eis o que Noblat registrou em seu texto:
"O mundo desabou na cabeça do ministro. E o país assistiu a mais um ato de anarquia militar. Quem aposentou a farda pode falar sobre política. Quem ainda veste, não. Na última quinta-‐feira, em trajes civis, o comandante militar do Leste, general Luiz Cesário da Silveira, e o chefe do Departamento de Ensino e Pesquisa do Exército, general Paulo César Castro, compareceram a um seminário no Clube Militar, no Rio, montado sob encomenda para rivalizar com o seminário promovido por Tarso. Pouco importa que tenham permanecido calados. Mas daí a se dizer que foram ao seminário como poderiam ter ido ao teatro é debochar da inteligência alheia. Agiram no limite da irresponsabilidade. O seminário foi um ato hostil ao governo — a se concluir, é claro, que Tarso é governo. Membros do Alto Comando do Exército, os dois generais confraternizaram com seus colegas de pijama para marcar a inconformidade das Forças Armadas com o comportamento de Tarso. Em uma democracia, quem manda nos militares é o chefe do governo — e, por delegação dele, o ministro da Defesa". Esta notícia foi classificada no Grupo 3 de categorias e também foi marcada pela categoria 4C, na medida em que faz referência à democratização das Forças Armadas ao demarcar a exigibilidade da sua submissão ao poder civil com legitimidade popular.
22 — No caso brasileiro, os destinatários foram todos aqueles que se enquadrassem nos requisitos estabelecidos pela lei, e não se direcionou nesse ou naquele sentido, com a finalidade de beneficiar esse ou aquele grupo, muito menos o de privilegiar os que usurparam o poder com o golpe de Estado de 1964 — disse Celso de Mello. Ministro: não estou emitindo opinião prévia O ministro explicou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou inconcebíveis leis de anistia adotadas em países como Peru e Paraguai, onde as regras foram elaboradas e aprovadas pelos próprios governantes, numa auto-‐anistia. O magistrado argumentou ainda que a "experiência institucional brasileira é bem distinta": — Não houve a autoconcessão de anistia, mas houve uma lei que concedeu o benefício da anistia a um número indeterminado de pessoas, independentemente de sua vinculação com o aparelho do Estado. Houve uma indeterminação subjetiva que foi editada em 197926.
Importa registrar que, muito embora o Ministro afirme não estar
emitindo opinião prévia, foi exatamente este o seu entendimento no voto que proferiu no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 153, que questionava a constitucionalidade da anistia aos agentes da ditadura e que só veio a ser julgada em Abril de 2010.
Cabe aqui argumentar, como se fez mais longamente em outro artigo27,
que a Lei Nº 6683/79, ao contrário do que afirmou o Ministro, possuía uma clara determinação subjetiva, pois excluía da sua incidência aqueles que haviam sido condenados pela prática de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. É claro que àquela altura os únicos condenados pela prática desses crimes eram pessoas e grupos que se opunham à ditadura através de ações de resistência armada, não havendo um único agente do Estado sequer investigado pelos
26 JUNGBLUT, Cristiane. Ministros do STF: lei não permite punição. O Globo, Rio de Janeiro, 02 ago. 2008. Primeiro Caderno, p.4. 27 Ver: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da . O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira. In: Wilson Ramos Filho. (Org.). Trabalho e Regulação -‐ as lutas sociais e as condições materiais da democracia. Belo Horizonte-‐MG: Fórum, 2012, v. 1, p. 129-‐177. Neste artigo também se argumentou contrariamente à idéia de que a Anistia de 1979 não representou uma auto-‐anistia, apontando em síntese que o Congresso era manipulado, de modo ainda mais claro após o Pacote de Abril de 1977 (que instituiu os senadores biônicos e impediu que qualquer proposta contra o governo pudesse ser aprovada); que a proposta do governo passou sem praticamente nenhuma alteração; que a proposta da oposição foi rejeitada, não havendo pois acordo algum; e que, afinal, ainda se vivia em uma ditadura.
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milhares de sequestros praticados pela repressão contra os opositores políticos da ditadura e pela prática do terrorismo de Estado.
No dia 05 de Agosto de 2008, o Jornal publica nota na qual o Ministro
aposentado do STF Carlos Velloso afirma que "houve o perdão para os dois lados" e que, portanto, a Lei de Anistia é "um tema superado"28. E para deixar bem claro qual é a posição do Jornal, neste mesmo dia é publicado o Editorial com o título "Fora da realidade", o mesmo Editorial já comentado acima que traz, igualmente, a expressão "Bolsa-‐Ditadura" e que cita os argumentos do Ministro Celso de Mello do STF para afirmar que: A diferença fundamental entre o caso brasileiro e o de outros países no continente, como bem chamou a atenção o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal, é que a anistia no país não foi decretada por quem quebrou a ordem constituída para, com isso, proteger-‐se na volta à democracia.
O Editorial afirma ainda que: o ministro da Justiça, Tarso Genro, e o secretário de Direitos Humanos, ministro Paulo Vanucchi, decidiram tentar contrabandear para a agenda de debates políticos a revisão da Lei de Anistia, com o objetivo de levar ao banco dos réus militares acusados de homicídio e/ou tortura29.
Veja-‐se aqui o início da utilização da expressão "revisão da Lei de Anistia",
quando, na verdade, o que se argumentou na Audiência e, depois, na ADPF 153 proposta pelo Conselho Federal da OAB não foi uma revisão, mas sim uma interpretação adequada diante da Constituição de 1988.
No dia 13 de Agosto de 2008, o Jornal noticia que o então Presidente
Lula, em solenidade de promoção de oficiais-‐generais na qual estiveram presentes os três comandantes das Forças Armadas, silenciou sobre o tema e manteve a sua postura de desautorizar os então Ministros Tarso Genro e Paulo Vannuchi a debaterem publicamente o assunto30.
28 CHAMADA. Lei de Anistia é tema superado, diz ex-‐presidente do Supremo O
Globo, Rio de Janeiro, 05 ago. 2008. Primeiro Caderno, p.2. 29 FORA DA REALIDADE. O Globo, Rio de Janeiro, 05 ago. 2008. Editorial, p.6. 30 GÓIS, Francisco de; DAMÉ, Luiza. O PASSADO BATE À PORTA: Durante cerimônia de promoção de oficiais-‐generais no Planalto, Lula mantém silêncio. O Globo, Rio de Janeiro, 13 ago. 2008. Primeiro Caderno, p.5.
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No mesmo dia 13 de Agosto foi noticiada no Jornal a divulgação de um
Manifesto de Juristas apoiando a discussão sobre o julgamento penal dos agentes da ditadura 31 , com vários nomes de expressão no campo do Direito e dos Direitos Humanos, como Márcio Thomaz Bastos, Dalmo Dallari, Fábio Konder Comparato e Nilmário Miranda. Importante frisar que a elaboração e a organização deste Manifesto teve forte participação da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, contando inclusive com a colaboração de alguns dos Conselheiros, incluindo o Presidente da Comissão, Paulo Abrão, no texto do Manifesto32.
Este foi o início fulminante da discussão desenrolada no Jornal sobre a
possibilidade de julgamento criminal dos agentes da ditadura, incluindo também muitos comentários sobre o assunto na seção de cartas33. A este início seguiram-‐ se referências quase que diárias ao assunto, com um breve intervalo entre o dia 20 de Agosto e o dia 22 de Outubro de 2008 (um dia depois da propositura da ADPF 153 pelo Conselho Federal da OAB).
É sintomática a insistente manifestação desfavorável do Jornal à
responsabilização penal dos agentes da ditadura, sob o argumento de que a Lei de Anistia impediria tal esforço e que ele seria democraticamente contraproducente. Além dos Editoriais já mencionados, há também um texto inserido no Painel "Tema em Discussão", no qual se apresentam duas opiniões diferentes sobre um mesmo tema, o da Lei de Anistia, e assinado como "Nossa Opinião", com o título "Manipulação".
O texto, publicado no dia 03/11/2008, afirma que no governo Lula
haveria "áreas privatizadas por movimentos ditos sociais" e "que tornou-‐se frequente a confusão entre o que são os interesses do Estado brasileiro e as intenções de grupos políticos incrustados no governo". Em seguida, menciona o fato de a Advocacia Geral da União (AGU) ter decidido defender o Coronel Carlos Brilhante Ustra e o Coronel Audir Maciel em Ação Civil Pública movida contra eles pelo Ministério Público Federal, e de outro lado, os Ministros Tarso Genro e
Juristas e advogados divulgam manifesto contra decisão do governo. O Globo, Rio de Janeiro, 13 ago. 2008. Primeiro Caderno, p.6. 32 Tal fato pode ser comprovado a partir da participação do próprio autor deste artigo na elaboração do Manifesto. 33 Especialmente nos dias 06 e 07 de Agosto com mensagens a favor e contra o julgamento dos agentes da ditadura. 31GÓIS, Francisco de; DAMÉ, Luiza.
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Paulo Vanucchi estarem promovendo uma campanha contra a Lei de Anistia. O Jornal afirma que não causa surpresa esta contradição interna, e acrescenta: Fundamenta a decisão da AGU — um órgão de Estado e não de governo, e que tampouco atua em nome desse ou daquele grupo político — a correta interpretação de que a Lei de Anistia — anterior à Constituição de 1988, em que a tortura é criminalizada — passou uma borracha nos crimes cometidos pela direita e pela esquerda entre setembro de 1961 e agosto de 1979. Tanto os companheiros de Genro e Vannuchi como os coronéis foram anistiados. Todo crime político é odioso, merece repulsa, seja cometido por qualquer corrente ideológica. Outra questão é a inoportunidade de ações políticas praticadas usando-‐se o espaço do governo, como se fossem atos oficiais, mas que vão contra a lei e causam desconfortos institucionais34.
O texto assinado pelo Jornal considera a AGU um órgão de Estado e não de
governo, mas parece não ter o mesmo juízo com relação à Comissão de Anistia. Do mesmo modo, entende que os grupos de familiares de mortos e desaparecidos, politicamente organizados em torno de siglas como o Grupo Tortura Nunca Mais -‐ GTNM, representados em vários Estados do Brasil, não constituem movimentos sociais. Veja-‐se ainda que considera o "crime político" odioso e merecedor de repulsa, sem esclarecer, contudo, o que era considerado "crime político" pela ditadura, como por exemplo, o simples e legítimo exercício do direito de associação e manifestação do pensamento em torno de questões que a ditadura considerava subversivas. Além disso, acaba por qualificar de "crime político" o que nem mesmo a Lei de Anistia de 1979 considerava como tal, visto que esta preferiu utilizar a lacônica expressão "crimes conexos" para fazer referência aos crimes praticados pelos agentes da ditadura.
Em outras palavras, desde o início esboçou-‐se uma clara tendência do
Jornal O Globo em desqualificar o debate em torno da Lei de Anistia. Mesmo fazendo isto, contudo, algumas notícias abriram espaço para a perspectiva contrária, e, ao combater tais perspectivas de maneira insistente, o Jornal contribuiu para pautar a discussão em vez de isolá-‐la.
Das perspectivas não compartilhadas pelo Jornal sobre o tema e que
mesmo assim foram por ele divulgadas destaca-‐se artigo publicado em
34 MANIPULAÇÃO. O Globo, Rio de Janeiro, 03 nov. 2008. Tema em Discussão, p.6.
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23/02/2009 escrito pelo então Ministro da Justiça, Tarso Genro, e pelo Presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão 35 , intitulado "Anistia e Democracia", no qual, além de mencionarem as ações da Comissão de Anistia em prol da efetivação de uma Justiça de Transição no Brasil, especialmente com a realização das Caravanas da Anistia, os autores escrevem que: A audiência pública sobre o alcance da lei de anistia promoveu saudável discussão na sociedade e colaborou para a superação da descomprometida leitura de que a anistia brasileira devesse ser vista e convertida em amnésia, como tentativa de se impor o esquecimento. Rompeu-‐se a cultura do medo, reafirmando que na democracia não podem existir temas proibidos e a sociedade livre pôde levar o tema ao STF, que definirá se o Brasil enfrentará seu passado a exemplo de tantas outras nações e segundo as exigências da ONU e da OEA36.
Da pesquisa feita no Jornal com o indexador "Lei de Anistia" é possível
também constatar a manifestação prévia dos Ministros do STF logo que a ADPF 153 foi proposta pelo Conselho Federal da OAB. Já se mencionou acima a manifestação de Celso de Mello, Ministro mais antigo do STF à época da reportagem, e a do Ministro aposentado Carlos Velloso. Cabe também referir a manifestação do então Presidente da Corte, o Ministro Gilmar Mendes, em evento promovido pelo Instituto dos Advogados de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas e Instituto Fernando Henrique Cardoso, e que foi noticiado em 04/11/2008. Quando perguntado sobre a recente declaração da então Chefe do Gabinete Civil, Dilma Roussef, de que os crimes da ditadura militar deveriam ser imprescritíveis, Gilmar Mendes afirmou que a "imprescritibilidade é uma discussão com dupla face. O texto constitucional diz que o crime de terrorismo também é imprescritível"37.
Não se pode ignorar que a manifestação do então Presidente do STF
aponta na direção da teoria dos dois demônios. Ademais, pressupõe como dada a 35Além deste, foi possível encontrar outros artigos e manifestações obtidos a partir do indexador
"Lei de Anistia", que eram favoráveis à responsabilização penal dos agentes da ditadura e a uma outra interpretação da Lei de Anistia de 1979 (Frei Betto em 16/06/2009; e Wadih Damous, Presidente da OAB-‐RJ em 25/08/2009) 36 GENRO, Tarso; ABRÃO, Paulo. Anistia e Democracia. O Globo, Rio de Janeiro, 23 fev. 2009. Primeiro Caderno p.7. 37 FREIRE, Flávio; GALHARDO, Ricardo; GÓIS, Francisco de; ÉBOLI, Evandro. Gilmar: Terrorismo também é crime imprescritível. O Globo, Rio de Janeiro, 04 nov. 2008. Primeiro Caderno p.9.
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definição de terrorismo (que não existe na ordem jurídica brasileira instituída a partir de 1988) ou pelo menos quer emprestar a tal definição o mesmo teor existente na legislação imposta pela ditadura, que classificava os atos de resistência à ditadura como terrorismo, mas não fazia o mesmo com relação à disseminada prática do terrorismo de Estado. Por fim, há que se registrar que a Constituição, em seu Art. 5º, XLIII, não estabelece que o crime de terrorismo, cuja regulamentação segue ainda pendente, é imprescritível, mas sim que é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
Pode-‐se concluir que, desde o início da propositura da ADPF 153 no STF,
o tema da interpretação que se deve dar à Lei de Anistia, em grande parte pautado pela ação da Comissão de Anistia ao realizar a Audiência Pública de 31/07/2008, assumiu destaque no cenário institucional noticiado pelo Jornal38, a ponto de contar com manifestações dos próprios magistrados que viriam depois a julgar a questão.
Além das manifestações já referidas, de Gilmar Mendes e de Celso de
Mello, em notícia publicada em 23/08/2009, o Ministro Ayres Britto assinala posição contrária a dos seus dois colegas, afirmando em entrevista ao Jornal: Eu prefiro ver a anistia do ângulo da Constituição, que é para beneficiar os que foram afastados dos seus cargos arbitrariamente, foram perseguidos politicamente. A lei veio e transformou a coisa numa estrada de mão dupla.
Na mesma notícia, o Jornal informa que um outro Ministro do STF que não quis se identificar teria dito: "— Mas é claro que os torturadores devem ser punidos!". E, complementa com a opinião contrária declarada do Ministro Marco Aurélio Mello quanto ao seu futuro voto: Anistia para mim é evolução, e os homens devem evoluir. É virada de página, é esquecimento de uma fase da qual nós não temos saudade. E é um instituto, é bom que se compreenda isso, bilateral, porque ele atende as facções, aqueles que se engajaram nesta ou naquela
38 Envolvendo as notícias encontradas com a expressão "Lei de Anistia" foi possível encontrar
notícias que faziam referência aos Ministérios da Defesa, da Justiça, Casa Civil, Direitos Humanos, Tribunal de Contas da União, Supremo Tribunal Federal, Advocacia Geral da União, Ministério Público Federal, Câmara dos Deputados e Senado Federal. Nas notícias referentes a cada um desses órgãos públicos encontraremos posicionamentos ora favoráveis ora desfavoráveis à responsabilização penal dos agentes da ditadura e à mudança de interpretação sobre a Lei de Anistia de 1979.
28 caminhada, e atende de forma linear. Nós devemos pensar, isto sim, não no Brasil de ontem, mas no Brasil de amanhã. E devemos avançar culturalmente39.
Outro ponto de destaque na análise das notícias obtidas com a expressão
"Lei de Anistia" é que, paralelamente ao debate sobre a ADPF 153, intercalou-‐se a referência à ação contra o Brasil que corria na Corte Interamericana de Direitos Humanos a propósito dos crimes cometidos por agentes da ditadura durante a Guerrilha do Araguaia. Trata-‐se do conhecido Caso n.º 11.552 – Julia Gomes Lund e outros vs Brasil, que ficou conhecido como o caso Guerrilha do Araguaia. Antes mesmo de ser iniciada esta Ação na Corte da OEA40, mais precisamente, no dia 28/10/2008, seis dias após a publicação da notícia de que o Conselho Federal da OAB havia entrado com a ADPF no STF, o Jornal noticia a realização de audiência junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA41. Foi após esta audiência, na qual estiveram presentes o Presidente da Comissão de Anistia e o representante do Ministério Público Federal (MPF), Marlon Weichert, que a Comissão de Direitos Humanos da OEA decidiu entrar com a ação na Corte Interamericana, fato este noticiado no Jornal no dia 10/04/200942.
39 BRÍGIDO, Carolina; BRUNO, Cássio. STF decidirá sobre revisão da Lei de Anistia. O Globo, Rio de Janeiro, 23 ago. 2009. Primeiro Caderno p.13. 40 O Sistema Interamericano de Direitos Humanos estrutura-‐se em dois grandes órgãos: a Comissão e a Corte de Direitos Humanos. O primeiro é um órgão de características executivas, que recebe as denúncias de violação do Pacto de San José da Costa Rica, provenientes dos países signatários, com a possibilidade de provocação por parte dos grupos sociais mais diversos. A partir dessas denúncias a Comissão pode tomar várias providências, entre elas convocar audiências para ouvir e conhecer as explicações fornecidas pelo Estado quanto às violações alegadas. Após tomar as providências cabíveis e necessárias para se informar a respeito do caso, a Comissão pode decidir encaminhar o caso para a Corte. No caso em tela, a denúncia das graves violações praticadas pelo Estado brasileiro durante a Guerrilha do Araguaia, partiu da ação de Grupos de Familiares de Mortos e Desaparecidos na Guerrilha, e vinha se arrastando no judiciário brasileiro desde o ano de 1982, sem que, mesmo após o trânsito em julgado condenando o Estado brasileiro, este houvesse tomado medidas efetivas para informar o paradeiro dos desaparecidos. Maiores informações sobre o caso e todo o processo que nele resultou, podem ser obtidas em: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da . Amicus Curiae no caso Guerrilha do Araguaia perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos -‐ relato de uma experiência. In: Castor M.M. Bartolomé Ruiz. (Org.). Justiça e Memória -‐ Direito à justiça, memória e reparação -‐ A condição humana nos estados de exceção. Justiça e Memória -‐ Direito à justiça, memória e reparação -‐ A condição humana nos estados de exceção. São Leopoldo; Passo Fundo: Casa Leiria; IFIBE, 2012, v. , p. 273-‐294. 41 ÉBOLI, Evandro. Brasil é acusado na OEA de proteger torturadores. O Globo, Rio de Janeiro, 28 out. 2008. Primeiro Caderno p.18. 42 SCOFIELD JUNIOR, Gilberto. Araguaia: OEA abre processo contra Brasil. O Globo, Rio de Janeiro, 10 abr. 2009. Primeiro Caderno p.8. Mais adiante, o Jornal traria ainda mais duas referências à ação da OEA, todas as duas relacionadas à audiência promovida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no bojo do julgamento da ação. Uma é a publicação de
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Por fim, cabe referir a grande quantidade de notícias publicadas a partir
da divulgação do III Programa Nacional de Direitos Humanos (III PNDH), em fins de 2009, a propósito do tema responsabilização penal dos agentes da ditadura e da interpretação da Lei de Anistia, o que veio a esquentar ainda mais o ambiente para a decisão que o STF viria a tomar em abril de 201043. A primeira referência data de notícia publicada no dia 03/08/2009 com o título "Documento Oficial pede Punição a Torturadores"44. Mas a polêmica em torno do III PNDH só iria realmente estourar quando o então Presidente Lula publicasse o Decreto Nº 7.037, de 21 de Dezembro de 2009, que adotou como política de Estado o Plano elaborado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), com base em inúmeras Plenárias nacionais e estaduais envolvendo diferentes atores da sociedade. O Jornal publica notícia em 30/12/2009 sobre a ameaça feita pelos três Comandantes Militares e pelo Ministro da Defesa, Nelson Jobim, de entregarem os seus cargos em face do texto aprovado do III PNDH e transformado em Decreto45.
Já em 01/01/2010 o Jornal publica notícia que informa a posição crítica
do então Presidente do Superior Tribunal Militar, o civil Carlos Alberto Marques Soares, à possibilidade de uma outra interpretação para a Lei de Anistia que não seja a defendida pelo Ministro da Defesa Nelson Jobim46. Em seguida, no dia 02/01/2010 vem a reação de Paulo Vanucchi, defendendo a investigação dos crimes da ditadura, especialmente por meio da Comissão da Verdade a ser
artigo de Victoria Grabois, filha do líder da Guerrilha, Maurício Grabois, no dia 20/05/2010 e outra a notícia da audiência ocorrida no dia 21/05/2010, um mês depois da decisão do STF na ADPF 153. 43 Considera-‐se na pesquisa que as notícias mais diretamente relacionadas ao questionamento do III PNDH em relação ao tema da Lei de Anistia estão entrelaçadas com a atuação da Comissão de Anistia, tanto pelo fato de que a Audiência Pública convocada por ela foi o estopim decisivo para o ingresso da Ação proposta pela OAB no STF e, de resto, para a discussão em torno do tema, quanto pelo fato de que o debate foi visto pelo Jornal como algo proposto em bloco pela Secretaria Especial de Direitos Humanos e pelo Ministério da Justiça, personalizados nas notícias pelos Ministros de ambas as pastas na época, Paulo Vanucchi e Tarso Genro. 44 ÉBOLI, Evandro. Documento oficial pede punição a torturadores. O Globo, Rio de Janeiro, 03 fev. 2009. Primeiro Caderno p.5. 45 ÉBOLI, Evandro. Decreto abre crise entre Ministros. O Globo, Rio de Janeiro, 30 dez. 2009. Primeiro Caderno p.3. 46 ANISTIA: para presidente do STM, posição de Vannuchi é retrógrada. O Globo, Rio de Janeiro, 01 jan. 2010. Primeiro Caderno p.3.
30
criada47. A partir daí até à data do julgamento da ADPF 153, em Abril de 2010, o Jornal publicaria uma série de notícias dando conta da polêmica em torno do tema48.
Nos dias 28, 29 e 30/04/2010 o Jornal dá amplo destaque ao julgamento
ocorrido no STF sobre a interpretação da Lei de Anistia. Na notícia do dia 30 há inclusive um breve resumo do posicionamento de cada um dos Ministros, bem como opiniões e manifestações de atores institucionais a respeito da decisão, tanto a favor como contra49. Como não poderia deixar de ser, o Jornal apresenta neste dia um Editorial elogiando a decisão tomada pelo STF, porém com uma aparente mudança de posicionamento em relação ao Editorial de 26/10/2004, no qual, a propósito de se fazer uma crítica aos valores estabelecidos pela Comissão de Anistia, o Jornal afirma ser contra a abertura de arquivos da ditadura militar. No Editorial do dia 30/04/2010, contudo, afirma-‐se ao final que Agora, deve-‐se pressionar pela abertura dos arquivos dos porões daquele regime. Sem riscos de revanchismos, é preciso saber o destino de cada vítima dos porões — para a História e como ato de respeito humano50.
47 VANUCCHI:
Comissão favorece Forças Armadas. O Globo, Rio de Janeiro, 02 jan. 2010. Primeiro Caderno p.4. Seguindo a sequencia dos fatos já conhecidos, será no dia 14/01/2010 que se publicará a notícia de que Lula havia decidido mudar o texto do Decreto. A versão anterior dizia que a Comissão da Verdade seria criada para "promover a apuração e o esclarecimento público" das violações de direitos humanos praticadas pela "repressão política". Na versão modificada a expressão "repressão política" é retirada, mantendo-‐se tão-‐somente uma ampla referência ao exame de graves violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura, o que acaba por franquear a brecha para o entendimento de que as ações de resistência também poderiam ser alvo da futura Comissão da Verdade (GÓIS, Francisco de; DAMÉ, Luiza. Lula cede a pressão e muda Plano. O Globo, Rio de Janeiro, 14 jan. 2010. Primeiro Caderno, p.3). 48 Resumidamente, além das já mencionadas, eis as notícias, artigos e entrevistas favoráveis ou contrários à reinterpretação da Lei de Anistia de 1979: cartas dos leitores a favor e contra (03/01/2010 e 09/01/2010); artigos, notas ou entrevistas contrários de Demétrio Magnoli (07/01/2010), Alfredo Sirkis (07/01/2010), Paulo Brossard (09/01/2010), Carlos Fico (09/01/2010) Arthur Virgílio (14/01/2010), Merval Pereira (17/01/2010), Carlos Alberto Marques Soares (08/02/2010); artigos, notas ou entrevistas favoráveis de Mirian Leitão (08/01/2010), Daniel Aarão dos Reis (09/01/2010 e 14/01/2010) e Flávia Piovesan (16/02/2010). 49 BRÍGIDO, Carolina. Julgamento histórico. O Globo, Rio de Janeiro, 30 abr. 2010. Primeiro Caderno p.3. No dia 15/05/2010 ainda apareceria longo artigo de Miro Teixeira criticando a decisão do STF. A decisão também repercutiu na Seção de cartas dos leitores do dia 01/05/2010 e do dia 09/05/2010, com opiniões contrárias e favoráveis. 50 STF ESTABELECE MARCO AO MANTER A ANISTIA. O Globo, Rio de Janeiro, 30 abr. 2010. Editorial, p.6. Note-‐se que para o jornal a possibilidade de se fazer justiça às vítimas dos crimes cometidos pela ditadura civil-‐mlitar através do julgamento penal dos agentes públicos que cometeram tais crimes é chamada de "revanchismo".
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É possível inferir de tal mudança de posicionamento que o ambiente
político relacionado à implementação dos mecanismos de transição avançou no Brasil, havendo maior pressão social para o confronto com o passado ditatorial, ao menos no que se refere ao esclarecimento dos fatos, antes também negados diante do apelo ao esquecimento e à "conciliação", encampados pela referência à Lei de Anistia de 1979. Foi surgindo, portanto, um certo consenso em torno da existência de uma Comissão da Verdade, o que, na continuidade do processo, resultaria na aprovação da Lei 12.528/2011, que instituiu a Comissão Nacional da Verdade.
O aspecto relacionado à abertura dos arquivos e à implementação de
políticas de memória (critério de categorização do primeiro grupo de categorias) obteve uma repercussão menor que o debate sobre a responsabilização penal dos agentes torturadores, mas registrou uma margem razoável.
Na busca com "Comissão de Anistia" 6 notícias foram classificadas como
1A (Abertura dos Arquivos) e 2 notícias como 1B (Homenagens e Políticas de Memória). Já na busca com "Lei de Anistia" houve a maior incidência dessas categorias, 26 notícias com 1A e 8 notícias com 1B, muito em função do debate da responsabilização penal dos torturadores também trazer a menção à abertura dos arquivos; com "Bolsa-‐Ditadura" houve 4 notícias com 1A e 2 com 1B; e com "Caravana da Anistia" e "Caravanas da Anistia" houve 1 com 1A e 5 com 1B.
Em sua grande maioria, as notícias eram artigos motivados ora pelo tema
da responsabilização penal dos agentes da ditadura ora pelas reparações praticadas pela Comissão de Anistia. Mas também se incluem reportagens em torno do III PNDH (que trazia referência a outras políticas de memória propostas no Programa e a menção à necessária abertura dos arquivos), manifestações dos leitores na seção de cartas e algumas notícias relacionadas diretamente à Comissão de Anistia.
Um exemplo interessante desse último caso é o de uma notícia publicada
em 31/01/2005 que informa ter a então Agência Brasileira de Inteligência (ABin) fornecido documentos que demonstram não ter o ex-‐perseguido político Carlos Alberto Maciel Cardoso, membro da Ação Libertadora Nacional (ALN), delatado companheiros como até então se pensava, o que levaria a família a
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requerer nova apreciação do seu requerimento de Anistia e reparação junto à Comissão de Anistia51 . 5. Caravanas da Anistia
Como já era de se esperar, só foram encontradas notícias com as
expressões "Caravanas da Anistia" ou "Caravana da Anistia" nos anos de 2008 a 2010, visto que foi somente a partir de 2008, com a gestão de Tarso Genro no Ministério da Justiça e de Paulo Abrão Pires Junior como Presidente da Comissão de Anistia, que o Projeto Educativo das Caravanas da Anistia, previsto e executado pela Comissão de Anistia, iniciou a sua implementação.
Nas Caravanas, a Comissão se desaloja das instalações do Palácio da
Justiça em Brasília, com Conselheiros e funcionários, e percorre os diferentes Estados brasileiros para julgar requerimentos de anistia emblemáticos nos locais onde as perseguições aconteceram, realizando as apreciações em ambientes educativos como Universidades, espaços públicos e comunitários. Durante essas sessões, todos os procedimentos, inclusive os debates e as divergências entre os membros do Conselho, são realizados às claras, diante de todos os presentes e contando sempre com o testemunho de muitos anistiandos e anistiandas.
A repercussão do projeto das Caravanas junto ao Jornal foi razoável,
levando-‐se em conta que entre 2008 e 2010 foram realizadas 47 Caravanas da Anistia52, e que no mesmo período houve 13 notícias relacionadas.
Duas destas notícias (23/02/2009 e 23/07/2010), as únicas encontradas
com a expressão no plural "Caravanas da Anistia", são artigos escritos pelo Presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, o primeiro deles em co-‐autoria com o então Ministro da Justiça Tarso Genro. Este primeiro artigo, intitulado "Anistia e Democracia", como já visto acima, situa-‐se no debate quanto à responsabilização penal dos agentes da ditadura, mas além disto dá conta das atividades da Comissão de Anistia em prol da efetivação da Justiça de Transição
51 ÉBOLI, Evandro. História passado a limpo. O
Globo, Rio de Janeiro, 31 jan. 2005. Primeiro Caderno, p.3 52 Ações Educativas da Comissão de Anistia -‐ relatório de gestão 2007-‐2010. Brasília: Ministério da Justiça, 2010. p.51.
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no país, conferindo certo destaque tanto às ações de reparação em geral como ao projeto das Caravanas. No cumprimento de seu dever histórico e constitucional, a Comissão de Anistia tem implementado um efetivo programa de justiça de transição para o Brasil. O projeto das "Caravanas da Anistia", com julgamentos públicos país afora, nos locais onde as perseguições ocorreram, promovem maior transparência e publicidade aos trabalhos e critérios da comissão. As atividades permitem, sobretudo aos jovens, conhecer a história e imbuir-‐se da relevância da manutenção da justiça e das liberdades públicas53.
O segundo artigo, intitulado "Anistia e Reparação", por sua vez, fornece
ampla fundamentação quanto às ações de reparação promovidas pela Comissão, destacando tanto o seu aspecto material como simbólico, situando historicamente no contexto brasileiro tais ações, também identificadas nos trabalhos da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, e também trazendo um contraponto às críticas normalmente feitas com relação aos valores e aos custos das reparações aos ex-‐perseguidos políticos. Ademais, reforça todos os outros pilares da Justiça de Transição54.
As outras 11 notícias foram encontradas com a expressão no singular
"Caravana da Anistia" e consistem em notas e reportagens do Jornal relacionadas a algumas das Caravanas realizadas. Todas estas notícias contemplam a categoria 2B, a que trata das homenagens e do reconhecimento a propósito das ações de reparação, e apenas uma traz um enfoque negativo, relacionado ao questionamento dos valores e dos custos das reparações55. Não é de se admirar que esta única notícia (05/04/2008), relacionada à primeira Caravana noticiada, a da Associação Brasileira de Imprensa no Rio de Janeiro, também traga a expressão de busca "Bolsa-‐Ditadura"56.
53 GENRO, Tarso; ABRÃO, Paulo. Anistia e Democracia. O Globo, Rio de Janeiro, 23 fev. 2009. Primeiro Caderno p.7. 54 Neste artigo, de modo mais discreto, visto que o seu foco era mais concentrado no tema da reparação, Paulo Abrão não deixa também de enfatizar a responsabilização penal dos agentes da ditadura quando escreve que: "É imperativo avançar (...) com a proteção judicial das vítimas e o julgamento dos crimes cometidos pelo Estado" (ABRAO, Paulo. Anistia e reparação. O Globo, Rio de Janeiro, 23 jul. 2010. Primeiro Caderno p.7). Veja-‐se que aqui temos um dos poucos casos nos quais se identifica a categoria 3A sem que tenhamos na notícia a expressão "Lei de Anistia". 55 Em outras quatro notícias contemplou-‐se a categoria 2A pois se fez referência a valores e critérios, mas sem ostentar, contudo um juízo negativo sobre a reparação concedida, ocorrendo simplesmente uma informação do valor da reparação ou do critério utilizado. 56 AUTRAN, Paula; DUTRA, Marcelo. Criticaram a ditadura e ganharam R$ 1 milhão. O Globo, Rio de Janeiro, 05 abr. 2008. Primeiro Caderno p.18.
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Como já foi comentado acima, esta Caravana, a propósito das reparações
feitas aos jornalistas e cartunistas Ziraldo e Jaguar, produziu um forte debate no Jornal, inclusive ocupando extensamente a seção de cartas. Foram duas as notícias encontradas sobre esta Caravana e que continham a expressão "Caravana da Anistia". Curioso é perceber que na primeira notícia não se encontra o mesmo tom negativo da primeira e também não se utiliza a expressão "Bolsa-‐Ditadura". É que a primeira notícia data do dia no qual a Caravana ocorreu (04/04/2008), não tendo esta ainda acontecido quando a notícia foi produzida. É possível identificar nela, inclusive, a informação correta de que a Comissão utilizaria no julgamento um critério menos dispendioso para fixar os valores das reparações mensais de jornalistas57. A Comissão de Anistia passou a adotar novo sistema de cálculo da indenização. No caso dos jornalistas, prevalecia a informação prestada pelo veículo de comunicação onde ele trabalhou. O jornalista alegava que, se não tivesse a carreira interrompida, poderia ter chegado a postos de comando e pedia valores exorbitantes. Essas declarações não serão mais aceitas. A comissão, agora, considera o que o mercado paga hoje58.
Contudo, na notícia publicada no dia seguinte, após a realização da
Caravana, e que traz o título "Criticaram a ditadura e ganharam R$ 1 Milhão", não só fez-‐se uso da pejorativa expressão "Bolsa-‐Ditadura", como também deixou-‐se de lado a explicação acerca dos critérios para a fixação dos valores. Como se pode deduzir do próprio título da notícia, bem como do seu texto, o que causou perplexidade ao Jornal foi a concessão do retroativo, não propriamente do valor fixado para a reparação mensal, mas na notícia não se fornece uma explicação sobre o que consiste e sobre como é calculado o valor do retroativo59.
57 Para uma explicação mais detalhada dos critérios utilizados pela Comissão de Anistia para a fixação dos valores das reparações, e também para um comentário crítico sobre a reação da imprensa no caso Ziraldo e Jaguar, ver: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. A ambiguidade da Anistia no Brasil: memória e esquecimento na transição inacabada. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virgínia Prado (Orgs.). Direito à Verdade e à Justiça. Belo Horizonte: Fórum, 2013. 58 ÉBOLI, Evandro. Comissão de Anistia indeniza assessor de Mantega. O Globo, Rio de Janeiro, 04 abr. 2008. Primeiro Caderno p.11. 59 Explicando um pouco melhor no que consiste o retroativo conferido a Ziraldo e a Jaguar: "A indenização que ambos receberam é fruto de um direito de status constitucional garantido pela Lei N° 10.559/2002, a lei que regula a Anistia política no Brasil, e que, por sua vez, se apóia no art.8º do ADCT. A Lei prevê que quem perdeu seu emprego ou atividade laboral por ter sido
35 Indenizados com outros 18 jornalistas por perseguição política, os cartunistas Jaguar e Ziraldo receberam ontem direito a indenizações de R$1.027.383,29 e R$1.000.253,24 respectivamente, além de prestação mensal permanente e contínua de R$4.375,88 cada um. Foram os valores mais altos alcançados nas contas da dívida retroativa calculada pela Comissão de Anistia, que realizou durante toda a tarde uma sessão de julgamento no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio, como parte do programa Caravana da Anistia60.
De todo modo, até mesmo esta notícia trouxe também o registro da
categoria 2B. As demais notícias que trouxeram a expressão "Caravana da Anistia", sinteticamente, registraram as seguintes Caravanas: 15/05/2008 -‐ Caravana da UNE (3a Caravana da Anistia), na cidade do Rio de Janeiro, com a entrega do terreno para reconstrução da sede queimada e destruída em 1964; 09/12/2008 -‐ Caravana Chico Mendes (17a. Caravana da Anistia), em Rio Branco no Acre; 19/06/2009 -‐ Caravana Camponeses do Araguaia (24a Caravana da Anistia) em São Domingos do Araguaia no Pará, na qual foram anistiados camponeses atingidos pela violência da campanha do Exército brasileiro na região durante a Guerrilha; 05/09/2009 -‐ Caravana na cidade de São Paulo em perseguido politicamente pelo regime ditatorial faz jus a uma prestação mensal, permanente e continuada no valor do salário que hoje teria se não houvesse sido demitido ou perdido sua atividade laboral. O valor dessa prestação deve levar em conta os planos de carreira e as progressões e promoções previstas para cada tipo de profissão (funcionários públicos, militares, professores, jornalistas, profissionais liberais, etc). Importa saber que tanto Ziraldo quanto Jaguar tiveram fechados pelos agentes da opressão jornais e revistas que fundaram e nos quais trabalharam. O valor fixado para ambos, com base na atividade laboral que perderam, foi de R$ 4.375,88 por mês, valor ao qual farão jus mensalmente até o fim da vida. Não é, portanto, um salário exorbitante ou acima da média do que recebem muitos profissionais de classe média no Brasil. O alto valor alardeado pela grande mídia (em torno de R$ 1 milhão) diz respeito ao retroativo. De acordo com o art.6º, parágrafo 6º da Lei N° 10.559/2002, o anistiado tem o direito de receber o retroativo equivalente aos cinco anos anteriores à data de entrada do pedido de anistia, até o limite do dia da promulgação da Constituição Federal de 1988. Esse direito é bem menor do que, por exemplo, alguém que é reintegrado ao serviço público por decisão judicial, pois, neste caso, o reintegrado faz jus ao valor de todos os salários que não recebeu desde a data em que foi exonerado. Acrescente-‐se, ainda, que somente quando a prestação mensal, permanente e continuada for até o valor de R$ 2.000,00 é que o valor do retroativo será recebido em uma única parcela, quando o valor ultrapassa tal soma, o retroativo é pago em parcelas diferidas por 9 anos. Outro aspecto que é sempre bom lembrar é o fato de que, para a grande maioria dos perseguidos políticos pela ditadura militar, a anistia de 1979 nada representou em termos de indenização ou reparação econômica. Os valores dos retroativos hoje são altos porque o Estado demorou mais de 20 anos para pagar a sua dívida com esses brasileiros e brasileiras, ou seja, mais tempo do que durou o próprio golpe militar. O que eles hoje recebem de indenização representa, na maioria dos casos, o salário que não ganharam esse tempo todo" (SILVA FILHO, A ambiguidade da Anistia no Brasil, op.cit.). 60AUTRAN, Paula; DUTRA, Marcelo. Criticaram a ditadura e ganharam R$ 1 milhão. O Globo, Rio de Janeiro, 05 abr. 2008. Primeiro Caderno p.18.
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meio ao Fórum de Ex-‐Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo (27a Caravana da Anistia); 07/10/2009 -‐ Caravana em Fortaleza no Ceará (28a Caravana da Anistia) relativa ao enterro das ossadas de Bergson Gurjão Farias, que era um dos desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia, e da anistia de Frei Tito; 05/02/2010 -‐ Caravana na cidade de São Paulo (33a. Caravana da Anistia) na qual se anistiou Mário Covas; 24/10/2010 -‐ Caravana em Niterói-‐RJ (45a Caravana da Anistia); e 01/11/2010 e 26/11/2010 -‐ Caravana no Instituto Sedes Sapientiae na cidade de São Paulo (47a Caravana da Anistia), na qual foram homenageados Dom Paulo Evaristo Arns e o Pe. Joseph Comblin, tendo este último sido anistiado. 6. Comparativo entre os anos de atuação da Comissão de Anistia
Como já foi explicado e informado no item relativo à metodologia
empregada na pesquisa, verificou-‐se que o ano com maior volume de notícias foi o de 2008 (86 – 27,4%), seguido pelos anos de 2010 (75 – 23,9%), 2009 (37 -‐ 11,8%) e 2005 (31 -‐ 9,9%).
As análises qualitativas das notícias diante destes dados também
confirmam outra hipótese do projeto de pesquisa, ao menos no que se refere ao Jornal O Globo, a de que a atuação da Comissão de Anistia, em termos de repercussão midiática, passou a contribuir de modo mais intenso para o processo transicional brasileiro a partir da administração iniciada pelo atual presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão Pires Junior, durante o Ministério da Justiça de Tarso Genro e o segundo governo Lula61. Pelos dados encontrados, percebe-‐se que a maior repercussão deu-‐se a partir da exploração
61 A primeira notícia do Jornal que indica a mudança na presidência da Comissão data de 10/04/2007 e traz informações sobre as reparações praticadas pela Comissão e o que pensa Paulo Abrão delas. É interessante perceber que nesta notícia já se pode identificar, ainda em germe, o projeto das Caravanas da Anistia: "Abrão pretende levar sessões de julgamento de processos de anistia para as faculdades de direito. Para ele, o trabalho da comissão redime o Estado de um passado autoritário e é uma oportunidade de resgatar a dívida política do governo" (ÉBOLI, Evandro. Novo presidente da comissão de Anistia justifica pagamentos. O Globo, Rio de Janeiro, 10 abr. 2007. Primeiro Caderno, p.8). Na sequência, o Jornal traz reportagens nos dias 12, 13 e 14/06/2007, tendo em vista a posse de grande parte do novo Conselho, mas especialmente a Anistia de Carlos Lamarca. A notícia do dia 14/06/2007, inclusive, traz a biografia do Ex-‐ Capitão do Exército, fuzilado no sertão baiano pelos agentes da ditadura (CARVALHO, Jailton de. Lamarca é promovido pela Comissão de Anistia. O Globo, Rio de Janeiro, 14 jun. 2007. Primeiro Caderno, p.13).
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de outras ações pela Comissão além daquelas estabelecidas explicitamente na Lei que a criou, a Lei N° 10.559/2002 (antes MP N° 2.151/2001), em especial: as Caravanas da Anistia (principal atividade dos projetos educativos da Comissão) e a promoção do debate sobre a responsabilização penal dos agentes que cometeram crimes contra a humanidade.
Boa parte das notícias que questionam valores e critérios e fazem
reconhecimentos morais e políticos debruçam-‐se, a partir de 2008, sobre casos apreciados em Caravanas. É importante mencionar, ainda, que grande parte das notícias não usa o termo “Caravana da Anistia” ou “Caravanas da Anistia”, mas foi possível, como já assinalado, encontrar entre 2008 e 2010 um total de 13 notícias utilizando uma ou outra expressão, e que nestes casos a categoria predominante era exatamente a 2B, isto é a do reconhecimento moral e político, com 13 ocorrências (39,39%).
O segundo ano com maior número de notícias, que foi 2010, deve tal
resultado ao debate iniciado em 2008 sobre a punição aos torturadores e a interpretação da lei de Anistia, propulsionado por três grandes fatos: a realização da Audiência Pública no Ministério da Justiça para discutir as possibilidades jurídicas de responsabilização penal dos agentes da ditadura, o julgamento da ADPF 153 no STF, e o lançamento do III PNDH.
Mesmo em 2009, o ano com menos notícias sobre a atuação da Comissão
ao longo da gestão de Paulo Abrão, obteve-‐se um número maior do que em 2005, ano das gestões anteriores que teve o maior número de notícias. Por outro lado, foi possível constatar que nas gestões anteriores à de Paulo Abrão houve um número razoável de notícias, acima do que se esperava, e com um tom não somente crítico mas também de reconhecimento62, o que evidencia por si só a importância da Comissão de Anistia para o processo transicional brasileiro,
62 Em 2001, ano de instalação da Comissão, há o registro de apenas uma notícia (24/06/2001), embora longa, que já prenunciava os diferentes sentidos da cobertura do Jornal quanto às atividades da Comissão, ora resgatando a memória política e a história dos requerentes, ora criticando os valores das indenizações (a reportagem chega a afirmar que "alguns anistiados viraram Marajás"). Em 2002 o número total de notícias já pula para 11, em 2003 para 25 e em 2004 fixa-‐se em 20. Em 2005, como já informado, tem-‐se 31 notícias, em 2006, 12 e em 2007, 20. Importante destacar que em notícia do dia 25/02/2007, ao final da sua gestão o então Presidente da Comissão de Anistia, Marcelo Lavenére, em entrevista concedida ao jornalista Evandro Éboli, defendeu abertamente a punição dos torturadores. Tal declaração, porém, não despertou o mesmo efeito dominó que a Audiência Pública realizada pela Comissão de Anistia em 2008, mas serve para demonstrar a existência, em meio à Comissão e mesmo antes da gestão de Paulo Abrão, de posicionamento favorável à responsabilização penal dos agentes da ditadura.
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mesmo sem todo o investimento e amplitude que assumiu a partir, especialmente, de 2007. 7. Pouca Ênfase na Reforma das Instituições de Segurança
Os resultados também confirmam o fato de que ainda é muito incipiente e
pouco desenvolvida a discussão relacionada ao quarto pilar do conceito de Justiça de Transição, qual seja a Reforma das Instituições de Segurança. Foram relativamente poucas as ocorrências de categorias relacionadas ao Grupo 4. De todo modo, elas ocorreram, mas em muito menor intensidade do que o debate sobre os outros três pilares da Justiça de Transição.
Analisando as notícias que foram incluídas nas categorias do Grupo 4,
verifica-‐se que a grande maioria delas são artigos escritos por intelectuais, autoridades ou personalidades que estão diretamente envolvidos no tema. Incluem-‐se neste rol os dois artigos assinados pelo Presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, já comentados acima, e uma série de outros artigos e entrevistas, dos quais, a título ilustrativo, transcreve-‐se alguns trechos indicando os seus autores e a data de publicação.
Artigo da jornalista Miriam Leitão, intitulado "Silêncio Forçado" e
publicado em 08/01/2010: Uma investigação honesta e ampla não ameaça as Forças Armadas como instituição. O que se procura saber são os eventuais culpados por crimes que foram cometidos. Quem os cometeu usou o Estado contra cidadãos e esclarecer isso não é ameaça à instituição em si. Se os atuais comandantes vetam qualquer discussão do tema, aí sim estão envolvendo a instituição, como um todo, numa questão conjuntural de tempo determinado. Na Argentina, alguns militares, inclusive o general Jorge Rafael Videla, estão presos, e o Exército continua lá exercendo as suas funções institucionais63.
Neste trecho fica clara a identificação de um déficit democrático em meio
às Forças Armadas por se negarem a investigar e a esclarecer seu próprio passado ditatorial. 63 LEITÃO, Mirian; GRIBEL, Álvaro. Silêncio forçado. O Globo, Rio de Janeiro, 08 jan. 2010. Panorama Econômico, p.24.
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Veja-‐se também a Resposta do historiador Carlos Fico em entrevista feita
com ele e com o historiador Daniel Aarão dos Reis em 09/01/2010, que vai no mesmo sentido do artigo de Miriam Leitão: Os comandantes militares estão cometendo um erro enorme persistindo nessa atitude acovardada, defensiva, de não reconhecer o erro, ficar retendo documentos. Eles deveriam reconhecer em termos institucionais e históricos esse erro, e se desculpar por ele. Isso seria um passo importante para tornar as Forças Armadas mais dignas diante da sociedade brasileira. O Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade em relação a esses crimes de tortura e assassinato, mas as Forças Armadas até hoje não reconheceram64.
Já na Resposta de Daniel Aarão dos Reis na mesma entrevista percebe-‐se
a indicação do autoritarismo nas instituições públicas de um modo geral, ao se referir à tortura como política de Estado: O importante neste momento é ver até que ponto a revisão da Lei deve incluir uma discussão sobre a adoção da tortura como política de Estado. Aqui eu marco minha diferença com os ministros Paulo Vannuchi e Tarso Genro, que fazem questão de não implicar as Forças Armadas na política de tortura. Eles dizem sempre que foram algumas dezenas de militares que praticaram excessos. Isso é uma distorção da História. O valor da revisão atual está na possibilidade de a sociedade discutir a adoção da tortura como política de Estado no Brasil. Isso abre uma discussão mais geral sobre a história do país. Em 50 anos, esse país teve dois regimes usando tortura como política de Estado. Pouca gente fala que isso aconteceu no Estado Novo. E eu temo que daqui a 30 anos pouca gente esteja falando que a ditadura brasileira fez isso65.
Apontando para o autoritarismo presente no Poder Judiciário, o Jornal
publica em 27/03/2010 artigo da cientista política Thamy Pogrebinsky, intitulado "Perigo Vermelho", que tece considerações sobre a declaração do Ministro Marco Aurélio Melo em Rede Nacional de que a ditadura foi um "mal necessário": Em entrevista recente ao jornalista Kennedy Alencar, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, proferiu uma infeliz declaração que acabou por passar ao largo da mídia em geral. Ao ser indagado sobre a ditadura militar de 1964, respondeu ter sido a mesma "um mal necessário, tendo em conta o que se avizinhava". O jornalista, aparentemente surpreso, tentou esclarecer: "o senhor acha que havia ali algum risco de ditadura comunista, como algumas
64 CONDE, Miguel. A importância de enfrentar o passado. O Globo, Rio de Janeiro, 09 jan. 2010.
Prosa e Verso, p.2. 65 CONDE, Miguel. A importância de enfrentar o passado. O Globo, Rio de Janeiro, 09 jan. 2010. Prosa e Verso, p.2.
40 pessoas falam?". E o juiz da mais alta corte de Justiça do país arrematou: "teríamos que esperar para ver, e foi melhor não esperar". O que não se podia esperar, certamente, é que um magistrado do órgão responsável pela guarda da Constituição, e, portanto, pela salvaguarda do Estado de Direito, pudesse defender, sob qualquer ponto de vista, um estado de exceção. Tanto mais grave o problema quando a defesa do "mal necessário" não é feita apenas em abstrato, mas diante de uma muito concreta e trágica história real cujas indeléveis páginas são tão conhecidas quanto indesejadas. É de surpreender, ainda, que junto ao caixão da ditadura tenha desenterrado o ministro uma de suas mais falsificáveis justificativas: o perigo vermelho, a ameaça da propalada "ditadura comunista", esse suposto mal maior que teria até mesmo tornado necessário aquele que seria um mal menor, a ditadura militar. Desenganos históricos e exercícios de futurologia à parte, o endosso da estratégia hobbesiana de legitimar o ataque como um mecanismo de defesa também não parece adequado a um magistrado constitucional imbuído da função de zelar pela segurança jurídica e pela estabilização das expectativas comportamentais, além da regulação dos conflitos sociais66.
Veja-‐se também o artigo de Cecília Coimbra, publicado em 18/07/2009 e
intitulado "Memória e Reparação". O artigo é muito interessante porque além de atrelar o processo reparatório a um processo mais amplo e necessário de transição e detectar a continuidade da violência policial associada às dificuldades desse processo, também foi a única notícia extraída da pesquisa com a expressão "Bolsa-‐Ditadura" que pôde ser incluída no Grupo 4 de categorias. Isto só foi possível porque o texto utiliza a expressão para criticá-‐la: Entendemos com isso que aquilo que hoje enfaticamente alguns alardeiam como sendo "indenizações milionárias" — ou mais perversamente "bolsa ditadura" — é apenas uma pequena parte de um processo de reparação que, em nosso país, ainda não ocorreu. (...) Por tudo isso, afirmamos que a simples compensação econômica não nos satisfaz. Queremos um efetivo processo reparatório: saber o que aconteceu em nosso passado recente. Queremos que o Estado se comprometa a lutar contra as violações passadas e as atuais que ainda continuam acontecendo cotidianamente. Queremos o esclarecimento, publicização e responsabilização de tais violações. Queremos a abertura, ampla, geral e irrestrita, de todos os arquivos e documentos referentes àquele terrível período. Queremos afirmar uma outra
66 POGREBINSCHI, Thamy. O perigo vermelho. O Globo, Rio de Janeiro, 27 mar. 2010. Prosa e Verso, p.5.
41 história: a vivida nos porões da ditadura, ainda pouco conhecida em nosso país67.
Nas notícias encontradas que traziam o registro das categorias do Grupo
4, há também que se mencionar a incidência razoável na seção de cartas de opiniões que permitiam tal verificação, o que se deu em: 06 e 07/08/2008 (a propósito da repercussão da Audiência Pública convocada pela Comissão de Anistia) e em 01/05/2010 (a propósito do julgamento da ADPF 153 no STF).
Veja-‐se o teor de uma carta publicada no dia 07/08/2008 expressando
claramente a categoria 4A: A sucessão de crimes cometidos pelas forças de segurança pública oficial e oficiosa (milícias), tais como seqüestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáveres, deixa clara a ligação entre o passado, dos crimes hediondos da ditadura militar, e o presente. Sem a punição dos crimes passados haverá a certeza da impunidade dos mesmos atos no presente. Como dizia o sr. Luiz Eduardo Soares, foram os oficiais da ditadura militar que, inseridos nas polícias Militar e Civil, adestraram os agentes das polícias.
Veja-‐se agora o teor de duas cartas publicadas no dia 01/05/2010, a primeira trazendo a categoria 4B e a segunda a categoria 4C: O mesmo STF que teve vários ministros cassados pela ditadura acaba de dizer para militares e outras forças autoritárias que eles podem dar um novo golpe de Estado, torturar opositores, enfim, fazer o que quiserem, que quando essa ditadura estiver cansada, basta "negociar" uma lei de anistia com as mesmas pessoas que estão sob sua ameaça. Vale lembrar que a ONU considera a tortura crime imprescritível. Sou um militar honrado, hoje aposentado, que sempre foi contra a tortura, assim como muitos colegas. Mas acordei triste. O STF jogou fora a chance de se fazer um acerto de contas com a História, separando o joio do trigo, e assim eliminar a "suspeita" que todos os militares carregam de terem feito estas barbaridades. Seria a oportunidade de, corajosamente, assumir os erros e mostrar que nem todos pensavam da mesma maneira, nem todos eram monstros.
As demais notícias que puderam ser marcadas com categorias do Grupo 4
se relacionam: a evento promovido pela Comissão de Anistia no Memorial da
67 COIMBRA, Cecilia Maria Bouças. Memória e reparação. O Globo, Rio de Janeiro, 18 jul. 2009. Primeiro Caderno, p.7.
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Resistência em São Paulo para marcar os 40 anos do AI-‐5 (13/12/2008)68; a declarações de Marlon Weichert, membro do MPF em audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos a propósito da Guerrilha do Araguaia (28/10/2008)69; e à notícia relativa ao III PNDH (03/08/2009)70. 8. Conclusões
Sintetizando as principais conclusões obtidas na pesquisa realizada no
Jornal O Globo a respeito das repercussões da atuação da Comissão de Anistia, pode-‐se afirmar o seguinte: a) Dentre as atividades de maior repercussão da Comissão de Anistia estão aquelas relacionadas ao estabelecimento de reparações econômicas, morais e simbólicas aos ex-‐perseguidos políticos que formularam requerimento de Anistia junto à Comissão; b) Embora haja um nível elevado de notícias críticas aos valores e critérios praticados pela Comissão e um enfoque negativo sobre o dispêndio de recursos públicos para fins de indenização dos que foram perseguidos políticos pela ditadura, houve uma expressão ainda maior da valorização da resistência à ditadura, contemplada no reconhecimento das lutas realizadas pelos que foram reparados; 68 CARVALHO, Soraya Agege. Nos 40 anos do AI-‐5, mas 4 indenizáveis. O Globo, Rio de Janeiro, 13 dez. 2008. Primeiro Caderno, p.18. 69 Eis trecho significativo da notícia que a inclui claramente na categoria 4A: "Autor de ações
contra militares que atuaram na ditadura militar, o procurador da República Marlon Weichert, de São Paulo, acusou ontem o governo brasileiro, em audiência na Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, de proteger oficiais que perseguiram, torturaram e desapareceram com militantes de esquerda naquela época. Marlon afirmou que, com esse comportamento, o governo estimula a violência de hoje de policiais nas penitenciárias do país. — A cúpula do governo entende que há prescrição e esquecimento desses crimes. Nem abertura de arquivo foi promovida. A impunidade e a ocultação da verdade impactam, inspiram e dão confiança aos agentes públicos que hoje adotam a tortura e o extermínio nas polícias e no sistema carcerário — disse Weichert" (ÉBOLI, Evandro. Brasil é acusado na OEA de proteger torturadores. O Globo, Rio de Janeiro, 28 out. 2008. Primeiro Caderno, p.18). 70 ÉBOLI, Evandro. Documento oficial pede punição a torturadores. O Globo, Rio de Janeiro, 03 ago. 2009. Primeiro Caderno, p.5.
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c) Há também uma repercussão expressiva da atuação da Comissão relacionada ao fomento do debate sobre a responsabilização penal dos agentes da ditadura que cometeram crimes de lesa-‐humanidade, com uma margem menor mas também razoável relacionada à discussão em torno da abertura de arquivos e da realização de políticas de memória; d) Por outro lado, o cenário de debates relacionados com o processo de transição política do Brasil e invocando em seu cerne a atuação da Comissão de Anistia refletiu de maneira diminuta o aspecto da Reforma das Instituições de Segurança Pública; e) A gestão de Paulo Abrão na presidência da Comissão de Anistia promoveu maior repercussão dos temas relacionados à Justiça de Transição no Brasil do que as gestões anteriores da Comissão de Anistia; f) De todo modo, a repercussão da atuação das gestões anteriores à de Paulo Abrão na Comissão de Anistia também foram expressivas e indicam que as atividades da Comissão de Anistia, desde o seu início, estimularam e favoreceram o debate sobre a Justiça de Transição no Brasil.
A par dessas conclusões pontuais que a pesquisa gerou, é possível
confirmar o argumento de que o processo transicional brasileiro vem sendo conduzido principalmente pelo eixo da reparação71.
No que diz respeito às análises aqui desenvolvidas, e a partir da
repercussão identificada no Jornal O Globo, um dos principais jornais do país, fica patente a centralidade da atuação da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e a sua importância em abrir um significativo espaço na seara institucional, midiática e pública para o olhar dos que foram vítimas dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura civil-‐militar, um espaço de escuta das vítimas até hoje inédito e exclusivo, como as Caravanas da Anistia e as 71 Este argumento é bem desenvolvido e fundamentado em: ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo. O
programa de reparações como eixo estruturante da justiça de transição no Brasil. In: REÁTEGUI, Félix (Org.). Justiça de Transição -‐ Manual para a América Latina. Brasília: Ministério da Justiça; New York: International Center for Transitional Justice, 2011. p.473-‐516.
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apreciações de requerimentos de Anistia no Palácio da Justiça em Brasília dão contínuas mostras.
É possível também tecer algumas considerações acerca do papel do jornal
ao noticiar as atividades da Comissão de Anistia. É inegável o posicionamento assumido pelo jornal no debate sobre o processo transicional brasileiro e sobre o significado da ditadura e da resistência exercida contra ela. A ditadura é vista como um período no qual houve um acirramento de tensões oriundas de dois lados distintos e razoavelmente proporcionais. Conforme registrado acima, os editoriais do jornal encampam a "tese dos dois demônios" e identificam uma certa proporcionalidade entre a violência praticada pelos grupos de resistência armada e pelo aparato repressivo do Estado ditatorial.
Depreende-‐se igualmente um juízo desfavorável às medidas transicionais
implementadas ou sugeridas no âmbito institucional do país. A possibilidade até mesmo de se debater a realização de julgamentos penais de agentes públicos da ditadura que cometeram crimes de lesa-‐humanidade é classificada como "revanchismo", "insano", "fora da realidade", "manipulação" e "desserviço à democracia". O processo de reparação econômica levado adiante pela Comissão de Anistia é enfaticamente questionado, sendo as reparações chamadas de "bolsa ditadura", "generosas pensões", "indústria criada entre políticos e advogados", "rentável investimento" e "reparações milionárias". Aqueles que são anistiados são associados a interesses políticos de esquerda amparados em setores do governo Lula e chamados de "privilegiados".
Assim, muito embora o jornal abra espaço para o reconhecimento das
perseguições e da militância política dos anistiados, bem como para algumas opiniões explicitamente favoráveis às medidas transicionais implementadas ou sugeridas, ele manifesta sua opinião contrária a tais medidas explicitamente através dos seus editoriais e por tabela ao reverberar e abrigar opiniões semelhantes às quais adere e de cujas expressões faz uso. Falta ao jornal, claramente, uma clara consciência sobre o importante papel exercido pelas medidas de justiça de transição na reafirmação e proteção dos direitos humanos, ainda que a elas se possa e se deva fazer críticas quanto ao modo de sua implementação nos contextos políticos específico nos quais ocorrem.
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Falta, igualmente ao jornal, um claro e forte repúdio aos 21 anos de
ditadura impostos à sociedade brasileira, no qual se possa demarcar a abissal desproporção entre a colocação em prática de uma política sistemática de violação de direitos humanos, com uma mácula profunda e até hoje não expurgada de violenta cultura institucional que movimenta as forças de segurança pública brasileiras, e a resistência, armada ou pacífica, que ao governo autoritário se opôs.
O jornal claramente possui dificuldade em se distanciar completamente
da posição de apoio que manifestou em seus editoriais nos primeiros dias do golpe militar em 1964. De todo modo, foi possível constatar que mesmo no ambiente adverso do jornal pesquisado, o debate transicional brasileiro e o enfrentamento das heranças da ditadura contribuem para divulgar e trazer à luz fatos e perspectivas reveladoras sobre o sentido de intensa violação de direitos que a constituição de um Estado ditatorial acarreta, visto que o próprio jornal também abre espaço para outros enfoques e opiniões que perfilam este viés. Tal realidade também é possível certamente graças ao ambiente político mais sólido em termos de garantias democráticas, em especial, de ausência da censura estatal e sistemática aos veículos de imprensa.
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