A COMPANHIA DE JESUS EM SETÚBAL: DOIS PROJECTOS EDUCATIVOS E ASSISTENCIAIS

May 26, 2017 | Autor: Inês Gato de Pinho | Categoria: Jesuits, Society of Jesus, Companhia De Jesus, Jesuítas, Setúbal
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Casas Religiosas de Setúbal e Azeitão COORDENAÇÃO CIENTÍFICA

albérico afonso costa | antónio cunha bento | inês gato de pinho | maria joão pereira coutinho

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albérico afonso costa ese, ips, ihc/fcsh/nova | ana lúcia barbosa ceris/ist/ul | andré afonso mnaa, cieba/fbaul, cdass | edite martins alberto cham-fcsh/nova & uaç | heitor baptista pato gal | inês gato de pinho ceris/ist/ul | isabel sousa de macedo cms, faul | joana rosário acervo, cdass | maria joão cândido spa-cms | maria joão pereira coutinho iha/fcsh/nova | sílvia ferreira iha/fcsh/nova | vítor serrão artis/iha/flul

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A COMPANHIA DE JESUS EM SETúBAL: DOIS PROJECTOS EDUCATIVOS E ASSISTENCIAIS Inês Gato de Pinho1 civil engineering research and innovation for sustainability do instituto superior técnico da universidade de lisboa

A Companhia de Jesus (CJ), instituto religioso fundado por Inácio de Loyola em 1540 no contexto da reforma católica, teve uma importância indiscutível em Portugal. Os primeiros três séculos da instituição inaciana na província lusitana foram pautados por um enorme crescimento, difundindo as suas casas por todo o território continental e ultramarino. Foram actores de desenvolvimento no campo religioso, político, social, educativo e científico, reunindo apoios nas mais altas esferas, criando, no entanto, ódios viscerais nos círculos político e religioso. Expulsos de Portugal e dos seus domínios ultramarinos em 1759, mantiveram o seu projecto assistencial e educativo adormecido, mas não extinto. Em 1829, durante reinado de D. Miguel, fizeram uma tentativa de reentrada no território português, que foi abortada com o fim do regime absolutista e a implantação do liberalismo, tendo sido de novo afastados em 1834 no âmbito do processo que levou à supressão das ordens religio1 Este texto insere-se no âmbito dos trabalhos desenvolvidos no nosso doutoramento, intitulado Modo Nostro. A especificidade da Arquitectura dos colégios da Companhia de Jesus na Província Portuguesa. Os séculos XVII e XVIII (SFRH/BD/110211/2015), desenvolvidos no Civil Engineering Research and Innovation for Sustainability do Instituto Superior Técnico - Universidade de Lisboa, e apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia com financiamento comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do Ministério da Educação e da Ciência.

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sas. A persistência dos jesuítas manteve o projecto vivo, ressuscitado com algum fulgor na segunda metade do século XIX (1858), mas com um modo de actuação bastante menos efusivo que na primeira fase da sua presença no território português. O fim da monarquia e a implantação da república, em 1910, marcaram um novo momento de expulsão, engrossando o número de congregações afectadas pela lei de separação entre a igreja e o estado. São raras as cidades que contaram com a presença jesuíta nos dois períodos de maior fulgor (1540-1549 e 1858-1910). Setúbal está entre os poucos casos em que isto aconteceu. Pretendemos com este artigo documentar a permanência dos inacianos em Setúbal, em dois períodos díspares, com actuações também elas distintas.

O 1º grande período – 1542 - 1759 O interesse da CJ por Setúbal é demonstrado logo no primeiro século de actuação do novo instituto. Em 1575 os inacianos solicitam a D. Sebastião a sua intervenção, junto das clarissas do Convento de Jesus, para a compra da capela de Nossa Senhora dos Anjos. Situado extramuros da urbe medieval e fronteiro à capela mor e claustro da congregação feminina, o templo havia sido adquirido à Misericórdia pelo convento, com o objectivo de garantir a privacidade necessária à clausura. A não consumação da venda aos jesuitas leva a que passe algum tempo até encontrarmos nova notícia da sua presença em Setúbal. Em 1650, deslocavam-se à vila dois padres jesuítas enviados do colégio de Évora, no âmbito das missões populares da CJ2. Estes missionários, maioritariamente enviados a zonas rurais para dar apoio espiritual, eram também enviados a cidades ou vilas importantes, resultando dessas demandas apoio a novas fundações3. Na missiva dirigida ao padre Francisco Cabral, reitor do colégio do Espírito Santo de Évora, naturalmente muito apologética da acção da CJ, os dois missionários referem o sucesso que o seu apoio espiritual teve na vila e o interesse que alguns benfeitores demonstraram em patrocinar a permanência da instituição em Setúbal: “A benevolencia que deixamos esta Coresma nos moradores da villa de Setuval foi muy grande, (…) e fidalgo ouve, que disse a este homem: venhão os Padres da Companhia para esta terra; e eu lhe dou çem mil de esmola. E não faltaram outros animos affeiçoados a nossa religião e doutrina, que nos possão ajudar e acodir. (…)”4 2 As missões populares consistiam na mobilização de padres para assistência espiritual em territórios onde o instituto religioso não tinha casas ou colégios. 3 Veja-se por exemplo o caso da fixação jesuíta em Portalegre, na qual, após a deslocação a essa cidade de dois padres da CJ em missão popular, lhes foi doada a ermida de S. Brás e a Igreja de Santa Maria a Grande para a fundação de um colégio. Inês Pinho, “Genius loci vs Modo Nostro. A influência do espírito do lugar na fundação dos colégios jesuítas da província lusitana”, comunicação apresentada a 21 de Abril de 2016, no colóquio internacional Genius Loci: Lugares e significados. 20, 21, 22 de Abril de 2016, Porto, Portugal. 4 BNP, Ms. 30, nº214. “Carta da Missão de Setuval; Pera o Padre Francisco Cabral, da Companhia de Iesus, Reitor do Collegio, e Universidade do Spirito Santo, em Évora”. 1650.

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Não será portando de estranhar que em 1654 se assista à mobilização dos moradores de Setúbal e da edilidade sadina, em torno da fundação de um colégio da CJ. Em 9 de Janeiro discutia-se em reunião de Câmara a importância de um colégio jesuíta na vila e, a 21 de Março, determinava-se a doação de um terreno na Rua das Amoreiras5 e de 2.000$00 réis de esmola. A 3 de Junho desse mesmo ano, é emitido um alvará régio, assinado por D. João IV, autorizando a pretensão requerida pela Câmara de Setúbal e seus moradores. Só em 1656 encontramos pela primeira vez a referência a um fundador, figura determinante para a implantação de um colégio jesuíta, uma vez que sem ele a CJ não autorizaria o novo instituto. À data, tinham casas de morada na vila André Velho Freire e D. Felipa de Paredes. Donos de uma avultada fortuna, sem descendentes e admiradores da obra inaciana, decidiram tornar o futuro colégio de Setúbal seu herdeiro universal. Para isso doaram, ainda em vida, o suficiente para o aluguer/compra de casas para os padres se instalarem e para a edificação da igreja e sua ornamentação. Segundo o cronista de setecentos, Padre António Franco, a oito de Maio de 1656 o padre Diogo de Areda lança a 1ª pedra da igreja do colégio6. Nesta fase inicial os padres residiram em casas concebidas para laicos, adaptando as suas condições ao programa residencial, escolar e assistencial. O mesmo cronista ilustra os primeiros momentos do colégio de Setúbal relatando que nessa época os padres moraram em casas de aluguer, mas depois passaram para uma casa comprada, situada junto à muralha da então vila, onde se veio a construir o novo edifício do colégio7. A nova casa seria muito provavelmente um dos edifícios que os fundadores, ainda em vida, adquiriram para a CJ. Apesar dos esforços empreendidos, só após a morte do casal8 é que os bens a que se referem os testamentos viriam a ser disponibilizados. A prová-lo temos o relato do provincial Francisco Manso em 1660: “Todos os padres vivem sem o mínimo assomo de desedificação. Todos, até hoje se sustentam de esmolas, oferecidas de bom grado e generosidade (…). Depois da morte da fundadora (…) gozará o colégio livremente das suas rendas”9. Efectivamente, só após a morte de D. Felipa é enviado a Roma o pedido de autorização de venda dos bens e, em 20 de Agosto de 1680, é emitida a Sentença Apostólica que permite a venda dos bens dos fundadores. Nesse documento referia-se “que o reitor e mais religiosos do Colégio de S. Francisco Xavier, de Setúbal, haviam exposto terem alcançado o dito Breve para poderem vender as várias casas que tinham na mesma vila, e a sua importância ser aplicada à compra de outras fazendas de maior utilidade. Que essas casas que 5 Actual Rua João Eloy do Amaral. 6 “Octavâ Maji posuit P. Didacus Areda primum lapidem templo ad tempus erigendo”. António Franco, Synnopsis Annalium Societatis Iesu, 1726, p. 317. 7 “Cetobricae migratum est ab hospitio in domum emptam prope murum oppidi, ubi erat construendum Collegium”. António Franco, Synnopsis Annalium Societatis Iesu, 1726, p. 317. 8 André Velho Freire morre em 1657 e Felipa de Paredes em 1663. 9 ARSI, Lus. 84 I, f.9. Tradução do latim patente na obra de Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, tomo terceiro, vol. 1, Porto, 1944, pp. 33 e 34.

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queriam vender rendiam de aluguéis 24$000 rs. anualmente, mas que então naqueles anos haviam nelas despendido ainda mais dessa quantia em vários reparos, (…) e o colégio, que era pobre, não podia gastar essa soma. Que pelas referidas casas lhes davam 500$000 rs., e assim queriam vendê-las e, comprar uma herdade no termo de Ferreira do Alentejo (…)”.10 Acreditamos que em 1690 o colégio ainda tinha uma dimensão reduzida, uma vez que a essa data “não tinha mais que cinco moradores e um professor de língua latina”11. A 3 de Setembro de 1702, o reitor do colégio apresenta à Câmara um requerimento com vista à ocupação de um terreno para a ampliação da instalação inicial12; este foi provavelmente o período de tempo necessário para a venda dos bens dos fundadores e angariação de esmolas. Com verbas para construir, faltava o espaço para expandir o colégio. Em 3 de Julho de 1703 é emitido um alvará régio ordenando à Câmara a doação do terreno e 10 dias depois, a edilidade procede à sua marcação: “A demarcação do terreno foi desde a quina da cerca do Colégio, correndo dela pelo nascente no espaço de 34 varas e meia (…) até um marco que foi metido defronte da travessa última de Palhais, que chamavam do «Seabra», e do dito marco, correndo de norte a sul, até à ponte de S. Sebastião, no espaço de 103 varas em linha recta, e no qual foram postos três marcos, ficando o último junto à dita ponte, e deste correndo de nascente a poente até à porta de S. Sebastião e muralha velha 26 varas”.13 A marcação dos valores referidos na planta da cidade de 1805 (a primeira planta de cadastro da vila que se conhece) [Fig.1] coincide com um grande quarteirão [Fig.2] que envolve quase todo o troço nascente da muralha medieval, e que provavelmente marcaria o limite do complexo do colégio.

10 Almeida Carvalho, Acontecimentos, lendas e tradições da região setubalense, vol. IV, Conventos de Setúbal, II Parte, Setúbal, 1972, p. 22. 11 Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, tomo terceiro, vol. 1, Porto, 1944, p.32. 12 Almeida Carvalho, op. cit., p. 11. 13 Idem, Ibidem.

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Fig.1 “Planta da Vila de Setuval, levantada por ordem de S. A. R., debaxo da inspecção da R. Iunta dos Tres Estados, por Maximiano Jozé da Serra, Sarg.º Mor. do Real Corpo de Eng.s, em 1805”. GEAEM/DIE.

Fig.2 Excerto da planta de 1805. Note-se o quarteirão que corresponderia ao antigo complexo jesuíta, compreendido entre dois edifícios religiosos: a Igreja de Santa Maria da Graça (S) e a Ermida de S. Sebastião (R).

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A tentativa de compreensão da distribuição espacial do colégio só é possível tendo por base a formulação de hipóteses. Esta enunciação, de cariz especulativo, tem na sua base o cruzamento dos poucos documentos existentes com a análise arquitectónica do que resta no complexo. O Sistema de Informação para o Património Arquitectónico (SIPA) atribui a denominação de “Colégio de S. Francisco Xavier” ao imóvel actualmente conhecido como Palácio Fryxell [Fig.3]. Esta denominação torna-se redutora, à luz dos estudos mais recentes, uma vez que o complexo jesuíta se estenderia até à cabeceira da igreja de Santa Maria da Graça, conforme podemos atestar pela planta levantada em 1804 por Maximiano José da Serra [Fig.2]. Um colégio jesuíta desenvolvia-se em torno de três grandes áreas funcionais: a zona da comunidade – destinada à congregação –, a zona escolar – destinada a estudantes laicos – e a zona cultual. Esta separação funcional correspondia, na maioria dos casos, a uma distribuição espacial igualmente tripartida. As zonas exclusivas à congregação organizavam-se em torno do pátio da comunidade, as zonas destinadas aos estudos dispunham-se junto ao pátio dos estudos e a zona cultual, destinada à comunidade e a laicos, seria a igreja. A destruição do edifício ao longo dos séculos e a diminuta documentação existente não nos permitem identificar com certeza onde se situavam o polo da comunidade e o polo escolar, e ainda menos entender a articulação espacial do colégio sadino14.

Fig.3 Fachada principal do Palácio Fryxell.

14 Apesar disso, é possível traçar uma hipotética organização espacial do colégio, articulando a análise do edifício do actual palácio Fryxell (por si só um documento) com a leitura de documentos textuais e gráficos. Torna-se no entanto incomportável, no âmbito deste artigo, mostrar a hipotética organização espacial do colégio, por exigir uma explicação longa e detalhada. Para uma melhor compreensão da nossa interpretação, sugerimos a leitura da obra De Colégio de S. Francisco Xavier a Palácio Fryxell – História e análise arquitectónica, Setúbal, 2013.

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Relativamente ao espaço de culto e apesar de ter desaparecido totalmente, é possível aferir dados relativos à localização e características formais da igreja do colégio. O padre António Franco afirma que se usou um dos troços da muralha da vila para a construção da igreja, reduzindo as despesas da construção.15 As informações paroquiais de 1758 fazem igualmente referência (ainda que indirecta) à localização da igreja: “O bairro da Vila é todo murado de muros antiguos,(…) com dez torres disperças pelo circuito da mencionada muralha,(…) e três portas principais (…) – a terceira a que chamavam a da Vila para a parte do Norte a qual com a torre que tinha em sima a demolirão os Padres da Companhia de Jezus para lhe ficar mais dezimpedida a entrada da Igreja do seu Colegio”.16 A porta da Vila situava-se junto à cabeceira da igreja de Santa Maria da Graça e a torre onde se localizava é representada na cartografia até ao final do séc. XVII. No entanto, na planta levantada em 1805 [Fig.1 e 2], a torre já não aparece, havendo uma interrupção na representação do perímetro defensivo na zona da actual Rua de Santa Maria. Já no final do século XIX, Alberto Pimentel reitera a informação relativa ao templo: “Consta que era de boa arquitectura, e tinha a fachada voltada para o fundo da egreja parochial de Santa Maria”17. No que se refere ao interior, chegou-nos a informação que “a igreja era regular, com capela-mor de proporcionado espaço. O tecto não era de abóbada, mas de madeira e telha”18. Esta descrição ganha consistência se confrontada com os trabalhos e materiais referidos nos livros de receita e despesa do colégio19, onde se refere uma intervenção no telhado da igreja. Em Julho de 1729 são pagos os honorários a “5 officiais de carpinteiro, (...) 250 officiais ou aprendizes de carpinteiro, (...) 80 dias aos carpinteiros na igreja, (...) 2 dias ao pedreiro no telhado da capela, (...) ao servente 2 dias, (...) aos serredores hu dia, (...) 3 dias e meio aos serradores e a outros homens de cerrar madeira”. No mesmo mês são adquiridos os seguintes materiais: “90 paos para o tecto da capela da igreja (…), nove dúzias de ripas, (...) dous lotes de casquinha grossa, (...) 13 cordas para os andaimes; pregos e telhas”. A leitura dos mesmos livros permite-nos especular relativamente ao património integrado no interior da igreja. Em Novembro de 1724 é encomendado “papel para os riscos do pintor e tachas”. Pensamos que estes materiais (papel e tachas para o fixar) possam destinar-se ao suporte que o pintor precisaria para desenhar o estudo prévio (riscos do pintor) da composição que iria realizar. No mesmo período são compradas “2 arrobas de luva para a pintura da capella, 6

15 “Non magno sumptu id factum, quòd oppidi murus suppleverit alterum templi parietem”. António Franco, Synnopsis Annalium Societatis Iesu, 1726, p. 317. 16 Rogério Peres Claro, Setúbal no século XVIII: as informações paroquiais de 1758, Setúbal, 1993, p. 11. 17 Alberto Pimentel, Memória sobre a história e administração do Município de Setúbal, Setúbal, 1877, p. 200. 18 Almeida Carvalho, Acontecimentos, lendas e tradições da região setubalense, vol. IV - Conventos de Setúbal, II Parte, Setúbal, 1972, p. 18. 19 ANTT, Armário Jesuítico e Cartório dos Jesuítas, maço 103, caixa 90.

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brochas de pintar, 6 milheiros e meio de tachas para pregar a forra, tintas para a capela e é pago o trabalho de cozer a lona do espaldar da capela e pregala [com tachas]”. É também pago ao “pintor a conta da pintura da capela (25$600)”. Pela quantidade de material adquirido, a pintura sobre tela não se resumiria ao espaldar da capela. De Janeiro a Março de 1730 são encomendados os seguintes materiais: “220 varas de lona, 9 varas de brim, 1 arretel de almagre e sabão, 2 arreteis de zarcão, linhas para cozer a lona, tintas e óleo”. No mesmo período são pagos os trabalhos referentes a 4 dias de olear o tecto da igreja e a 27 homens de pregar a lona no tecto da mesma. Não só podemos especular que o tecto do templo era decorado com uma enorme pintura sobre tela, como podemos aferir o nome dos pintores que participaram na sua execução através dos pagamentos efectuados. Assim pagaram “ao pintor Joseph da Costa por ajuste de 79 dias seos a 480 e outenta e nove de aprendiz a 300; ao pintor António Francisco 81 dias a 600; a Ignácio da Silva pintor 70 dias a 600, ao Joaquim aprendiz 81 dias a 200”. Para além dos acabamentos decorativos, o mesmo livro de receita e despesa permite-nos afirmar que existia um trono na igreja, uma vez que são pagos os honorários pelo trabalho de “serrar a madeira para o trono”, e um púlpito, atestado pelo pagamento dos trabalhos devidos a “7 dias aos pedreiros na Caza do púlpito”.20 O testamento de D. Felipa dá-nos a certeza que o fundador já teria sepultura na igreja do colégio, deixando indicações específicas para a localização do sepulcro dos fundadores: “Meu corpo será sepultado na Igreija de Sam Francisco Xavier do Collegio da Companhia de IESU. E podendo ser na mesma sepultura em que está meu Marido, Andre Velho Freyre, asy me enterraram. (…) Quero, e ordeno, que na parede da parte do Evangelho se faça hum arco em que se ponha a sepultura do meu Marido e minha com hum Letreyro com nossos nomes declarando como fomos indignos fundadores daquelle Collegio”21. A igreja, tal como o restante complexo do colégio, terá sido muito destruída pelo terramoto de 1755, ficando apenas ilesa a capela-mor. Após a expulsão dos jesuítas, o complexo é doado às freiras bernardas que permitem que o antigo templo se adeque a um espaço recreativo – o teatro de Santa Maria. Esta função não se terá perpetuado muito no tempo, uma vez que em 1907 se construía um novo edifício, civil, mas com uma história ligada à igreja jesuíta. No decorrer da obra de construção, um periódico setubalense noticiava o seguinte: “Na demolição d’uma parede da antiga capella que a Companhia de Jesus possuia ao fundo da Rua do Corpo Santo, n’esta cidade, demolição que o Sr. José Eduardo Ahrens mandou fazer para a edificação de um prédio, foi encontrada uma lápide com a seguinte inscrição: S. DE ANDRE VELHO FREIRE COMENDADOR DE CHRISTO E DE D. FELIPA DE PAREDES LASSO

20 Inês Pinho, De Colégio de S. Francisco Xavier a Palácio Fryxell – História e análise arquitectónica, Setúbal, 2013. 21 “Treslado do testamento de Donna Felippa de Paredes”. ARSI, LUS 84 IPT, fólios 3 a 4v.

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SUA MULHER FUNDADORES DESTE COLLEGIO. 1663. Debaixo da lápide referida se encontram vestígios d’uma escada que conduz a um carneiro, cuja exploração ainda não foi possível effectuar por motivo dos materiais ali accumulados.(…)”.22 Esta notícia permite-nos, devidamente alicerçada no estudo da evolução dos foros e registos prediais23, definir a localização quase exacta da igreja inaciana. Não conseguimos até à data definir as dimensões ou proporções do templo, mas podemos garantir que pelo menos a capela dos fundadores se localizava onde hoje se situa o prédio com os números de polícia 20 a 30, na Rua de Santa Maria. No que se refere à relação espacial da igreja com o restante complexo colegial, não encontrámos descrições objectivas. No entanto, a leitura de um processo do Santo Ofício de 1715 permite-nos uma leitura indirecta desta articulação: “...a capela mor da dita igreja tem duas portas huma da parte do Evangelho pera uma caza de [ms. imperceptível] e despejos, e tem porta a dita caza para a cerca, (…). E outra da parte da Epistola que vai para a Sanchristia, a qual não tem fechadura, e somente pela parte da Sanchristia tem um fecho que estando corrido se não pode abrir da parte da Igreja, (…). Entrando na dita Sanchristia vio que tinha outra porta que se não fecha, a qual vai dar para huma escada comprida que da serventia para o choro, portaria, dormitório, e outras mais oficinas do dito Collegio (…).24 É curioso constatar a referência à existência de um coro, espaço que havia sido excluído do programa jesuíta pelo próprio Inácio de Loyola. A construção desta estrutura deve-se a um pedido da Irmandade de S. Francisco Xavier que, em 1679, justifica a necessidade de criação do espaço para aumentar a lotação da igreja, fundamental em dias de grande concorrência de fiéis25. Para além do coro, o processo da inquisição permite-nos afirmar que a sacristia se encontrava à direita da igreja (do lado da epístola) e que este era um espaço que articulava o núcleo cultual com o restante complexo, em especial com as áreas relacionadas com funções residenciais. O terramoto de 1755 danificou gravemente o edifício. Setúbal foi das cidades mais destruídas e o edifício do colégio não foi excepção. Apesar disso, as informações paroquiais atestam que a reconstrução foi imediata: “(…) a ruina do corpo do colégio se tem reparado e vai reparando com força, porque na Cerca, e terreno que estava determinado para a nova Igreja cuidarão logo os Padres em fazerem cubículos para neles se recolherem, e bem assim cuzinha, refeitorio, dispenças, adega, e lagar de vinho, armazém de azeite, e clá-

22 O Elmano, 29 de Maio de 1907. 23 Para uma melhor compreensão deste estudo, ver a obra De Colégio de S. Francisco Xavier a Palácio Fryxell – História e análise arquitectónica. 24 ANTT, Tribunal do Santo Oficío, Inquisição de Lisboa, proc. 6450, fólio6, “Devassa do sacrário e desacato que se cometeu na igreja do Colégio dos Padres dos padres da Companhia da Villa de Setúbal”. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 6450, folio 6. ANTT, Lisboa. 25 ARSI, LUS 75, fólios 209 e 209v.

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ses para o encino dos rapázes e estudantes, e as taes clásses, e mais oficinas do tal Colégio arruinado tem reparado de sorte (…)”26. Os livros de receita e despesa do colégio27 ajudam a ilustrar essa reconstrução. Em Novembro de 1755 são pagos os honorários de “77 homés e hú meio dia a trabalhar no collegio, ao carpinteiro, ao pedreiro Luis da Costa e ao filho, e são gastos 10 moios de cal”. No mês seguinte, pagava-se o trabalho de «46 homés a desentulhar no Collegio”, 17 dias ao pedreiro e quinze dias ao filho, e ainda 20 dias ao carpinteiro e 16 dias ao seu filho. Em Janeiro de 1756 pagava-se a “108 homés de trabalho nas ruinas do Collegio”, a pedreiros, carpinteiros e serradores, e comprava-se material para a reconstrução (“5 lotes de tabuado”). Este cenário mantém-se por longos meses, não sendo possível aferir com certeza quais os trabalhos e materiais empregados no edifício, uma vez que o colégio tinha várias propriedades de casas, quintas e marinhas, na zona afectada pelo terramoto. Podemos, no entanto, afirmar que em 1759 o colégio ainda não havia recuperado as condições que tinha, já que o Padre Caeiro refere que” desde a época do terramoto, com o qual a cidade fora destruída em grande parte, os jesuítas habitavam muito incomodamente em construções feitas à pressa no quintal»28. Em 1758, a missa ainda se rezava na capela-mor, conforme se atesta pela resposta do prior Manoel de Carvalho no âmbito das memórias paroquiais que ilustram o estado dos edifícios após o terramoto de 1755: ... na igreja (...) todo o tecto veio a terra, por cahir sobre elle a parede do corredor dos seos cubiculos que estavão para aquella parte que hé a do Norte, ficando só ileza a Capela mor a qual hoje serve de Igreja com hum limitado acrecentamento que lhe fizéram com parede de forcado29 (...)”30. Por esta época, residia no colégio de S. Francisco Xavier de Setúbal o célebre padre Gabriel Malagrida. Confessor real de D. Maria Ana de Áustria, mãe de D. José I, o jesuíta italiano tinha grande influência junto da aristocracia da época, em particular pela forma fervorosa com que dirigia os exercícios espirituais enunciados por Inácio de Loyola. O manuscrito intitulado “Lembrança dos padres e irmãos que neste Collegio de Setuval tiverão exercicios de Nosso Padre Santo Ignacio”31 dá-nos o registo da data em que os diferentes padres que residiam no colégio praticavam os exercícios espirituais e da dificuldade que tinham em fazê-lo dada a condição de ruina da sua igreja. No mesmo documento se atesta a intervenção do padre Malagrida, referindo que “deo muitas vezes os exercícios nesta Villa a pessoas seculares, com as quais os tinha juntamente”. As dificuldades sentidas pelos padres levaram a que Malagrida procurasse outros

26 Rogério Peres Claro, Setúbal no século XVIII: as informações paroquiais de 1758, Setúbal, 1993, p. 34. 27 ANTT, Armário Jesuítico e Cartório dos Jesuítas, maço 103, caixa 90. 28 José Caeiro, História da expulsão da Companhia de Jesus da Província de Portugal (sec. XVIII). Lisboa, 1991, pp.83 e 84. 29 Uma parede de forcado seria uma parede de alvenaria de tijolo. Conforme descrito por Pais da Silva e Margarida Calado na obra Dicionário de termos de arte e Arquitectura,”forcado” é um tijolo baixo e largo. 30 Rogério Peres Claro, Setúbal no século XVIII: as informações paroquiais de 1758, Setúbal, 1993, p. 34. 31 BNP, Arquivo das Congregações.

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locais para as práticas espirituais inacianas. Segundo Daniel Pires32 “havia um lugar particularmente belo e ameno na vila, que a população elegera para a devoção e para usufruir com maior acuidade do seu ócio. Seria, considerou o padre Malagrida, o lugar ideal para receber a nobreza (...). Era a ermida do Senhor do Bonfim (...)”. O mesmo autor trouxe à estampa um manuscrito inédito que demonstra a mobilização dos habitantes de Setúbal para a concretização do interesse de Malagrida. Trata-se de uma petição, entregue à Câmara Municipal em 1755, registada por Gregório de Freitas no manuscrito Memórias Geográficas e Históricas da Província da Estremadura: “Expõe a vossa Majestade os moradores desta vila o desejo de estabelecerem uma casa de Exercicios Espirituais, debaixo da direcção dos Religiosos da Companhia de Jesus, na ermida do Senhor do Bonfim33, onde já muitos devotos tiveram abundancia de consolação pelos [sic] receberem do reverendíssimo padre missionário Gabriel Malagrida da mesma Companhia; cujo ardente e incansável zelo os comoveu, reduziu e convenceu da inescusável necessidade que deles tinham; por cujo motivo pretendem formar edificio com oficinas convenientes na ermida referida e suas casas (...)”.34 No entanto, a resposta da edilidade foi negativa. Apesar de ver frustrado o objectivo de levar a espiritualidade inaciana àquele templo, Malagrida conseguiu outro espaço para o culto: o recolhimento de Nossa Senhora da Saúde35. Fundado em 1746 pela irmandade do mesmo nome, o instituto tornou-se num dos locais de eleição de Malagrida para a prática dos exercícios espirituais. Mais do que deixar a marca inaciana, o jesuíta deixou a sua marca pessoal nos azulejos da portaria do recolhimento, fazendo-se representar de diferentes formas em três painéis: “ … pregando no pulpito com multiplicidades de figuras, que representão o povo de Setuval, que lhe assistia ouvindo-o. Em outra acção de estar com o Santíssimo Sacramento nas mãos voltadas para o povo, que também está figurado no azulejo destas partes: em terceira, paramentado debaixo do palio com a custódia do Sacramento nas mãos seguindo le adiante varias insignias, povo, a communidade religiosa, Irmandades (...).36 A Carta Régia de 3 de Setembro de 1759 determinou a expulsão dos inacianos do Reino de Portugal e respectivos Domínios Ultramarinos e os padres que viviam no colégio de Setúbal foram obrigados a abandoná-lo: “O desembargador Jerónimo de Lemos Monteiro, encarregado de coman32 Daniel Pires, O Marquês de Pombal, o terramoto de 1755 em Setúbal e o Padre Malagrida, Setúbal, 2013. 33 Para uma melhor compreensão deste edifício, leia-se o artigo de Maria João Pereira Coutinho, Sílvia Ferreira e Inês Pinho, “A devoção do Senhor Jesus do Bonfim – origem, culto e disseminações” in, Santuários: Cultura, Arte, Romarias Peregrinações, Paisagens e Pessoas, Nº1, vol.1, Janeiro - Junho 2014. 34 Gregório de Freitas, Memorias Geographicas e Historicas da Provincia da Estremadura, citado por Daniel Pires, op. cit., pp.52 e 53. 35 A propósito deste recolhimento, muito pouco estudado, veja-se o artigo de Maria João Pereira Coutinho, “Ianua Coeli: Os portais da Época Moderna dos espaços cultuais de Setúbal”, patente na presente obra. 36 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 8064. Os azulejos terão sido destruídos, uma vez que no mesmo documento se refere que se mandaram retirar, picar as paredes, reduzir a pó e atirar ao rio todas as representações de Malagrida.

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dar as sentinelas, sujeitou a hasta pública, na portaria do edifício, o que havia dentro do colégio, destinado à alimentação e às bebidas. Proibiu a celebração da novena de S. Francisco Xavier; expulsou os fiéis da igreja; se alguém quisesse assistir à missa ou rezar, tinha de o fazer permanecendo no adro. (…) O quarto de Malagrida foi pesquisado com grande diligência; todos os manuscritos se enviaram a Carvalho; o ouro e as pedras preciosas, com que habitualmente se adornava a imagem de Nossa Senhora, chamada das Missões, foram confiscados e entregues à administração pública. O irmão coadjutor Bernardo da Silva foi levado da herdade que administrava para o colégio por um oficial e soldados. Por último, alugadas as propriedades e executado tudo o mais como Carvalho mandara, quatro padres (…) e três coadjutores (…) partindo de manhã do colégio de Setúbal, na tarde do mesmo dia chegaram à Casa Professa de Lisboa (…)”37.

O 2º grande período - 1858 - 1910 Conforme já referimos, em 1829, durante o reinado de D. Miguel, a CJ volta ao território português. No entanto, este período foi pouco expressivo uma vez que em 1834 o instituto é novamente afastado, no âmbito do processo de extinção das ordens religiosas. Será em 1858, pela mão do jesuíta Carlos Rademaker, que a CJ volta a prestar assistência em Portugal. Rademaker funda inicialmente a Missão Portuguesa (1858) e, anos mais tarde, é de novo instituída a Província Portuguesa (1880). A reentrada revelou-se tímida e cautelosa, ainda sob a sombra da propaganda anti jesuíta que remontava ao período de Pombal. A função educativa é novamente direccionada para a formação de estudantes laicos, casos do colégio de Campolide (Lisboa – 1858) e de São Fiel (Louriçal do Campo – 1863), e para a formação dos próprios quadros da CJ 38. No colégio de Nossa Senhora dos Anjos, fundado no Barro (Torres Vedras) em 1860, funcionava o noviciado, onde os jesuítas recebiam os dois primeiros anos da sua formação. No colégio de São Francisco, fundado em Setúbal em 1876, ministravam-se os três anos seguintes de formação jesuíta – o filosofado. Os esforços para a implantação de um novo colégio em Setúbal remontam a 1874, momento em que os padres jesuítas Joaquim António Machado, José Monteiro e Carlos Gouveia, se deslocam a Setúbal para negociar com Francisco José Pereira – proprietário do edifício do antigo colégio de S. Francisco Xavier – a aquisição do edifício. Recuando aos anos que se se-

37 José Caeiro, História da expulsão da Companhia de Jesus da Província de Portugal (sec. XVIII), Lisboa, 1991, pp.83 e 84. 38 No que se refere ao ensino jesuíta deste período, recomendamos a leitura da tese de doutoramento de Francisco Malta Romeiras, intitulada Das ciências naturais à genética: a divulgação científica na revista Brotéria (19022002) e o ensino científico da Companhia de Jesus nos séculos XIX e XX em Portugal.

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guiram à expulsão jesuíta de 1759, o edifício do extinto colégio transitou directamente para a posse e administração do Estado. Em 1769 D. José I doa-o às freiras bernardas do destruído convento de Nossa Senhora da Nazaré do Mocambo (Lisboa), às quais se juntam as freiras do convento de Nossa Senhora da Assunção de Tabosa (Viseu), fundando o Real Mosteiro de Nossa Senhora da Nazaré de Setúbal. Durante pouco mais de uma década operaram-se obras de adaptação à clausura feminina que desvirtuaram o edifício jesuíta, iniciando-se mesmo um irreversível e fatal desmembramento da propriedade. Regressadas as freiras aos seus locais de origem pouco tempo depois, o complexo edificado de Setúbal transformou-se numa fonte de rendimento, desmembrado em diferentes parcelas, o que permitiu transformações de fundo para adaptação de programas tão díspares como um teatro, edifícios habitacionais, fábricas de cortiça e de conservas alimentícias.39 A zona do antigo colégio que se desenvolvia na vertente nascente/sul da cerca estava na posse de Francisco José Pereira Júnior, filho do homómino Francisco José Pereira, industrial galego que aí havia instalado uma fábrica de cortiça. Homem profundamente devoto às causas da igreja, Francisco José Pereira Júnior compra em 1874 o convento de São Francisco e vende-o aos jesuítas para, na impossibilidade de voltarem a ocupar o antigo colégio, poderem fundar novo estabelecimento escolar em Setúbal. O convento de S. Francisco é o mais antigo cenóbio da cidade, tendo sido fundado por franciscanos em 1410 e alvo de muitas transformações e reedificações, pouco ou nada restando da fundação primitiva. Em 1834 os franciscanos são expulsos e o edifício incorporado nos bens próprios nacionais e arrematado em hasta pública por Joaquim O’Neill. Em 1840 João Torlades O’Neill mandou destruir grande parte do edifício e em 1874 Francisco José Pereira Júnior adquire-o, para em 1875 o vender aos padres da CJ que o adaptaram a colégio. Segundo Manuel Envia “o visitador das obras era o Sr. Francisco José Pereira, que, todos os dias subia a ladeira de S. Francisco patriarcalmente montado numa burrinha branca”40. Segundo o mesmo autor, trabalharam na obra do edifício “os melhores operários da cidade: o velho Gomes carpinteiro, o mestre António da Lipia; mestre Ramos e o hábil Agostinho Moura”. Em 1877 o colégio foi aberto e iniciado o curso de filosofado. Seguindo a tradição educativa da primeira fase da CJ, o ensino das ciências foi repescado, sendo leccionadas no filosofado disciplinas como matemática, física, química e história natural.

39 Para uma melhor compreensão destas transformações veja-se a obra De Colégio de S. Francisco Xavier a Palácio Fryxell – História e análise arquitectónica. 40 Manuel Envia, Prosas regionais, Setúbal, 1947.

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Fig. 4 Convento de S.Francisco, adaptado a colégio.

Fig. 5 Estudantes do 2º ano de filosofia no colégio de S. Francisco, 1892-1893.

Fig. 6 António Oliveira Pinto, S.J. no gabinete de física do colégio.

Fig.7 Estudantes jesuítas a observar um eclipse solar (ca. 1890). Fotografias gentilmente cedidas pelo Sr. Padre António Júlio Trigueiros.

Apesar de se continuar a veicular a informação de o colégio ser exclusivo para os quadros da CJ, podemos atestar que o ensino também se destinava a laicos. Um anúncio, assinado pelo reitor do colégio, padre Bento Rodrigues, e publicado na Gazeta Setubalense a 18 de Julho de 1881, mostra que se ministrava o ensino primário e secundário a laicos: “Este collegio conta apenas cinco annos de existência, e os alumnos, que nos ultimos tres deu por habilitados para fazerem exame no lyceu nacional, tanto de instrução primaria, como secundaria, tem ficado approvados. (...) Ainda assim o colégio não tem progredido muito, em razão da sua distância do centro da povoação. Pois muitos pais de familia manifestam o desejo de mandar seus filhos a cursarem as aulas do dito colegio, allegam porém a difficuldade da distancia. Vamos, pois, tratar de remover essa dificuldade pela fórma seguinte: Se houver mais alguns pais de familia, que estejam no mesmo caso, estabelece-se um meio de transporte seguro, decente e commodo, para conduzir os alumnos com toda a regularidade de suas casas ao collegio e vice-versa, 152

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assim de manhã, como de tarde, pagando cada um, além da mensalidade das aulas, a modica pensão de 600 réis mensaes. D’esta maneira os meninos aproveitam tempo, livram-se de varios perigos, e poupam em fato e calçado, que costumam romper pelo caminho e em brinquedos, muito mais da importancia do transporte. Havendo sufficiente numero de alumnos, que queiram utilizar-se d’este meio, o collegio obriga-se a ensinar desde já todas as materias do 1º, 2º e pelo menos parte do 3º ano do curso dos lyceus; e conforme o adiantamento e numero dos alumnos irá augmentando as disciplinas até completar o quadro dos estudos, segundo o novo programma, approvado pela carta de lei de 14 de Junho de 1880. (...) Para todos aqueles que se aproveitarem do indicado meio de transporte ficará reduzida a mensalidade das aulas (...). Continua dando-se aos meninos pobres instrução primária gratuita, e aqueles que se distinguirem por seu comportamento civil, moral e religioso, serão igualmente admitidos gratis a todas as disciplinas de instrução secundária”. Para além de um colégio, a CJ fixou em Setúbal uma residência: a igreja e residência do Sagrado Coração de Jesus. Em 1880 os jesuítas compraram a antiga igreja paroquial de Nossa Senhora da Anunciada e parte do edifício do antigo hospital da confraria da Anunciada. A igreja, muito destruída pelos sismos que assolaram Setúbal (1755 e 1858) foi, segundo Manuel Envia41, comprada em 1871 por António Albino e “o coro foi convertido parte em habitação e parte em armazém, conservando-se porém as janelas, as quatro capelas e o arco cruzeiro intactos, bem como a frontaria. Segundo o mesmo autor, “os padres de São Francisco” [que seriam os jesuítas do colégio de São Francisco] “compraram esta igreja em 1895 por 3.000$000 (três contos) e trataram de a completar fazendo-lhe o tecto e sobrado e ornamentando-a interiormente. O trabalho de pintura foi dado a Francisco Augusto Flamengo por 700$000 reis». Quinze anos depois de fixarem novamente residência em Setúbal, nova convulsão afecta os jesuítas. A 4 de Outubro de 1910 os apoiantes da república tomaram a igreja, destruindo-a: “Quebraram as portas, as janellas, as tribunas, os altares, o côro, os confessionários, o harmónio, as cadeiras (ouvi que até arrancaram o ladrilho e o soalho da igreja à força de picareta). [A igreja] tinha no camarim do altar-mor, uma estatua grande do mesmo Sagrado Coração de Jesus. Os assaltantes (…) pricipitaram-na (…) quebrando-a em mil pedaços. (…) a imagem do Senhor Morto, foi como as outras, arrastada, mutilada e cuspida. Contaram-me que a esta imagem cortaram a cabeça. Depois, com blasfema irrisão foram levar “aquelle homem”, como diziam, ao hospital da Misericórdia, para que o tratassem as irmãs”42. 41 Manuel Envia, op. cit. 42 Gonzaga Azevedo, S.J. , Proscristos -Notícias circunstanciadas do qeu passara os religiosos da Companhia de Jesus na revolução de Portugal de 1910, Valladolid, 1911.

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nota final Primeiramente expulsos por Pombal em 1759, abrangidos no processo de extinção das ordens religiosas em 1834, os jesuítas foram novamente afectados pela convulsão política de 1910, através do Decreto de 8 de Outubro da República Portuguesa que determinou uma nova extinção e expulsão das ordens religiosas. Segundo Francisco Malta Romeiras as medidas dos republicanos que “terminaram na prisão e posterior exílio dos jesuítas portugueses, representam o culminar do anticlericalismo oitocentista português em que os jesuítas eram acusados de promover a destruição da família e de serem decadentes, manipuladores e os principais responsáveis pelo atraso científico e educativo no nosso país.”43 Com um projecto assistencial e educativo que se distanciava dos restantes institutos religiosos, a CJ demonstrou o desejo de se fixar em Setúbal nos primórdios da sua fixação em território luso. Fundando um colégio em 1656 influenciou a espiritualidade e formação dos sadinos até 1910, com um interregno entre 1759 e 1876. A sua memória em Setúbal persiste, no culto do padroeiro da cidade – S. Francisco Xavier –, mas também nos edifícios que construíram, reconstruíram e adaptaram. Fica muito por investigar relativamente à história desse património construído, pelo que esperamos que este artigo sirva para alertar para a necessidade de estudos mais profundos em torno desses edifícios.

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43 Francisco Malta Romeiras, Das ciências naturais à genética: a divulgação científica na revista Brotéria (1902-2002) e o ensino científico da Companhia de Jesus nos séculos XIX e XX em Portugal. Tese de doutoramento apresentado à Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, 2014.

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