A comunicação democrática, uma utopia real

July 4, 2017 | Autor: João Peschanski | Categoria: Democracia, Sociologia da Comunicação, Real Utopias
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A comunicação democrática, uma utopia real1 João Alexandre Peschanski

Docente da Faculdade Cásper Líbero. Mestre em ciência política pela USP. E-mail: [email protected]

Renato Moraes

Docente da Universidade Federal de São Carlos. Doutor em ciência política

O presente trabalho apresenta o diagnóstico normativo-institucional da comunicação profissional e indica limitações do atual modelo de comunicação, tanto no que diz respeito à capacidade de atuar como jornalista quanto de potencializar o caráter democratizador inerente a essa atuação. Propõe-se, no plano teórico, um conjunto de reformas empoderadoras, em linha com a teoria em voga das utopias reais, proposta pelo sociólogo Erik Olin Wright. Palavras-chave: Mídia; jornalismo; democracia; utopia. The democratic communication, a realistic utopia This piece presents a normative-

La comunicación democrática, una utopia real En este trabajo se presenta una evaluación

institutional assessment of professional communication,

normativo-institucional de la comunicación profesional,

highlighting the limiting nature of the current institutional

destacando el carácter limitativo de la configuración insti-

setting with regard to the ability to act as a journalist and to

tucional actual en relación con la capacidad de actuar como

leverage the inherent democratizing character of this acting.

periodista y aprovechar el carácter democratizador inheren-

Then, it makes a theoretical case for a set of empowering

te a esta actuación. Entonces propone, en teoría, un conjunto

reforms, in line with the current theory of real utopias as

de reformas de empoderamiento, en línea con la teoría en

proposed by sociologist Erik Olin Wright, with the goal of

boga de las utopías reales propuesta por el sociólogo Erik

transforming the limiting nature of the institutional setting

Olin Wright, con el objetivo de transformar el carácter limi-

of communication.

tativo de la configuración institucional de la comunicación.

Key-words: Media; journalism; democracy; utopia

Palabras-clave: Medios de comunicación; periodismo; democracia; utopía.

1. Agradecemos a Erik Olin Wright e Robert W. McChesney o estímulo inicial à elaboração do argumento aqui proposto, no quadro da 107a Conferência Anual da Associação dos Sociólogos Americanos (ASA), realizada em Denver, em 2012, com o tema: “Utopias reais: projetos emancipadores, desenhos institucionais e futuros possíveis”. Agradecemos ao Havens Center, da University of Wisconsin-Madison, em especial a seus integrantes David Calnitsky, Matías Cociña e Tatiana Alfonso Sierra. Agradecemos ao parecerista anônimo os comentários e sugestões críticas que, além de pertinentes, contribuíram para aprofundar ainda mais o argumento aqui desenvolvido. Toda a responsabilidade pelo argumento apresentado neste ensaio recai apenas e unicamente em seus autores.

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É comum definir a mídia como um poder, identificando nela uma razão política. Essa definição é de senso comum, mas também está presente em teorias políticas basilares desde a modernidade, de correntes ideológicas ecléticas. Estava presente na formulação inicial da imprensa como quarto poder, no início do século XIX (Ianoni, 2005). A razão política deve-se à importância da mídia em sustentar o funcionamento das instituições, especialmente da democracia. São variados os mecanismos midiáticos que potencialmente contribuem para a política: prestação de contas e cobrança dos gestores políticos, informação e educação dos cidadãos, fortalecimento de cultura cívica, para citar apenas alguns. A importância da mídia para a política influenciou o surgimento de códigos e parâmetros profissionais para a atividade jornalística. O principal paradigma da atuação na mídia desde o início do século XX se fundamentou na ideia do jornalismo profissional. Trata-se de uma ideia revolucionária: surgiu com a modernização do jornalismo, que preconizou separar os interesses dos proprietários dos meios de comunicação e anunciantes da equipe jornalística, potencializando o caráter idealmente fiscalizador do quarto poder. Expressão dessa forma de pensar foi, nos Estados Unidos, a Comissão Hutchins, de 1947, que redigiu um dos primeiros códigos de ética da profissão. O documento estabeleceu uma visão transformadora para a época. O jornalismo teria de ser exercido de maneira responsável, sem abusos, até mesmo porque o mau jornalismo poderia ter consequências deploráveis para o bem-estar da sociedade, o princípio norteador máximo da atuação jornalística. O exercício do jornalismo tinha de ser neutro, independente dos pontos de vista de indivíduos e organizações poderosas. Os códigos e parâmetros tais quais formulados na ideia do jornalismo profissional não são eficazes e efetivos para garantir o funcionamento da democracia, argumentamos. O paradigma ruiu sob a pressão das configurações de mercado e poder que estruturam a profissão (Chomsky & Herman, 1988; Arbex, 2001) e pela tendência racional ao desinteresse (Downs, 1999; Martinelli, 2006). Há iniciativas em várias partes do mundo (Viana, 2013), especialmente a América Latina (Maringoni, 2012), para estabelecer novas formas de produção midiática, que levem a sério o controle democrático do poder da comunicação, chegando-se a sugerir normativamente a criação de um quinto poder para fiscalizar o quarto poder, atrelado demais aos interesses do mercado por conta de sua modalidade empresarial de organização, o que gera perversões na realização de suas funções social e política (Ianoni, 2005). Apresentamos elementos para um novo paradigma de comunicação, pautado na proposta de “utopias reais” (Wright, 2011, 2012), que se fundamenta na ideia de democracia igualitária radical e profunda, e indicações ainda preliminares para uma nova configuração institucional.

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Ascensão e crise do jornalismo profissional A ideia do jornalismo profissional, sintetizada no código da Comissão Hutchins, mas de fato em expansão antes dele, foi acompanhada por várias transformações no fazer jornalismo e na formação dos profissionais. Difundiram-se escolas de jornalismo: nos Estados Unidos (e, ao que consta, no mundo), não havia nenhum centro de formação profissional de jornalistas até 1900; algumas décadas depois, todas as grandes universidades desse país tinham escolas de jornalismo. O editor Joseph Pulitzer, que inspirou o principal prêmio de jornalismo estadunidense, que tem seu nome, foi um dos precursores, idealizando a construção e o currículo da Escola de Jornalismo da Universidade Columbia, em Nova York, de 1912. No Brasil, a ideia do jornalismo profissional chegou mais tarde. Durante a primeira metade do século XX, os principais meios de comunicação, com raras exceções, veiculavam explicitamente os interesses de seus donos ou aliados. Foi o período de ouro do conglomerado Diários Associados, de Assis Chateaubriand, e do jornal Última Hora, de Samuel Wainer. Sob influência direta da experiência estadunidense, houve na década de 1950 algumas tentativas de implementar o jornalismo profissional, mas não tiveram sucesso. Curiosamente, foi durante a ditadura, quando parte da mídia foi sistematicamente censurada, que se impuseram reformas para supostamente modernizar o jornalismo brasileiro, interrompendo, segundo os militares na época, o irresponsável populismo midiático pré-1964. O Decreto-Lei 972/1969 limitou, entre outros pontos, o exercício da profissão de jornalista aos portadores de diploma de curso superior de jornalismo. Esse decreto serviu para justificar violências contra a mídia de oposição, especialmente a imprensa alternativa. A maioria dos jornalistas não tinha diploma, ou seja, podia ser eventualmente proibida de exercer a profissão, se incomodasse o regime militar (Kushnir, 2004). Apesar de a primeira faculdade de jornalismo, a Faculdade Cásper Líbero, ter sido criada em 1947, muitas escolas de jornalismo só foram abertas na década de 1960, influenciadas, aliás, pela exigência do decreto. Houve reflexões sérias sobre o jornalismo profissional e sua prática no Brasil, em especial as experiências do jornalista Cláudio Abramo (1988), que tentou criar uma linha profissional de jornalismo na virada das décadas de 1970 e 1980. A promessa de que, sob exclusividade do jornalista profissional, a notícia seria objetiva, não partidária e precisa não se realizou plenamente. Nem nos Estados Unidos, nem no Brasil, nem alhures. As reformas profissionalizantes deram-se num contexto de redução sistemática dos custos de reportagem. A prática jornalística tornou-se, no geral, a veiculação das opiniões de fontes oficiais; isso é evidentemente menos custoso do que apurar e verificar essas opiniões. O repórter Chris Hedges (2009), por

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sinal vencedor do Pulitzer, revela uma das consequências dessa prática: “A mídia tem acesso à elite, apenas se esta relata de maneira fiel o que a elite quer que seja relatado. No momento em que esse pacto se rompe, os repórteres, os repórteres de verdade, são marginalizados e não têm mais acesso às fontes”. Outra consequência é que, quando as fontes oficiais se calam, não há pauta, e o repórter que questionar os silêncios convenientes da elite é tachado de antiprofissional. Além disso, como salienta José Arbex Jr. (2001), o exercício do jornalismo dito profissional depende em grande parte de notas que recebem de assessores de imprensa e agências noticiosas, reduzindo simultaneamente os custos de produção e a credibilidade do que é publicado. Num contexto de enxugamento das redações, novamente na lógica de economizar custos, a habilidade dos jornalistas de investigar é ainda menor. Não há evidência de que, no sistema de mídia que existe hoje, cada vez mais concentrado, haja uma tendência de reversão do cenário avesso ao jornalismo profissional. No Brasil, a situação é ainda pior, na medida em que a concentração dos veículos de comunicação em poucas mãos é intensa, os passos para uma transformação do modelo de comunicação são tímidos e a política vigente é de apoio aos grandes conglomerados (Brant, 2013). A concentração da comunicação brasileira é sustentada por subsídios públicos, ou seja, é política de governo. Dados da Secretaria de Comunicação Social (Secom), divulgados em 13 de setembro de 2013 pela revista Carta Capital, atestam a dependência da mídia brasileira em relação a esses subsídios. Diz a matéria: De um total de 161 milhões de reais repassados a emissoras de tevê, rádios, jornais, revistas e sites desde o início do governo Dilma Rousseff, 50 milhões foram direcionados apenas à tevê Globo. Ainda entre as emissoras, a Globo Comunicação e Participações LTDA recebeu 833,8 mil reais e a Globosat Programadora, 810,3 mil. Isso soma cerca de um terço de toda a verba publicitária do governo federal. A família Marinho recebe ainda por: Rádio Globo (730 mil), Infoglobo, que edita O Globo e o Extra, 927,4 mil, Globo Participações, que cuida das operações na internet, 952,9 mil. O jornal Valor Econômico, do qual o grupo detém 50%, embolsou 164 mil. E a Editora Globo, responsável pela revista Época, 479 mil.

Nota a reportagem que esses dados levam apenas em consideração os repasses do governo federal – matérias subsequentes mostram que o mesmo desequilíbrio se dá nos repasses das administrações estaduais, incluindo São Paulo – e que não entram os investimentos em propaganda de empresas públicas, como Petrobras e Caixa Econômica Federal. Com a divulgação dos dados, reportagens denunciaram o repasse fraudulento de verbas públicas a veículos de comunicação inexistentes. O desequilíbrio e a ineficiência mostram que, em pelo menos alguns casos, o repasse de verbas se dá com base em critérios que respondem provavelmente mais a pressões de grupos políticos, inclusive de lobby dos próprios donos dos meios de comunicação, do que do

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interesse público. Vale notar que não argumentamos contra o investimento público em comunicação, que, bem administrado e de acordo com princípios profundamente democráticos, é positivo. A mídia, na medida em que solidifica a democracia, é um bem público fundamental e que, em muitos casos, por mais que seja útil para a sociedade democrática eficiente, não se sustenta apenas com os fundos coletados por propaganda privada, assinaturas e vendas. A inviabilidade mercadológica é notória na mídia na internet.

O desinteresse racional A crise da mídia profissional, na sua relação com a configuração organizacional da imprensa, atrela-se diretamente à tendência geral pelo desinteresse por jornalismo de qualidade. Há várias explicações para esse desinteresse. Há, em geral, ênfase na noção de que, com as tecnologias de espetacularização, o entretenimento sobrepôs-se ao jornalismo. O argumento que desenvolvemos aqui - o desinteresse racional - é relativamente complementar a essa ênfase na espetacularização. As regras do jogo democrático tais quais existem no mundo hoje, inclusive no Brasil, estimulam de maneira generalizada a apatia, a falta de participação dos cidadãos e da vontade de participar da política. São desdobramentos da linha racionalista de pensar a atividade social de Downs (1999). E são desdobramentos surpreendentes, pois a ideia de democracia é extraordinária - o governo do povo, pelo povo, para o povo - com a promessa de que o povo é nela empoderado. A realidade, entretanto, é que o povo, chamado a ter poder, tem incentivos racionais a desinteressar-se e eventualmente delegá-lo. É esse um dos principais enigmas da teoria democrática (Dahl, 2012), com repercussão imediata nas razões da imprensa. A questão sobre os incentivos à apatia e ao desinteresse é multidimensional, isto é, pode ser tomada por vários ângulos. Uma forma de responder, habitual, é colocar o foco na cultura. No caso brasileiro, o povo não quer participar da democracia porque a indolência seria um traço comportamental de origem, que remontaria a nossa origem colonial. Temos assim um componente macunaímico inescapável, nessa forma de pensar. Outra forma de responder é que as instituições políticas seriam falhas, ineficientes, tomadas por corruptos, e a democracia seria apenas uma fantasia, um fingimento compactuado, da qual não faria mesmo sentido participar. As ditas respostas culturalista e conjuntural têm bastante ressonância e são até intuitivas. Aliás, essas respostas informam importantes cientistas sociais e, principalmente, formadores de opinião. Apresentamos aqui uma forma diferente de pensar o problema. Imaginemos que, de repente, de um dia para a noite, no estalar dos dedos, estejamos em uma sociedade contemporânea, capitalista, em que as pessoas não tenham uma cultura da indolência e o sistema político seja eficiente. Haverá participação? Volume 13 – Nº 2 – 2º Semestre de 2013

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Mesmo nessa sociedade melhorada, o comportamento social esperado é a apatia. Vale notar que não estamos dizendo que todos seremos apáticos. Há sempre pessoas que, por um motivo ou outro, se revoltam, se mobilizam, levam a sério as eleições, mesmo quando não são candidatos, se filiam a partidos, se preocupam com o devir social, buscam informar-se, mas a regra geral, para o grosso da população, é a não mobilização e o desinteresse. A chave da resposta está precisamente no modo como entendemos o fato de a democracia ser o governo do povo, pelo povo, para o povo. A democracia faz parte de um grupo específico de fenômenos que podemos chamar de “bens públicos”, algo que, se produzido, beneficia todas as pessoas, mesmo aquelas que não se envolvem na produção ou não contribuem para manter sua produção. Outra forma de pensar sobre isso é que bens públicos são coisas e processos cujo custo é independente do número de pessoas que os consomem (Olson, 1999). Quando a democracia está instituída, isso beneficia potencialmente todo mundo, aqueles que se mobilizam para sustentá-la e aqueles que se mantêm apáticos. Ou seja, mesmo apáticas as pessoas beneficiam-se da ação coletiva dos outros. Ficar apático faz com que se “economizem” os custos de participar: por exemplo, discutir e informar-se. Racionalmente, há um interesse em não participar, se existe a possibilidade de “pegar carona” na participação dos outros. A ideia de carona política em democracias agrava-se na constatação de que o impacto de um voto, de uma unidade de mobilização, de um corpo a mais na rua, é quase nulo. O fato de se votar em tal ou tal candidato tem um impacto quase nulo na chance de eleição desse candidato preferido. No caso das pessoas e dos grupos ricos, a questão do impacto é diferente, pois, pelos limites intrínsecos que o capitalismo coloca na democracia, eles têm mais capacidade de influenciar o resultado final da decisão política. Por exemplo, uma indústria farmacêutica de ponta tem interesse em se mobilizar para impedir a votação de uma medida que vá contra seus lucros, até porque tem acesso a meios para influenciar essa votação. A apatia racional tem uma implicação fundamental para o jornalismo, aliás para o consumo de informação: o incentivo à ignorância racional. Sabemos que, assim como a participação, a informação é necessária para a democracia. Mas, assim como a participação, também informar-se é custoso. É preciso comprar um jornal, manter-se atualizado, decodificar informações complexas. Aliás, para que fazer todo esse esforço de adquirir informação de qualidade? Ter acesso individual a informação de qualidade tem um impacto praticamente nulo no resultado da decisão política. Se há apenas uma pessoa que, para decidir sobre uma norma social, estuda, lê os clássicos, enquanto todo o resto está apenas no universo do entretenimento, o impacto da pessoa informada é praticamente nulo na arena política. Por isso, há um incentivo para as pessoas adquirirem informações a custo zero, ou seja, aquele que não exige esforço, que está lá, facilmente disponível, que não exige estudo: a TV ligada nos piores canais,

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o boletim da igreja etc. Não a publicação acadêmica, o debate de ideias. A informação que geralmente se tem por meios a custo zero - basicamente os meios em que o emissor “paga” para que o destinatário veja o que ele quer emitir, como a propaganda - é de má qualidade. E evidentemente isso tem impacto no tipo de jornalismo que é esperado, um jornalismo de má qualidade, a custo zero.

Elementos para uma mídia profundamente democrática De modo estrutural, não é do interesse do capitalismo, incluindo os donos dos meios de comunicação, e dos governos que lhe são funcionais, alimentar o acesso democrático à informação. A falta de transparência — por exemplo, sobre as razões ou os impactos de uma decisão empresarial — é um elemento central do sistema em que vivemos. De modo estrutural também, há incentivos racionais para que as pessoas não se interessem em consumir jornalismo de boa qualidade. A tendência racional é ir em busca de um produto de pior qualidade, na medida em que o custo da informação é elevado demais em relação ao impacto médio na arena social. Pelas razões estruturais, é preciso repensar fundamentalmente o sistema de mídia. E, afirmamos aqui, isso se faz com uma superação do paradigma do jornalismo profissional – não queremos dizer que a figura do jornalista, formado e competente, tenha de desaparecer, mas que o modelo como um todo deve ser fundamentalmente participativo. Para superar um padrão e um modelo institucional vigente, é importante ter uma alternativa desejável que seja racional e eficaz. De que adianta derrubar um sistema imperfeito se não existe uma alternativa melhor? Tal questionamento vale para toda e qualquer instituição, incluindo a comunicação. Essas alternativas viáveis, que se podem visualizar e que, quando postas em prática, não se pervertem imediatamente, são identificadas como “utopias reais”, arranjos institucionais que realizam um potencial democrático igualitário radical e profundo. Um verdadeiro problema a toda configuração alternativa é que a realidade, tal qual existe, parece enraizada demais, quase imutável, e a apresentação de alternativas institucionais testáveis contribui para desmistificar essa percepção da imutabilidade. Um princípio-chave de uma comunicação efetivamente democrática é a participação social na produção jornalística. Por um lado, a participação fortalece o caráter empoderador do exercício da comunicação, fazendo com que aquele que atualmente é receptor estático se torne engajado na própria compreensão de sua realidade a partir da produção de códigos significáveis a outros. Por outro lado, a participação torna mais eficiente a apropriação da democracia por aqueles que nela têm interesse, isto é,

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aqueles que são afetados pelas decisões tomadas em instituições políticas. Há experimentos variados nesse sentido, que vão da imprensa alternativa com base comunitária às práticas de financiamento coletivo de iniciativas de comunicação. Apresentamos aqui alguns elementos que podem levar à criação e à continuidade de um modelo midiático utópico real. Para isso, o modelo de subsídios públicos, tal qual se manifesta no Brasil, mas não exclusivamente, precisa ser transformado. Não se trata de impedir o investimento da sociedade na comunicação que sirva à sociedade, mas democratizar substancialmente as decisões sobre o investimento. O aspecto “bem público” da comunicação, definidor do caráter democrático de uma sociedade (Peschanski, 2007), precisa ser aprofundado e generalizado, defendemos, no sentido de reverter os desequilíbrios e ineficiências do modelo atual de subsídios à comunicação. Sob influência das propostas de Bruce Ackerman (2013), Bruce Ackerman e Ian Ayres (2002), Archon Fung e Erik Olin Wright (2003) e Robert McChesney (2012) para revigorar a democracia nos Estados Unidos, listamos aqui elementos que nos parecem fundamentais para um modelo democrático de subsídios públicos à comunicação, especialmente para o Brasil. Não se trata de apresentar um modelo acabado, mas ideias mais ou menos vagas, provocações utópicas, mas com base realista, que ecoam, em parte, posições das organizações que lutam em prol da democratização da mídia. Vale notar, mais uma vez, que o princípio básico desses elementos é que os subsídios públicos à comunicação são imperativos para o funcionamento democrático, e não devem ser cortados ou rejeitados, mas aprofundados e generalizados de maneira democrática. 1. Os subsídios públicos deveriam ou apenas ser destinados a veículos de comunicação não comerciais sem fins lucrativos ou ser destinados a um fundo público, o qual definiria a alocação de recursos e seria gerida por uma estrutura tripartite, paritária, de poder composta por representantes dos meios de comunicação, por representantes dos profissionais de comunicação e por representantes da sociedade civil organizada. Trata-se de uma exigência forte, mas que parece ser fundamental para que a comunicação de interesse público prevaleça em relação a estratégias de maximização de lucros empresariais nos veículos que recebem subsídios públicos. Isso também faz com que os repasses públicos sejam suficientes para manter os meios de comunicação. Faz sentido para uma democracia investir maciçamente na comunicação, na medida em que esta é um bem público. É possível imaginar uma sociedade em que coexistam veículos de comunicação exclusivamente subsidiados pelo público e outros que sejam totalmente mantidos por investimento privado. 2. O destino dos subsídios públicos deveria estar sob o controle da sociedade civil organizada, não do Estado. O controle estatal, como os dados da Secom ilustram, pode levar, até mesmo sem maldade intencional, a fraudes, ineficiências, desequilíbrios, pelo simples fato de o Estado ter uma lógica interna que o põe permanentemente sob tensão e pressão. Os subsídios públicos à comunicação deveriam

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estar blindados contra isso. Pode-se imaginar um modelo em que a quantia total destinada aos subsídios públicos da comunicação seja partilhada igualmente por todos os cidadãos e que estes pudessem escolher, entre todos os veículos de comunicação não comerciais e sem fins lucrativos, aqueles nos quais querem investir. O poder real de investimento na comunicação, nesse cenário imaginado, torna-se profundamente democrático, já que o controle sobre os repasses é de cada cidadão, como se votasse com a quantia que lhe cabe nos veículos de comunicação que prefere. No governo Dilma, a administração federal – sem contar as empresas públicas – destinou 161 milhões de reais a repasses a veículos de comunicação, ou seja, no cenário imaginado menos de um real per capita. É pouco para de fato empoderar o cidadão como tomador de decisão: em virtude da importância da comunicação para a democracia e uma sociedade funcional, é preciso aumentar essa quantia. No caso dos Estados Unidos, estima-se que seriam necessários entre 400 e 500 reais por pessoa; não há cálculo feito ou dado consolidado para o caso brasileiro, mas é possível estimar um valor per capita que fosse suficiente para manter um sistema comunicacional democrático e vigoroso. 3. Todo repasse de verbas públicas deveria ser feito, almejando o máximo de informação possível para a tomada de decisões, uma estratégia de informação perfeita. Por exemplo, poderia existir um mecanismo, com atualização automática, que controlasse os níveis de investimento em cada veículo. Se o poder de subsidiar veículos for democratizado e estiver sob controle dos cidadãos, isso é fundamental para que os controladores dos subsídios públicos democraticamente distribuídos possam tomar decisões de investimento mais bem pensadas, levando em conta veículos que já têm fundos suficientes. 4. Para que um modelo de distribuição democrática dos subsídios funcionasse seria preciso controle social. Para evitar fraudes, é fundamental que também o controle social seja o mais democrático possível, blindado contra os interesses próprios da lógica mercadológica e estatal. Há vasta literatura sobre a formação de instituições decisórias participativas e democráticas; no caso da mídia, vale conferir o livro Sistemas públicos de comunicação no mundo: experiências de doze países e o caso brasileiro (2009), do coletivo Intervozes, que analisa, entre outros pontos, vários modelos de gestão e participação de mídia no mundo. A publicação revela o dramático déficit democrático da gestão da comunicação pública no Brasil, em que esferas participativas e decisões permanecem sobre o controle simples do Estado; o livro traz casos em que há mecanismos participativos e plurais de controle da comunicação – o que chama de modelos complexos de participação – que podem servir de base para transformações institucionais do modelo brasileiro. Esses quatro pontos que propomos aqui são evidentemente controversos, mas podem ser elaborados e simulados para avaliar suas consequências e méritos tanto em relação à eficiência da distribuição de subsídios públicos à comunicação quanto ao funcionamento democrático. Tais propostas tendem a concentrar a produção midiáVolume 13 – Nº 2 – 2º Semestre de 2013

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tica ou torná-la mais plural no médio e longo prazos? Em que medida a coexistência de meios subsidiados comercial ou publicamente cria problemas básicos ao modelo? Em que pontos a preocupação em evitar as pressões do mercado e do Estado realmente é factível? Como se dará a competição dos diferentes meios de comunicação qualificados para receber os subsídios? Como se dará a distribuição dos fundos públicos para os investimentos sociais na comunicação? De maneira geral, em que medida tal proposta é desejável numa perspectiva de justiça social?

Considerações finais Apresentamos uma proposta de democratização da comunicação, fundamentada numa distribuição igualitária e participativa de subsídios públicos. No modelo do jornalismo tal qual existe hoje, esses subsídios são condição imprescindível da continuidade dos veículos de comunicação que, em virtude de suas condições estruturais, não desenvolvem de maneira ótima a prestação da comunicação no sentido de fortalecer e aprofundar a democracia. Sugerimos que a comunicação deve ser pensada a partir de outro paradigma, em que é defendida e exercida como bem público, fundamentalmente democratizada. Parte de uma alternativa democrática ao mundo como ele é, a democratização efetiva da mídia tem de ser vista como um rearranjo institucional, cujos mecanismos podem ser pensados, simulados e discutidos ao mesmo tempo em que se luta, no princípio, por sua realização. Os quatro elementos que apresentamos – sobre o tipo de veículos que poderiam receber subsídios públicos, o mecanismo de distribuição dos subsídios, a tecnologia de controle e alocação das verbas e o modo de controle social – são eventuais componentes institucionais de uma alternativa à comunicação tal qual existe hoje. A comunicação entendida como utopia real é necessariamente um ponto futuro em relação ao mundo como o vivemos hoje. A concretização imediata desses elementos que apresentamos e outros é dificilmente viável, por mais que fosse desejável, já que o contexto não é favorável. No entanto, à medida que se apresenta uma fórmula convincente de alternativa a distância entre o que é e o que gostaríamos que fosse se torna menor. Também em espaços de contestação mais amplos, como o movimento global Occupy (Peschanski, 2012) e os “protestos de junho” (Sakamoto, 2013), efetivam-se, mesmo que efemeramente, potenciais alternativos.

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