A COMUNICAÇÃO NA CONTRAMÃO A TARIFA ZERO COMO ESTUDO DE CASO. FABIO CYPRIANO

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FABIO CYPRIANO

A COMUNICAÇÃO NA CONTRAMÃO A TARIFA ZERO COMO ESTUDO DE CASO

Dissertação apresentada à Banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE EM COMUNICAÇÃO E SEMIóTICA, sob orientação do Prof. Dr. Norval Baitello Júnior

PUC - SP 1995

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Agradecimentos

Ao meu orientador, Prof. Norval Baitello Júnior, pela confiança e amizade. Ao CNPQ, que financiou esta pesquisa. Aos entrevistados para essa pesquisa: Chico Whitaker, Perseu Abramo, Luiza Erundina, Lúcio Gregori, Paul Singer, Pedro Dallari, Paulo Sandroni e Chico Malfitani. Aos amigos do CISC, em especial à Claudete, ao Eugênio e à Malena. Ao Alexandre Secco, ao Wilson Ferreira Jr., ao Jabes Campos, à Leila M. Galli dos Santos, ao Renato Laselva, à Luciana Symanski, ao João Sette Whitaker Ferreira, e aos meus pais, Thomaz e Alice. Sem o apoio, o estímulo e a generosidade destas pessoas, este trabalho não teria sido possível.

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Índice

A COMUNICAÇÃO NA CONTRAMÃO A TARIFA ZERO COMO ESTUDO DE CASO

Lista das siglas citadas

pg. 4

Introdução

pg. 6

Capítulo 1

- Pré-condições

pg. 16

Capítulo 2

- A concepção

pg. 32

Capítulo 3

- A publicidade

pg. 42

Capítulo 4

- O debate público

pg. 51

Capítulo 5

- Os últimos momentos

pg. 67

Capítulo 6

- Repercussões

pg. 78

Conclusões

pg. 86

Anexos

pg. 91

Bibliografia

pg. 98

*

*

O desenho da capa é a logomarca produzida pela MPM e constou das publicações da prefeitura sobre a tarifa zero.

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Lista das siglas citadas ANTP CEM CET CMTC CP DP DM FIESP FSP FT IPTU JT JB OESP PCB PCdoB PDS PDT PMDB PSB PSDB PSTU PT TCM TRANSURB TRE

- Associação Nacional de Transportes Públicos - Comissão Executiva Municipal - Companhia de Engenharia de Tráfego - Companhia Municipal de Transportes Coletivos - Colected Papers - Diário Popular - Diretório Municipal - Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - Folha de S. Paulo - Folha da Tarde - Imposto Predial e Territorial Urbano - Jornal da Tarde - Jornal do Brasil - O Estado de S. Paulo - Partido Comunista Brasileiro - Partido Comunista do Brasil - Partido Democrático Social - Partido Democrático Trabalhista - Partido do Movimento Democrático Brasileiro - Partido Socialista Brasileiro - Partido da Social Democracia Brasileira - Partido Socialista dos Trabalhadores Unidos - Partido dos Trabalhadores - Tribunal de Contas do Município - Sindicato das Empresas de Transportes Urbanos - Tribunal Regional Eleitoral

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Aqui embaixo a indefinição é o regime e dançamos com uma graça cujo segredo nem eu mesmo sei entre a delícia e a desgraça, entre o monstruoso e o sublime. Caetano Veloso

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Introdução

A objetividade é a ilusão de que as observações podem ser feitas sem um observador. Ernst von Glasersfeld

Quando Luiza Erundina venceu as eleições municipais em 15 de novembro de 1988, pela primeira vez um partido de esquerda chegava ao poder em São Paulo, a maior cidade brasileira. As expectativas em relação ao seu desempenho eram do tamanho da capital paulista. Expectativas que, eu também, como militante petista, compartilhei. Tive a oportunidade de acompanhar o governo de maneira bastante próxima, pois estive trabalhando com o vereador Chico Whitaker, na Câmara Municipal de São Paulo. Whitaker chegou a ser líder do governo, durante quinze meses, inclusive quando a tarifa zero foi discutida. Portanto, o olhar que permeia esta dissertação é bastante engajado, o que não significa que também não possa ser um olhar científico. A proximidade que tenho com todos os agentes desse processo facilitou em grande parte a pesquisa, pois com todos os entrevistados e pessoas do PT que me auxiliaram tive o tratamento de confiança que existe entre "companheiros", como se diz no Partido dos Trabalhadores. Sei dos riscos que tal proximidade pode acarretar para um trabalho acadêmico. Resolvi encarar esse desafio procurando vincular o saber teórico e a

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prática política, ao contrário de certo tipo de pensador que pede para que esqueçam tudo que escreveu ao chegar ao poder. Além do mais, o método aqui utilizado é "ditado pelo próprio objeto em questão, que fornece as informações primeiras, para um modelo que vai sendo construído a cada nova descoberta, a cada conhecimento novo sobre o objeto" (Baitello 1993: 12). A produção de conhecimento não está separada de nossa vida cotidiana. Essa idéia é defendida por Humberto Maturana, segundo a qual "el hecho de que en la vida diaria actuamos bajo la compreensión implícita de que el conocimiento tiene que ver con nuestras relaciones y coordinaciones interpersonales de acciones, se manifiesta en el hecho de que aceptamos el conocimiento en otros y en nosotros mismos sólo cuando consideramos adecuadas las acciones de otros o las proprias porque satisfacen el criterio concreto de aceptabilidad que aceptamos para lo que constituye una acción adecuada en el ámbito de las acciones vinculadas con la cuestión". (WATZLAWICK 1988: 159) Como salientei no início, havia uma grande expectativa em torno de Erundina por pertencer ao primeiro partido de esquerda a governar São Paulo. Essa expectativa poderia se resumir em quais seriam as novas práticas políticas que a esquerda utilizaria no exercício do poder executivo. Apesar de certos autores considerarem superados os conceitos de esquerda e direita, compartilho com Norberto Bobbio a idéia de "que não há nada mais ideológico, do que a afirmação que as ideologias estão em crise"(BOBBIO 1995: 33). Por isso, essa pesquisa tem por base a delimitação de que o governo de Luiza Erundina estava circunscrito ao campo da esquerda política e, portanto, situava-se dentro do imaginário produzido por esse campo. Para definir esse imaginário, utilizo a idéia de Bobbio de que:

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O que melhor caracteriza as doutrinas e os movimentos que se chamam de esquerda, e como tais tem sido reconhecidos, é o igualitarismo...não como a utopia de uma sociedade em que todos são iguais em tudo, mas como tendência, de um lado, a exaltar mais o que faz os homens iguais do que os faz desiguais, e de outro, em termos práticos, a favorecer as políticas que objetivam tornar mais iguais os desiguais.(BOBBIO 1995: 110)

Desorientação da esquerda

Ao ser eleito para governar São Paulo, supunha-se que o PT iria, a partir desse ideal de igualitarismo, realizar uma profunda mudança na forma de gerir a cidade, criando novas relações políticas a partir dele. Erundina chega ao poder no mesmo ano em que os paradigmas da esquerda caíram junto com o muro de Berlim. Portanto, num momento de crise e desorientação que, sem dúvida, repercutiu na ação do governo e do partido. De certa forma, pode ser compreendida num contexto mais global, pois:

As razões da desorientação da esquerda vêm do fato de que no mundo contemporâneo emergiram problemas que os movimentos tradicionais da esquerda jamais se tinham posto, ao mesmo tempo em que perderam validade alguns dos pressupostos sobre os quais haviam se apoiado não só o próprio projeto de transformação da sociedade mas também a sua força.(BOBBIO 1995: 23)

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O entendimento do papel da comunicação é, sem dúvida, um dos problemas que a esquerda enfrentou e enfrenta. Foi a partir dessa constatação que surgiu a idéia desta pesquisa: investigar como um partido de esquerda trabalhou a comunicação enquanto ocupante de um mandato no poder executivo, gerando políticas para toda a cidade. A partir dessa idéia geral, isto é, a comunicação no governo Erundina, escolhi um momento que fosse significativo e, ao mesmo tempo, não fosse amplo demais para que o objeto pudesse ser aprofundado o máximo possível. Pesquisar a tarifa zero surgiu a partir dessas premissas. Primeiro pela enorme repercussão que provocou durante os três meses que esteve em discussão, período bastante conveniente para uma pesquisa. Depois, por ter tido uma estratégia de marketing bastante agressiva. O projeto de tarifa zero propunha eliminar o pagamento da tarifa nos ônibus, com o sistema de transporte sendo custeado através de um substancial aumento de IPTU. Ele não foi um momento representativo de todo o período em que Erundina esteve à frente do executivo municipal, mas foi o mais significativo. Ele conseguiu reunir elementos que nenhum outro projeto do governo conseguiu: um amplo apoio popular de 65,3% dos entrevistados, medido através de pesquisa de opinião(1); foi o único projeto do governo que teve apoio irrestrito da burocracia partidária; e teve uma campanha de publicidade específica. Além desses elementos, Marilena Chauí, que foi Secretária de Cultura do governo Erundina, aponta o maior mérito político do projeto:

A tarifa zero eliminava - mesmo que seus autores não tivessem clara consciência disso, a dicotomia tradicional da esquerda (herança

(1) segundo pesquisa do Instituto Toledo & Associados encomendada pela prefeitura em dezembro de 1990.

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keynesiana tanto quanto da própria economia de esquerda) entre estatização e privatização. Isto é abandonava a idéia social-democrata do endividamento estatal para encargos sociais. Abandonava a idéia, já morta, do Estado desenvolvimentista deficitário para suportar as carências sociais. E não caia na perspectiva neoliberal da privatização. Em suma, matava de uma vez a polarização estatização-privatização. Introduziu uma concepção nova e contrária ao assistencialismo socialdemocrata e ao neoliberalismo, qual seja, a idéia da gestão pública de um serviço público através da intervenção na propriedade privada e na distribuição da renda. Introduzia a idéia da responsabilidade social pela desigualdade e pela justiça social, assim como a idéia da gestão pública (fundo de transporte) do serviço público. (CHAUÍ 1991: 8)

A citação resume a contribuição que tal proposta trouxe para a discussão de novos parâmetros para a esquerda, dentro da crise geral em que esta se situava. O objetivo desta pesquisa é analisar como o governo trabalhou com a comunicação desse projeto. Para tanto, veremos desde o surgimento da proposta, inclusive a situação do transporte na cidade antes do projeto, até sua elaboração e a estratégia para sua divulgação e aprovação. A tarifa zero proporcionou diversas leituras dependendo do grupo aos quais os diversos envolvidos pertenciam. Os técnicos de transporte tiveram uma visão diferenciada dos militantes petistas, que por sua vez tiveram uma postura diferente dos empresários. Mesmo entre os membros do governo não houve consenso sobre a tarifa zero. Todas essas leituras estarão presentes ao longo dos capítulos, mas sem querer apontar uma opinião consensual sobre a tarifa zero, o que é, em geral, compreendida como "opinião pública". Esse conceito é apontado pelo

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sociólogo alemão Jurgem Habermas como uma ficção (HABERMAS 1984: 283), pois enquadra "o povo como uma unidade orgânica e não como o conjunto de indivíduos

com

interesses

diferentes

e

(NASCIMENTO 1989: 87). Já para Harry Pross

freqüentemente (2),

conflitantes"

"a opinião pública é a soma

das opiniões publicadas" (PROSS 1987: 114), o que de certa forma não elimina o conflito das idéias, mas circunscreve apenas aos jornais

a formação da

opinião pública. No capítulo quatro será feita uma análise de matérias publicas sobre a tarifa zero, e no anexo 2 encontra-se a relação de todas as manchetes publicadas sobre o assunto, como uma forma de acompanhar o desenrolar da discussão desse projeto através da imagem criada pelos jornais. Analisar um momento específico do governo, que durou quatro anos, faz com que se perca a dinâmica do processo de mudanças pelas quais passaram seus agentes. Sem dúvida, Luiza Erundina e sua equipe mudaram sua forma de ação ao longo do exercício do mandato(3). Em relação à comunicação, a tarifa zero conseguiu reunir os dois momentos mais significativos do governo. De um lado, a comunicação como agito e propaganda, que vem da tradição dos partidos leninistas, e de outro lado a comunicação como estratégia de publicidade.(4)

Comunicação pública

(2) Harry Pross é jornalista, cientista político e cientista das comunicações. Nasceu em Karlsruhe, Alemanha, em 1923. Editou jornais e revistas de importância. De 1968 a 1983, foi professor e diretor do Instituto de Ciências da Comunicação da Freie Universität Berlin. (3) uma análise bastante apurada das mudanças na ação política de Erundina foi feita por Cláudio Couto, em sua tese de mestrado defendida em 1995 na USP. Couto mostra como o governo de Erundina superou suas origens, como partido criado fora do parlamento, que nasceu fazendo um contraponto à institucionalidade do Estado, para acabar assumindo uma lógica de partido governante.(COUTO 1995). (4) em sua dissertação de mestrado, defendida na USP, Bruno Fuser aponta justamente essas duas políticas de comunicação como características do governo de Erundina.(FUSER 1991)

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A comunicação é um processo inevitável (incontenible) entre os homens (PROSS 1987: 109). A partir do momento em que há dois homens, algo se comunica, mesmo que um não diga nada ao outro. Este algo pode ser intencionado ou descoberto. Para Harry Pross, entende-se como comunicação intencionada a comunicação como meio de uma intenção. Mas mesmo que não haja intenção, existe comunicação. Comunicar deve ser entendido como um processo natural e "comunicação não deve se confundir com algo que alguém pode entrar e sair à vontade"(PROSS 1987: 110). Por isso, a comunicação pública do governo de Luiza Erundina, que estará sendo analisada, será vista como um processo, onde não apenas a intenção será valorizada, mas toda manifestação que ...se desenvolva no campo perceptivo de um terceiro entre os pólos da identificação e privação. Para ser pública, a comunicação não necessita se fazer pensada neste terceiro, não necessita dirigir-se a ele. O fato de que se percebe como existente torna-a "pública" como comunicação indicadora. Da "alusão" se deriva a questão do significado que existe porque é percebido. (PROSS 1987: 114) Os ruídos na comunicação, que muitas vezes são desprezados na análise do discurso, pois não fazem parte da intenção, constituem também um veículo de conhecimento, uma vez que se percebem e qualificam o processo. Este aspecto participativo é o objeto da ciência da comunicação, e não o comportamento enquanto tal. Segundo Paul Watzlawick, "como não existe um não-comportamento, tampouco se pode não-comunicar" (1991: 47). Além do mais, não podemos também limitar a comunicação apenas à linguagem verbal pois "o que se chama conhecimento não é apenas uma capacidade do ouvido, que recebe a linguagem, mas também do olho, que formula a percepção visual, do tato, do olfato e do paladar"(PROSS 1987: 122).

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Esses elementos, que recebem uma atenção marginal da esquerda, proporcionam, muitas vezes, uma comunicação muito mais intensa e eficaz. Além do mais, são elementos fundamentais na cultura brasileira. A musicalidade, o erotismo, o carnaval que celebra o riso e a desordem, possibilitam "o surgimento de muitas vozes e muitos diálogos, numa fragmentação e pulverização dos esquemas dominantes que se fundam num controle jurídicoreligioso-político ancorado no Estado"(DAMATTA 1987: 106). Justamente os elementos essenciais da comunicabilidade do povo brasileiro são desprezados no discurso da esquerda. Esse diagnóstico pode ser estendido ao PT, segundo análise do atual governador de Brasília, Cristovam Buarque:

O PT sofre de uma forte influência das esquerdas tradicionais brasileiras que formulam seus discursos com base nos modelos teóricos importados da Europa, deixando de aproximar-se da população, cujos valores culturais não seguem exatamente a mesma forma de racionalidade. (BUARQUE 1992: 9)

Comunicação e coação

Todos comunicam algo, mesmo que não respondam à definição de comunicação intencionada, que acentua em influenciar e modificar um receptor mediante um emissor, através de um canal adequado. Em resumo, não somos capazes de fugir da coação natural da comunicação. Por isso, não apenas o discurso oficial da tarifa zero, através da publicidade e da opinião dos membros do governo será estudada, mas também todas as lacunas existentes no discurso. Afinal, a análise das relações comunicativas não são realizáveis sem

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"o fato de que as comunicações intencionadas também aludem a algo não intencionado" (PROSS 1987: 109) A comunicação é mediação, pois o homem não consegue relacionar-se diretamente com as coisas. Para que essa relação ocorra ele utiliza os signos, que são, de modo geral, o seu vínculo com a realidade. É por isso que Ernst Cassirer denominou o ser humano de "animal symbolicum", citando o aforismo de seu colega estóico Epiteto: "não são as coisas que preocupam e irritam o homem, mas as opiniões e concepções, acerca delas".(PROSS 1991: 282) Assim, vivemos cercados de coisas que estão em lugar de outras coisas distintas do que elas são. Por exemplo, o cartão de crédito não é dinheiro, mas o representa. São essas coisas que representam outras coisas que denominamos signos. Charles Sanders Peirce, sistematizador de uma

teoria dos signos,

define:

Um signo intenta representar, em parte (pelo menos), um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo que o signo represente o objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira, determina, naquela mente, algo que é imediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa imediata ou determinante é o signo e da qual a causa mediada é o objeto pode ser chamada de interpretante.(CP 6.347)(definição do próprio Peirce apud SANTAELLA 1993: 38 e 39)

Nesta definição de signo, o objeto pode ser qualquer coisa, não só algo que possa ser tocado e visto, mas um simples movimento, um som, um cheiro impreciso. Essa indeterminação do objeto exclui apenas uma possibilidade: ele é

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algo e não nada. Se existe algo, que para nós não signifique nada, a questão passa a ser o significado que provoca no interpretante e não o objeto. Parece um pressuposto bastante banal, mas é a partir dele que Harry Pross cria uma teoria da necessidade vital dos símbolos:

Este algo perceptible está situado en relación con otro que se da tambien, y esta relación discurre entre los hombres y su mundo; a través de esta red de relaciones percibe y opera el ser humano, buscando siempre "algo", para apoyarse en ello frente a la nada. (PROSS 1980: 16)

Desta forma, o que significa para o homem "a realidade" é captado através dos meios artificiais dos signos, de forma que para ele passa a não haver mais realidade que aquela experimentada e objetivada por signos. Essa criação simbólica da realidade se dá em todas as áreas da vida humana, e portanto, também na política. Não são apenas os representantes eleitos pela população que, por estarem no lugar de seus eleitores, possuem um valor simbólico, mas também toda ação política está carregada de simbolismos. De que forma o governo de Luiza Erundina conseguiu gerar novos signos na política e comunicá-los à cidade é o que se estará buscando analisar nos próximos capítulos, tomando o projeto da tarifa zero como estudo de caso. Afinal, a expectativa que havia era justamente que um governo de esquerda estaria trazendo algo de novo para a cidade, no lugar de práticas antigas.

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Capítulo 1 - Pré condições

Não se pode negar que a fé sólida e imutável proporciona grande paz de espírito. Charles Sanders Peirce

No dia 16 de novembro de 1988, um dia após ser eleita prefeita de São Paulo, Luiza Erundina afirmava ao jornal "Folha de S. Paulo" que pretendia estatizar o sistema de transporte. Não se tratava de uma simples promessa, mas a confirmação de uma proposta de campanha, feita em todos os palanques por onde passou a candidata do PT.

E não foi por acaso que os transportes

ocuparam importante espaço nos discursos de Luiza Erundina. Naquela época, o então prefeito Jânio Quadros aumentava a tarifa sistematicamente, sem que fosse feito nenhum investimento no sistema, que desde 1977 possuía 8.500 ônibus na frota particular. Enquanto isso, a população da cidade aumentou em 35% e 200 mil novos carros entraram em circulação a cada ano

(1).

Assim,

segundo Pedro Dallari(2):

Um dos fatores mais importantes que favoreceu a eleição foi em relação aos transportes e a forma como Jânio conduziu esta questão. Os problemas do sistema e as denúncias de corrupção tornaram-se uma marca e automaticamente o transporte se converteu em prioridade na agenda política da campanha.

(1) Fonte: CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) (2) cf entrevista Pedro Dallari

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As propostas de solução para esses problemas apresentadas pela candidata petista eram o congelamento da tarifa de ônibus e a estatização do sistema de transportes, fruto de discussões da Comissão de Transportes do PT há vários anos. A escolha do transporte como prioridade de campanha eleitoral, mostra a percepção do caráter simbólico do tema, mesmo que não houvesse essa intenção. O transporte é criação de vínculos. Ele permite a circulação de pessoas. Mas ele mesmo é meio (meio de transporte), portanto também faz parte do processo de semiose. Segundo Santaella: Semiose ou ação do signo é o termo técnico geral utilizado para recobrir o campo semântico de termos como inteligência, mente, pensamento que, segundo Peirce, não são privilégios humanos. Onde quer que haja tendência para aprender, processos autocorretivos, mudanças de hábito, onde quer que haja ação guiada por um propósito, aí haverá inteligência, esteja ela onde estiver, no pólen que fertiliza o óvulo de uma de uma planta, no vôo de um pássaro, no sistema imunológico, na perversidade do inconsciente ou na razão humana.(SANTAELLA 1992: 79)

Ora, quanto melhor o funcionamento do sistema de transportes, maior será a circulação de signos, e portanto, maior o processo criador. "Assim como os signos e as idéias tendem a se espalhar continuamente(CP 6.140), a mente também se espalha continuamente, e todas as mentes se misturam umas às outras"(CP 1.170)(PEIRCE apud SANTAELLA 1992: 46). Limitar e dificultar a circulação das pessoas/signos é uma forma de exercer controle social. Por isso, escolher o transporte como prioridade eleitoral e dar valor à livre circulação, não

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apenas das pessoas, mas também de suas idéias, é uma forma de garantir o processo de criação simbólica. A primeira Secretária de Transportes

Para cuidar da Secretaria de Transportes Luiza Erundina nomeou a vereadora Tereza Lajolo que se destacara na Câmara Municipal por acompanhar essa área. Sua escolha deveu-se à imagem de Lajolo como uma das parlamentares que mais entendiam de transporte na Câmara, e também por ela ser participante do grupo de transportes do PT. Para cuidar da comunicação foi nomeado Perseu Abramo, por indicação do presidente do PT, Luiz Inácio Lula da Silva. A princípio, Erundina havia escolhido Chico Malfitani, o responsável por sua campanha na TV, para esse cargo, mas Chico, que não possuía livre trânsito no PT, achou melhor não assumir o cargo. A questão dos transportes revestiu-se de tal importância que a primeira reunião com os secretários municipais, ainda em dezembro de 1988 (portanto sem ainda terem assumido seus cargos), foi sobre a tarifa de ônibus. Nessa reunião, segundo Perseu Abramo, "o Amir Khair mostrou um quadro de déficit na CMTC, ameaça de locaute das empresas, mil informações dramatizadas".(3) Os problemas da Secretaria de Transportes não eram, de fato, poucos. Jânio Quadros havia deixado uma dívida da CMTC com empresas fornecedoras de peças da ordem de 6 milhões de dólares, e apenas um pneu no estoque, fato pitoresco, mas real(4). Assim, a prefeita teve que pagar toda a dívida para poder comprar peças novas para os 800 ônibus que estavam paralisados. Também reajustou a tarifa, que estava defasada.

(3) cf entrevista Perseu Abramo (4) cf entrevista Paul Singer

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A radicalidade do discurso de campanha não combinava com a prioridade prática escolhida por Erundina: colocar a casa em ordem. Em 4 julho de 1990, o Diretório Municipal do PT, em resolução aprovada por seus membros, fazia críticas aos empresários particulares da área de transporte coletivo que pressionavam o governo municipal por aumentos na tarifa, recusando-se a pagar aos funcionários aumentos já acertados, o que poderia provocar uma greve. Mas as críticas mais severas eram dirigidas ao governo, pedindo que se acelerasse o plano de municipalização(5) e afirmando que qualquer "reajuste de tarifas ditado pela inflação deve ser acompanhado por medidas imediatas de melhoria de serviço". No mês de setembro, o jornal "Informativo Paulistano" publicava uma nota onde as críticas ao Executivo já não eram feitas em tom cordial:

A Comissão Executiva do Diretório Municipal tomando conhecimento do aumento das tarifas dos ônibus que passa a vigorar dia 14 de setembro, torna pública sua posição contrária à política de reajustes acima da variação salarial do período. Responsável, perante a população e o Partido (o "p" maiúsculo é deles), pelo cumprimento do Programa de Governo apresentado na Campanha Eleitoral, a Comissão Executiva do DM novamente conclama os

(5) Municipalização dos transportes é um sistema no qual as empresas particulares recebem pelo custo do serviço prestado, na mesma lógica da coleta de lixo ou do serviço de táxis. A fórmula de pagamento combina o número de quilômetros rodados e a quantidade de passageiros transportados; a primeira parcela, que é a maior, cobre a maior parte dos custos; a segundo cobre o restante dos custos, mas serve para evitar que as empresas tenham interesse em circular sem se preocupar em recolher passageiros. Através desta fórmula a prefeitura pode garantir melhor qualidade no serviço, pois ao invés do empresário ter interesse em ter os ônibus lotados - no sistema de concessão ele ganha por passageiro transportado - o rentável passa a ser um maior número de ônibus na rua que consiga maior quilometragem rodada. Além disso há maior controle do Município, daí Municipalização, pois a passagem paga na catraca vai primeiro para a prefeitura que repassa aos empresários apenas o correspondente aos seus custos, enquanto na concessão de serviço, os empresários ficam com tudo que é arrecadado.

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companheiros da Administração, em especial aqueles que respondem pela área de transportes da Prefeitura, a seguirem a política traçada neste setor crucial da vida da cidade.

Tornava-se claro um rompimento entre os petistas no governo e os petistas no partido. Para Cláudio Couto esse rompimento teve início já com a "exclusão de setores do partido da formação da equipe de governo gerando uma situação organizacional específica, qual seja, uma relação de externalidade entre a direção partidária e o núcleo central do governo" (COUTO 1995: 130). Uma resolução do DM, em 21.01.89, declarava a incompatibilidade de membros do partido, que assumiram cargos no governo, em permanecerem em suas funções no partido, o que gerou a formação dos dois grupos de petistas, "submetidos a ambientes organizacionais distintos"(COUTO 1995: 130). Cada ambiente organizacional, ou espaço simplesmente, possui os seus signos indicadores que "predeterminam as formas de comunicação política" (PROSS 1980: 70). Assim, cada grupo passou a cumprir suas tarefas de forma desvinculada, sem que fossem criados canais de comunicação que permitissem uma interação entre os petistas no governo e os petistas no partido. Aqui está um dos fatores que provocaram constantes atritos entre os dois grupos, pois o processo comunicativo ocorria (não existe a não comunicação), mas sem que essas duas diferentes ordens buscassem uma interação. Reforça essa idéia a análise de Marilena Chauí sobre os conflitos entre partido e administração:

Não é por acaso que os dirigentes partidários municipais esperam dos prefeitos ações de mobilização sócio-política, pois esta é a única tradição de ação que o PT conhece tendo sido, até agora, incapaz de

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elaborar uma perspectiva de prática partidária e democrática assentada em ações governamentais de longo prazo. (CHAUí 1991: 2) De qualquer forma, a nota publicada no jornal do DM refletia as dificuldades do governo de Erundina justamente onde a campanha eleitoral havia sido priorizada, mas poucos resultados conseguia apresentar. Essa, aliás, foi a alegação para a demissão de Tereza Lajolo em 18 de setembro de 1989, segundo artigo publicado em OESP de 17 de agosto de 1990. Assume no lugar de Lajolo o empresário e ex-Secretário de Abastecimento Ademar Gianini, ligado ao grupo de Lula no PT, a Articulação. Lula era na época candidato à Presidência da República, sendo derrotado no segundo turno das eleições por Fernando Collor de Mello. A derrota de Lula ocorreu no Estado de São Paulo, e o fraco desempenho de Luiza Erundina em seu primeiro ano de governo foi apontado como uma das causas da derrota. O Balanço de um ano

Pesquisa do jornal "Folha de S. Paulo" realizada nos dias 18 e 19 de dezembro de 1989, e publicada no dia 19 de janeiro de 1990, apontava que para 29% dos entrevistados paulistanos o transporte coletivo era o principal problema da cidade. A manchete do jornal anunciava "Número de ônibus diminui e lotação aumenta". Segundo dados coletado pelo jornal, a média de ônibus em circulação na cidade, durante 1989, foi de 7.988, 6,15% a menos que os 8.480 que circularam no último ano de Jânio Quadros. A tarifa foi aumentada em 1.983% contra uma inflação de 1.784%, apurada pelo IBGE. Esses dados explicam o porque do resultado negativo da área de transportes na pesquisa, que certamente influenciou no resultado da avaliação global de Erundina que

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alcançou a 18ª colocação entre os 23 prefeitos de capital pesquisados (quadro 1). quadro 1 expectativa

seis meses

um ano

Ótimo e bom

47%

16%

20%

regular

29%

43%

35%

ruim e péssimo

10%

33%

42%

(fonte: FSP 19/01/90)

A expectativa em torno do governo Erundina era muito grande, e isso pode ser explicado, pois pela primeira vez o PT ganhava a administração da maior capital do Brasil. O PT tinha no imaginário popular a imagem do novo, do partido que anunciava a possibilidade de mudanças. Afinal, foi no período de redemocratização que o partido surgiu, como sujeito ativo desse processo. Além disso, o partido possuía um grande número de intelectuais, muitos dos quais integraram o governo Erundina, que contribuíram para a introdução de novas formas no fazer política. O PT foi o partido que introduziu o humor no horário eleitoral gratuito, realizava seus comícios como grandes festas, e organizava-se, inicialmente, de forma horizontal, com os núcleos por bairro e por categoria, para não institucionalizar as relações verticalizadas e burocratizadas da tradição dos partidos de esquerda. Por isso, esperava-se da prefeita e sua equipe uma nova postura na administração da cidade, o que incluía novos signos de poder, uma nova comunicação. Comunicação não no sentido de informar, mas no sentido de criar novos símbolos. Isso não estava ocorrendo. Sem dúvida, a falta desse processo não poderia ser creditada a Perseu Abramo, mas ao governo como um todo. Cabia ao PT e aos membros do governo proporem uma nova forma de conduta

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na prefeitura. O PT soube criar novos símbolos em sua atuação enquanto partido e até na comunicação política, com o uso do humor e da qualidade técnica, mas não estava conseguindo transpor essas inovações para a administração pública. A comunicação perde seu secretário Em fevereiro de 1990, Perseu Abramo pedia demissão do cargo de Secretário de Comunicação. Ele havia tentado criar uma infra-estrutura adequada às necessidades de comunicação do governo. Segundo ele mesmo: "partia do pressuposto de que era preciso ter uma política de comunicação, e para tanto era fundamental ter uma estrutura de comunicação, mas não consegui despertar o conjunto do governo para a necessidade de se traçar uma política"(6). Àquela época, discretamente, Perseu também criticava o fato de um Secretário de Comunicação ter de divulgar atos do governo com os quais não concordava. Citava o exemplo do tombamento da mansão da família Mattarazzo, na Avenida Paulista. A família queria derrubar uma casa de estilo arquitetônico de pouco valor, mas no lugar mais valorizado da cidade e a prefeitura iniciou um processo de tombamento, paralisando as obras, com a justificativa de que ali seria instalado o "Museu do trabalhador". Perseu Abramo perguntava "como posso divulgar um fato sobre o qual não participei da decisão e ainda por cima discordo do encaminhamento?". Além de tudo isso, Abramo havia se afastado em janeiro de 1990 por razões de saúde e durante esse período foi elaborado um jornal tablóide que teve por nome São Paulo Ano I. Publicado pelo Centro Cultural São Paulo,

(6) cf entrevista Perseu Abramo

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vinculado à Secretaria de Cultura, o jornal teve uma tiragem de 30 mil exemplares, com 20 páginas, organizado por um comitê intersecretarial que havia sido formado no fim de 1989. O jornalista responsável foi o Secretário de Esportes, Lazer e Recreação, Juarez Soares. Apesar de ainda ser o secretário, o nome de Perseu já não constava do expediente, e sobre a área de comunicação e imprensa afirmava-se apenas que a Secretaria de Governo havia procurado viabilizar projetos da Secretaria de Comunicação e Imprensa, "ainda em fase de estruturação". Se Perseu não parecia à vontade no governo, o governo também não parecia querer mantê-lo, razões que levaram ao seu pedido de demissão logo após a volta do afastamento.(7) Até então a comunicação não encontrava uma forma de expressão adequada e a saída discreta de Abramo mostrava que a questão não estava no "como" divulgar, mas no "o que" divulgar. A avaliação do Secretário que deixava a Comunicação era pessimista: Estávamos perdendo a batalha da comunicação porque estávamos muito mal de governo, nós não estávamos preparados para governar.(8)

1990: um começo difícil

Luiza Erundina começou o ano de 1990 atuando apenas na defensiva. Além da péssima imagem junto à opinião pública, a prefeita também enfrentava uma saraivada de críticas do PT. O governo tinha que negociar com os empresários, a partir de contratos de prestação de serviço que já estavam vencidos há anos e garantir o funcionamento do sistema, mas não conseguia criar uma saída que a médio prazo resolvesse o problema. Por isso, o partido (7) essas são as razões apontadas em FUSER 1991. (8) cf entrevista Perseu Abramo

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cobrava as políticas prometidas em campanha eleitoral, como se o PT fora o detentor do mandato da prefeita. A direção do PT queria forçar Luiza Erundina a colocar em prática toda sua plataforma de governo elaborada enquanto partido de oposição, sem nenhuma experiência na prefeitura de São Paulo. Além de tudo isso, Luiza Erundina governava com uma minoria na Câmara Municipal: o PT contava apenas com 18 vereadores(16 do PT e 2 do PC do B) contra os restantes 35 vereadores, havendo uma enorme dificuldade do Executivo em aprovar seus projetos. Além disso, Erundina herdou uma máquina administrativa arcaica e lenta, chegando a criar uma Secretaria Especial da Reforma Administrativa, para elaborar uma nova forma de organização burocrática para a cidade. Em fevereiro de 1990, buscando criar saídas para o problema dos transportes, tinha início o processo de municipalização levado pelo Secretário de Transportes Ademar Gianini. Para tanto, foram feitos contratos de emergência, pois os de concessão já estavam vencidos e havia necessidade de uma nova lei da Câmara sobre o assunto. Contudo, houve um entendimento entre os procuradores municipais de que era possível, "ainda sem dispor de nova lei,

fazer contratos de emergência com empresas que estivessem em

situação econômica precária, pondo em risco o serviço"(9). A primeira empresa a ser municipalizada foi a Santa Cecília(10), a única que realmente estava em péssima situação.

(9) cf entrevista Lúcio Gregori (10) cf entrevista Paulo Sandroni

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Os petistas do PT endurecem sua críticas

O V Encontro Municipal do PT, realizado em 22 de abril de 1990, que fez a avaliação de um ano de governo, foi o ponto culminante da crise entre o PT e governo. Durante esse Encontro foi aprovado um enfático texto de críticas à administração Luiza Erundina. Foi neste documento que surgiu o termo "administrativismo":

O administrativismo foi o principal elemento da política implementada neste primeiro ano de gestão. Pressupõe ser possível ganhar a adesão popular ao nosso projeto através do "bom exemplo", realizando uma administração honesta, séria e competente, optando preferencialmente pelos pobres, mas governando nos moldes convencionais, sem introduzir significativas mudanças estruturais no aparato burguês que integrem a participação das massas. Pressupõe que é possível governar para todos indistintamente, ao invés de governar a todos a partir da perspectiva de classe dos trabalhadores, além de supor a neutralidade da máquina governamental.

Além dessa crítica global, o documento também analisava as outras áreas do governo. Naturalmente, transporte e comunicação não escaparam de críticas. Na área do transporte o PT continuava insistindo com a estatização:

O transporte coletivo continua sendo o principal problema da cidade e um dos fatores responsáveis pelo desgaste da administração junto a população. (...) A solução estrutural para o transporte coletivo na cidade

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passa pela estatização do sistema... As experiências de municipalização em curso em algumas empresas devem passar por uma avaliação cuidadosa e a extensão desta forma de gestão ao conjunto do sistema deve ficar na dependência da comprovação de que não atrapalhe a estatização, não implique em subsídios as empresas privadas de transporte coletivo e produza melhorias efetivas na qualidade dos serviços.

Na área de comunicação as propostas eram mais genéricas. Havia um diagnóstico de que os meios de comunicação estavam sempre contra o governo, mas para responder a isso, sem explicar como é possível, pedia-se a "utilização intensiva dos meios de comunicação":

Numa cidade com as dimensões de São Paulo, somente a utilização intensiva dos meios de comunicação pode fazer com que estas plenárias (populares) extrapolem os limites dos seus participantes diretos e tenham o papel político de um elemento central na disputa pela hegemonia dos trabalhadores na sociedade.

A Comunicação Social é um componente marcante das sociedades de massa modernas. É impossível pensar as estruturas de poder e hegemonia hoje existentes desvinculadas de um processo de comunicação poderoso e permanente. (...) é ingênuo imaginar o sucesso de uma administração petista se ela estiver incomunicável.

É urgente a elaboração de um amplo e ambicioso plano de comunicação para a Prefeitura, que deve incluir a divulgação de

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informações através de todos os veículos necessários inclusive rádio e TV, obtendo os recursos necessários para implementação do plano.

O objetivo de nossa política de comunicação é duplo: furar o cerco que nos é imposto pelos meios de comunicação das classes dominantes disputando a opinião pública e consciência das massas e subsidiar e incentivar a participação popular com informações e orientações sobre as campanhas e realizações da prefeitura e os canais de participação.

A partir dessa resolução, ficam mais claras as diferenças entre os petistas no governo e os petistas no PT. Estes últimos continuavam com a lógica do partido movimento, do partido reivindicativo, uma espécie de "leninismo difuso" (COUTO

1995:

69),

enquanto

os

petistas

no

governo

assumiam

a

responsabilidade de quem deve governar de fato, mas o faziam sem procurar criar novos símbolos para sua ação. Para Harry Pross, a intenção dos partidos progressistas(11) é "erigir uma nova ordem, e respeitar, ao mesmo tempo, os signos familiares das pessoas" tendo como método "dotar de novos signos ao sistema de coordenadas cognoscitivas, pondo abaixo os antigos e içando outros".(PROSS 1980: 82 e 83). Esta incapacidade no início do governo foi a grande razão para as crises entre governo e partido. A estatização, por exemplo, era um símbolo vital para os petistas do PT. Um símbolo que dava segurança frente a incerteza de outras políticas possíveis. Submeter-se aos símbolos dessa forma não deixa de ser uma maneira de fixar uma crença, "repetindo-a constantemente a nossos próprios ouvidos, apegandonos a tudo que pode conduzir àquela crença e aprendendo a desviar-nos, com (11) já os partidos conservadores têm como método absolutizar o material que resulta familiar, valorizando os velhos signos e denunciando os novos como obscuros, estranhos, e mortos (PROSS 1980: 82)

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desgosto e irritação de tudo quanto possa perturbá-la" (PEIRCE 1993: 78). A crença nos ideais do partido torna-se, nesse caso, muito próxima à crença religioso. A insistência pela estatização, portanto, pode ser vista no campo simbólico:

Tanto a incapacidade como a resistência que podem se ocultar atrás de uma ação equivocada nos remetem à dependência do sujeito e da sociedade em relação aos signos. (PROSS 1980: 35)

Essa dependência existia em relação aos valores da esquerda que eram constituintes do partido desde seu início. Abandoná-los no exercício do poder era

algo

inquestionável.

Contudo,

Luiza

Erundina,

consciente

responsabilidade no exercício do mandato, já pensava de modo diferente:

Nós nos elegemos com a proposta do partido, que era a estatização e o congelamento das tarifas, mas depois quando começou o governo, viuse que era uma idéia absolutamente irrealista. Seja porque a prefeitura não dispunha de recursos para desapropriar 70% do sistema que estava na mão da iniciativa privada, seja porque essa desapropriação não assegurava a melhoria do sistema, nem o balanceamento de seu custo. Então seria tudo uma má solução e a experiência mostrou que era conveniente mudar as relações contratuais.(12) Arruela e porcas no meio do caminho

(12) cf entrevista Luiza Erundina

da

30

Em julho de 1990, já estavam municipalizadas 12 das 30 empresas que trabalhavam em São Paulo. Além desse processo, Gianini havia implementado a política do passe-fácil que constava em vender, durante a semana posterior ao anúncio de reajuste de tarifa, quando o índice de inflação mensal era da ordem de 70%, passagens pelo preço da tarifa anterior com desconto, medida bastante popular. O governo conseguia iniciar um processo que poderia dar saídas a longo prazo, e também criava uma nova política na venda do passe, gerando justamente novos símbolos na comunicação: afinal era mais fácil anunciar aumento de tarifa, ao mesmo tempo que os passes eram vendidos mais baratos. Não é a toa que esse foi o tema da primeira campanha publicitária na TV realizada pela MPM, em 11 de junho. Porém,

nova turbulência ocorre no setor de transportes com uma

denúncia publicada no JT de 2 de agosto de 90: "Rombo na CMTC. Três cabeças poderão rolar". Segundo a reportagem, o presidente da empresa, Trajano Luiz Kelmer de Almeida, poderia ser exonerado juntamente com dois diretores já afastados, em conseqüência de denúncias de irregularidades, principalmente na compra de peças sem concorrência, entre elas porcas e arruelas, sob pretexto de "emergência", a preços superiores aos de mercado. No dia 8 de agosto é publicada nova matéria no JT revelando que a CET estava gastando mais de Cr$ 1,26 bilhão ( US$ 17,4 milhão) em dez contratos assinados sem licitação. No dia 9 a prefeita reúne-se com alguns secretários para discutir os contratos da CET e incumbe o Secretário de Negócios Jurídicos, Dalmo Dallari, de analisar se eles são legais ou não. Ao mesmo tempo Gianini defendia-se afirmando que os contratos eram legais, por serem de "notória especialização", e buscava apoio político junto ao presidente do PT. Contudo, Lula afirmou que a questão não era de sua alçada, mas da prefeita Luiza

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Erundina(13). Em 16 de agosto, Gianini pressionado há dias pela prefeita pede exoneração. Desde o líder do PT na Câmara Municipal, Arselino Tatto, até vereadores da oposição como o tucano Walter Feldman reconheciam-no como "uma das cabeças mais oxigenadas" da administração. Contudo, apesar de ter conseguido dar início a mudanças no setor de transportes, "Gianini saiu por buscar repetir a mesma eficácia que tinha como empresário"(14). Só que as empresas privadas não precisam cumprir os mesmos ritos da administração pública, e passar por cima deles

acabou comprometendo a confiança no secretário. Assim, em

menos de dois meses, o cargo de Secretario de Transportes estava novamente vago. Encontrar um novo secretário não foi fácil. A prefeita fez várias consultas e ninguém queria assumir. Por isso, dia 17 de agosto, Lúcio Gregori, Secretário de Obras, assume interinamente a Secretaria de Transportes, afirmando:

Estou apenas cumprindo um pedido da prefeita, mas não quero ficar na Secretaria de Transportes. Faço questão de dizer que é interinidade.(15)

Afinal, quem gostaria de assumir uma secretaria que já havia "queimado" dois secretários, alvo das mais graves críticas do PT e que tinha, na pesquisa publicada semestralmente pela ANTP, sobre a imagem do transporte por ônibus na cidade, - 40 numa variação de - 100 a + 100?

(13) sobre esse encontro, Lula declarou para o "Diário Popular" de 17.08.90 que "aqui ele não tem nenhum respaldo, foi a prefeita quem o colocou lá e é com ela que Gianini deve se entender". (14) cf entrevista Chico Whitaker, na época líder do governo (15) em entrevista à FSP, em 18 de agosto de 1990.

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Capítulo 2 - A concepção

Estamos dispostos a encontrar uma solução só nossa, que tenha um jeito todo brasileiro e petista de ser. Luiza Erundina

Não há dúvida que a Prefeitura de São Paulo estava acuada na área dos transportes. Nas palavras do presidente da CMTC, Paulo Sandroni:

Havia uma crise moral, uma crise política, uma crise financeira, uma crise econômica, uma crise operacional, isto é, uma crise cultural. De todos os lados que você olhasse a situação estava precária.(1)

Lúcio Gregori combinou com a prefeita que assumiria o cargo de Secretário dos Transportes interinamente, pois achava que era uma área muito disputada. Quinze dias depois, Gregori já dava à prefeita uma avaliação mais precisa sobre o cargo:

O Secretário de Transportes é um sujeito absolutamente dispensável. A Secretaria só serve para criar problemas, porque o Secretário de Transporte pela história da cidade gera muita expectativa em torno dele. Imagina-se que esse homem tenha muito poder de decisão e eu

(1) cf entrevista Paulo Sandroni

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verifiquei que não tem nenhum, é uma espécie de rainha da Inglaterra. Ele tinha a CET, que é uma empresa que tem sua vida própria, a CMTC, que andava por si própria. O presidente da CMTC geralmente passava por cima do Secretário, pois era nomeado pelo próprio prefeito. Tanto que o Paulo Sandroni foi nomeado antes de mim. O Secretário era um despachante de luxo, que atendia vereadores de todos os partidos que iam pedir a instalação de linhas de ônibus. O secretário mandava os pedidos para a CMTC, que geralmente não criava a linha porque não tinha ônibus. Resultado: o Secretário era um fator de permanente crise no governo".(2)

Mas Lúcio Gregori também sabia que, se o secretário

quisesse, ele

poderia ter muito poder. Afinal, a Secretária de Transportes consumiu, em 1989, 13% do orçamento da cidade com o subsídio ao transporte, o que correspondia a US$ 455 milhões. Portanto só seria válida sua permanência na medida em que pudesse provocar uma grande mudança nessa área. Com essas idéias em mente, Gregori lembrou-se do comentário de um de seus assessores, Paulo Ganc, que algumas semanas atrás havia afirmado que o transporte deveria funcionar segundo o mesmo sistema da coleta de lixo. Enquanto Secretário de Obras, Gregori teve que renegociar os contratos com as empresas coletoras de lixo, que recebiam um valor mensal pré-determinado da prefeitura e não diretamente do morador, pelo lixo coletado na porta de sua moradia. O usuário, por sua vez, pagava apenas uma taxa anual para a prefeitura, incluída no carnê do IPTU.

(2) cf entrevista Lucio Gregori

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A partir desse exemplo, uma outra idéia foi tomando corpo: a prefeitura poderia criar uma taxa específica para o transporte, nos mesmos moldes que a taxa do lixo. Assim seria criada uma nova fonte de receita que passaria a custear todo o sistema. Isso teria várias vantagens, pois eliminaria a tarifa paga pelo usuário, acabando com um dos problemas constantes da Prefeitura, que era estipular o valor dessa tarifa. Também seriam eliminados os gastos com a cobrança nos ônibus, que chegam a corresponder a 25% do custo do sistema. A comissão de transportes do PT já havia proposto a criação de uma taxa-transporte, mas que funcionaria para subsidiar a tarifa, para torná-la mais acessível à população. Essa proposta foi chamada "tarifa social", pois mantinha a cobrança na catraca. Gregori começou a fazer sozinho um estudo sobre a viabilidade da taxatransporte, tomando por base um outro estudo do PT propondo que esta taxa fosse cobrada apenas de empresas com mais de 9 funcionários. Em consulta a advogados, o Secretário concluiu que a taxa deveria ser cobrada, da mesma forma que a do lixo, por todos que possuem propriedade em São Paulo. O almoço no "Mosca Frita"

Durante uma reunião de governo, em fins de agosto de 1990, quando era discutida a proposta orçamentária, Lúcio Gregori informou aos demais secretários que participaria de um seminário sobre transportes organizado pelo PT, no fim de semana, e que se propunha, nesse seminário, a apresentar a idéia do pagamento indireto e a revisão do sistema de concessão:

Eu achava que, como Secretário de Transportes, se eu fizesse isso poderia dar origem a uma discussão política na cidade dando a

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impressão de ser uma iniciativa do governo, e eu não podia fazer isso sem consultar meus colegas. Em nenhum momento pensei que isso seria uma proposta política para o governo, mas uma coisa que eu, como Secretário de Transportes, nas reuniões, nos debates públicos começasse a falar desse assunto para ver se então ele virava matéria que o governo oportunamente pudesse se motivar. Eu estava a fim de estudar propostas novas, mas sem a pretensão de ser uma proposta de governo. (3)

A idéia não foi tema de debate, e a prefeita pediu para conversar com o secretário mais tarde, mudando a discussão para os outros assuntos em pauta. Contudo, logo após a reunião, Lúcio Gregori foi almoçar com Paulo Sandroni no restaurante "The Garden", no parque Ibirapuera, próximo da sede da prefeitura. Foi nesse restaurante, freqüentado pelos funcionários da prefeitura, e mais conhecido entre eles como "Mosca frita", que Sandroni pediu que Lúcio Gregori desse mais detalhes de suas idéias. A partir daí, decidiram propor essa alternativa à Prefeita, pois, nas palavras de Sandroni:

Mudava-se todo o eixo da jogada, tirando toda a base da luta que se desenvolvia na Câmara e mudava também o eixo da luta dos próprios funcionários, que estavam querendo ganhar maiores salários e a prefeitura sem dinheiro. Mudando o eixo a gente batia em tudo que nos cercava e jogava o problema para uma questão estratégica, abrindo toda uma discussão.(4)

(3) cf entrevista Lucio Gregori (4) cf entrevista Paulo Sandroni

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Foi nesse almoço que surgiu a idéia da tarifa zero como bandeira política. Sandroni percebeu a possibilidade de levantar com essa proposta "novos signos", colocando abaixo antigas propostas e criando algo totalmente novo, o que se espera de um partido progressista (PROSS 1980: 82). Também é importante notar que foi a partir da comunicação de Gregori na reunião, que foi possível, a Sandroni, fazer uma leitura política da necessidade imediata. Podese apontar esse fato com um exemplo de semiose, onde, a partir de um primeiro objeto, isto é, a idéia de Gregori, foi possível a criação de um novo signo, a tarifa zero como resposta política, numa mente interpretante, em Paulo Sandroni. Logo após o almoço, os dois encontram-se com Luiza Erundina em seu gabinete e recebem sinal verde para concretizarem essa proposta. Segundo a própria prefeita:

Compreendi que aquilo era realmente uma sacada. Ousada, sobretudo naquela conjuntura, mas eu achava que valia a pena, teria sido uma solução fantástica.(5)

Dessa forma, o governo procurava dar uma resposta política à situação adversa que vinha passando, pois a viabilidade técnica dependia ainda de estudos. E a prefeita tinha clareza dessa opção:

Eu sempre agi, sempre decidi, jogando politicamente, muito menos tecnicamente. Porque acho que a solução técnica você encontra. Se você tiver a saída política, a realidade política, com a técnica é possível encontrar a solução. Eu não começava pela técnica. Claro que tinha que

(5) cf entrevista Luiza Erundina

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ter o mínimo de sustentação lógica, racional nas propostas, mas eu entendia que qualquer proposta técnica se viabilizaria politicamente. Eu jogo muito politicamente e acho que nisso daí funcionava muito a minha intuição.(6)

A partir desse sinal verde da prefeita, Lúcio Gregori começou a estudar a viabilidade da proposta da cobrança indireta através da criação de uma taxatransporte, tendo como modelo o sistema da coleta de lixo. Seria criada uma taxa por domicílio, para universalizar o sistema. O próprio Secretário fez os cálculos de quanto seria cobrado por residência, trabalhando o tempo todo nesta proposta até passá-la aos especialistas do setor que estudariam o projeto. Ao mesmo tempo a proposta foi apresentada aos secretários municipais que, a princípio, foram contrários à idéia. Segundo Paul Singer:

Se tivesse sido apresentado e votado, eu acho que os votos seriam da Luiza, do Sandroni e do Lúcio, mas isso não se vota. A única eleita ali era a Luiza e ela estava convencida que era oportuno. Todo argumento de caráter técnico ela trocava por um argumento político. Eu, por exemplo, acabei me convencendo pelo momento político.(7)

A prefeita deu total sustentação à proposta, e os técnicos da Secretaria de Governo e da Procuradoria Geral do Município debruçaram-se sobre os aspectos legais, chegando a uma conclusão definitiva: não era possível a criação de uma outra taxa a ser cobrada pela prefeitura. Isso era vedado pela Constituição. Além desse aspecto, ela não se encaixava dentro do conceito de (6) idem (7) cf entrevista Paulo Singer

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taxa, pois, segundo os procuradores da Prefeitura, para tanto deveria haver uma linha de ônibus na frente de cada casa. Assim, a assessoria jurídica provou que não seria possível a criação da taxa, base de sustentação da cobrança indireta. A reação do Secretário foi sintomática:

Bom, acabou meu brinquedinho

Frustrado, Lúcio sentou-se num dos sofás do gabinete da prefeita e explicou a situação a seus assessores. Foi quando um deles, o engenheiro Mauro Zilbovicius, deu uma outra sugestão:

Faz um aumento de IPTU e taca fogo nisso, porque nessas alturas essa proposta é tão quente que é bobagem desistir dela.(8)

Gregori já estava convencido politicamente da idéia e achou que utilizar o IPTU era uma boa saída. Foi então falar com a prefeita que também deu o aval e pediu para que a Secretaria de Finanças apresentasse uma proposta. A primeira proposta apresentada resolvia de forma bem simples o aumento de arrecadação: acabava com a isenção de IPTU de 400 mil domicílios em São Paulo. Gregori recusou a proposta no ato, pois ela inviabilizava justamente uma de suas principais características, a redistribuição de renda. A Secretaria de Finanças dava a impressão de não haver compreendido a idéia. Assim Lucio Gregori falou novamente com a prefeita, que pediu uma nova proposta. O líder do governo, Chico Whitaker, também acabou intervindo para a elaboração da

(8) cf entrevista Lúcio Gregori

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nova proposta, dando sinal de que a área de Finanças necessitava ser pressionada para aderir à idéia.(9) As resistências no governo

Em 3 ou 4 dias veio a nova proposta de aumento de IPTU que acabou não tendo grandes alterações. Assim, era

mantida isenção de pequenas

propriedades, mas subia-se violentamente a cobrança de terrenos ociosos e propriedades de luxo, constituindo-se

no que Norberto Bobbio chama de

igualitarismo, isto é, "favorecer políticas que objetivam tornar mais iguais os desiguais". A aprovação no governo não foi consensual, apesar da total adesão da prefeita. Segundo Lúcio Gregori, "a reforma tributária não foi a melhor possível pois havia muita resistência". Essa idéia é apoiada pelo vereador Chico Whitaker:

Houve dois tipos de resistência dentro do governo: um de caráter tecnocrata, dos que não acreditavam que seria possível implementar uma política de tal amplitude e outro de caráter político, pois com essa iniciativa o Lúcio se tornava um candidato potencial à sucessão da Luiza, e justamente naquela época havia alguns candidatos já disputando espaço.(10)

Através dessas duas falas, verificamos que o projeto já saía sem uma forte sustentação do próprio núcleo central do governo. Na última reunião, antes

(9) cf entrevista Chico Whitaker (10) cf entrevista Chico Whitaker

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da entrega da proposta orçamentária à Câmara, foram discutidos os três projetos que possibilitavam a tarifa zero: o projeto de reforma tributária com o aumento médio de IPTU de 597%; o projeto de municipalização dos transportes; e o projeto que criava o Fundo de Transportes. Na criação do Fundo, era constituída uma administração que também tirava o poder que a área de finanças tem sobre o controle orçamentário, pois seria um fundo gerido por um grupo de pessoas, inclusive da sociedade civil, que ia administrar 5% das despesas correntes da prefeitura todo mês, e isso era colocado à disposição do fundo por lei, tirando a possibilidade da Secretaria de Finanças fazer as compensações internas que ela costumava fazer. Portanto sua ação tornava-se limitada. O grande aumento de IPTU não beneficiaria apenas a área dos transportes. A Lei Orgânica do Município de São Paulo determina que 30% da receita resultante de impostos deve ser aplicada em Educação. Assim, Educação passaria a responder por 19,3% do orçamento (transportes responderia por 17%), com o que seria possível, em um ano, zerar o déficit de vagas na rede municipal de ensino, com a construção de 120 escolas e 94 creches. Os argumentos contrários discutidos no governo podem ser resumidos nas palavras de Pedro Dallari, ex Secretário de Governo:

Víamos uma certa fragilidade na nossa capacidade de operar o sistema, pois ainda havia uma certa turbulência nas experiências com relação ao transporte. Tivemos mais de uma troca de Secretário, era um momento em que a gente podia estar agindo de forma prematura. Primeiro sem que a gente tivesse efetivamente demonstrado capacidade de controlar o sistema.

Tínhamos dificuldades na relação com os trabalhadores,

41

com os proprietários privados, na questão do trânsito. E fora isso, do ponto de vista da imagem de governo, eu achava que a sociedade iria ver a proposta como uma aventura de governo.(11)

O governo finalmente encontrava um novo modelo que se enquadrava dentro do imaginário da esquerda e que causaria grande impacto. Contudo, as resistências a esse modelo dentro do próprio governo não apontavam para uma possibilidade de vitória. O projeto não contava com o apoio convicto do grupo político mais próximo da Prefeita, o PT Vivo, com duas secretarias de caráter estratégico: Finanças e Governo. Além do mais, se o tempo de maturação da proposta, cerca de trinta dias, gerava dúvidas entre os membros do governo, imagine-se na oposição. Contudo, não havia jeito. A prefeita estava totalmente na defensiva, e desse projeto era sua possibilidade de virar o placar.

Mais

importante que sua aprovação na Câmara Municipal, a tarifa zero seria uma maneira de mostrar que a prefeitura tinha um projeto viável e próprio para a cidade. Por isso, logo após a finalização e aprovação dos projetos pelo governo, o Secretário de Comunicação, Chico Malfitani, anunciou:

Agora vamos usar toda a pompa e circunstância.(12)

(11) cf entrevista Pedro Dallari (12) cf entrevista Lúcio Gregori

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Capítulo 3 - A publicidade

A questão da "publicística" é se ela faz valer com suas informações uma diferenciação racional ou então se serve da magia para manter a consciência não emancipada de seus leitores. Harry Pross

Com a saída de Perseu Abramo, em fevereiro de 1990, Luiza Erundina procurou novamente Chico Malfitani, que estava trabalhando com o presidente da Câmara Municipal, Eduardo Suplicy. Ao saber da iniciativa da prefeita, o Diretório Municipal do PT divulgou uma nota em que afirmava não considerá-lo pessoa indicada para o cargo de Secretário de Comunicação, vetando sua indicação. O próprio presidente da Câmara intercedeu junto ao Diretório, procurando anular essa decisão. Contudo, o Diretório manteve a nota, e Luiza Erundina resolveu enfrentar o partido criando um novo cargo para Malfitani, o de Assessor Especial de Comunicação. (1) Malfitani tinha suas relações com o PT marcadas pela polêmica. Ele foi o responsável por diversas campanhas eleitorais do partido na televisão, inclusive a campanha de Luiza Erundina, assumindo-a cinco dias antes de seu início, pois ninguém queria realizá-la. Nessa campanha, foi muito criticado por construir uma imagem de Erundina diferente daquela que a militância estava acostumada: uma pessoa radical em suas ações, com pouca atenção à sua aparência. Na

(1) cf entrevista Chico Malfitani

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televisão Malfitani apresentou-a com gestos contidos e posições moderadas, além de uma produção visual bem cuidada. Foi o suficiente para dizerem que ele estava mudando o perfil da candidata. Mas a sua eleição como prefeita provou que a imagem usada na campanha estava correta, criando uma relação de profunda confiança entre Erundina e Malfitani. Ao saber da resistência do Diretório Municipal ao seu nome, Malfitani que estava reticente em ocupar o cargo acabou aceitando-o após saber que Erundina havia brigado com o PT por sua causa, criando até um cargo especialmente para ele. Para cuidar da reação com a imprensa, a prefeita chamou Ricardo Kotscho, assessor de Lula na campanha presidencial de 1989, que passou um dia na prefeitura e desistiu da tarefa. Então foi convidado o jornalista Ivo Patarra, que trabalhava no jornal "Folha da Tarde". Dessa forma, dividiam-se as tarefas antes acumuladas num só cargo: Malfitani, como Assessor Especial de Comunicação, cuidaria da imagem da prefeitura e Patarra, como Assessor de Imprensa, da relação com a mídia. A primeira campanha comandada por Malfitani foi a corrida de Fórmula I, no autódromo de Interlagos, que havia sido trazida de volta a São Paulo, após muitos anos no Rio de Janeiro, graças ao empenho de Erundina. Mesmo assim, a TV Globo não mostrou a prefeita entregando a taça ao vencedor da corrida, Airton Senna. Apesar disso, em pesquisa realizada posteriormente, para 52,7% dos entrevistados foi "totalmente acertada a construção do autódromo", para 26,2% "foi acertada em parte", para 17,5% "não foi acertada" e 3.6% disseram que não sabiam(2). O que mostra um amplo apoio à decisão da prefeita, apesar do fato de que a televisão procurou não vincular sua imagem ao evento.

(2) os dados são da pesquisa realizada pelo escritório Eugênia Paesani por encomenda da prefeitura.

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Em seguida, em maio de 1990, Malfitani encomendou uma pesquisa ao escritório Eugênia Paesani denominado Projeto Identidade, que visava retratar a imagem da prefeitura naquele momento. Foi a primeira pesquisa de opinião pública realizada no governo de Erundina. Os resultados foram transmitidos ao governo, que tinha reuniões semanais, todas as segundas-feiras, com a presença de todos os secretários municipais, presidentes de autarquias e do líder do governo na Câmara Municipal. Dessas reuniões Malfitani participava muito pouco, e a própria prefeita reconhecia:

Ele não tinha muita paciência, só ficava nas reuniões na hora em que se tratava da comunicação. Dentro da dinâmica do governo estávamos sempre socializando as informações, as decisões, mesmo que em última instância as decisões fossem minhas. E o Chico não tinha paciência.(3)

A pesquisa tinha por objetivo retratar a imagem da prefeita e do resultado de algumas de suas políticas. Em relação ao perfil de Erundina configuraram-se os seguintes dados: bem intencionada

83%

honesta

75%

confiável

71%

simpática

68%

competente

63%

decidida

62%

experiente

38%

(3) cf entrevista Luiza Erundina

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Dessa forma, os traços principais indicaram confiança da população na prefeita(bem intencionada, honesta confiável), mas indicaram como ponto fraco a falta de experiência. Isso se reflete nas notas dadas ao desempenho do governo: nota um

16,0%

nota dois

3,3%

nota três

6,5%

nota quatro

8,7%

nota cinco

24.7%

nota seis

11,3%

nota sete

10,5%

nota oito

11,6%

nota nove

3,6%

nota dez

3,6%

Apesar da boa imagem de Luiza Erundina entre a população, seu governo obteve média 5,04. Com esses resultados Malfitani disse ao governo que a primeira coisa que deveria ser feita era mostrar as obras até então realizadas.(4) Diferentemente de Perseu, que buscou criar uma infra-estrutura dentro da prefeitura voltada à Comunicação, Malfitani, logo de início, buscou contratar uma agência de publicidade. Assim, convidou Washington Olivetto, proprietário da WBrasil,

para cuidar da imagem da prefeitura. Olivetto não aceitou o convite

argumentando que sua empresa não cuidava de contas governamentais. Com a recusa de Olivetto, Malfitani consultou Erazê Martinho e Carlito Maia, ambos publicitários e seus amigos. Os dois sugeriram que fosse feita uma

(4)

cf entrevista Chico Malfitani

46

concorrência pública para contratar uma agência de publicidade, o que pela primeira vez ocorreria no Brasil. Participaram da concorrência todas as grandes agências de publicidade que, como não podia deixar de acontecer nesse meio, criaram muita intriga. Roberto Justus, da Fischer & Justus, no dia que entregou sua proposta pediu para falar com a prefeita e acabou sendo recebido. Isso foi entendido como um sinal de que ele iria ganhar a concorrência. Por isso, a própria Fischer espalhou um boato de que quem iria ganhar era a DPZ. Mas a agência que acabou ganhando foi a MPM. Segundo Chico Malfitani essa escolha se deu porque a MPM, além de ser a maior agência do país, já havia feito a publicidade dos mais diversos governos, desde Brizola quando governador do Rio Grande do Sul, João Goulart quando presidente e até havia criado o "Brasil: ame-o ou deixe-o", durante a ditadura. A MPM também tinha uma política de aparecer menos que os clientes, o que muitas vezes não ocorria com outras agências. Além disso, Malfitani também apontou como razão para a escolha:

Decidimos escolher a MPM porque nem ninguém no PT nem fora do PT achava que ela ia ganhar, então nós quebramos preconceitos até dentro do partido e para quebrar preconceitos vamos fundo mesmo.(5)

Ao optar pela comunicação da prefeitura através de uma agência de publicidade, Malfitani priorizou sua atenção à chamada "mídia publicitária" que:

...apresenta os conhecidos limites da proposição emotiva, isto é, contribui limitadamente à construção de um projeto político com a sua

(5) cf entrevista Chico Malfitani

47

necessária racionalidade. Pode ser educadora, formadora, sugerindo mudanças. Tende a ser rapidamente anulada, ou despontecializada, pela contraposição às demais publicidades. A "campanha" publicitária, afinal, é o elemento reificador do status quo.(6)

Essa opção, ao contrário das outras iniciativas do governo, não havia sido discutida pelo conjunto dos secretários, e mesmo as campanhas organizadas por Malfitani não eram fruto de debate:

Nunca discutíamos a comunicação nas reuniões de governo. Eu achava que isso ocorria pois todos deviam gostar do trabalho do Chico Malfitani. Mas no dia que ele disse que ia sair do governo para fazer a campanha do Suplicy na TV (em agosto de 1992), o secretariado todo, pela primeira vez, passou a demonstrar um grande descontentamento com o que vinha sendo feito.(7)

Esse

descontentamento

pode

ter

ocorrido

devido

à

conotação

amplamente negativa que a propaganda adquiriu: "muitas vezes ligada à idéia de manipulação das grandes massas por parte de pequenos grupos (pois) realça elementos puramente emotivos, recorre a estereótipos, põe em relevo só certos aspectos da questão, revela um caráter sectário, etc." (BOBBIO 1986: 1018). Aqui, voltamos à questão da necessidade de criação de novos signos na ação dos partidos progressistas. Utilizar a mídia-publicitária como principal veículo de comunicação poderia acabar por manter a mesma relação estado-

(6) esta definição foi sistematizada pela Coordenação de Comunicação Social da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, sob o segundo mandato petista, na publicação "ObservaçÆes sobre a utilização da mídia" de 10/03/93. (7) cf entrevista Paul Singer

48

cidadão dos partidos conservadores, que procuram manter as desigualdades sociais, ao contrário do "igualitarismo" dos partidos de esquerda. Mas os resultados eficazes que a publicidade costuma provocar, ao menos no curto prazo, pareciam silenciar o governo a espera de melhores resultados. Afinal a imagem do governo estava péssima (a nota 5 reprova qualquer estudante), e a comunicação era apontada como uma das culpadas. Por isso, talvez o silêncio fosse uma forma de esperança.

"Jesus voltou"

O primeiro spot publicitário produzido pela MPM foi veiculado em 11 de junho de 1990 para divulgar o passe-fácil. Foi então criada uma série de comerciais para a televisão denominada "TV Cidade", sendo apresentada em sua primeira fase por um casal de atores, que em cada programa tratava de alguma obra da prefeitura, nas suas diversas áreas de atuação: saúde, educação, abastecimento etc. O primeiro "TV Cidade" foi ao ar em 5 de agosto de 1990 para tratar da moradia. Mas a tarifa zero foi o primeiro tema de peça publicitária que trataria não de uma obra de governo, mas ainda de um projeto de lei que iria tramitar na Câmara Municipal. Durante as reuniões no gabinete da prefeita que discutiram o assunto, Malfitani foi dos primeiros a dar total apoio à proposta, pois a idéia estava em consonância com a expectativa da população que queria a melhora dos transportes. As condições para a elaboração de uma campanha publicitária eram muito boas, pois tratava-se de um segredo, que deveria vir à tona somente quando a proposta orçamentária da prefeitura fosse entregue à Câmara, cuja prazo fatal era 30 de setembro. Assim, começou-se a esboçar a campanha:

49

A gente teve uma discussão grande com a MPM sobre qual ia ser a cara da campanha, como íamos vender a idéia, qual seria o slogan, e chegamos a conclusão que não tinha que dizer nada. É como "Jesus voltou". Quer dizer, Jesus voltou, não precisa dizer "Jesus voltou e tal...ônibus de graça, nada mais forte do que você ter "o ônibus é de graça", esse era o anúncio "Jesus chegou". Depois, se os romanos vão querer crucificar ele outra vez, aí você faz uma campanha para dizer "não, não crucifiquem por isso, por isso, por isso e por isso". E eu não tive nenhum grande problema na prefeitura do ponto de vista de grandes discussões antes dos comerciais irem para o ar. Ninguém gostava, é óbvio, quando ia para o ar. E a tarifa zero foi a que menos teve essa discussão.(8)

Contudo, a prefeitura não podia divulgar a tarifa zero pela televisão, pois a Justiça Eleitoral havia proibido a veiculação da "TV Cidade" alegando que ela fazia propaganda indireta do PT e portanto colaborava na campanha do candidato do PT ao governo do estado, Plínio de Arruda Sampaio. O candidato havia sido consultado sobre a conveniência da divulgação da tarifa zero apenas uma semana antes das eleições, já que pela coincidência de datas o plano poderia ser considerado eleitoreiro, mas Sampaio também entusiasmou-se pela proposta. Aliás, pessoas ligadas à sua campanha consideravam que a tarifa zero poderia realmente ajudar em seu desempenho eleitoral, pois estava em quarto lugar segundo as pesquisas, atrás de Covas, Maluf e Fleury(9). Mesmo sem poder utilizar o rádio e a televisão neste primeiro momento, a repercussão foi enorme. Em 28 de setembro, às 15 horas e 15 minutos, Luiza (8) cf entrevista Chico Malfitani (9) cf entrevista Chico Whitaker

50

Erundina e todo seu secretariado anunciavam para mais de cem jornalistas a proposta orçamentária para 91, com uma reforma tributária que possibilitaria não ser mais cobrada a tarifa na catraca. Foi justamente ao explicar como funcionava o sistema, que Gregori afirmou:

Não é que seja um sistema de ônibus de graça, é um sistema de ônibus com a tarifa zero, pago indiretamente.(10)

Foi nessa fala que se criou a expressão "tarifa zero", que nos três meses seguintes polemizou a cidade como nenhum outro projeto do governo Erundina havia conseguido fazer. Assim, foram necessários 20 meses no poder para que o governo petista apresentasse uma proposta que realmente o diferenciasse de outros governos. E foi justamente essa a avaliação da "Folha de S. Paulo", em seu editorial de 29.08.90:

Trata-se de providência arrojada e positiva; tem efeitos sobre a distribuição de renda, favorecendo claramente os setores mais pobres da população. Para uma administração que se caracteriza pela ausência

de

surpreendente.

(10) cf entrevista Lúcio Gregori

medidas

de

impacto,

tem-se

aqui

uma

atitude

51

Capítulo 4 - O debate público

Na política, mais do que em outros lugares, a informação é uma carta no jogo de poder.

Yves Mamou

Nos dias 29 e 30 de setembro de 1990 todos os jornais de grande circulação da capital paulista publicaram anúncios na primeira página ou de página inteira, com o seguinte texto publicitário:

A prefeitura encaminhou projeto à Câmara para acabar com a tarifa de ônibus. Quatro milhões de viagens por dia são feitos à pé porque muita gente não tem dinheiro sequer para a passagem. Os custos dos transportes serão repassados ao IPTU. O trânsito e a poluição vão melhorar muito com a saída de circulação de milhares de automóveis. Até julho de 91, a prefeitura pretende colocar cerca de 4 mil novos ônibus em circulação. A população vai poder andar de ônibus quantas vezes quiser, o dia todo, todos os dias. O projeto foi apresentado dia 28 de setembro, conforme prazo determinado por lei. Se for aprovada, a medida entra em vigor em julho de 91. Os vereadores tem até 15 de dezembro de 90 para aprovar ou não o projeto. Prefeitura do Município de São Paulo

52

Do ponto de vista da informação, este anúncio era completamente dispensável pois todos os jornais repercutiram o anúncio da tarifa zero feita em entrevista coletiva no dia anterior pela prefeita. Além do mais, toda nota oficial gera descrença, pois o brasileiro, ao contrário dos europeus, não se identifica com o Estado.(1) A "Folha de São Paulo", o "Estado de S. Paulo" e o "Diário Popular" publicaram matérias de página inteira. O "Jornal do Brasil" e a "Folha da Tarde" publicaram matérias menores, mas bastante informativas. Todos os jornais deixavam claro que os ônibus seriam gratuitos apenas por causa do aumento do IPTU, diferentemente da nota da prefeitura que aborda o IPTU, mas sem dizer que teria um aumento. Nesse caso, temos um exemplo típico da mídia-publicitária que tem por regra simplificar os conteúdos, acabando por "deformar a realidade"(BOBBIO 1986: 1018) As matérias forneciam dados da prefeitura mostrando que o aumento do IPTU seria compensado com a gratuidade dos ônibus. Um exemplo citado em várias matérias falava de uma família com duas pessoas morando em um apartamento de 150 m² no Tatuapé. Tomando duas conduções por dia, a família gastava por ano Cr$ 28.600,00 com transporte mais Cr$ 8.400,00 de IPTU, num total de Cr$ 37.000,00. Com o novo IPTU a família passaria a pagar Cr$ 19.600,00, economizando Cr$ 17.400,00. Esses cálculos feitos pela prefeitura e publicado pelos jornalistas só esquecia um pequeno detalhe: a tarifa zero passaria a vigorar apenas a partir de 1° de julho. Assim, ao valor do IPTU de 91 deveria ser somado o gasto com transporte por seis meses, o que corresponderia a Cr$ 14.300,00. Com isso, a economia se resumiria a Cr$ 3.100,00, caindo 80% do valor publicado nos jornais. Na época ninguém (1) estendo essa análise aos brasileiros a partir da constatação de Jorge Luiz Borges sobre o povo argentino que "de forma diferente que os americanos do Norte e de quase todos os europeus, não se identifica com o Estado. Isso pode ser atribuído à circunstância de que, neste país, os governos costumam ser péssimos ou ao fato geral de que o Estado é uma inconcebível abstração; o certo é que o argentino é um indivíduo, não um cidadão"(BORGES 1985: 41)

53

percebeu isso e os jornais continuaram divulgando esses exemplos sempre que eram fornecidos pela prefeitura. Nesse caso pode-se até dizer que houve manipulação de informações por parte da prefeitura, possivelmente não intencional, mas de qualquer forma incorretas. Raramente dados fornecidos pelo governo

são

questionados,

principalmente

quando

vêm

em

tabelas,

organogramas ou qualquer esquema que aparente seriedade. Assim, nesse caso específico, a prefeitura acabou "manipulando" a imprensa. Essa relação ambígua entre imprensa e poder é tão comum que "a instrumentação dos meios de comunicação nos conflitos entre políticos tornou-se uma característica da vida governamental", segundo análise do ex editor de economia do jornal francês "Le Monde", Yves Mamou (MAMOU 1991). E isso ocorreu na FSP, no DP e no OESP, o que mostra que a ambigüidade não é privilégio de um só jornal. De modo geral, as matérias foram bastante imparciais, dando mais espaço às informações divulgadas pela prefeita, mas sempre ouvindo o outro lado, que no caso eram os vereadores de oposição, e empresários do setor. Todos os jornais publicaram uma nota assinada por 3 vereadores da Comissão Parlamentar de Transportes da Câmara, que havia sido criada em abril daquele ano, composta por 10 vereadores para estudar o transporte em São Paulo. Os vereadores que assinavam a nota eram Walter Abrahão, líder do PDS, Walter Feldman, líder do PSDB, e Antonio Carlos Caruso, líder do PMDB. Segundo os jornais, a nota dizia que a proposta da prefeita era uma "brincadeira com o dinheiro público" e que se estava fazendo "um laboratório de absurdos" (FSP 29/09/90). Feldman também declarou estar "abalado pois algo que nunca questionei na Luiza foi a seriedade"(29/09/90).

Os outros dois vereadores

também ouvidos foram menos pirotécnicos em suas declarações. Arnaldo Madeira (PSDB) disse que o projeto era "eleitoreiro por tentar reverter a eleição

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para governador", e Marcos Mendonça (PSDB) que seria difícil "a Câmara aprovar um aumento tão substancial de impostos com a única finalidade de financiar o transporte coletivo" (FSP 29/09/90). O único jornal que em suas matérias mostrou-se contrário ao projeto foi o DP, qualificando-o como "a última tentativa para reverter o quadro eleitoral desfavorável a Plínio de Arruda Sampaio, candidato do PT ao Governo"(DP 29/09/90). No domingo, dia 30 de setembro, a FSP publicava nova matéria repercutindo o assunto, com a manchete "Projeto de tarifa zero é populista, diz vereador". Tratava-se de entrevista com o vereador Arnaldo Madeira que falava sobre o anúncio pago nos jornais:

É uma estratégia de se relacionar diretamente com a população, pressionando a Câmara. Em vez de debater com a Câmara ela se prepara para dizer à população: olha, nós quisemos dar ônibus de graça, mas a Câmara não deixou.

Dia 1° de outubro, a manchete da FSP era "Prefeitura admite rever tarifa zero se arrecadar menos imposto do que prevê". Na matéria, Lúcio Gregori afirmava que se o Fundo de Transporte não alcançasse os Cr$ 42,5 bilhões necessários para custear o sistema, a prefeitura iria estabelecer uma tarifa de ônibus para cobrir a diferença existente. Ou seja, a tarifa poderia não ser zero. Objetivando permanecer o maior tempo possível na mídia, dia 1° também foi convocada nova coletiva de imprensa, desta vez para divulgar a compra de 27 "jardineiras" (ônibus com entrada e saída nas duas laterais para a circulação nos corredores exclusivos para ônibus). Participavam da coletiva Lúcio Gregori e

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Paulo Sandroni. Naturalmente era uma boa oportunidade para se falar um pouco mais da tarifa zero. Dia 2 de outubro, um matéria de página inteira do JT tinha como manchete "Aumento de imposto da prefeitura é ilegal". A matéria repercutia as afirmações dos advogados Cláudio Lembo, ex-secretário de Negócios Jurídicos de Jânio Quadros, e Yves Gandra Martins, ex-Secretário de Negócios Jurídicos de Paulo Maluf. Lembo alegava a inconstitucionalidade do projeto pois a Constituição proibia a vinculação da receita de impostos à criação de fundos e Martins dizia que a proposta contrariava o artigo 150, que "proíbe o efeito de confisco embutido no projeto e cria o imposto progressivo só permitido para punir imóveis não aproveitados". No mesmo dia, a FT publicava matéria sobre a reação da Câmara à tarifa zero. Os mesmos três vereadores que divulgaram a nota contra a tarifa zero, agora afirmavam ser ela inconstitucional, repetindo os argumentos dos advogados. A matéria também relatava que "nos bastidores na Câmara comenta-se que vereadores da oposição, mas com bases eleitorais mais populares votarão a favor do projeto". Nova coletiva foi convocada dia 2 de outubro, véspera da eleição para governador, agora para rebater as críticas de inconstitucionalidade do projeto. Participaram da coletiva o Secretário de Governo, José Eduardo Martins Cardoso, o Secretário de Planejamento, Paul Singer, Paulo Sandroni e Lúcio Gregori. Os argumentos de Cláudio Lembo e Yves Gandra Martins foram rebatidos e o próprio Martins reconhecia que não havia vinculação explicita entre o aumento de IPTU e a tarifa gratuita (JT 3/10/90), o que desmontava suas afirmações no dia anterior. No dia seguinte, o JT publicava o artigo de página inteira sob o título "ônibus de graça. Técnicos criticam projeto.", com análise dos técnicos e ex-

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presidentes da CMTC na gestão Jânio Quadros, Jair Carvalho Monteiro e Antonio João Pereira. Os argumentos dos dois contra o projeto: a indústria não conseguiria produzir os 4.500 ônibus necessários; as garagens não eram suficientes; seria necessário que 13.500 automóveis deixassem de circular para que o trânsito não piorasse, o que só ocorria quando havia aumento de tarifa. Num pequeno box o jornal apresentava os argumentos da prefeitura defendendo a constitucionalidade, e a retratação de Ives Gandra Martins. Quando, no dia anterior, as acusações ocuparam o alto de página, a resposta no dia seguinte ganhou um pequeno box. O partido não deixou de se utilizar da popularidade da medida para tentar reverter a situação de Plínio Arruda Sampaio, que estava em quarto lugar nas pesquisas, nas eleições de 3 de outubro. Para tanto foram confeccionados mais de 5 milhões de panfletos onde de um lado era reproduzida parte da matéria do OESP "Erundina quer ônibus de graça", e do outro lado um modelo de cédula eleitoral ressaltando os nomes de Plínio e Suplicy, candidato ao senado. Se o projeto não tinha caráter eleitoreiro, a partir desse panfleto, a oposição tinha como respaldar sua acusação.(ver Anexo 5) Contudo, isso não foi suficiente para mudar o quadro das eleições e os dois candidatos que passaram para o segundo turno foram Paulo Maluf(PDS) e Luiz Antonio Fleury Filho(PMDB). Mesmo com a derrota do candidato petista, a Justiça Eleitoral manteve a proibição da veiculação da "TV Cidade" na televisão. Erundina declarou seu apoio ao candidato do PMDB, esperando obter em troca apoio do PMDB na Câmara Municipal para aprovar a tarifa zero e eleger o novo presidente da Câmara, que sucederia Eduardo Suplicy, em 15 de dezembro. A primeira matéria sobre a tarifa zero publicada após as eleições saiu na FSP em 5/10/90. A manchete foi "Empresários criticam projeto de tarifa zero". Foram entrevistados três empresários do setor de transportes, dois deles

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taxativamente contrários à tarifa zero: Cléssio Andrade, presidente da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos, e Manuel José Martins, diretor da empresa Brasil Luxo. O terceiro entrevistado foi José Sergio Pavani, presidente do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo de Passageiros de São Paulo(Transurb). Pavani afirmou que "se o exemplo da municipalização se repetir na tarifa zero, não teremos meio de sobrevivência e o transporte irá para o caos", mas também que "se a prefeitura pagar todos os nossos custos e nos der condições acho até viável". A mesma matéria foi publicada na FT, com a manchete "Para empresários tarifa zero trará o caos". Durante todo o período de discussão da tarifa zero, mas não só nessa fase, matérias como essa foram publicadas. Elas generalizavam a opinião de algumas pessoas, como se elas respondessem por toda a classe a que pertenciam, sem que se fizesse distinção entre um empresário que controla cinco ônibus de um que controla mil. No caso dessa matéria, com os empresários de transporte, a pessoa com maior poder era Sérgio Pavani, por liderar o sindicato dos transportes na cidade de São Paulo. Sua opinião, pelas declarações publicadas, não era contrária à tarifa zero, mas somente de receio, considerando até possível a viabilidade do projeto. Mas suas declarações foram descontextualizadas, tornando-se até manchete na FT, pois a palavra "caos" é uma palavra de forte significado, que gera polêmica, portanto que atrai leitura. Este tipo de manipulação da informação, que visa o sensacionalismo, é muito comum, e sempre que alguém produz declarações polêmicas, estas são generalizadas, como se fosse a opinião de toda uma categoria. Em geral as declarações refletem mais a opinião do jornalista do que de suas fontes. Outro exemplo desse mesmo tipo aconteceu no OESP, em 6/10/90, com a matéria "Comissão da Câmara condena projeto de ônibus gratuito". A matéria divulga os resultados de um relatório sobre a tarifa zero:

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A Comissão Parlamentar de Transportes da Câmara Municipal de São Paulo condenou ontem do ponto de vista técnico o projeto tarifa zero... Os vereadores enumeram os inconvenientes: ameaça de depredação dos ônibus, aumento da frota e portanto da poluição, insuficiência da malha viária e desequilíbrio entre os sistemas de transporte.(OESP 6/10/90) Esse relatório foi divulgado como se fosse o relatório oficial, o que de fato não era. Tratava-se de uma versão preliminar, divulgada pelo presidente da Comissão, o vereador Walter Feldman. O documento final veio oficialmente a público apenas no dia 18 de dezembro, propondo inclusive a realização de um projeto experimental em duas áreas da cidade. Esse resultado não foi divulgado pelo OESP. Esse exemplo mostra como muitas vezes o jornal acaba tomando lado no jogo político. Interessava a Feldman que o relatório condenando a tarifa zero saísse no jornal e interessava ao jornal gerar polêmica em torno do projeto, e polêmica só se cria falando contra alguém. Trata-se de um jogo pernicioso, onde a informação é o que menos interessa. Para Feldman era importante projetar-se como opositor ao governo de Erundina, pois nas próximas eleições - e não por acaso foi candidato a vice-prefeito pelo PSDB na eleição seguinte - o candidato de seu partido poderia apresentar-se como uma via alternativa à situação. Portanto, um partido de oposição, dentro desse sistema, deverá sempre estar contra projetos do Executivo. Isso tinha ainda mais importância para o PSDB, que possuía uma grande base eleitoral de classe média e formadores de opinião, para os quais conta muito o posicionamento político na mídia. Dessa forma, o jornal acaba se tornando um instrumento de luta política entre os partidos. O que é feito não ingenuamente, mas principalmente como parte do sensacionalismo com que os editores crêem elevar a venda do jornal. Para

59

Mamou, utilizar os meios de comunicação para "resolver conflitos ou desestabilizar

um

adversário

tornou-se

prática

corrente

da

esfera

governamental. Na política, mais do que em outros lugares, a informação é uma carta no jogo do poder" (MAMMOU: 1991). No dia 7 de outubro, OESP publicou uma página inteira sobre o assunto. A manchete: "Chances de aprovação do ônibus grátis são mínimas". O relatório preliminar foi novamente noticiado no box "Comissão da Câmara dá parecer contrário". Naturalmente, a fonte da matéria era o vereador Walter Feldman, que, produzindo uma frase de efeito, comparou a proposta da prefeitura a uma eutanásia: "a terapêutica se destina a matar o paciente". A matéria terminava afirmando que "a maioria da Câmara pensa da mesma forma e está disposta a assinar o atestado de óbito do projeto da tarifa zero". O texto não era assinado, nenhum outro vereador

entrevistado, e muitas outras informações são

imprecisas. Por exemplo, no box "Proposta acirra disputa no PT", afirmava-se que o projeto era a "grande cartada dos assessores mais próximos da prefeita, que integram o PT Vivo. O resto do partido foi surpreendido", quando de fato o PT Vivo, como já foi visto, era contrário à medida. Matérias desse tipo, sobre a situação de um projeto, muitas vezes refletem mais o desejo ou a opinião do jornalista do que o que existe de fato. O problema é que uma opinião publicada passa a fazer parte da realidade e nela influir, sendo que é isso a opinião pública para Harry Pross, isto é, "a soma das opiniões publicadas" (PROSS 1987: 114).

Plebiscito: a possibilidade da participação popular

Dia 10 de outubro o presidente da CMTC, Paulo Sandroni, participava de reunião da Comissão Parlamentar de Transportes para prestar esclarecimentos

60

sobre a tarifa zero. Durante essa reunião o vereador Arnaldo Madeira propôs que a Câmara encaminhasse ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) uma representação para saber se era possível realizar um plebiscito sobre a tarifa zero junto com o segundo turno da eleição para o governo do Estado, no dia 25 de novembro. A proposta teve grande repercussão. A primeira reação da prefeita foi afirmar que devia-se "tomar cuidado para que o plebiscito seja realmente democrático"(FSP 11/10/90). Nesse mesmo dia 10, Luiza Erundina havia participado de uma reunião com empresários e representantes da Associação Nacional de Transportes Públicos para discutir o projeto da tarifa zero. No dia seguinte

os jornais

divulgaram com bastante destaque a proposta do plebiscito e sucintamente a reunião com os empresários. A FSP publicou que "os empresários não são contra o projeto, mas afirmam que é necessário que a Prefeitura garanta que eles vão ser devidamente remunerados". Sobre o mesmo fato, o OESP dizia "Erundina não gostou da reação contrária à tarifa zero pelos empresários reunidos em seu gabinete, pois há nove meses a prefeitura criou a municipalização e nem a CMTC nem contratadas prestam serviço adequado". Como todo fato é passível de várias versões, cada jornal resolveu publicar uma diferente. No dia 12 de outubro a FT já publicava uma resposta não oficial do TRE sobre o plebiscito. Francisco José da Costa, assessor de imprensa do tribunal, alegava que "a realização do plebiscito estava fora das atribuições do TRE, pois era necessária uma lei federal que regulamentasse a matéria". Mesmo assim o Secretário de Governo, José Eduardo Martins Cardoso, afirmou que a prefeitura "apoiava a idéia do plebiscito e que estava disposta organização".

a

promover sua

61

Em quinze dias, a tarifa zero conseguira provocar matérias diárias nos jornais, e o governo "havia encontrado pela primeira vez uma proposta capaz de chamar a atenção da opinião pública" (Kowarick 1993: 209). A sugestão do vereador Madeira em realizar um plebiscito sobre o projeto, mostrava que ele o encarava seriamente, não como uma proposta absurda. Sua idéia de plebiscito era uma resposta rápida a iniciativa da prefeita, transferindo para a população a decisão da matéria. A nova Constituição brasileira

apresenta

vários

instrumentos de participação popular, e a bancada do PT na Assembléia Constituinte foi fundamental para sua aprovação(2). Agora, que estava no governo, o PT ignorava a existência desses instrumentos, que possibilitariam o exercício de uma nova cidadania em São Paulo, cabendo a um vereador do PSDB a idéia de utilizá-los. O PT parecia recusar-se a "içar" novos símbolos para seu governo. Dia 12 de outubro, a FSP publicou a matéria "Para técnico do PT, tarifa zero é impraticável", onde o ex-presidente da CMTC, Celso Cosenza, exonerado junto com Tereza Lajolo, afirmava considerar o projeto "um balão de ensaio" pois "não existe um projeto, um projeto leva pelo menos 6 meses para ser feito". Na mesma página, o vereador Arnaldo Madeira achava positiva a tarifa zero pois "possibilitou a discussão ampla e profunda de todo o sistema de transporte". As declarações parecem ter sido invertidas, mas se tivessem sido, não teriam sido publicadas. Erundina continuou tentando, em reuniões públicas, conquistar mais apoio a seu projeto. Dia 12, em seu gabinete, convidou empresários representativos para ouvirem explicações sobre o projeto. Entre eles estavam

(2) No livro Cidadania Ativa, Maria Vitória Benevides, faz uma extensa análise sobre os instrumentos de participação popular incluídos na Constituição aprovada em 1988, e o livro Cidadão Constituinde, de Chico Whitaker e outros autores, narra a história da aprovação desses instrumentos.

62

Mário Amato, presidente da FIESP e Abram Szajman, presidente da Federação do Comércio. Amato não se disse contrário ao aumento do IPTU, mas que a idéia deveria ser debatida até a exaustão, além de serem feitas experiências piloto, segundo declaração na FSP, em 13/10/90. Abram Szajman também se disse favorável ao aumento do IPTU, desde que fosse aplicado em educação e saúde, e que a tarifa continuasse sendo cobrada. Aliás, Szajman deu a mesma declaração na reunião na sede da entidade que preside, onde Erundina, Amir Khair e Lúcio Gregori foram em busca de mais apoio. Cerca de cem empresários participaram desta reunião que foi divulgada em 17/10/90 pelo OESP com a manchete "Empresários criticam plano de ônibus grátis" e no JT "Juristas condenam o projeto". A matéria do JT também publicava as críticas de Celso Cosenza, com o título "Tarifa zero recebe críticas até no PT". Nesse mesmo dia, o vereador Almir Guimarães, sem partido na época, pedia a transcrição dessa matéria nos anais da Câmara Municipal. Mais uma versão do relatório da Comissão de Transportes Públicos da Câmara é publicada. Desta vez em 20.10.90 pela FSP. A matéria "Comissão de Transportes da Câmara quer tarifa experimental em 91" dizia:

O documento propõe o adiamento para estudos e uma experiência da tarifa zero nos ônibus da zona sul e leste por quatro meses.

Oficialmente, o documento só foi lido no plenário da Câmara em 18 de dezembro de 1990. É estranho que em dois meses o relatório teve duas versões tão diferentes divulgadas. A versão oficial continha o mesmo teor da matéria da FSP. Participaram desta comissão dez vereadores de sete diferentes partidos, portanto bastante representativa. Se a comissão técnica do assunto na Câmara

63

não rejeitou o projeto, como na primeira versão, e propunha uma experiência piloto, certamente era um sinal de possível negociação.

A cidade se divide com a tarifa zero

Dia 22 de outubro, 25 dias após o anúncio da tarifa zero, era publicada a primeira pesquisa sobre o projeto da tarifa zero pela FSP. Ainda não havia começado a campanha publicitária no rádio e na televisão e metade dos entrevistados já apoiava a tarifa zero. A manchete era "Tarifa zero divide paulistanos; plebiscito é apoiado". Segundo pesquisa do DataFolha, 43% dos entrevistados declararam-se favoráveis à tarifa zero, enquanto 45% disseram-se contrários, o que, dentro da margem de erro da pesquisa pode ser considerado empate entre as opiniões.

64

Quadro 1 categoria

renda familiar mensal

TOTAL

até 5 SM

5 a 10 SM

+ de 10 SM

a favor

50

39

35

43

contra

38

48

54

45

depende

8

9

9

8

não sabe

4

4

2

4

Quadro 2 categoria

Total até 1º grau 2º grau superior

a favor

47

39

35

43

contra

41

48

53

53

depende

7

11

11

8

2

1

4

não sabe 5

A

pergunta proposta era "A prefeita Luiza Erundina está propondo

aumentar o imposto predial, o IPTU, para pagar os gastos com ônibus urbanos , que assim seriam grátis para a população. Você é a favor ou contra essa proposta da prefeitura?" Colocar primeiro o aumento de IPTU para pagar os ônibus urbanos e só então dizer que seriam gratuitos é uma maneira bastante sutil de induzir a uma resposta negativa, segundo Chico Malfitani(3). A proposta alcançou maior índice de aprovação na faixa de renda até 5 salários mínimos (50%), enquanto o maior índice de reprovação ocorreu na faixa salarial superior (3) cf entrevista Chico Malfitani

65

a 10 salários mínimos(54%)(quadro 1). A aprovação da tarifa também é variável conforme o nível de escolaridade: quanto mais tempo de escolaridade menor é o índice de aprovação (quadro 2). A partir desses dados concluí-se que a prefeitura deveria fazer uma campanha de esclarecimento mais voltada para os segmentos de maior renda e com maior nível de escolaridade, justamente aqueles mais suscetíveis a veículos como jornal e revista. A pesquisa também perguntava sobre a proposta de plebiscito para a tarifa zero, que obteve um alto índice de

aceitação: 79% dos entrevistados

declararam-se favoráveis ao plebiscito, enquanto 18% eram contrários (Quadro 3). A pergunta foi "Você acha que essa proposta deve ser decidida pela prefeita e pelos vereadores ou a população da cidade deve votar para decidir?". Nesse caso, a pergunta também levava a uma certa indução pois tornava a resposta favorável ao plebiscito mais atrativa.

66

quadro 3 A tarifa zero deve ser decidida: Categorias

Escolaridade 1°grau

pela prefeita e vereadores

18

total

2°grau 3°grau 14

23

18

pela população da cidade

78

83

75

79

outras respostas

1

2

2

1

não sabe

3

1

-

2

Essa pesquisa foi publicada cinco dias antes da primeira audiência pública realizada na Câmara Municipal. Pela Lei Orgânica do Município, a Câmara deve realizar duas audiências públicas antes de votar o orçamento. Mas, entre os vereadores, o debate não dava a impressão que iria reverter o quadro da pesquisa, pois até o vereador petista Maurício Faria declarava que "um projeto como esse não pode ser discutido em tão pouco tempo"(FSP 26/10/90).

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Capítulo 5 - Os últimos momentos

A comunicação empírica, desde o tratamento primário entre as pessoas, até os sistemas técnicos de entendimento altamente complicados, determina o que é ou não possível na política. Harry Pross

Dia 6 de novembro Luiza Erundina anunciava, em cadeia de rádio e televisão, novo aumento de tarifa de ônibus (ver Anexo 3). Pela primeira vez a prefeita podia divulgar um reajuste na tarifa e, ao mesmo tempo, afirmar que os aumentos deixariam de ocorrer devido a um novo projeto, que poderia solucionar a questão do transporte público em São Paulo. Erundina levou vinte meses para mostrar à cidade "a solução que tenha um jeito todo brasileiro e petista de ser", mas agora ela tinha apenas pouco mais de um mês para aprová-la na Câmara. E seu pronunciamento obteve uma reação nada favorável na Câmara Municipal. Até o PCdoB, partido aliado ao governo petista, divulgou uma nota contra o aumento da tarifa. O reajuste havia sido de Cr$ 35,00 para Cr$ 50,00, o que somado ao aumento do dia 6 de outubro, portanto um mês antes, totalizava 100% de aumento. Dia 8 de novembro, o JT publicou a matéria "Tarifa zero já custa pelo menos 9 milhões para o contribuinte". O jornal divulgava os custos do pronunciamento em rádio e televisão da prefeita, de cerca de US$ 79 mil. Curiosamente o JT não divulgara os custos da prefeitura na propaganda

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publicada nos jornais no fim de semana posterior ao anúncio do projeto, que no OESP, jornal da mesma empresa, havia sido de página inteira. Para justificar o reajuste na tarifa, o vereador Marcos Mendonça (PSDB) solicitou a presença de Lúcio Gregori na Câmara Municipal. Gregori, juntamente com Paul Singer, Paulo Sandroni e Amir Khair participaram, no dia 8 de novembro da sessão da Câmara Municipal e por mais de três horas responderam a questões de catorze vereadores(1). Era uma oportunidade para que o governo pudesse defender seu projeto de tarifa zero, que dependia da aprovação dos vereadores. A sessão transcorreu de forma tão tranqüila e cordial, que nenhum jornal publicou matéria sobre o assunto, sinal que não houve nem perdedores nem ganhadores, portanto não houve polêmica. Se não há polêmica não há notícia, mesmo que haja informação. E as informações é que são a matéria prima do jornal. A polêmica em detrimento da informação é sinal de jornalismo voltado para o sensacionalismo e não preocupado na boa informação dos leitores.

(1) cf transcrição da sessão publicada no Diário Oficial do Município de 28.11.90

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A burocracia do PT defende a tarifa zero

A tarifa zero, além de permitir que Erundina anunciasse os aumentos de tarifa dizendo que isso podia acabar pois tinha um projeto para tanto, conseguiu também melhorar sua relação com as instâncias burocráticas do PT. Pela primeira vez os órgãos do partido reuniam-se para mobilizar seus militantes e a população a favor de uma proposta do governo(ver anexo 6). A Comissão Executiva Municipal havia divulgado uma "Resolução da CEM sobre a tarifa zero" em 17 de outubro dando apoio ao projeto, além de reafirmar "a necessidade de, a médio prazo, viabilizar a estatização do sistema". O documento terminava de forma entusiasta, conclamando "a militância petista a se engajar na mobilização popular visando assegurar a vitória destas iniciativas no debate com a sociedade e na votação na Câmara Municipal". Menos do que o conteúdo da proposta, que estava totalmente adequada ao discurso petista de redistribuição de renda, certamente foi a estratégia da prefeitura para sua aprovação que garantiu o apoio e o engajamento das instâncias burocráticas. O governo dependia dos votos dos vereadores e decidiu que procuraria mobilizar a população para pressioná-los. Mobilizar e pressionar fazem parte da linguagem do partido, mas não tinham até agora entrado na linguagem do governo. Assim, a tarifa zero fez com que governo e partido falassem pela primeira vez a mesma língua. Um exemplo que comprova como o conteúdo não foi determinante para o apoio da burocracia é o caderno "Tribuna de Debates" editado pelo Diretório Municipal do PT de São Paulo sobre a tarifa zero(2). Nove textos dos especialistas em transporte do PT foram publicados para "estabelecer um fórum

(2) Debates sobre o projeto Tarifa Zero. Diretório Municipal de São Paulo: 20/11/90.

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interno ao Partido para exposição das opiniões com maior aprofundamento". Dos nove textos, apenas quatro eram favoráveis ao projeto, sendo que dois de membros do governo, Lúcio Gregori e Paul Singer, e os outros dois de membros das duas tendências mais à esquerda que havia no PT, Carlos Henrique Ôrabe, da Democracia Socialista, e Valério Arcary, da Convergência Socialista. Esta última foi expulsa do PT em 1994, criando um partido, o PSTU. Dos demais textos, três eram contrários, todos de técnicos em transporte: Celso Cosenza e Mara Carlos, ex-presidente e vice presidente da CMTC, que escreveram juntos, Carlos Zarattini, ex-presidente do Sindicato dos Metroviários, e Laurindo M. Junqueira Filho, Secretário de Transportes de Campinas. Os outros autores apenas levantavam questões, principalmente na defesa da CMTC e da estatização. Eram eles a vereadora Tereza Lajolo e os militantes sindicais Orlando Moreira e Claudemir Dias. Assim, a defesa ao projeto era feita principalmente com argumentos políticos e pelos grupos mais radicais. Os técnicos

posicionavam-se

contra

através

de

detalhes

operacionais

e,

principalmente, da falta de debate interno. Fica claro que o apoio das instâncias burocráticas só se tornou possível pela possibilidade da luta política. A burocracia falava a linguagem que estava acostumada. Todo documento produzido para discussão interna no partido, acaba também se tornando um instrumento de disputa política e esse caderno não seria exceção. O JT, em 30 de novembro, publica a matéria "Tarifa zero divide especialistas do PT". A manchete estava de acordo com o documento, mas o texto afirmava que "manifestaram-se contra - e com argumentos muito fortes" sete pessoas, sem dizer que alguns escreveram o texto em conjunto e colocando na mesma categoria os dois textos que não se posicionavam. Assim, numa publicação de 9 textos, o placar ficava 7 a 4 contra a tarifa zero, criando um problema matemático: 7 + 4 = 9.

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A propaganda na TV

A estratégia de publicidade da tarifa zero incluiu instrumentos nos quais Chico Malfitani não acreditava, mas que acabaram sendo usados, por causa da proibição do TRE da prefeitura veicular a "TV Cidade". Por isso, foram espalhadas faixas nos corredores de ônibus com os dizeres "Tarifa zero: mais 4.500 ônibus nas ruas". Nem outdoors foram utilizados, pois, segundo Chico Malfitani, com as faixas:

Era mais barato e tinha-se um público a ser atingido na Radial Leste, Nove de Julho, Santo Amaro. E era legal porque dava uma aparência de coisa pobre, popular.(3)

Ao falar em coisa pobre e popular, Malfitani acabava, de forma bastante eficaz, envolvendo o PT, num tipo de campanha que o partido estava acostumado, mesmo que não fosse esse seu principal objetivo. Além das faixas, foram feitos cerca de duzentos mil impressos explicativos sobre a tarifa zero. Os impressos, com o mesmo tipo de linguagem dos panfletos do PT, explicavam o projeto, sempre reforçando que quem ia arcar com os custos do sistema eram "as indústrias de grande porte, os grandes terrenos vazios, os shopping-centers, as mansões, os bancos e os clubes que até agora não pagavam IPTU". Também informava-se que o projeto dependia da aprovação dos vereadores e que portanto "a população precisa mobilizar-se em torno da proposta".

(3) cf entrevista Chico Malfitani

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Outra forma de publicidade era feita nas rádios. Desde agosto daquele ano a prefeitura pagava publicidade para alguns programas populares, entre eles Eli Corrêa, Paulo Lopes, Paulinho Boa Pessoa e Paulo Barbosa. Só que ao invés de ser veiculada uma propaganda, os locutores liam algum texto sobre o governo sem dizer que era material publicitário. Ou então, membros do governo participavam dos programas, para eles mesmos divulgarem suas atividades. Durante a discussão da tarifa zero esses métodos continuaram a ser usados.

Rodrigo e o bicho de 7 cabeças

Ao contrário da precariedade das faixas e panfletos, os anúncios de TV sobre a tarifa

zero seguiam o modelo da mídia-publicitária. Giacomo Sani

distingue 5 princípios para a propaganda: 1) simplificação: a mensagem possui apenas uma ou duas idéias; 2) saturação: a eficácia da mensagem é função, entre outras coisas, da emissão e da recepção; 3) apresenta posições parciais, que refletem a opinião de uma minoria como se exprimisse a convicção da população toda; 4) deformação e parcialidade: a informação nunca é completa mas com elementos de valor acentuado, com adjetivos fortes, para não haver dúvida; 5) insere a idéia, opinião ou mensagem na estrutura de elementos já existentes, transformando-os. Antes mesmo que chegasse o 2° turno e portanto a "TV Cidade" fosse liberada, foi produzida a primeira propaganda para a TV sobre a tarifa zero, onde aparecia um bebê, o Rodrigo, com vários alimentos em torno dele. A cada frase que ia sendo dita (o texto está a seguir), os alimentos iam sumindo e, quando era lida a última frase, o bebê ficava sozinho. Era impossível não sentir dó da solidão do bebê no fim do comercial. Ficávamos contagiados e envolvidos em sua história. Porque o Rodrigo era a favor da tarifa zero, também passávamos a

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ser. Mas se aparecesse um outro bebê, mais bonitinho que o Rodrigo, contra a tarifa zero, será que não iríamos também ficar do seu lado? Não há elemento racional para apoiar o projeto, apenas o Rodrigo. Essa propaganda foi ao ar dia 12 de novembro. Todos os dias o pai do Rodrigo pega três ônibus para ir trabalhar. A mãe dele pega duas conduções. E os irmãos pegam dois ônibus por dia para ir a escola. O Rodrigo nunca andou de ônibus, mas ele já aprova o projeto tarifa zero da prefeitura. Dez dias depois voltava ao ar a "TV Cidade". E dia 28 o TV cidade era justamente sobre a tarifa zero (ver anexo 4). O casal que sempre participava do programa conversava com uma pessoa num ponto de ônibus e depois dentro do ônibus sobre as vantagens da tarifa zero. Nesse caso, não há o apelo emocional, mas a simplificação da informação e o uso de ironias e situações cômicas envolvendo o espectador, para que ele não tenha mais dúvidas sobre o projeto, como o casal que começa a propaganda sem nenhuma adesão à idéia e termina, enfaticamente, manifestando seu apoio. O último comercial da tarifa zero, veiculado em 4 de dezembro, era um bicho de sete cabeças junto com o ator Diogo Vilela. A cada frase que o ator falava, uma cabeça do bicho era retirada, conforme o texto abaixo:

Com a tarifa zero, os ônibus vão ser de graça. Mais de 4.500 ônibus em circulação vão evitar a superlotação. Como a reformulação das linhas, os ônibus vão andar mais depressa. Os 6 milhões que não pagam IPTU vão continuar não pagando. E 80% dos que pagam vão pagar de 100 a 2.000 cruzeiros por mês.

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Só bancos, indústrias, mansões e clubes que atualmente são isentos vão pagar mais IPTU. Viu como a tarifa zero não é nenhum bicho de 7 cabeças.

Em várias entrevistas, Lúcio Gregori dizia que os ônibus não seriam de graça, mas pagos indiretamente. Isso está inclusive no material impresso produzido pela prefeitura: "não é ônibus de graça, mas distribuição de renda"(4). Mas, não se espera compreensão da mensagem e sim adesão a ela, portanto, os elementos apontados por Sani estão todos presentes nos comerciais produzidos pela MPM. Contudo, essa simplificação comprometia o conteúdo justamente quando eram as classe A e B, portanto as mais intelectualizadas que, segundo o DataFolha, rejeitavam o projeto. E a prefeitura deveria ter buscado uma comunicação mais eficiente com esse público, o que não foi feito. Contra a propaganda da tarifa zero, a bancada de vereadores do PSDB na Câmara Municipal entrou com uma ação popular, pois segundo o vereador Walter Feldman "em vez de informar, os anúncios têm a intenção de formar opinião".

A derrota na presidência

O PT havia formado um "Comitê Popular Pró-Tarifa Zero e reforma tributária". O Comitê organizara um abaixo-assinado de apoio à tarifa zero e havia marcado um ato de entrega desse documento para 11 de dezembro. Este

(4) panfleto "O que a cidade ganha com a tarifa zero", de 4 páginas, com a logomarca da prefeitura.

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ato aconteceria 4 dias antes da eleição da nova presidência da Câmara Municipal, e era para esse fato que convergiam todas as forças na Câmara. Dois anos antes, o vereador Eduardo Suplicy (PT) havia sido eleito presidente da Câmara e, nesse tempo, liderara uma grande transformação no parlamento municipal, principalmente na caça a funcionários corruptos, que envolvera até vereadores mais antigos. Com essa atividade Suplicy conquistou grande notoriedade e conseguiu até eleger-se senador, nas eleições de 3 de outubro. Por isso, a situação do PT era bastante desfavorável pois os vereadores da oposição não queriam um novo petista na presidência. E as negociações em torno da mesa já definiriam se o governo conseguiria uma maioria capaz de eleger um novo presidente e aprovar a reforma tributária, o orçamento e o fundo de transportes. No 2° turno das eleições para o Governo do Estado, Erundina deu apoio ao candidato do PMDB, Luiz Antonio Fleury Filho, contra a posição oficial do PT. Com isso, a prefeita esperava obter apoio dos vereadores do PMDB na Câmara. Foram lançados dois candidatos: o petista Arselino Tatto e o tucano Arnaldo Madeira. O PMDB declarou apoio ao petista, o que garantiria sua eleição, mas na hora da apuração, e a votação era secreta, o eleito foi o tucano, por 28 votos contra 24 (FSP 16/12/90). Foi uma ducha de água fria nos planos do governo que, com esse resultado, começavam a ser enterrados. A oposição fortalecida reuniu-se, dia 17 de dezembro, no gabinete do vereador Walter Feldman, que declarou aos jornais que o resultado foi "uma decisão conjunta de votar contra a tarifa zero"(FSP 18/12/90). A FSP publica no dia seguinte: "Vereadores da oposição dizem que vão vetar o projeto da tarifa zero". A matéria continha, além das declarações de Feldman sobre a reunião, uma tabela com o posicionamento de todos os vereadores sobre o assunto. Estavam contra a tarifa zero 23 vereadores, a favor do projeto 19 vereadores e

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11 indefinidos. Eram necessários 27 votos para a aprovação ou rejeição dos projetos. Portanto, apesar da reunião promovida por Feldman, a oposição, dia 17 de dezembro, ainda não era maioria. Dia 18 a prefeita declara aos jornais "que as pessoas interessadas devem pressionar os vereadores"(FSP 19/12/90). Mas essa tática parecia não dar certo. O ato a favor do projeto reuniu apenas 500 pessoas no dia 11, o que não era suficiente para impressionar os vereadores. Enquanto Luiza Erundina

pedia

mobilização popular, seis vereadores indecisos declararam que iriam votar contra a tarifa zero (FSP 19/12/90). Com isso, 29 vereadores, dois a mais que o necessário, enterravam definitivamente o projeto. A tática de estimular a população a pressionar a Câmara não havia dado certo.(5) Dia 24 de dezembro, a FSP publicou "Erundina desiste do projeto da tarifa zero". Segundo a matéria, a prefeita "acabou desistindo definitivamente da proposta" no dia 22. Mas o vereador Arnaldo Madeira afirmava não considerar uma vitória exclusiva da oposição "pois vários integrantes do PT eram contra a proposta". Nesse mesmo dia Lúcio Gregori também reconhecia a derrota, mas admitia "voltar a apresentar a proposta desde que a idéia seja aprovada em plebiscito"(FSP 25/12/90). "Nota zero" era o nome do editorial da FSP em 26 de dezembro de 1990. O jornal considerou "as circunstâncias do debate marcadas por preconceitos ideológicos, problemas de planejamento e indefinições administrativas". Também dizia que se "gastou muito em campanhas publicitárias e não se percebeu dos adversários vontade em encontrar solução alternativa". O texto (5) Houve outro momento que o governo tentou essa tática obtendo sucesso. Foi em 1991, quando a Câmara votou o parecer do TCM, que rejeitava as contas do governo de 1990. Contudo, a Câmara votou contra o parecer, não pelas manifestações populares, que em número de participantes não era muito superior às da tarifa zero, mas porque houve um amplo consenso dos formadores de opinião, entre eles empresários, líderes sindicais, artistas, políticos, segundo os quais a honestidade de Erundina não podia ser contestada. A MPM publicou o livro Erundina, uma razão, que documentou as fases desse momento.

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concluía: "fica a certeza de que mais uma excelente oportunidade foi perdida por causa do hiato colossal(...) entre as notórias carências da cidade e a capacitação

das

lideranças

encarregadas

de

equacioná-las".

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Capítulo 6 - Repercussões

O Tempo sempre nos traz divertimento, e bom: Quem não prefere dar umas voltas, fazer hora, Em vez de vir direto para onde está agora? W.H.Auden

Com a maioria dos vereadores declarando-se contrária à tarifa zero e a desistência do governo, as negociações passam a girar em torno do orçamento e da reforma tributária. Através de um substitutivo apresentado pelo líder do PMDB(1), em acordo com o PT, o governo conseguiu um aumento médio do IPTU de 125%. Perto dos 597% que a tarifa zero pedia parece pouco, mas frente às condições do governo da Câmara foi uma grande vitória. Sem dúvida, o limite que a tarifa zero havia trazido elevou o patamar de negociação e um aumento tão substancial só foi possível graças a ela. A prefeita também recorreu ao presidente da FIESP, Mário Amato, que se disse favorável ao aumento de IPTU quando da discussão da tarifa zero. Amato chegou a ligar para vereadores pedindo que votassem a favor do projeto do governo. Dessa forma, ao menos a tarifa zero ajudou para que o orçamento para 91 tivesse um aumento superior ao que seria sem o projeto.

A imagem da tarifa zero (1) uma pesquisa detalhada sobre esse processo de negociação foi feita por Cláudio Couto em "O caso do orçamento do município de São Paulo para 1991" (CEDEC: 1991)

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Ainda na última semana de dezembro de 1990, a prefeitura encomendou uma pesquisa ao instituto "Toledo & Associados". Os resultados foram bem mais positivos que os dados publicados pela FSP. Declaram-se "a favor da implantação da tarifa zero" 65.3% dos entrevistados, enquanto 27,6% eram "contra" e 7% não sabiam, sendo que 95% dos entrevistados "tinha ouvido falar do projeto", mas apenas 15,6% consideravam-se "bastante informados", contra 49,8% "razoavelmente informados", 33,1% "pouco informados" e 1,5% não responderam. Uma expressiva maioria respondeu positivamente se sabia dizer que a aplicação da tarifa zero dependia do aumento de IPTU: 82,4% afirmaram que "sim" contra apenas 17,6% que disseram "não". Quanto ao plebiscito, o resultado ficou bastante próximo da pesquisa do DataFolha: 78,4% dos entrevistados declararam que "a população deveria decidir sobre o projeto", enquanto 18,5% disseram que isso "cabia aos vereadores". E, finalmente, sobre o resultado da votação na Câmara, 66,8% declararam que "gostariam que o projeto fosse aprovado", contra 25,2% que "não queriam que fosse aprovado" e para 8% tanto fazia. Os resultados são bastante favoráveis, demonstrando que a maioria da população estava a favor do projeto, e tinha ouvido falar dele. Mas o grau de informação é que não era satisfatório, pois 82,9% dos entrevistados consideraram-se razoavelmente ou pouco informados. Nessa questão chegamos a um dos problemas cruciais da formação da imagem do governo. O projeto teve uma aceitação alta, mas com uma sustentação frágil, pois os entrevistados eram favoráveis a respeito de algo que não conheciam o suficiente. Dessa forma, podemos concluir que a publicidade não foi suficiente. Mas até que ponto a publicidade será capaz de formar uma opinião bem sustentada?

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Uma pesquisa de análise de desempenho de comunicação foi realizada pela MPM(2), a partir de cinco programas da "TV Cidade", entre eles o da tarifa zero. A propaganda alcançou um alto índice de audiência - 67% - quando a média nos últimos 3 dias antes da audiência de era 76%. A seguir alguns resultados: (os dados dentro de parênteses correspondem à média alcançada nos serviços públicos): quadro 1 Índice de recordação comprovada(recall)

22% (18%)

(2) "Análise de Desempenho de Comunicação: TV Cidade - Prefeitura de São Paulo" MPM Propaganda São Paulo S.A. Fevereiro 1991.

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quadro 2 não entenderam o que o anúncio quis dizer

3%

fixaram algum aspecto da mensagem

93%

não fixaram nenhum aspecto

4%

quadro 3 gostaram do anúncio

69% (88%)

não gostaram

12% (29%)

indiferentes

3% ( 3%)

quadro 4 o que diz é inteiramente verdade

39% (52%)

acreditam só em parte

26% (27%)

não acreditam

30 % (13%)

não sabem

5 % ( 9%)

Segundo os dados, a propaganda da tarifa zero teve uma credibilidade bastante baixa (quadro 4). Juntando as informações da "Toledo & Associados" com estas, o baixo índice de informação pode estar vinculado a credibilidade , pois é bastante claro que comerciais são propagandas institucionais e, como já foi discutido, é característica do brasileiro desconfiar do discurso do Estado. Insistir nesse tipo de comunicação pode ser um mau investimento. Além do mais o governo estava divulgando apenas um projeto e não uma obra de governo. Não significava dizer que o problema dos transportes estava resolvido, mas que poderia sê-lo se os vereadores aprovassem o projeto e se sua implementação obtivesse êxito.

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De novo os transportes

A tarifa zero possibilitou que o governo saísse da defensiva em relação ao problema do transporte coletivo e apresentasse propostas concretas de solução. Mas com a não votação da tarifa zero, o problema continuou existindo e, era urgente uma nova saída. Lúcio Gregori decidiu então que o projeto da municipalização, que já estava em tramitação na Câmara, e era fundamental no projeto da tarifa zero, deveria ser aprovado. Afinal, os contratos de emergência já estavam vencendo e era necessário acertar essa situação(3). Ao invés da pressão popular, a estratégia definida dessa vez foi a "política de negociação" (KOWARICK 1993: 210) com as partes envolvidas, isto é, os empresários do setor de transportes, o poder executivo e o poder legislativo. Lúcio Gregori atribui a três fatores a votação da municipalização:

Primeiro porque o vereador Chico Whitaker armou com os vereadores a situação possível para discuti-la e segundo porque a tarifa zero tornou a Câmara co-responsável no assunto. Foi uma estratégia pouco visível, mas muito importante. Para a opinião pública ficou claro que a Câmara tinha parte nesse assunto, tanto que na última reunião sobre a tarifa zero, onde fui massacrado pelo Brasil Vita e o Andrade Figueira, fui procurado pelo Antonio Sampaio na saída dizendo "nós vamos voltar a esse assunto". Em terceiro lugar eu tinha criado uma taxa de gerenciamento que ferrava as empresas. Isso foi essencial"(4) (3) cf entrevista Lúcio Gregori (4) cf entrevista Lúcio Gregori

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Assim, em maio de 1991, foi aprovada a lei da municipalização, que só seria sancionada em outubro do mesmo ano, após 3 vetos da prefeita serem aceitos pelos vereadores. Com isso, a prefeitura começava a dar, na prática, solução ao problema do transporte na cidade. Porém isso começava a ocorrer apenas 34 meses após o inicio do governo. Mesmo durante esse processo, a idéia da estatização nunca foi abandonada pelos petistas no partido, que reagiram contra a nova tática do governo da "política de negociação". Tratava-se de uma nova linguagem para um partido que sempre fora contra o "conchavo". Segundo Chico Whitaker:

A aprovação da municipalização ocorreu num clima de muita tensão entre o partido e o governo, sendo que alguns vereadores do PT chegaram a não votar a favor do projeto.(5)

Cidade Tiradentes

A municipalização permitiu uma mudança radical no funcionamento do sistema de transportes. Mais dois mil e trezentos novos ônibus passaram a circular na cidade e, por isso, o índice de passageiros por m² caiu de 12 para 6,67, ou seja quase a metade. As linhas passaram a ser racionalizadas, pois as empresas não eram mais concessionárias das linhas de ônibus, mas prestadoras de um serviço. Isto permitiu que a Secretaria de Transportes elaborasse um plano para a criação de 14 linhas gratuitas de ônibus, que circulariam em três regiões da cidade: Cidade Tiradentes(zona leste),

(5) cf entrevista Chico Whitaker

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Parelheiros(zona sul) e Centro. O plano previa que ônibus gratuitos circulassem dentro dessas regiões, e os passageiros pagassem a tarifa apenas quando necessitam tomar outro ônibus para mudar de área. A inauguração dos ônibus gratuitos ocorreu na Cidade Tiradentes, em 27 de julho de 1992, com a circulação de 25 ônibus por 4 linhas, atendendo a uma população de 50 mil habitantes(FSP 20/07/90). A tarifa zero passava a existir de fato. Mas essa iniciativa ocorreu em meio à campanha eleitoral para a sucessão da prefeita. Assim, seus adversários consideraram a iniciativa de caráter eleitoreiro e conseguiram suspender na Justiça a implementação das demais linhas. Até hoje, 3 anos após sua criação, os ônibus gratuitos na Cidade Tiradentes continuam circulando. A única alteração é que, ao invés da empresa "Fioravante" operar as linhas, hoje quem as opera é a "Cidade Tiradentes". Não há casos de vandalismo ou superlotação nos ônibus como argumentavam os técnicos que se manifestaram contra a tarifa zero. Luiza Erundina concluía seu governo dando uma resposta eficiente ao problema dos transportes na cidade. A municipalização foi sua obra mais importante (KOWARICK 1993). Tanto que uma pesquisa publicada pelo OESP em 01.01.90 indicou uma subida de 20 para 52% de ótimo e bom na avaliação da situação do transporte, contra uma queda de 56 para 24% de ruim e péssimo. Sem dúvida, não foram as propagandas sobre transporte que conseguiram conquistar tais índices, mas o resultado prático da política implementada pela prefeita.

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Vereadores aprovam a tarifa zero

No dia 7 de junho de 1995, a Câmara Municipal de Paulínia, a 120 Km de São Paulo, aprovou "projeto de lei de autoria do Executivo (o prefeito é do PMDB) implantando a tarifa zero nos ônibus" (OESP 9/06/95). Desde 1994, 80% do preço da tarifa já era subsidiada, e a partir de junho de 95, as 16 mil pessoas que utilizam ônibus serão beneficiadas. Segundo a matéria publicada por OESP, também existe um sistema de vídeo em todos os ônibus, denominado "videobus" com noticiário local e informações sobre saúde e educação. Paulínia conseguiu realizar duas coisas que Erundina fracassou: aprovar a tarifa zero e inovar na comunicação.

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Conclusões

Em outubro de 1790 foi publicada, em Paris, a primeira edição do jornal "Boca de Ferro"(La bouche de fer). O jornal era feito de comunicações e artigos de autores anônimos que

depositavam suas manifestações em caixas de

correspondência espalhadas por toda Paris. Essas caixas tinham o formato de uma boca de ferro, o que deu origem ao nome do jornal. Essa iniciativa era patrocinada pelo Círculo Social(1), fundado pelos intelectuais Bonneville, Fauchet e Mercier, que participaram da Revolução Francesa de 1789. A intenção desse grupo com "A Boca de Ferro" era estabelecer para os seus concidadãos e para

...todos os povos, e para todos os séculos, um meio seguro para impedir que os homens e sobretudo aqueles que os governam, sempre prontos a seduzi-los e a cegá-los, não possam desconhecer o bem que querem operar; um meio seguro para colocar ao alcance de todos, com o mínimo interesse pessoal possível, a verdade pura, salutar a todos e que os pretensos amigos do povo mantêm sempre afastada de todos.(2)

Dar voz ao povo, através da "Boca de Ferro", era uma tentativa inovadora e criativa de "universalizar a revolução" (NASCIMENTO 1989: 84) . O aspecto criativo é fundamental no processo de comunicação. O homem, como "animal

(1) O Círculo Social e o jornal "A Boca de Ferro" são o tema da tese de doutorado de Milton Meira do Nascimento, publicada no livro Opinião pública e revolução (1989). (2) carta publicada por Bonneville no n° 2 do jornal Le Cercle Social, de fevereiro de 1790.

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symbolicum" (Cassirer) depende "tanto do pão cotidiano, como dos signos nos quais pode depositar sua confiança" (PROSS 1980: 62). Toda ordem é constituída de signos, e o "dom de criar signos e designar novas ordens mediante a força da imaginação e o poder cognitivo não é unicamente uma liberdade, mas também uma compulsão"(PROSS 1980:61). Um partido como o PT, que se caracterizara por essa compulsão em criar novas ordens enquanto estava na oposição, não conseguiu repetir sua performance enquanto governo. Buscou repetir fórmulas já utilizadas, sem inovar na comunicação. O caso da tarifa zero é uma ótima ilustração desse descaso com a comunicação. A proposta ela mesma, por sua força simbólica, traçou um caminho independente da divulgação preparada pelo governo. Retomando a citação de Marilena Chauí, a tarifa zero constituiu-se em uma alternativa à dicotomia estatização x neoliberalismo. Se os técnicos da área de transportes não apoiaram a proposta, esse aspecto político deveria ter sido trabalhado. Como mostrou a pesquisa da FSP, os setores mais intelectualizados e com maior poder aquisitivo é que eram contrários à tarifa zero, e portanto necessitavam ter maiores esclarecimentos. Essa função, que deveria ser desempenhada pela imprensa, não foi cumprida. Como vimos, os jornais preocuparam-se mais em polemizar que informar. Mas o setor de comunicação da prefeitura também dispensou o uso informativo em suas produções, realizando propagandas que não aprofundavam o significado da tarifa zero, visando apenas seus efeitos imediatos, isto é, divulgar a gratuidade no serviço de ônibus, para conquistar adesão ao projeto. Isso já havia sido determinado pela escolha da contratação de uma agência de publicidade, que prioriza a mídia publicitária. Os elementos constitutivos da propaganda, sendo os principais: o realce de elementos puramente emotivos, a

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recorrência a estereótipos, e a relevância apenas de certos aspectos da questão (BOBBIO 1986: 1018) são contrários à construção da consciência crítica, pois:

O que se conhece com o nome de consciência crítica é a distância do interpretante em relação ao objeto e ao signo.(PROSS 1980: 19)

Todos os elementos da mídia publicitária buscam envolver o espectador, tornando "natural" sua adesão à idéia. Se a propaganda for boa, o resultado será sempre positivo. Tanto que a tarifa zero conseguiu 65,3% de apoio, mas um apoio volátil, pois os entrevistados "são favoráveis a respeito de algo que não conhecem o suficiente e, algo que é polêmico"(3). Mas, apesar da propaganda oficial, a tarifa zero conseguiu comunicar-se de maneira eficiente, mais do que poderia supor um olhar despretensioso. Em primeiro lugar, a proposta conseguiu a adesão da burocracia do PT, que até então tinha uma relação bastante difícil com o governo. A estratégia escolhido para sua aprovação, que foi estimular a população a pressionar os vereadores, sempre fez parte do discurso petista, que surgiu entre os movimentos populares e sindical, de caráter reivindicativo. Portanto a tarifa zero unificou a linguagem dos petistas no governo e dos petistas no partido. Em segundo, a tarifa zero foi a primeira proposta do governo que mostrava uma identidade própria, reunindo as características de um partido de esquerda e superando a crise conceitual por que este campo passava. A tarifa zero "introduzia a idéia da responsabilidade social pela desigualdade e pela justiça social, assim como a idéia de gestão pública do serviço público"(CHAUÍ 1991: 8). (3) esta citação faz parte das "Principais conclusões" do relatório apresentado pela Toledo & Associados com os resultados da pesquisa encomendada pela prefeitura e entregues em 16 de janeiro de 1991

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A tarifa zero causou coesão e respeitabilidade à equipe de transportes que, com o apoio do governo e da liderança do governo na Câmara Municipal, conseguiu, em 1991, a aprovação do projeto de municipalização dos transportes coletivos. A tática para a aprovação, ao invés do estímulo à pressão popular, foi a negociação das partes. "A municipalização foi o resultado mais nítido da política de negociação empreendida pela gestão Erundina junto ao empresariado e ao poder legislativo...o episódio da tarifa zero e o seu desdobramento na municipalização são assim simbólicos do tipo de trajetória política que os petistas realizaram à frente do governo" (Kowarick 1993: 210). A falta de unidade no governo a favor da tarifa zero colaborou para a sua não aprovação entre os vereadores. O grupo mais próximo da prefeita, o PT Vivo, nunca a defendeu com vigor. Mesmo a estratégia escolhida - tentar imputar a responsabilidade aos vereadores - mostra que o governo, mais que sua aprovação, pretendeu oferecer à cidade uma prova que conseguira elaborar um projeto que poderia solucionar o problema do transporte coletivo, tema prioritário de sua campanha eleitoral. Segundo Paul Singer:

Eu defendo até hoje que a tarifa zero foi um gesto político, um movimento absolutamente justificado, que salvou o governo da Luiza, embora não tivemos sucesso em implantar a proposta.(4)

Aqui retomamos os conceitos de comunicação intencionada e descoberta, formulados por Harry Pross. Se, do ponto de vista intencional, a comunicação não teve sucesso, pois seu objetivo de provocar a aprovação da tarifa zero pelos vereadores não foi alcançado, as repercussões provocadas por essa iniciativa

(4) cf entrevista Paul Singer

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demonstram que ela chegou a "salvar o governo". Se, o governo Luiza Erundina não conseguiu viabilizar uma política de comunicação "petista e brasileira", o projeto tarifa zero mostrou a força simbólica das políticas quando estas tornamse algo, e não "um mero fantasma cerebral do intérprete"(PROSS 1980: 108). Faltou a ousadia de espalhar "bocas de ferro" pela cidade que pudessem transmitir "que os princípios invariáveis de um governo legítimo serão procurados com franqueza e mantidos com coragem"(5).

(5) La Bouche de fer n° 1, outubro de 1790.

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Anexos

Anexo 1 - Entrevistas

Anexo 2 - A tarifa zero nos jornais

Anexo 3 - Pronunciamento da prefeita (6/11/90)

Anexo 4 - TV Cidade sobre a tarifa zero

Anexo 5 - Cédula eleitoral com propaganda da tarifa zero

Anexo 6 - Panfleto do PT sobre a tarifa zero

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Anexo 1 - Entrevistas

6/12/94 - Lúcio Gregori 7/12/94 - Paul Singer 9/12/94 - Pedro Dallari 13/12/94 - Luiza Erundina 20/12/94 - Paulo Sandroni 9/01/95 - Chico Malfitani 10/01/95 - Perseu Abramo 6/03/95 - Chico Whitaker

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Anexo 2 - A tarifa zero nos jornais 1990 29/9

JB

Ônibus grátis em São Paulo Erundina propõe fim da passagem e aumento de IPTU FSP Erundina quer IPTU maior e ônibus grátis* Erundina sobe IPTU para dar ônibus sem cobrar Mudanças precisam de maioria na Câmara Aumento será maior para pessoa física e jurídica Prefeita nega uso político DP Erundina promete ônibus grátis Oposição acha proposta absurda Empresários reagem com silêncio OESP Erundina quer ônibus de graça em São Paulo Impostos aumentam para pagar sistema Empresários vêem objetivos políticos Vereadores criticam a proposta FT De olho na urna Erundina promete ônibus de graça* Erundina propõe transporte gratuito em 91

30/9

FSP

1/10

FSP Prefeitura admite rever tarifa zero se arrecadar menos imposto do que prevê CUT rejeita projeto em caso de demissões FT Prefeitura admite não acabar com tarifa de ônibus

2/10

JT FT

Projeto de "tarifa zero" é populista, diz vereador

Aumento de imposto da prefeitura é ilegal Acaba a isenção. Os clubes reclamam Câmara reage a tarifa zero

3/10

FT JT

Prefeitura diz que projeto de tarifa zero é constitucional Ônibus de graça. Técnicos criticam projeto A prefeitura insiste: projeto é legal

5/10

FT FSP

6/10

OESP Passagens de ônibus sobem 40% em São Paulo Comissão da Câmara condena projeto de ônibus gratuito FT Nota oficial da prefeitura faz malabarismo para tentar explicar reajuste

7/10

OESP Chances de aprovação do ônibus grátis são mínimas Proposta acirra disputa no PT Comissão da Câmara dá parecer contrário Criar novo imposto foi a primeira idéia

Para empresários, tarifa zero trará o caos Empresários criticam projeto de tarifa zero Pai da tarifa zero diz que subsídio ao transporte hoje é dinheiro jogado fora

94

11/10 FSP

Câmara estuda proposta para votar adoção da tarifa zero em plebiscito OESP Erundina estuda plebiscito sobre plano de ônibus grátis

12/10 FT FSP

TRE não fará plebiscito sobre tarifa zero Para técnico do PT, tarifa zero é impraticável

13/10 OESP Empresários criticam plano de ônibus grátis 17/10 JT

Tarifa zero recebe críticas até no PT Juristas condenam o projeto OESP Empresários criticam plano de ônibus gratuito FSP Diretora de planejamento rebate críticas ao projeto tarifa zero

20/10 FSP

Comissão de Transporte da Câmara quer tarifa zero experimental em 1991

22/10 FSP FT

Tarifa zero divide paulistanos; plebiscito é apoiado Proposta de ônibus de graça divide a cidade

25/10 JT

Prefeitura não consegue explicar a tarifa zero

26/10 FSP

Câmara faz audiência pública para discutir orçamento e tarifa zero Município gaúcho já adota

5/11

JT

Três notas zero para a tarifa zero

8/11

JT

Tarifa zero já custa pelo menos 9 milhões para o contribuinte

30/11 JT

Tarifa zero divide especialistas do PT

11/12 FT

Erundina tem 10 dias para aprovar tarifa zero

14/12 FT

Ação do PSDB contra anúncio da tarifa zero

16/12 FSP

Oposição vence PT e PMDB na Câmara Vale tudo é tradição OESP PT perde presidência da Câmara Paulistana DP Madeira é eleito novo presidente da Câmara

18/12 JT FT FSP

Tarifa zero pode levar transporte ao colapso Vereadores da oposição dizem que vão vetar projeto da tarifa zero Vereadores de oposição dizem que vão vetar projeto de tarifa zero

19/12 FSP

Erundina reage a possibilidade de veto dos vereadores à tarifa zero

24/12 FSP

Erundina desiste do projeto de tarifa zero

25/12 FSP

Secretário já pensa em tarifa zero para 1992

95

26/12 FSP

Nota zero (editorial)

1992 21/7

FSP Erundina cria 14 linhas de ônibus gratuitas OESP Erundina quer mais linhas gratuitas JT ônibus: tarifa zero no Centro Candidatos criticam DP Transporte na cidade copiará o de Curitiba

1993 1/01

OESP Avaliação da Administração de Erundina melhora no final

1995 9/06

OESP Paulínia aprova lei da tarifa zero nos ônibus

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Anexo 3 - Pronunciamento da prefeita (6/11/90) Comunicado da prefeita de São Paulo: Estou aqui para falar de um assunto de grande importância para a maioria da população: o problema do transporte coletivo na nossa cidade. Mais uma vez, contra a nossa vontade, tivemos que aumentar a tarifa de ônibus. Sabemos das dificuldades que tal medida traz, mas era inevitável. Temos adiado estes aumentos até quando é possível. A prefeitura subsidia o transporte coletivo com recursos próprios e mesmo assim as empresas de ônibus estavam sem dinheiro para pagar o 13° aos seus funcionários. Os ônibus poderiam parar. Por outro lado também subiram combustível, pneus, peças etc. De março a novembro, segundo a IBGE, a inflação foi de 300%. Este aumento, agora, a tarifa foi reajustada em 233%, portanto menos que a inflação. Mas, mesmo assim é sempre um dilema. Se aumentamos a tarifa o povo tem dificuldade para pagar. Se não aumentamos os empresários ameaçam parar. Não colocam mais ônibus, não investem na frota, que aliás é a mesma há oito anos. Mas a prefeitura tem uma proposta para acabar com isso: é a tarifa zero, que deverá vigorar a partir de julho de 91. Essa proposta prevê a entrada de 4.500 novos ônibus em circulação, um aumento de 50% na frota existente. O reescalonamento de horário deverá ser obrigatório, para que o trânsito melhore e os ônibus andem mais rápido. Haverá também uma reestruturação completa nas linhas de ônibus visando sempre uma melhoria no serviço. Mas, algumas pessoas estão tentando colocar na população dúvidas sobre quem vai pagar a tarifa zero. Por isso é meu dever informar que os 6,5 milhões de paulistanos que moram em favelas, cortiços e casas que já não pagam IPTU vão continuar não pagando. Dos que pagam IPTU, 80% vão pagar de 100 a 2.000 cruzeiros por mês. E 2.000 cruzeiros é menos do que gasta uma pessoa que toma diariamente 2 conduções durante 22 dias por mês. Também é inferior ao custo mensal de qualquer condomínio. Quem terá um aumento significativo no IPTU serão só as indústrias de grande porte, os grandes terrenos vazios, os shopping centers, as mansões, os bancos e os clubes que até agora não pagavam IPTU. Achamos que é uma proposta justa essa da prefeitura. Quem tem muito mais dá um pouco para ajudar quem não tem quase nada. Infelizmente se os preços continuarem aumentando vamos ser obrigados a fazer novos reajustes. Mas isso vai acabar no dia em que a Câmara dos vereadores aprovar a tarifa zero e ela for implementada. Tudo que queremos com a proposta tarifa zero é melhorar as condições de transporte coletivo, melhorando assim a vida de milhões de paulistanos. Muito obrigada.

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Anexo 4 - TV Cidade sobre a tarifa zero Mulher: Justo hoje que a gente tem que ir para a prefeitura seu carro quebrou! Homem: Mas vai ser bom a gente andar de ônibus pra gente ver como eles ficam lotados e ainda querem colocar ônibus de graça... Passageiro: Dá licença... H: Se você conseguir passar... P: É que eu estava ouvindo vocês falarem que os ônibus vão ficar mais lotados com a tarifa zero. Não é bem assim, não. M: Ah, não? P: Não. O projeto vai ser implantado só com mais 4.500 ônibus. Quer dizer, vai ter mais ônibus e todos eles andando mais depressa. H: Vão colocar turbo nos ônibus. P: Não é isso não. O que acontece é que vai haver uma verdadeira reestruturação nas linhas de ônibus. Com isso eles vão andar mais depressa. M: Ah, moço, já pensou no trânsito com mais 1.500 ônibus? P: Isso não é nada comparado à mais de 200 mil novos carros que entram na cidade todo ano. E a tarifa prevê o reescalonamento obrigatório. Com isso o trânsito vai melhorar muito. H: Você não se preocupa de pagar mais IPTU? P: Os 65 milhões que não pagam IPTU vão continuar não pagando e os que pagam, como vocês por exemplo, vão pagar de 100 a 2 mil cruzeiros por mês. Menos do que você gasta para encher o tanque do seu carro. M: Mas então quem vai pagar, heim? P: Só os grandes industriais, bancos, consórcios, shopping centers e os clubes que atualmente não pagam IPTU. M: Ah é, tô começando a gostar. H: Ih, é aqui que a gente desce, moço dá licença... M: Tomara que a tarifa zero seja aprovada. Não empurra! Tá vendo, você fica conversando e a gente perde o ponto. Moço, para esse ônibus!

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