A concepção de direitos humanos de Joseph Raz. Uma apresentação crítica

June 1, 2017 | Autor: Ivan Rodrigues | Categoria: Political Philosophy, Ethics, Human Rights, Joseph Raz, Philosophy of Human Rights
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A CONCEPÇÃO DE DIREITOS HUMANOS DE JOSEPH RAZ. UMA APRESENTAÇÃO CRÍTICA1 Ivan Rodrigues2

RESUMO Este artigo analisa e critica a concepção raziana de direitos humanos (CR). Trata-se de explicitar as principais características teóricas e metateóricas de CR, assim como de tecer objeções a cada uma delas. Em suma, CR é, do ponto de vista teórico, uma concepção política que segue o rastro da concepção de John Rawls, abstendo-se de investigar a fundação moral dos direitos humanos, priorizando o papel justificatório a eles faticamente atribuído em favor de intervenções externas na soberania estatal. Do ponto de vista metateórico, CR dá à teorização dos direitos humanos o status de um capítulo da teoria internacional da soberania estatal. CR é criticável tanto porque a face moral dos direitos humanos é demasiadamente esmaecida, como porque a teorização dos direitos humanos sofre uma perda demasiada em abrangência, complexidade e mordida crítica. Isso fica evidente quando se compara Raz, por exemplo, com Jürgen Habermas e Rainer Forst. PALAVRAS-CHAVE Concepção raziana. Direitos humanos. Soberania estatal. Política. Moral.

ABSTRACT This paper analyses as well as criticizes the Razian conception of human rights (RC). First, it underlines the main theoretical and metatheoretical features of RC; second, it raises objections against each of them. In brief, RC, from a theoretical standpoint, follows John Rawls’s political conception insofar as it refrains from inquiring the moral foundations of human rights, focusing only on the justificatory role they play in favour of external interferences with state sovereignty. From a metatheoretical standpoint, RC converts the theorization of human rights into a chapter of the international theory of state sovereignty. RC is criticisable both by its thin account of the moral background of human rights and by its profound loss in comprehensiveness, complexity and critical bite. Comparing Raz with Jürgen Habermas and Rainer Forst, e.g., highlights this. KEY-WORDS Razian conception. Human rights. State sovereignty. Politics. Morals.

1 Artigo elaborado na disciplina Ética II, ministrada pela Profa. Dra. Milene Consenso Tonetto no PPGFil/UFSC no primeiro semestre letivo de 2016. 2 Doutorando em Ética e Filosofia Política no PPGFil/UFSC. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3085919257774539.

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1.

INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é, por um lado, apresentar a concepção de direitos humanos de

Joseph Raz e, por outro lado, levantar objeções críticas contra ela3. A relevância de tal duplo empreendimento abrange dois níveis: (1) o nível metateórico acerca de quais são as tarefas designáveis a uma teoria dos direitos humanos, acerca de qual é a relação entre teoria e prática dos direitos humanos, acerca de quais são os contextos argumentativo-práticos de tematização teórica dos direitos humanos, acerca de qual é a relação entre moral e política na qual se inscrevem os direitos humanos; (2) o nível teórico quanto à delimitação conceitual dos direitos humanos, quanto à fundamentação moral dos direitos humanos, quanto à função política dos direitos humanos, quanto aos abusos estratégicos do recurso cínico aos direitos humanos. Discutir a concepção raziana é discutir todas essas intricadas questões teóricas e metateóricas, pois a abordagem do juspositivista exclusivo e liberal perfeccionista atravessa (às vezes com demasiada brevidade) todas elas. Discutir a concepção raziana, portanto, equivale a esclarecer o debruçar-se teorizante sobre o objeto interpretativo “direitos humanos”. Esse objeto interpretativo somente pode adquirir uma perquirição teórica consistente a partir do esclarecimento daquelas incontornáveis questões, a saber: no nível metateórico, o que compete a uma teoria dos direitos humanos, como tal teoria se acopla com a prática dos direitos humanos, quais são os distintos tipos de argumentos que tal teoria comporta e qual é o escopo específico de cada tipo de argumentos, qual é a órbita metaconceitual dos direitos humanos na intersecção entre moral e política; no nível teórico, quais são os critérios conceituais segundo os quais um direito pode ser reconhecido como direito humano, quais são as fundações morais dos direitos humanos, o que os direitos humanos podem prover à política, quais são as suscetibilidades dos direitos humanos à sagacidade pragmática da política real. A conclusão deste artigo é, em primeiro lugar, que as respostas oferecidas às questões metateóricas têm impacto direto e lancinante sobre as respostas oferecíveis às questões teóricas: noutras palavras, é decisivo o cuidado metateórico para a compreensão, o reconhecimento, a proteção e a reivindicação dos direitos humanos. Em segundo lugar, conclui-se que as respostas razianas não são as melhores possíveis: entre as respostas disponíveis (por exemplo, as de Jürgen Habermas e as de Rainer Forst), as de Joseph Raz são comparativamente encurtadas.

3 Duas críticas minuciosas importantíssimas à concepção raziana são articuladas por Waldron (2013) e Miller (2015). Este artigo tem alguns pontos de convergência com elas, mas é bastante distinto delas. Assim, é recomendável ao leitor consultá-las não para ler este artigo, mas para construir uma recepção crítica abrangente da concepção raziana.

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2.

UMA CONCEPÇÃO POLÍTICA, NÃO HUMANISTA, DE DIREITOS

HUMANOS Raz tem quatro textos estritamente relevantes para sua concepção de direitos humanos, a saber: “On Waldron’s critique of Raz on human rights” (escrito em 2013), “Human rights in the emerging world order” (exposto pela primeira vez em 2009), “Human rights without foundations” (apresentado pela primeira vez em 2005) e “On the nature of rights” (publicado pela primeira vez em 1984). Esses quatro textos básicos convergem à articulação reflexiva de uma concepção de direitos humanos que aparece condensada em uma formulação reveladora: Seguindo Rawls, considerarei os direitos humanos como sendo direitos que colocam limites à soberania dos estados, na medida em que sua violação atual ou antecipada é uma razão (derrotável) para empreender ação contra o violador na arena internacional, mesmo quando – em casos não envolvendo violação de direitos humanos ou o cometimento de outras ofensas – a ação não seria permissível ou normativamente disponível em razão de que ela infringiria a soberania do estado (RAZ, 2010, p. 328).

Nessa formulação, é possível detectar as características teóricas e metateóricas da concepção raziana de direitos humanos, a serem analisadas adiante. As características teóricas reveladas são: (a) os critérios conceituais dos direitos humanos são político-internacionais, isto é, um direito é reconhecido como direito humano quando ele é reconhecido como um limite sancionável à soberania estatal nas práticas predominantes de política internacional; (b) a fundamentação moral dos direitos humanos é uma que os exibe como razões universais4 não absolutas, mas sobrepujáveis por outras razões concorrentes, e que autorizam a imposição de sanções de direito internacional; (c) a função política dos direitos humanos consiste em legitimar interferências internacionais coercitivas; (d) os direitos humanos correm o risco de, na ausência de instituições internacionais decentes e/ou mediante formulações demasiado estreitas (em termos de reconhecimento recíproco) deles, degenerarem em trunfos imperialistas. As características metateóricas da concepção raziana que se revelam naquela formulação, por sua vez, são: (e) a tarefa precípua de uma teoria dos direitos humanos é orientar a prática prevalente de política internacional que erige a violação de direitos humanos como razão suficiente, mas superável, para exercer pressões coercitivas sobre o estado violador; (f) se a teoria dos direitos humanos, de um lado, provê uma orientação crítica à prática, a prática 4

Há uma clara dissonância entre Raz (2010) e Raz (2015) quanto à universalidade dos direitos humanos: enquanto Raz (2010) expressamente repudia a universalidade dos direitos humanos, Raz (2015) expressamente acolhe a universalidade deles. Porém, não há nisso qualquer inconsistência grosseira porque o significado de universalidade em Raz (2010) é diferente do significado de universalidade em Raz (2015). Raz (2010) rejeita a universalidade interpretada como validade atemporal dos direitos humanos; rejeita, portanto, que os direitos humanos modernos, que pressupõem as condições sociais modernas, também valeriam para os seres humanos da Idade da Pedra Lascada. Raz (2015), por sua vez, adota a universalidade interpretada como validade ubíqua dos direitos humanos dentro de uma composição histórica (sem extensão para outras composições históricas).

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dos direitos humanos, de outro lado, dá à teoria tanto um objeto (os direitos humanos), quanto um campo objetal (a política internacional), como um jogo de linguagem (o da argumentação político-internacional); (g) a teoria dos direitos humanos é uma teoria política5 e, portanto, só se apropria de argumentos morais enquanto argumentos morais politicamente traduzíveis e politicamente decisivos; (h) os direitos humanos são não só direitos moralmente originados, mas também (e sobretudo) político-internacionalmente incorporados.

2.1.

Características teóricas da concepção raziana

a.

Quais direitos são direitos humanos Direitos humanos são, para Raz, aqueles conteúdos argumentativos que preenchem as

contestações fortes à soberania estatal. Uma contestação à soberania estatal é forte quando se pretende não vencida pela alegação estatal de que o alvo da contestação seria exclusivamente assunto interno, negócio doméstico, sobre o qual os atores internacionais não contariam com qualquer pretensão legítima. Direitos humanos, portanto, são aqueles direitos cuja pretensão de validade transcende as fronteiras estatais (dentro das quais a soberania estatal normalmente é insuperável) na medida em que podem derrotar a pretensão de poder dos estados: […] quando os estados agem dentro de sua soberania, eles podem, mesmo quando agem incorretamente, repelir interferências invocando sua soberania. Falando cruamente, eles podem dizer para estranhos [outsiders]: se eu (o estado) sou ou não culpado de agir incorretamente não é de sua conta [none of your business]. A soberania não justifica ações estatais, mas ela protege os estados da interferência externa. A violação de direitos humanos desabilita essa resposta, a qual está à disposição dos estados em relação a outras ações más (RAZ, 2010, p. 328).

Nesse sentido, pode-se ver os direitos humanos como sendo um objeto interpretativo da teoria da soberania estatal, teoria que “determina quais formas de intervenções externas são tornadas não permissíveis pela soberania dos estados” (RAZ, 2010, p. 328). Os direitos humanos encaixam-se, portanto, no capítulo da teoria da soberania estatal que determina as hipóteses autorizadoras de interferências externas, ou seja, as razões normativas em tese aptas a sobrepujar as razões normativas em favor da soberania estatal. O critério conceitual dos direitos humanos só pode ser, para Raz, a aptidão de um direito para perfurar a crosta da soberania estatal. Um direito é um direito humano quando a pretensão A concepção raziana, pois, percorre o caminho metateórico aberto por John Rawls: “Direitos humanos são uma classe de direitos que exercem um papel especial em um Direito dos Povos razoável: eles restringem as razões justificadoras para a guerra e sua condução e especificam os limites da autonomia interna de um regime. Assim, eles refletem as duas mudanças básicas e historicamente profundas em como os poderes de soberania têm sido concebidos desde a Segunda Guerra Mundial. Primeiro, a guerra não é mais um meio admissível de política governamental e é justificada somente em autodefesa ou em casos graves de intervenção para proteger direitos humanos. E, segundo, a autonomia interna de um governo é agora limitada” (RAWLS, 2001, p. 79). 5

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de validade que ele contém: (1) não é contextualmente limitada, mas universalmente abrangente (no sentido de faticamente reconhecível por todo estado) e, assim, habilitada a ser contraposta à pretensão de poder de estados; (2) além de universalmente endereçada, é tão normativamente pesada que é séria candidata a obter precedência sobre a soberania estatal em um sopesamento orientado a averiguar se é permissível uma interferência externa. Raz (2010, p. 329) resume esses dois filtros conceituais complementares assim: “serem direitos cuja violação é uma razão para agir contra estados na arena internacional é [o aspecto] distintivo dos direitos humanos, de acordo com a prática de direitos humanos”. Raz rejeita as teorias tradicionais de direitos humanos (cujo cerne seria a tese de que os direitos humanos são aqueles direitos que os seres humanos têm simplesmente em virtude de serem humanos) com o argumento de que elas não explicariam “por que todos e apenas tais direitos deveriam ser reconhecidos como estabelecendo limites à soberania, o que é a marca predominante dos direitos humanos na prática de direitos humanos” (RAZ, 2010, p. 334). A função político-internacional de baixar restrições à soberania estatal é o que separa o joio do trigo, isto é, o que separa os direitos que não são direitos humanos dos direitos que são direitos humanos, de modo que uma teoria que não usa essa peneira não é uma boa teoria. As teorias tradicionais, humanistas, dedicam-se à busca de um fundamento humano para os direitos humanos (uma necessidade básica, um interesse central, uma capacidade primordial, um valor nuclear), mas negligenciam que não é um fundamento humano, por mais importante que ele seja, que diferencia um direito como direito humano: negligenciam que a diferenciação de um direito como direito humano é decidida com base na tendência fática da política internacional de reconhecer aqueles direitos que justificam interferências externas como direitos humanos.

b.

A face moral dos direitos humanos Do ponto de vista de sua fundamentação moral, os direitos humanos revelam-se como

“aqueles [direitos] em relação aos quais medidas limitadoras da soberania estatal são moralmente justificadas” (RAZ, 2010, p. 329). Essa afirmação significa, em primeiro lugar, que os direitos humanos são direitos originariamente morais6 suscetíveis a serem empregados como respaldos argumentativos de interferências externas.

“Direitos humanos valem independentemente [stand in their own right]. Sua implementação, como a de outros preceitos jurídicos, requer institucionalização. Mas, quando incorporados no direito, os direitos jurídicos respectivos são (corretamente) considerados como não sendo direitos criados pelo direito, mas direitos reconhecidos pelo direito. Eles são direitos morais que nós temos independentemente do direito, e é por isso que o direito deveria reconhecer, e impor, e proteger os direitos humanos” (RAZ, 2015, p. 224). 6

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Aquela afirmação significa, em segundo lugar, que o tipo de fundamentação moral adequada para os direitos humanos é simplesmente uma fundamentação instrumental de acordo com a qual os direitos humanos possam ser iluminados como meios argumentativos adequados a remover objeções normativas em favor da soberania estatal. Os direitos humanos não carecem, por conseguinte, de uma fundamentação moral pura no sentido de uma fundamentação moral que apresentasse os direitos humanos como justificados apenas moralmente, justificados à revelia de qualquer consideração teleológica política, ou seja, sem levar em conta quaisquer objetivos políticos. Para Raz, os direitos humanos só recebem uma fundamentação moral apropriada quando ela não é autorreferencial, mas referida, do início ao fim, à função política que a prática contemporaneamente dominante dos direitos humanos assinala a eles.

c.

A face política dos direitos humanos Do ponto de vista de sua função política, os direitos humanos são “direitos morais

titularizados por indivíduos. Mas indivíduos só os têm quando as condições são apropriadas a que os governos tenham deveres de proteger os interesses que os direitos protegem” (RAZ, 2010, p. 335). Isso significa que a primeira função política dos direitos humanos é uma função política endereçada aos indivíduos: proporcionar que interesses individuais com importância especial (a tal ponto que justifique que outros contraiam deveres de promover tais interesses ou, pelo menos, não os impedir) sejam reconhecidos institucionalmente pelos estados. Aqui os direitos humanos têm a função política de capa protetora jurídica para interesses individuais importantíssimos, dignos de reconhecimento recíproco e adequados à asseguração estatal7. A função política decisiva dos direitos humanos, no entanto, é responder à difícil questão político-internacional: Quando a violação de um direito por um estado autoriza a interferência externa nele? Com essa questão, o foco político dos direitos humanos passa dos interesses individuais para a soberania estatal. Trata-se de uma ampliação de foco político que torna a função política dos direitos humanos expressivamente mais complexa: não só razões normativas para proteger interesses individuais estão em jogo, mas também razões normativas para afirmar que um estado conduz tão incorretamente um assunto interno que o assunto interno

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Para Raz, todo direito está conectado a um interesse importante: segundo a definição raziana de direito, “‘x tem um direito’ se e somente se x pode ter direitos, e, outras coisas sendo iguais, um aspecto do bem-estar de x (seu interesse) é uma razão suficiente para considerar outra(s) pessoa(s) como estando sob um dever” (RAZ, 1984, p. 195). Além disso, Raz afirma que x pode ter direitos “se e somente se seu bem-estar é de valor último”, de modo que a capacidade para ter direitos pressupõe ter interesses aos quais se atribui um valor não instrumental. Desse ponto de vista, o que diferencia um direito como direito humano é que ele está conectado a um interesse superlativamente importante (um interesse fundamentalíssimo), tão importante que pode justificar as invasivas sanções de direito internacional.

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passa a ser assunto relevante à política internacional, relevante no sentido forte de merecer um posicionamento político-internacional orientado a corrigir sua condução incorreta pelo estado. Desse ponto de vista, direitos humanos podem ser vistos como um alarme vermelho a sinalizar um grave fracasso estatal na condução de assuntos internos moralmente importantíssimos e que atrai a preocupação, a corresponsabilidade e a diligência dos atores políticos internacionais.

d.

Os riscos dos direitos humanos Raz ressalta a necessidade de instituições imparciais, eficientes e confiáveis para a

realização dos direitos humanos. Direitos humanos, enquanto direitos, fundamentam (às vezes, complexos e exigentes) conjuntos de deveres8. O cumprimento de tais deveres deve ser fiscalizado, sancionado, avaliado e estimulado por instituições idôneas. Se a necessidade de instituições político-internacionais decentes não é preenchida, torna-se indesejável, segundo Raz, impor coercitivamente os direitos humanos. Em última análise, Raz propugna a necessidade de abster-se de recorrer à coerção em nome dos direitos humanos enquanto instituições aprováveis no triplo teste de imparcialidade, eficiência e confiabilidade não estiverem consolidadas, pois, do contrário, o risco de abuso estratégico dos direitos humanos como meios imperialistas encontraria um solo fértil para florescer. Raz (2015, p. 228) chega a afirmar que, “se, dadas as circunstâncias prevalentes, não há possibilidade de que instituições imparciais, eficientes e confiáveis possam vir à existência em relação a certo direito, então esse direito não é um direito humano”. Raz ressalta também a necessidade de moldar os direitos humanos de tal forma que eles sejam, ao mesmo tempo, universais e historicamente contextualizados. Dessa necessidade de um universalismo histórico-contextualista, emerge o primeiro desafio material dos direitos humanos, o qual consiste em preencher sua forma com conteúdos encaixáveis e relevantes dentro de cada estágio histórico da ordem política mundial. O universalismo dos direitos humanos, portanto, não é um universalismo diacrônico, mas um universalismo sincrônico de acordo com o qual os direitos humanos são direitos universais na medida em que fazem sentido universalmente dentro de uma temporalidade histórica específica. Além disso, Raz ressalta a necessidade de moldar os direitos humanos de tal forma que eles sejam suficientemente abstratos e, com isso, possibilitem sua especificação nos diferentes 8

Raz rejeita a tese comum da correlação entre direitos e deveres para adotar uma tese mais sofisticada segundo a qual direitos fundamentam, em parte, deveres (e não só se ligam a deveres): “Um direito de uma pessoa não é um dever sobre outra. Ele é o fundamento [ground] de um dever, um fundamento que, se não impedido por considerações conflitantes, justifica considerar aquela outra pessoa como tendo o dever” (RAZ, 1984, p. 199). Um dever não tem necessariamente como único fundamento um direito, mas pode ter outros fundamentos.

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contextos políticos locais. Dessa necessidade de uma abstração localmente reiterável, brota o segundo desafio material dos direitos humanos, o qual reside em dotá-los com formulações tão abstratas quanto seja necessário a que eles sejam abertos a interpretações reconciliadoras com as limitações institucionais e sociais e as singularidades culturais de cada comunidade política: “a interpretação e a implementação dos direitos humanos requer sensibilidade à diversidade cultural e à validade de outros fins” (RAZ, 2015, p. 231).

2.2.

Características metateóricas da concepção raziana

e.

Orientação teórica da prática político-internacional A primeira característica metateórica da concepção raziana é conceber a tarefa principal

da teoria dos direitos humanos como sendo prover orientação à prática político-internacional. Essa orientação equivale a um esclarecimento conceitual de assunções pré-teóricas e cargas teóricas alojadas nas práticas representativas da política internacional de direitos humanos9. O esclarecimento conceitual a ser provido pela teoria dos direitos humanos, entretanto, ganha ou perde em poder esclarecedor à proporção que a política internacional de direitos humanos, por sua vez, ganha ou perde em consolidação institucional. Quanto mais avançado for o estágio de consolidação das instituições da política internacional, mais esclarecedora resultará a teoria dos direitos humanos, uma vez que estágios avançados de consolidação institucional implicam uma maturação histórica tanto dos usos ordinários da linguagem política quanto do debate especializado da teoria política e, portanto, dos significados característicos da atividade política. Por outro lado, quanto menos avançado for o estágio de consolidação das instituições da política internacional, menos esclarecedora resultará a teoria dos direitos humanos: é que fases de mudança, fases de penumbra, fases incipientes da institucionalidade político-internacional não contêm muitos usos padronizados da linguagem política e não contêm muitas contribuições testadas no debate especializado de teoria política, de modo que nelas são encontráveis menos sentidos políticos estabilizados e mais sentidos políticos precários, profundamente disputados, não minimamente generalizados. Isso explica por que Raz considera sua própria intervenção no debate teórico sobre os direitos humanos como não sendo muito esclarecedora, pois ele enfatiza que o tempo presente é um tempo de transformação e indeterminação para as instituições da política internacional.

9 Raz (1984, p. 196) sublinha: “Explicações detalhadas de direitos são, em parte, explicações linguísticas (um direito a um carro difere de um direito em um carro), mas, em parte, elas dependem da argumentação política, jurídica ou moral (um direito à liberdade de expressão inclui acesso às mídias massivas ou a instalações privadas?)”.

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f.

Uma teoria político-internacional A segunda característica metateórica da concepção raziana corresponde à afirmação de

que a teoria dos direitos humanos é uma teoria político-internacional. O raciocínio raziano aqui parece ser: se o que incumbe primordialmente à teoria dos direitos humanos é articular um esclarecimento conceitual das práticas político-internacionais de direitos humanos, então a teoria dos direitos humanos só pode ser uma teoria político-internacional (ou a parte da teoria da política internacional que se debruça sobre os direitos humanos). A análise conceitual dos direitos humanos não os desloca de seu nicho prático; antes, ela pretende esquadrinhá-los, clarificá-los dentro de seus usos práticos. Como a análise conceitual em geral é uma análise de conceitos impregnados em práticas dadas, uma análise de reservas conceituais alojadas em práticas disponíveis, então não faz sentido que a análise conceitual desloque seu objeto para fora de seu contexto prático: sentidos são contextualmente moldados. O contexto prático dos direitos humanos, para Raz, é a política internacional recente, marcada pela tendência de refreamento normativo da pretensão de intangibilidade da soberania estatal. Assim, para iluminar os sentidos dos direitos humanos, a teoria dos direitos humanos só pode ser uma teoria dos direitos humanos contextualizados na política internacional e, por isso, uma teoria político-internacional dos direitos humanos. Aqui cabe, porém, perguntar se a política internacional é, de fato, o contexto único ou o contexto privilegiado de emprego prático dos direitos humanos.

g.

Rejeição do fundacionalismo moral A terceira característica metateórica da concepção raziana consiste em defender que

uma teoria dos direitos humanos não deve empreender um fundacionalismo moral dos direitos humanos, não deve ocupar-se com escavações morais em busca da pedra fundamental moral sobre a qual todos os direitos humanos se ergueriam. Segundo Raz (2010, p. 336), os direitos humanos “não dispõem de uma fundação na medida em que não são fundamentados em uma preocupação moral básica, mas, antes, dependem de contingências do sistema atual de relações internacionais”. Isso não significa que argumentos morais são completamente ausentes de uma teoria dos direitos humanos; significa apenas que eles comparecem a essa teoria unicamente à proporção que são relevantes dentro da facticidade da política internacional. Tampouco significa que não exista uma pedra fundamental moral de todos os direitos humanos, mas só que a descoberta dessa fundação primária não é a tarefa primordial de uma teoria dos direitos humanos e que uma fundação primária não é a pedra de toque dos direitos humanos, ou seja, o teste decisivo acerca de se um candidato a direito humano é, de fato, um direito humano.

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O argumento de Raz é que: (1) há uma moralidade embutida na política internacional moderna; (2) essa moralidade participa da constituição efetiva das relações internacionais presentes; (3) essa moralidade contém direitos morais que traduzem limites à soberania estatal. A moralidade interessa a uma teoria dos direitos humanos somente na extensão em que ela se encaixa nas qualificações (1), (2) e (3), de modo que qualquer consideração moral pura não atrai o interesse daquela teoria. A moralidade dos direitos humanos, pois, é limitada ao volume no qual as relações internacionais concretas bebem de fontes morais, e elas o fazem, em última análise, só na medida em que recorrer à argumentação moral se fizer necessário para refrear as ambições estatais de dominação externa e satisfazer as demandas contra essas ambições.

h.

Uma teoria moralmente tímida A quarta característica metateórica da concepção raziana é conceber a teoria dos direitos

humanos como, ao mesmo tempo, aberta e fechada à moralidade. Ela se abre à moralidade de modo inevitável porque os direitos humanos são direitos originariamente morais que devem ser (trata-se de um dever moral) reconhecidos juridicamente. Ela se fecha à moralidade porque ela é uma teoria dos direitos humanos enquanto direitos empregados na política internacional. Isso significa que a teoria dos direitos humanos é uma teoria da moralidade (referida a direitos morais que devem ser juridicamente absorvidos) enquanto moralidade faticamente operante na política internacional. O questionamento moral “feroz”, portanto, não é preocupação da teoria dos direitos humanos, a qual só se preocupa com questões morais em uma medida modesta: a teoria dos direitos humanos investiga quais são os direitos morais que servem na política internacional como direitos humanos. Qualquer questão moral que não seja a questão constatativo-empírica sobre quais são os direitos morais que a prática política-internacional interpreta como direitos humanos é estranha ao escopo temático da teoria dos direitos humanos.

3.

ENCURTAMENTOS TEÓRICOS E METATEÓRICOS DA CONCEPÇÃO

RAZIANA No nível teórico, a concepção raziana de direitos humanos expõe-se a quatro objeções, quais sejam: (A) a objeção da deflação moral, segundo a qual Raz exageradamente descarrega o lastro moral dos direitos humanos; (B) a objeção da excessiva instrumentalização, segundo a qual a fundamentação moral dos direitos humanos não pode ser usada como verniz ideológico sobre a superfície bruta de práticas hegemônicas de política internacional; (C) a objeção do estreitamento internacionalista, conforme a qual os direitos humanos não são redutíveis a uma

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gramática liberal negativa que só é transgredida pelos estados e, pelo menos aparentemente, é venerada por indivíduos, famílias, tribos, vizinhanças, escolas, igrejas, empresas, clubes, movimentos, associações criminosas, organizações transnacionais; (D) a objeção da barreira institucional, conforme a qual o apelo aos direitos humanos, a crítica com base nos direitos humanos e a defesa dos direitos humanos não podem deixar de ser realizados meramente porque ainda não estão implantadas instituições internacionais decentes que absorvessem aquele apelo, avaliassem aquela crítica e efetivassem aquela defesa sem objetivos imperialistas ocultos. No nível metateórico, por seu turno, a concepção raziana de direitos humanos é digna de outras quatro objeções, as quais são: (E) a objeção da teoria chanceladora, segundo a qual a teoria dos direitos humanos não tem como incumbência primária a mera interpretação organizadora (e reprodutora) das práticas prevalentes de direitos humanos10; (F) a objeção da continuação teórica da prática, segundo a qual o fato de os direitos humanos representarem, na prática, primordialmente armas políticas contra estados violadores não implica que a teoria dos direitos humanos deva constituir simplesmente um discurso político intelectualizado em prol da relativização da soberania estatal; (G) a objeção da exclusão do humano, conforme a qual a teoria dos direitos humanos não está condenada ao total confinamento à argumentação política, mas, antes, deve ser liberada para elaborar teoricamente a intuição pré-teórica de que os direitos humanos são direitos que todos os seres humanos possuem por serem humanos; (H) a objeção da importância moral, conforme a qual a face moral dos direitos humanos é primaz em relação à – ou, pelo menos, tão importante quanto a – face política deles. Essas oito objeções são desdobradas e exploradas a seguir.

3.1.

Objeções teóricas a Raz

A.

Objeção da deflação moral A objeção da deflação moral aponta contra o esmaecimento do pano de fundo moral dos

direitos humanos. Esse esmaecimento mostra-se, em primeiro lugar, no relativismo moral que é adotado por Raz em relação ao estabelecimento dos limites morais da soberania estatal. De acordo com Raz, os limites morais da autonomia interna de uma comunidade política não são estabelecidos senão sob as pressões relativizadoras exercidas pelas constelações reais de poder material, as quais cambiam no tempo e no espaço. Em última análise, os limites morais da 10

Essa objeção metateórica também é detectável em David Miller, o qual critica a demasiada confiança de Raz na prática predominante de direitos humanos: “Mas, mesmo que a história esteja movendo-se na direção certa do ponto de vista da teoria, não há algo anômalo em deixar nossa lista de (genuínos) direitos humanos refém daquilo que é observado, em algum momento, como sendo fundamentos para violar a soberania?” (MILLER, 2015, p. 234-235).

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soberania estatal estão atrelados a quem detém o poder material de proclamar e efetivar tais limites morais, atrelados, portanto, aos atores internacionais hegemônicos (potências) em cada composição histórica e cada mapa social. Esses limites morais, portanto, variam segundo os méritos morais e os recursos políticos das potências, segundo as potências sejam mais ou menos justas, mais ou menos democráticas, mais ou menos dotadas de influência política, controle econômico e ameaça bélica: Os limites morais da soberania dependem não só das condições dentro da sociedade. Eles também dependem de quem está em uma posição de afirmar as limitações da soberania e de como quem está nessa posição provavelmente agirá como consequência [de estar nessa posição]. Uma coisa, por exemplo, é estabelecer limites à soberania de estados dentro de uma organização razoavelmente justa e bem ordenada como a União Europeia, e outra coisa bastante diferente é fazer isso para a arena internacional no apogeu, digamos, do velho colonialismo no séc. XIX, e isso também seria diferente hoje, no auge do novo imperialismo (RAZ, 2010, p. 330).

Como os direitos humanos, na concepção raziana, são primordialmente limites morais à soberania estatal, então os direitos humanos são esmaecidos pelo relativismo moral referido à contenção moral da soberania estatal. Raz propugna que há “variabilidade entre padrões de justiça e, assim, variabilidade no conteúdo preciso e no escopo dos direitos que se aplicam a diferentes sociedades” (RAZ, 2010, p. 331). Os direitos humanos, por conseguinte, não podem representar critérios duros e inflexíveis que ignorassem totalmente a variabilidade dos padrões de justiça de cada comunidade política; antes, eles estão sujeitos a essa variabilidade, de modo que devem ser formulados de tal modo que possam ser acomodados a cada padrão de justiça particular e, além disso, devem ser interpretados de tal modo que possam ser derrotados por considerações normativas particulares, assim como pela consideração normativa geral de que “o respeito pela independência e pela autonomia do estado é de grande significação moral” (RAZ, 2010, p. 331). Em segundo lugar, o esmaecimento moral dos direitos humanos decorre de que Raz confere grande importância moral à soberania estatal – uma importância moral tão grande que reveste a soberania estatal de uma blindagem espessa contra os direitos humanos. Por um lado, parece justificável a preocupação subjacente de Raz com a possibilidade nefanda de os direitos humanos serem manipulados cinicamente para a obtenção de finalidades imperialistas ocultas. Raz parece acertar ao supor implicitamente que, se a força política dos direitos humanos fosse concebida como tão devastadora e irresistível que qualquer violação de direitos humanos seria uma razão insuperável para proceder a uma interferência externa, então os direitos humanos estariam demasiadamente expostos ao risco de seu abuso imperialista. Raz, porém, parece tão receoso e cauteloso quanto a esse risco que desliza até a outra posição extrema: a posição de

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que a força política dos direitos humanos deve ser colocada entre aspas, ou seja, deve ser filtrada por amortecimentos institucionais internacionais desenhados para o fim de guardar a soberania estatal. Isso fica claro quando Raz exige que não deveria haver manejos coercitivos dos direitos humanos enquanto instituições internacionais decentes não estivessem disponíveis. Esse arrefecimento da força política dos direitos humanos, por sua vez, pressupõe uma deflação moral deles. Se o peso moral dos direitos humanos fosse assumido por Raz como um peso moral esmagador, Raz não estaria em condições de preconizar que a força política deles só adquire eficácia quando canalizada por instituições internacionais guardadoras da soberania estatal. É necessário sublinhar que Raz parece acertar ao considerar que a defesa dos direitos humanos apenas se torna plena com a consolidação de instituições internacionais decentes que operem com base em procedimentos transparentes. Entretanto, a defesa dos direitos humanos não pode ser suspensa até que seja implementado esse ideal institucional-procedimental, pois, primeiro, é evidente que os direitos humanos têm um peso moral tão elevado que não se pode dispensar indiferença ascética a suas violações; segundo, é evidente que a implementação das instituições e dos procedimentos ideais exige não só imaginação, mas também experimentação, ou seja, tal implementação só é viável como o resultado de um processo de aprendizagem que se alimenta empiricamente das tentativas não ideais e falíveis de defender os direitos humanos. Como o peso moral altíssimo dos direitos humanos é indisfarçável e, além disso, como instituições internacionais satisfatórias dotadas de procedimentos admissíveis não descem dos céus, mas são construídas tentativamente nos turbilhões terrenos, então Raz parece cometer o duplo equívoco de deflacionar o peso moral dos direitos humanos e arrefecer sua força política.

B.

Objeção da excessiva instrumentalização A objeção da excessiva instrumentalização afirma que a fundamentação moral dos

direitos humanos, em Raz, é tão dependente do papel que a eles é faticamente assinalado na política internacional que Raz faz dos direitos humanos uma questão de pragmática política internacional. Raz chega a preconizar que “abordagens de direitos humanos se tornam quase indistinguíveis de abordagens de moralidade política internacional na medida em que estas envolvem respeitar alguns direitos individuais” (RAZ, 2010, p. 333). Com mais veemência ainda, ele diagnostica que “a política dos direitos humanos internacionais está sendo impelida a tornar-se só a política das relações internacionais na medida em que elas reconhecem direitos individuais” (RAZ, 2010, p. 334). Assim, fica patente que, conforme Raz, os direitos humanos correspondem a peças pertencentes aos imbricados jogos reais entre atores internacionais.

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Não parece, porém, não problemático que a fundamentação moral dos direitos humanos se reduza ao mapeamento dos direitos morais dos quais a política internacional se aproveita para justificar interferências externas11. A rigor, sequer cabe falar de fundamentação moral dos direitos humanos em Raz: o que se encontra em Raz é apenas a constatação de que aquilo que na política internacional é rotulado como direitos humanos coincide com direitos morais. É problemática essa recusa da fundamentação moral propriamente dita porque, primeiro, ela não se reconcilia com a intuição pré-teórica de que os direitos humanos têm uma solidez moral tão significativa que os torna politicamente importantes, de modo que sua importância política não é explicável sem aquela solidez moral; porque, segundo, os “direitos humanos internacionais” (consagrados na política internacional) não necessariamente fazem jus aos “direitos humanos morais” (fundamentáveis moralmente), os quais, no entanto, têm um peso moral tão premente que não podem deixar de valer na política internacional, embora a política internacional possa faticamente não os levar a sério; porque, terceiro, a recusa da fundamentação moral em sentido próprio pode detonar o efeito colateral de enfraquecer e dificultar mesmo o emprego fático dos direitos humanos. A instrumentalização excessiva da fundamentação moral dos direitos humanos em Raz é, portanto, tão problemática12 que parece injustificável: mais que isso, ela parece implausível. Por que repelir a fundamentação moral em sentido próprio dos direitos humanos se isso, em última análise, trai a orientação analítica da teoria, é demasiado condescendente para com os desdobramentos fáticos da política internacional e até pode ricochetear contra esses mesmos desdobramentos fáticos baleando a orientação deles aos direitos humanos?

C.

Objeção do estreitamento internacionalista A objeção do estreitamento internacionalista denuncia, em primeiro lugar, que Raz

confere demasiada ênfase ao estado como ameaça mastodôntica aos direitos humanos; em segundo lugar, que Raz fecha os olhos para os outros usos possíveis dos direitos humanos como

11 “Iniciamos pela determinação de quando é (superavelmente) justificável infringir a soberania e, então, damos o rótulo ‘direitos humanos’ aos direitos que descobrimos como aqueles em cujo nome a infringência pode ser empreendida. Direitos humanos são a conclusão do argumento, não a premissa” (MILLER, 2015, p. 235). 12 Waldron sublinha esse caráter problemático ao destacar que uma intervenção humanitária não ocorre só com base em violações de direitos humanos, mas também e principalmente com base nos efeitos colaterais geopoliticamente desestabilizadores desencadeados por violações de direitos humanos. Uma violação de direitos humanos seria tanto menos apta a atrair uma intervenção humanitária quanto menos ela fosse incômoda e ameaçadora para os estados vizinhos e/ou para as potências. “Eu penso que se pode argumentar não somente que intervenções não ocorrerão na ausência de efeitos desestabilizadores, mas também que elas provavelmente não deveriam ocorrer, exceto quando tais efeitos ameacem surgir. Mas parece estranho fazer o ‘humano’ em ‘direito humano’ refém de fatores geopolíticos dessa forma” (WALDRON, 2013, p. 8).

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armas políticas; em terceiro lugar, que Raz arbitrariamente elege o palco internacional como o palco privilegiado para performances políticas de direitos humanos. A primeira denúncia sugere que a concepção raziana é estreitada por uma tese liberal de acordo com a qual o estado é o antagonista principal dos direitos humanos. Essa tese liberal lança na conta do estado quase todos os débitos morais relacionados aos direitos humanos: o estado não somente aparece como medonho violador de direitos humanos, mas também surge como geringonça falida de proteção precária a direitos humanos, assim como apresenta uma incapacidade notável de efetivar os padrões mínimos de vida valiosa que os direitos humanos requerem. Tal tese liberal não está explícita em Raz, mas é possível afirmar que a concepção raziana, no mínimo, não é incompatível com ela e, no máximo, está implicitamente unida a ela. A segunda denúncia afirma que Raz não deixa ver que os direitos humanos são objeto de outros importantes usos políticos. Quando apátridas e refugiados reivindicam direitos humanos, assim como quando nacionais lutam pela efetuação de direitos humanos presentes na constituição de seu estado, mas ausentes no cotidiano de sua vida, os direitos humanos não são usados no sentido raziano: como razões morais para a interferência externa. Antes, nesses casos emblemáticos, a interferência externa é uma referência disparatada, pois apátridas e refugiados não fazem menção a uma reprimenda internacional, mas, antes, à validade transnacional dos direitos humanos, enquanto nacionais não aspiram a uma providência exterior, mas, antes, a medidas interiores que levem a sério a importância moral dos direitos humanos. Esses dois usos políticos centrais dos direitos humanos evidenciam que os direitos humanos não se circunscrevem à alçada internacional. Eles, por um lado, têm uma validade que transcende os jogos políticos entre os atores internacionais e, por outro, têm uma importância que antecede os papéis políticos que eles venham a exercer. Os direitos humanos valem em qualquer arena política (local, nacional, multinacional, regional, internacional, mundial), como também portam um carregamento moral que municia a crítica moral sobre quaisquer desempenhos, resultados, meios, objetivos, projetos e arranjos políticos. A terceira denúncia afirma que não há qualquer justificação plausível para erigir a política internacional como a arena política privilegiada de uso dos direitos humanos. A política internacional não possui qualquer preferência absoluta em relação às outras arenas políticas – desde a família e a tribo, passando pela igreja e pela empresa, até o estado e a organização transnacional – nas quais os direitos humanos também são intensamente empregados. Essa denúncia afirma que, onde quer que flua uma comunicação política, também fluem os direitos humanos – juntamente com seu apelo moral fortíssimo e seu potencial político emancipatório.

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D.

Objeção da barreira institucional A objeção da barreira institucional sublinha que a concepção raziana obstrui o caminho

dos direitos humanos com uma barreira institucional: Raz exige que a efetivação coercitiva dos direitos humanos seja precedida da implementação de instituições internacionais decentes que somente procedam a interferências externas com correção e lisura. Sem essas instituições, Raz imagina que os direitos humanos seriam usados como máquina depenadora da soberania estatal cuja peça cerebrina seria a ambição imperialista. De fato, o recurso à coerção sem a mediação de procedimentos investigativos e decisórios não condenáveis que tornassem o funcionamento de instituições internacionais não rejeitáveis metodicamente racional é uma janela aberta para a intrusão sorrateira de objetivos imperialistas. Essa barreira institucional, porém, introduz um paradoxo na política internacional: por um lado, a política internacional está faticamente aliada à defesa dos direitos humanos contra abusos da soberania estatal; por outro, ela está prudentemente proibida de efetivar essa defesa enquanto ela não estiver guarnecida com instituições aptas à condução insuspeita de tal defesa. O resultado ambíguo desse paradoxo é ou a paralisação da defesa dos direitos humanos, ou a corrosão da pretensão de legitimidade de toda medida de defesa dos direitos humanos tomada antes do estabelecimento daquelas instituições. O paradoxo da barreira institucional, pois, cobre a política internacional de direitos humanos com horizontes derrotistas.

3.2.

Objeções metateóricas a Raz

E.

Objeção da teoria chanceladora A objeção da teoria chanceladora ergue-se contra o atrofiamento da capacidade crítica

da teoria dos direitos humanos. De acordo com Raz, toda a crítica que a teoria dos direitos humanos pode elaborar resume-se a: “O direito internacional falha quando reconhece como um direito humano algo que, moralmente falando, não é um direito ou não é um direito cuja violação pode justificar ações internacionais contra um estado, assim como quando ele fracassa em reconhecer a legitimidade de medidas limitadoras da soberania estatal quando a violação de direitos as justifica moralmente” (RAZ, 2010, p. 329). A capacidade crítica da teoria dos direitos humanos, pois, abrange três possibilidades: (1) a crítica que desmascara um “suposto direito humano” como não sendo sequer um direito; (2) a crítica que desmascara um “suposto direito humano” como sendo um direito inadequado a respaldar normativamente interferências externas; (3) a crítica que demonstra que uma interferência externa condenada como ilegítima, na verdade, é legítima porque respaldada normativamente por um direito humano.

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Os usos possíveis da crítica (1) são: (1.1) a crítica a um erro conceitual, ao desajuste entre o objeto subjetivamente observado como direito humano e o conceito objetivo de direito; (1.2) a crítica a um engano estratégico, ao emprego do rótulo simbolicamente sobrecarregado “direito humano” para obter objetivos subjetivamente julgados como altamente valiosos, mas não encaixáveis no conceito objetivo de direito. A crítica (1.1) é a crítica de uma ingenuidade intelectual, enquanto a crítica (1.2) é a crítica de uma manipulação intelectual. Quem usa a crítica (1.1) diz: “Tu confundes inconscientemente um não direito com um direito humano”, enquanto quem usa a crítica (1.2) diz: “Tu confundes propositalmente um não direito com um direito humano”. Em ambos os casos, trata-se de evitar a utilização hipertrófica, sem critérios e até sem escrúpulos, do conceito objetivo de direito; trata-se de proteger o conceito objetivo de direito contra a banalização de equívocos e a instrumentalização de manobras. Os usos possíveis da crítica (2) são similarmente: (2.1) a crítica ao erro conceitual de subjetivamente observar um direito que objetivamente não é direito humano como se fosse direito humano; (2.2) a crítica ao engano estratégico de ilusoriamente apresentar um direito que objetivamente não é direito humano como se fosse direito humano para promover a obtenção de um objetivo subjetivamente almejado. Quem usa a crítica (2.1) diz: “Tu compras gato por lebre”; quem usa a crítica (2.2) diz: “Tu vendes gato por lebre”. No primeiro caso, o criticado está enganado, embaraçado em equívoco; no segundo, o criticado é enganador, embaraça em manobra. Em ambos os casos, trata-se de evitar que o léxico dos direitos humanos degenere na língua franca de todos os direitos que alguém subjetivamente vê como de importância especial e, para exprimir tal importância especial, arbitrariamente elege como direitos humanos. Assim, trata-se de proteger o conceito objetivo de direito humano contra um nominalismo relativista que atribui a qual direito de elevado valor subjetivo o título vazio de “direito humano”. A crítica (3), por sua vez, é usável para advogar que uma interferência externa (já realizada, ou a ser realizada) é uma medida de defesa dos direitos humanos. Assim, ela é usável para censurar a inércia dos atores internacionais em face de uma violação de direitos humanos que justificaria uma interferência externa, ou para refutar um julgamento errôneo que apresenta uma interferência externa como ilegítima. Essas três possibilidades críticas que a concepção raziana comporta são, de fato, imprescindíveis. Uma teoria dos direitos humanos deve proporcionar a crítica desmascaradora da observação errada de algo que não é um direito humano como direito humano, assim como a crítica rebatedora da acusação errada de uma interferência externa como ilegítima, como também a crítica impugnadora de omissões e recuos da política internacional ante necessidades

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legítimas de interferência externa. Entretanto, há outras possibilidades críticas que uma teoria dos direitos humanos não deveria deixar de comportar e que, não obstante, Raz não contempla. Raz não inclui a possibilidade de criticar um estado por falhar em satisfazer, proteger e promover direitos humanos quando essa falha não é uma falha justificadora de interferência externa. Esse tipo de crítica, porém, é amplamente usado por organizações não governamentais (tais como Amnesty International e Human Rights Watch) que supervisionam o cumprimento, contestam fracassos de cumprimento, elaboram relatórios empiricamente detalhados, propõem soluções para o aprimoramento da efetuação dos direitos humanos. Raz não inclui essa possibilidade porque o traço conceitual dos direitos humanos que monopoliza a teoria dos direitos humanos, segundo ele, é a capacidade justificatória de interferências externas. Raz também não inclui a possibilidade de usar os direitos humanos para criticar a própria ordem política internacional. Aqui se trata de questionar se a política internacional, com sua grandeza e sua tacanhez, apresenta a estatura adequada a conferir aos direitos humanos a mais frutífera realização possível. Aqui, noutras palavras, trata-se de questionar se as instituições da política internacional são apropriadas a explorar maximamente a realizabilidade dos direitos humanos: não seriam os direitos humanos realizáveis mais proficuamente se outras instituições diferentes das instituições pensáveis dentro da política internacional estivessem disponíveis? Por exemplo, um estado federal mundial – ou uma liga confederativa mundial, ou uma democracia constitucional transnacional sem governo mundial – é mais propício à realização dos direitos humanos que a velha política internacional? Raz, além disso, não inclui a possibilidade de criticar, com base nos direitos humanos, tradições, ideologias, regras, instituições, preconceitos, treinamentos, estratégias, sistemas, ações, automatismos. Porém, os direitos humanos podem ser negados por uma tradição atroz, minados por uma ideologia totalitária, erodidos por uma regra ilegítima, extirpados por uma instituição injusta, repudiados por um preconceito odiento, desativados por um treinamento inculcador de desigualdades arbitrárias, ignorados por estratégias cegamente ambiciosas, bloqueados por sistemas funcionais abstratos, violados por uma ação criminosa, danificados por um automatismo protegido contra o exame reflexivo. Raz, portanto, perde de vista a possibilidade de usar os direitos humanos para tecer críticas sociais diversificadas.

F.

Objeção da continuação teórica da prática A objeção da continuação teórica da prática destaca que não há uma implicação cogente

entre, de um lado, o fato (intensamente disputável) de a prática dominante dos direitos humanos ser a justificação de intervenções externas e, de outro lado, a diretriz metateórica de que a teoria

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dos direitos humanos se adstringe a fornecer uma explicação política desse uso dos direitos humanos. Em primeiro lugar, há outros usos dos direitos humanos que são tão importantes quanto o uso deles como fundamentos para sanções internacionais. Em segundo lugar, uma teoria filosófica e/ou científico-social (como é o caso da teoria dos direitos humanos) não está sob uma obrigação metateórica de meramente observar e descrever o objeto interpretativo13. Considerando que o objeto interpretativo de uma teoria filosófica e/ou científico-social não só é acessível unicamente mediante a compreensão (que requer a participação, pelo menos virtual, do teórico na prática na qual o objeto interpretativo adquire seus sentidos e é construído intersubjetivamente pelos participantes), mas também é, ele mesmo, um produto interpretativo, um empreendimento compartilhado no qual os participantes propõem e avaliam interpretações, levantam e julgam pretensões, tomando, pois, posições críticas sobre seu próprio fazer comum e buscando consensos esclarecidos (e sujeitos à revisão crítica), então qualquer teoria filosófica e/ou científico-social não pode “meramente observar e descrever o objeto interpretativo”. Tais teorias participam, elas mesmas, na construção interpretativa de seus objetos interpretativos e, portanto, somente se diferenciam da própria prática dos leigos (dos participantes não imbuídos de propósitos teóricos) à medida que assumem a tarefa de criticar seus objetos interpretativos com base nas pressuposições racionais fundamentais que estão embutidas na própria prática e orientam – com maior ou menor eficácia, mas sempre como um pano de fundo formal que não pode ser totalmente rasgado – todos os desdobramentos concretos dela14. Para uma teoria dos direitos humanos, isso implica a impossibilidade – ou, pelo menos, a inconveniência – de ela ater-se ao esclarecimento conceitual da prática de direitos humanos. Sem dúvida, esse esclarecimento conceitual é preciso e pode constituir contribuições decisivas. Entretanto, uma teoria dos direitos humanos deve ir além, atravessar o Bojador e atingir o ponto crítico no qual a prática de direitos humanos seja colocada à prova com base em suas próprias pressuposições racionais inevitáveis. Tal ponto crítico (não alheio, mas imanente à prática dos direitos humanos) só é atingido quando a teoria dos direitos humanos se atreve à argumentação moral “feroz”, quer dizer, à argumentação moral plenamente desenvolvida. É que os pontos de

13

Waldron (2013, p. 6) defende que a concepção raziana não é uma concepção preditiva, mas normativa, pois “o ponto de Raz parece ser que a proposta normativa apropriada é uma que deveríamos inferir da conversa normativa que tem lugar na prática de direitos humanos”. Mesmo admitindo que essa interpretação da concepção raziana seria plausível, ela geraria outra dificuldade metateórica similar para Raz: Como distinguir, na conversa normativa encontrável na prática de direitos humanos, entre carneiros e bodes, isto é, entre pretensões normativas válidas e pretensões normativas inválidas? 14 Esse é, em suma, o resultado metateórico a que Habermas (1982, p. 152-203) chega em sua detalhada discussão sobre como as ciências sociais acessam e lidam com seus objetos e, nisso, não se reduzem plenamente ao nível pré-teórico dos participantes leigos, sem, ao mesmo tempo, representarem um ponto de vista privilegiado e abstrato, sequer um ponto de vista meramente relativo que só pode ser assumido arbitrariamente.

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partida racionais da teoria dos direitos humanos residem na moralidade, o que não é ignorado por Raz, pois ele sustenta que os direitos humanos são direitos originariamente morais. Assim, a teoria dos direitos humanos não pode, como Raz preconiza, apenas se servir de argumentos morais enquanto argumentos adaptáveis à facticidade política. Em vez disso, ela deve, caso pretenda plenamente fazer jus a seus propósitos teóricos e não patinar na pista de uma simples continuação discursiva da prática de direitos humanos, fazer o contrário do que Raz preconiza, ou seja, desacorrentar totalmente a argumentação moral referida aos direitos humanos a fim de ativar totalmente seu próprio potencial crítico: “É que razões são feitas de tal material que elas absolutamente não se deixam descrever na perspectiva de uma terceira pessoa, isto é, sem uma reação de concordância, rejeição ou abstenção. O intérprete não compreenderia o que é uma ‘razão’ caso ele não a reconstruísse juntamente com a pretensão de fundamentação dela” (HABERMAS, 1982, p. 169).

G.

Objeção da exclusão do humano Se se admite que os direitos humanos são um objeto interpretativo que a teoria como

teoria só pode explorar plenamente quando, além de um esclarecimento conceitual, busca a crítica racional das práticas de direitos humanos, então uma teoria dos direitos humanos não pode ser fechada à argumentação moral “feroz”, a qual persegue, até as últimas consequências, o rastro da indomável pergunta pelo status moral dos direitos humanos. O teórico dos direitos humanos como teórico não pode, portanto, supor que não seria relevante à teorização à qual ele se dedica a pergunta: Como os direitos humanos podem ser fundamentados moralmente? Essa pergunta, por seu turno, coincide com a pergunta: Por que todo ser humano como ser humano porta direitos humanos? É que a fundamentabilidade moral dos direitos humanos equivale à possibilidade de elaborar razões universalmente aceitáveis para reconhecer direitos humanos (Habermas), ou equivale à possibilidade de reconhecer direitos humanos que não são rejeitáveis com razões universal e reciprocamente compartilháveis (Forst). Noutras palavras, a fundamentabilidade moral dos direitos humanos – à qual a teoria dos direitos humanos só pode furtar-se com fatal perda teórica – é a possibilidade de firmar os direitos humanos sobre a base racional do que é correto para todo ser humano. Assim, Raz está errado quando afirma que o traço decisivo dos direitos humanos que a teoria deve levar em conta é apenas seu uso político-internacional. A teoria só pode dar conta satisfatoriamente, em termos teóricos, dos direitos humanos caso se debruce não somente sobre o uso político-internacional deles, mas também sobre a pergunta pela fundamentabilidade moral dos direitos humanos, pelo imprescindível lastro racional-humanista deles.

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H.

Objeção da importância moral A objeção da importância moral mantém que a fundamentabilidade moral dos direitos

humanos é tão importante que ela não pode ser rebaixada como uma preocupação secundária da teoria dos direitos humanos, uma preocupação menos importante que a preocupação política por como os direitos humanos são usados para justificar sanções internacionais. Tal objeção é favorável tanto à visão de que direitos humanos são direitos morais pré-políticos independentes de seu reconhecimento político, quanto à visão de que direitos humanos são direitos morais que devem ser politicamente reconhecidos a fim de serem efetivados o mais eficazmente possível, mas que permanecem alimentados por sua fonte moral mesmo quando são incorporados como direitos jurídicos nas arenas políticas. Trata-se de duas visões distintas que, porém, partilham a diretriz metateórica segundo a qual a dimensão moral dos direitos humanos é irreprimível.

4.

CONCLUSÃO Da apresentação e da crítica articuladas acima, duas conclusões são extraíveis. Primeiro,

que os posicionamentos metateóricos de Raz sobre os direitos humanos constrangem, de modo imediato e fortíssimo, seus posicionamentos teóricos sobre os direitos humanos. Segundo, que a concepção de direitos humanos propugnada por Raz acanha-se, em termos de abrangência, complexidade e capacidade crítica, diante de outras concepções disponíveis, tais como a concepção pragmático-discursiva de Habermas e a concepção recursivo-discursiva de Forst15. Pode-se resumir o posicionamento metateórico raziano na tese de que: uma teoria dos direitos humanos somente é adequada se ela for uma teoria político-internacional, moralmente desarraigada e estética. Uma teoria político-internacional porque persegue os direitos humanos dentro da cartografia da política internacional. Uma teoria moralmente desarraigada porque não recorre a fundamentos morais, blindando-se contra insolúveis controvérsias morais. Uma teoria estética porque orientada a proporcionar a expressão mais autêntica das autocompreensões mais exemplares que quedam entranhadas nas práticas políticas internacionais referidas aos direitos humanos. Esse posicionamento metateórico impõe à concepção raziana um elevado déficit em abrangência, complexidade e poder crítico. A concepção raziana perde em abrangência na medida em que os direitos humanos não mais giram em torno do ser humano como ser humano, afastando-se da humanidade como seu centro referencial: sua referência primária passa a ser a tendência política internacional de mitigação da soberania estatal. Direitos humanos são somente aqueles direitos aptos a reclamar 15

A concepção de Habermas pode ser encontrada em Habermas (2001) e Habermas (1994), enquanto a concepção de Forst pode ser encontrada em Forst (1999) e Forst (2001).

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e receber o reconhecimento político-internacional como restrições sancionáveis do poder estatal. Em contraposição a essa visão deficitária em abrangência, Habermas e Forst oferecem duas concepções que ganham em abrangência em comparação com Raz, pois eles concebem os direitos humanos como direitos moralmente justificáveis e direitos politicamente cogentes. Em Habermas, direitos humanos são direitos morais dos quais, de um lado, depende a legitimidade política e os quais, de outro lado, carecem de especificação interpretativa, aplicação organizada e asseguração coercitiva por parte da política. Em Forst, os direitos humanos estão ancorados no direito moral basilar, o direito à justificação, o qual deve ser tomado politicamente a sério na institucionalização de procedimentos deliberativos razoáveis. A concepção raziana perde em complexidade à medida que os direitos humanos não mais mantêm domicílio na discussão moral, mas migram para a arena movediça das disputas pragmáticas da política internacional. A racionalidade orientadora dos direitos humanos não é mais a racionalidade categórica dos princípios morais, mas a racionalidade prudente dos ajustes políticos e dos pactos jurídicos, a racionalidade socialmente eficiente dos repertórios de estratégias políticas e dos estoques de medidas jurídicas. Tanto para Habermas como para Forst, em contrapartida, os direitos humanos estão em uma permanente tensão entre moralidade e política: eles não são enclausurados ao espaço das razões morais, não são agrilhoados ao espaço das razões políticas, mas fluem entre esses dois espaços. Para Forst, a política deve resguardar a prioridade do justo sobre o bom, o que implica a primazia dos direitos humanos sobre razões pragmáticas e éticas; por outro lado, o justo não é etéreo, mas é moldado pelos cidadãos em discursos políticos. E, para Habermas, as pretensões de correção universal dos direitos humanos não são subjugáveis por pretensões de eficiência funcional, sagacidade pragmática e autenticidade ética; entretanto, as pretensões de correção universal dos direitos humanos são erguidas, discutidas e assumidas consensualmente em contextos de aprendizagem política sobre marcantes degradações morais. A concepção raziana perde em mordida crítica na medida em que ela fornece mais um reflexo extensivo da facticidade político-internacional do que um parâmetro contrafático que enriquecesse e avaliasse as práticas consolidadas de direitos humanos. As concepções de Habermas e Forst, em contraste, têm grande penetração crítica, pois, nelas, as diversas arenas políticas se expõem ao questionamento permanente pela satisfação dos direitos humanos, seja para efetivar a autonomia plena dos seres humanos como atores capazes de fala e ação (Habermas), seja para fazer jus ao Grundrecht auf Rechtfertigung dos seres humanos como seres justificantes (Forst).

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REFERÊNCIAS FORST, Rainer. The rule of reasons. Three models of deliberative democracy. Ratio Juris, v. 14, n. 4, 2001, p. 345-378. __________. The basic right to justification: toward a constructivist conception of human rights. Translation by Jonathan M. Caver. Constellations, v. 6, n. 1, 1999, p. 35-60. HABERMAS, Jürgen. Der demokratische Rechtsstaat: eine paradoxe Verbindung widersprüchlicher Prinzipien? In: __________. Zeit der Übergänge. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001, S. 133-151. __________. Three normative models of democracy. Constellations, v. 1, n. 1, 1994, p. 1-10. __________. Theorie des kommunikativen Handelns. B. 1. Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. 2. Aufl. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1982. MILLER, David. Joseph Raz on human rights: a critical appraisal. In: CRUFT, Rowan; LIAO, S. Matthew; RENZO, Massimo (eds.). Philosophical foundations of human rights. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 232-243. RAWLS, John. The law of peoples (with “The idea of public reason revisited”). Cambridge, London: Harvard University Press, 2001. RAZ, Joseph. Human rights in the emerging world order. In: CRUFT, Rowan; LIAO, S. Matthew; RENZO, Massimo (eds.). Philosophical foundations of human rights. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 217-231. __________. On Waldron’s critique of Raz on human rights. University of Oxford legal research paper series, paper 80, 2013. __________. Human rights without foundations. In: BESSON, Samantha; TASIOULAS, John. The philosophy of international law (eds.). Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 321337. __________. On the nature of rights. Mind, v. 93, n. 370, 1984, p. 194-214. WALDRON, Jeremy. Human rights: a critique of the Raz/Rawls approach. New York University public law and legal theory working papers, paper 405, 2013.

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