A concepção emic da identidade nacional junto à raia luso-espanhola

August 1, 2017 | Autor: Luis Silva | Categoria: National Identity, Portugal, Zonas De Fronteira, Espanha
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Actas das III Jornadas/Congresso do Arquivo de Beja. Beja: Câmara Municipal de Beja, 2005, Tomo I, 95-102 A Concepção Emic da Identidade Nacional Junto à Raia Luso-Espanhola Luís Silva Centro de Estudos de Antropologia Social (CEAS)

elevado protagonismo nos discursos identitários da população de Montes Juntos. Os estereótipos, por serem recorrentemente postos em evidência nos discursos vinculados a esses dois registos, foram também integrados no leque de temas a explorar.

III. O Historial da fronteira Ibérica I. Apresentação Esta comunicação baseia-se na minha dissertação de mestrado em Antropologia - Patrimónios e Identidades, cujo título é Identidade Nacional: Práticas e Representações num contexto de fronteira (Silva 1999).1 O estudo apresentado nesse texto envolveu cerca de seis meses de trabalho de campo em duas localidades situadas em lados opostos da linha de fronteira entre Portugal e Espanha – Montes Juntos (concelho de Alandroal) e Cheles (província de Badajoz). A questão central que esteve na base da sua formulação foi a seguinte: qual a “eficácia” cultural da nacionalidade? Sobretudo, como, em que condições e de que maneira é que o referente nacional é importante para a vida dos indivíduos? Com esta investigação pretendia produzir um trabalho empiricamente sustentado de molde a enriquecer o contributo da antropologia para o estudo da identidade nacional, abordando as suas modalidades de construção num contexto de fronteira. Essa contribuição pareceu-me particularmente pertinente por causa da escassez de estudos acerca da concepção emic da identidade nacional portuguesa.

II. Procedimentos metodológicos Como é usual em antropologia, esta investigação foi desenvolvida através da dupla estratégia de trabalho de campo com observação directa e participante, e de pesquisa bibliográfica, teórica e comparativa doutros contextos etnográficos. Fruto da conjugação de uma série de factores, a pesquisa de terreno foi levada a cabo de forma intensiva na aldeia portuguesa de Montes Juntos e na vila espanhola de Cheles entre Setembro de 1997 e Maio de 1998. Inicialmente tinha previsto a repartição equitativa do tempo de pesquisa por ambos os lados da fronteira. Com o desenrolar dos trabalhos, porém, foi intencionalmente produzido um desequilíbrio entre as povoações em estudo, já que só estive cerca de um mês em Cheles, em contraponto com os oito meses de permanência em Montes Juntos, cinco dos quais de pesquisa efectiva. Nessas localidades accionei diversas técnicas de recolha de dados (entrevistas, levantamento de vizinhos, histórias de vida, etc.) e interagi com os seus habitantes em diferentes contextos – em casa destes, nos cafés, na cantina escolar, nas incursões ao outro lado da fronteira, etc. Estes informantes estavam agregados em três categorias analíticas: a dos portugueses residentes em Montes Juntos, a dos espanhóis residentes em Cheles e a dos habitantes destas duas localidades nascidos no lado oposto da fronteira. A alimentação e as festas converteram-se nos objectos mais precisos do estudo de terreno por terem um 1

O projecto de investigação que lhe está associado foi orientado pelo Prof. Doutor João Leal e foi financiado pelo programa Praxis XXI da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PRAXIS XXI/BM/10614/97), contando com o apoio do Centro de Estudos de Antropologia Social, do Centro Social Paroquial do Alandroal e do Ayuntamiento de Cheles.

Como já referi, este estudo foi desenvolvido em duas comunidades de fronteira. O carácter fronteiriço dessas comunidades deve-se, entretanto, a um conjunto de circunstâncias históricas que importa mencionar e que remetem para a criação da fronteira política entre Portugal e Espanha. O processo de constituição dessa fronteira teve origem em 1143 no tratado de Zamora, momento em que foi reconhecida a independência de Portugal. O seu desenvolvimento posterior esteve associado à Reconquista Cristã e às lutas entre os reinos de Leão, Castela e Portugal, no âmbito das quais houve povoações que foram transferidas de nacionalidade, como Sabugal, Castelo Rodrigo, Ayamonte, entre outras. Decisiva, nesse processo de criação da fronteira, foi a acção das comunidades raianas, quer vigiando a linha divisória, quer provocando o seu estabelecimento e/ou a redefinição do seu traçado, querelando por causa de terrenos fronteiriços e dando origem a contendas, como a de Moura e a de Vilanova del Fresno. Foi justamente para pôr cobro às dúvidas e imprecisões que eram fonte de controvérsia em vários sectores da raia que em meados do século XIX os estados peninsulares acordaram na formação de uma Comissão Internacional de Limites encarregada de estudar a situação no terreno e projectar, detalhadamente, a linha de fronteira a adoptar, definindo, ao mesmo tempo, os direitos e deveres dos povos adjacentes. Os trabalhos dessa comissão deram frutos em 1864, momento da assinatura de um convénio de limites entre a foz do rio Minho e a do rio Caia. Cerca de 50 anos depois, em 1926 assinou-se um outro convénio de limites relativo à área compreendida entre a confluência da ribeira de Cuncos com o Guadiana e a foz deste curso de água. Por causa do litígio em torno da posse de Olivença e o seu termo, a área correspondente ao dito «alto Guadiana internacional», entre a confluência do Caia e a da ribeira de Cuncos com o Guadiana, permanece, pois, por definir, ou melhor, por demarcar, visto o rio funcionar como linha fiscal ou de vigilância. É justamente nessa área que se encontram as povoações em estudo, a aldeia de Montes Juntos e a vila de Cheles.

IV. As repercussões da fronteira em questão A circunstância de essas populações estarem integradas num contexto de fronteira (de facto, não de direito) repercute-se em diversos planos: a) em termos da sua sociografia, trata-se de povoações económica e demograficamente deprimidas. Do ponto de vista demográfico, regista-se uma evolução com dois sentidos diametralmente opostos - numa primeira fase, desde meados do século XIX até à década de sessenta do século XX verifica-se um aumento ininterrupto no número de habitantes, que então diminui de modo significativo em virtude do desencadear das correntes migratórias em direcção às áreas mais industrializadas de Portugal, de Espanha e do resto da Europa. A população residente nessas localidades na actualidade é, por isso,

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Actas das III Jornadas/Congresso do Arquivo de Beja. Beja: Câmara Municipal de Beja, 2005, Tomo I, 95-102 marcadamente envelhecida, sendo que cerca de 30% da mesma possui idade igual ou superior a 65 anos. Do ponto de vista económico, a depressão de que falei anteriormente encontra-se patente no quadro da distribuição da população activa por sectores de produção - há, neste capítulo, um predomínio do sector primário, uma debilidade estrutural do sector secundário e um desenvolvimento significativo das actividades terciárias, particularmente o comércio. b) em termos relacionais, os países a que pertencem essas povoações são o espaço privilegiado na cadeia de relações em que se inscrevem os seus habitantes, especialmente após a integração de Portugal e de Espanha na União Europeia. Essa situação é susceptível de apreensão em diversos planos: laboral, comercial, ritual e afectivo. c) em termos culturais, o facto de essas populações estarem adscritas a territórios diferentes e sujeitas a enquadramentos desiguais provoca a emergência de dissemelhanças de facto de ordem vária – horárias, linguísticas, festivas, alimentares, comportamentais, etc. d) em termos cognitivos, os habitantes dessas populações têm um conhecimento residual sobre o outro lado da fronteira. e) em termos identitários, a nacionalidade assume-se como a categoria de pertença mais saliente, tanto no dia-a-dia como em momentos de excepção. Esta saliência encontra-se na identificação automática entre essas comunidades e os seus respectivos espaços nacionais de dependência, no facto de os seus habitantes interagirem entre si sobretudo enquanto membros de distintas nacionalidades (e não de distintas povoações) e no deslize sistemático de um discurso de identidade local para um discurso de identidade nacional. As ocorrências que se reportam aos domínios cognitivo, cultural e identitário surgem evidenciadas no quadro dos objectos mais precisos da pesquisa de campo em que se baseia este trabalho, (i) as festas e as touradas, (ii) a alimentação e (iii) os estereótipos.

V. Práticas festivas e alimentares O protagonismo assumido pelas festas e pela alimentação nos discursos identitários das povoações em estudo levou-me a aprofundar estes registos, em busca de semelhanças e dissemelhanças de facto, objectivas. Para o efeito, no âmbito das festas optei por fazer o estudo de dois momentos inclusos no ciclo festivo das povoações em análise, um especificamente local e outro constante no calendário nacional dos países a que elas pertencem, nomeadamente a festa de Nossa Senhora da Conceição e o Carnaval em Montes Juntos e a festa de Santo Cristo da Paz e a Semana Santa em Cheles. No registo da alimentação efectuei o estudo etnográfico dos manjares cerimoniais e das comidas servidas em estabelecimentos públicos, designadamente petiscos e refeições em cafés e restaurantes. O estudo comparativo dessas festas permitiume concluir pela existência de práticas e usos festivos locais que constituem operadores de distinção cultural coincidentes com a fronteira política. Por outras palavras, as diferenças que existem entre essas localidades, em diversos aspectos, reproduzem a situação prevalecente nos seus espaços nacionais de dependência. As touradas são, neste âmbito, ilustrativas. As que são realizadas em Montes Juntos e em Cheles reproduzem o modelo da tauromaquia oficial dos países a que pertencem estas povoações, sendo os animais corridos em pontas e mortos na arena do lado espanhol, em contraponto com o embolamento dos seus

chifres e com a sua não execução na praça do lado português. O modo como são organizadas as festas em honra de Santo Cristo da Paz em Cheles e as de Nossa Senhora da Conceição em Montes Juntos é susceptível de um mesmo enquadramento, na medida em que se regista a reprodução de uma cultura de comissões de festeiros no lado português da raia e de uma cultura de irmandades do lado espanhol (cf. Martins, s/d). Idêntica asserção surge a propósito da vivência das festas, no âmbito das quais se corrobora a tendência geral para a discrição e pacatez lúdicas das populações portuguesas em festa nas áreas fronteiriças a sul do Caia, quando comparadas com o carácter alegre e extrovertido das celebrações em Espanha (cf. Martins, s/d). No registo da alimentação encontrei uma situação similar, em que se reflecte a existência da fronteira, ou de operadores de distinção cultural coincidentes com a raia. No domínio das comidas festivas, verifiquei que em Montes Juntos se come itens característicos da alimentação ritual doutras povoações raianas portuguesas, entre os quais borrego assado, ensopado de borrego, bolos fintos e fritos. Em Cheles, por seu turno, consome-se produtos característicos da alimentação festiva de outras povoações espanholas (não apenas raianas), entre os quais tortilla de patatas, carne en salsa, polvorones e masapanes. Por sua vez, as comidas servidas nos cafés e nos restaurantes, incluindo petiscos e refeições, apresentam nas localidades em estudo itens associados a espaços mais amplos dentro dos países a que pertencem. No caso de Montes Juntos, constata-se a existência de comidas tipicamente alentejanas, como a carne de porco à alentejana e a açorda de alho. No caso de Cheles, encontram-se pratos característicos da cozinha espanhola, entre os quais as lentillas e a tortilla de patatas. A fronteira reflecte-se ainda no quadro dos petiscos nos cafés. Enquanto do lado espanhol estes são servidos ao cliente a acompanhar as bebidas, sem acréscimo de custos, do lado português são um universo independente do das bebidas, pois não se serve em simultâneo e são pagos à parte. Por outro lado, em Espanha, a repetição de bebidas é acompanhada por uma rotação de géneros alimentares, os quais são por isso muito mais variados do que em Portugal.

VI. O sistema local de representações A maioria dos meus informantes apresenta um conhecimento deveras residual quanto ao modo como se procede do outro lado da fronteira no que concerne aos registos anteriormente abordados, sobretudo no que toca às festas inclusas no calendário nacional (Páscoa, Reis, Carnaval, Natal) e à sua respectiva componente alimentar, o que demonstra que a fronteira actua de molde a entravar o conhecimento entre as áreas e as populações em contacto. No entanto, esses registos (as festas e a alimentação) assumem um protagonismo ímpar nas suas práticas de reivindicação e outorga de identidade e de alteridade colectivas, práticas essas que aludem a formas de dizer e de fazer, a graus de devoção religiosa e de desenvolvimento, a gostos, preferências e hábitos alimentares, assim como a costumes, tradições e disposições psicológicas, etc. Recorrentemente focado nos discursos de identidade nacional das populações em estudo é também o registo dos estereótipos. Muitos desses estereótipos surgem evidenciados nos discursos vinculados às festas, incluindo as taurinas, e à alimentação. A título ilustrativo, note-se que no plano das festas surge inúmeras vezes a indicação de que os espanhóis são mais alegres, divertidos,

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Actas das III Jornadas/Congresso do Arquivo de Beja. Beja: Câmara Municipal de Beja, 2005, Tomo I, 95-102 ruidosos e sem vergonha do que os portugueses, normalmente classificados de tristes, introvertidos e reservados, tanto numa como noutra comunidade. No plano da alimentação, costuma dizer-se em Montes Juntos que os espanhóis são “porcos”, mas mais ricos, com mais fartura de alimentos e de tudo. Em Cheles, por seu turno, diz-se que os portugueses comem muito pão, em função do seu reduzido poder de compra. Não cabe aqui referir a totalidade dos estereótipos registados, nem sequer os mais recorrentes. Cabe sim observar que o seu estudo etnográfico revelou a existência de imagens distintamente valoradas – umas negativas, outras positivas -, tanto num como noutro lado da fronteira, o que remete para a forma ambivalente como é construído o outro, simultaneamente visto como atraente e repulsivo. Em Montes Juntos, porém, esta dualidade é muito mais acentuada do que em Cheles. Enquanto o entendimento dos espanhóis em Montes Juntos oscila constantemente entre pólos opostos de valoração, o dos portugueses em Cheles, embora também oscilante, desequilibra-se nitidamente para a vertente negativa. Tal significa que as pessoas de Montes Juntos são mais inseguras quanto à superioridade do seu grupo nacional de pertença do que as de Cheles, por causa da incontornável proeminência dos espanhóis relativamente aos portugueses no que toca à dimensão do território, à riqueza material e ao desenvolvimento (industrial, tecnológico, agrícola, etc.) dos seus domínios. Em Montes Juntos essa proeminência é de algum modo compensada por certos mecanismos de inferiorização, onde se destaca a remissão dos hábitos alimentares dos espanhóis para um estado de impureza e barbárie (diz-se que eles comem cobras e lagartos), a indicação de que são desonestos do ponto de vista negocial e, sobretudo, o estabelecimento de uma analogia entre os espanhóis e os ciganos, sendo a expressão mais sintomática dessa analogia a ideia de que “o espanhol é uma espécie de cigano”. Em Cheles, por sua vez, não existe tal compensação, pois as virtudes incluídas na definição dos portugueses (a cortesia, a higiene, a prestabilidade) detêm um valor social relativamente diminuto. Importante é notar que a maior parte dos estereótipos registados se reporta a situações de contacto, o que reitera a ideia de que as fronteiras culturais emergem justamente em contextos de interacção entre membros de grupos que são ou que pretendem ser diferenciados (Barth, 1969). De salientar é o facto de tais estereótipos deterem um valor pragmático, condicionando o comportamento desempenhado pelos indivíduos nesses mesmos contextos de interacção, tal como refere Van der Berghe (1997). A situação que em seguida apresento adquire, neste ponto, um valor exemplificativo. Costuma dizer-se em Montes Juntos que «os espanhóis são muito confiados», têm excesso de confiança, sobretudo porque quando são convidados para comer na casa de um português num dia de festa nunca vão sós, fazendo-se acompanhar por outras pessoas. O modo como esse estereótipo norteia a actuação de quem reside em Montes Juntos encontra-se patente nos depoimentos que se seguem: M.R. (mulher, 65 anos) – Os espanhóis são é muito confiados. O meu marido tinha lá [em Cheles] conhecimentos e amigos por via do contrabando e de ir lá a festas, e chegou a convidar um para vir cá comer no dia da festa. Olha! apareceram-lhe cá vinte. Eu já sabia como eles são e então pus a mesa na rua para eles comerem.

J.B. (homem, 67 anos) – Os espanhóis são muito confiados. Eu já tive ganas de convidar o S. [espanhol, de Cheles] para vir cá comer a casa no dia da festa, mas tenho medo que traga um rancho.

VII. A construção social da nacionalidade Os contextos estudados neste trabalho – o dos portugueses residentes em Montes Juntos, o dos espanhóis residentes em Cheles e dos habitantes destas localidades nascidos no outro lado da fronteira – apresentam certas constantes quanto à forma como concebem a identidade nacional no registo das festas, da alimentação e dos estereótipos. Antes de mais, do ponto de vista da sua construção, tal como no contexto estudado por Sahlins (1989), a identidade nacional emerge no seio de uma estrutura de contrastes, na medida em que é socialmente construída através do estabelecimento de um conjunto de diferenças entre um grupo próprio e um grupo alheio, um nós e um eles, na circunstância os portugueses e os espanhóis. Uma constatação adicional é a de que essas diferenças não são necessariamente objectivas, mas sim representacionais; elas têm mais que ver com a experiência local do que com os factos. Pode, portanto, dizer-se que a identidade nacional assenta na experiência subjectiva da diferença entre uma comunidade que ocupa um espaço delimitado e que reivindica uma nacionalidade e uma outra em circunstâncias idênticas. Apesar de não ser consensual, nem tão-pouco efectiva e igualmente partilhada pelos membros dos povos em estudo, a experiência subjectiva da diferença em Montes Juntos é, em termos genéricos, análoga à experiência subjectiva da diferença em Cheles; as suas populações vislumbram muitas vezes as mesmas descontinuidades entre os grupos nacionais a que se encontram adscritas, as mesmas fronteiras, conferindo-lhes, não raramente, a mesma interpretação, o que decorre do facto de muitas dessas diferenças surgirem no âmbito da sua interacção mútua. Essa experiência subjectiva da diferença é, por seu lado, enquadrável numa lógica processual de nacionalização das diferenças locais e de localização das diferenças nacionais, para utilizar uma expressão de Peter Sahlins (1989). O estabelecimento dessas fronteiras, ou dessas descontinuidades acarreta a homogeneização dos seus conteúdos, processo este remissível para a “eficácia” cultural da nacionalidade, uma das questões de partida deste trabalho. Essa homogeneização é feita através de um conjunto de afirmações sobre o povo e a cultura. Esse conjunto de afirmações, por sua vez, confere à identidade nacional um carácter segmentar, na medida em que ela é construída a partir da fusão de segmentos considerados distintos quando comparados entre si, mas idênticos no momento em que são pensados num plano de segmentação mais generalizado e inclusivo; as diferenças que existem entre os portugueses e os espanhóis surgem, assim, diluídas no momento em que estes são concebidos como um corpo social unificado e homogéneo, ou, como diria Anderson (1991), como uma «comunidade imaginada». As suas particularidades são, nesse processo, recorrentemente remetidas para a cultura, a psicologia étnica e a «etno-genealogia» (Smith, 1991). O peso que a cultura detém na definição da identidade e da alteridade nacionais surge de uma maneira clara na sua «objectificação» (Handler, 1988), na conversão de alguns objectos em emblemas, em expressões típicas e tipificadoras da cultura dos grupos

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Actas das III Jornadas/Congresso do Arquivo de Beja. Beja: Câmara Municipal de Beja, 2005, Tomo I, 95-102 nacionais em questão, entre os quais as festas, as touradas e a alimentação. A relevância da psicologia étnica encontra-se nas referências constantes ao temperamento, ao carácter ou à “maneira de ser” do português e do espanhol, muitas vezes feitas com recurso a estereótipos. Essa relevância pode ser entendida à luz das ideias sugeridas por Dumont (1983) e retomadas por Handler (1988) a propósito da nação moderna. Os portugueses e os espanhóis de que falam os meus informantes correspondem, neste sentido, a um «indivíduo colectivo» que pode ser descrito como uma entidade que possui determinados atributos, bem como «uma alma, um espírito, ou uma personalidade». A psicologia étnica é, entretanto, apenas um dos recursos da concepção «etno-genealógica» do facto nacional, nos termos propostos por Smith (1991). É, de facto, possível encontrar nos discursos das populações de Montes Juntos e de Cheles uma concepção da nação que privilegia a ideia de uma origem e ascendência comuns, conferindo à cultura popular o papel de testemunho do legado étnico do grupo nacional, grupo este considerado homogéneo no que toca à maneira de ser, à língua, aos costumes e às tradições populares. No que diz respeito a Montes Juntos, os discursos de identidade nacional podem também ser descritos nos moldes sugeridos por Leal (1997) num ensaio sobre a «açorianidade», em termos de uma «etnografia espontânea» de Portugal, de um conjunto de afirmações de cunho etnocultural em que as ideias sobre o povo, as origens étnicas e a cultura são muito recorrentes. Essa «etnografia espontânea» pode, complementarmente, ser encarada enquanto indiciadora de uma inter-penetração entre o discurso “erudito” e o discurso de “senso comum” no que se reporta ao entendimento dos portugueses, em boa medida similar à que resulta da comparação entre a “ideologia” e a “ciência” no que concerne à concepção da nação na óptica de Handler (1988). Por outras palavras, é possível encontrar nas comunidades próximas da fronteira entre Portugal e Espanha uma versão condensada e sistematizada do carácter nacional português tal como se encontra definido em alguns discursos de pendor etnográfico ou antropológico, particularmente em Os elementos fundamentais da cultura portuguesa, de Jorge Dias (1961 [1950]). A «personalidade base» do português é também aí definida por comparação e por oposição à do espanhol, como decorre da indicação de que não tem «a alegria espontânea», «é mais inibido pelo sentimento do ridículo e pelo medo da opinião alheia» e «é menos exuberante, ruidoso e expansivo» que os outros povos mediterrânicos, especialmente os espanhóis, como se afere no registo de que «um só espanhol, numa carruagem de comboio, abafa com a sua voz a de todos os portugueses». À superfície das minhas observações, este é um retrato que parece corresponder à imagem que os membros das comunidades de ambos os lados da fronteira têm dos portugueses. É todavia uma questão que cabe manter em aberto em virtude da escassez de estudos sobre o modo como é pensada a identidade nacional portuguesa nas populações confinantes com a fronteira Ibérica. Essa escassez de estudos do ponto de vista emic e a profusão de estudos do ponto de vista etic – entre os quais os de Eduardo Lourenço (1978) e Boaventura Sousa Santos (1994) – faz com que se mantenha também em aberto a referida questão da homologia entre os discursos “eruditos” e os de “senso comum”. Igualmente em aberto fica o entendimento dos habitantes de Cheles enquanto produtores de uma «etnografia espontânea» de Espanha, de um discurso sobre o povo, as raízes étnicas e a cultura análogo aos

discursos de cariz mais “científico”, antropológico sobre o assunto.

etnográfico

ou

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ANDERSON

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