A conceptualização de norma jurídica no jovem Raz (crítica e hipóteses)

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A CONCEPTUALIZAÇÃO DE NORMA JURÍDICA NO JOVEM RAZ (CRÍTICA E HIPÓTESES) Ivan Rodrigues

1.

UM POSSÍVEL PARADOXO NO JOVEM RAZ A maior contribuição que o jovem Raz (ou seja, o autor de O conceito de sistema

jurídico, sua primeira obra, fundada em sua tese de doutorado, a qual fora supervisionada por H. L. A. Hart e defendida em 1967) forneceu à clarificação do conceito de norma jurídica foi uma delimitação meticulosa de tal conceito. Mesmo que sua preocupação central fosse a clarificação de outro conceito, o de sistema jurídico; e mesmo que sua tese básica fosse que o conceito de sistema jurídico tem prioridade teórica ante o conceito de norma jurídica1; mesmo assim, ele tocou no conceito de norma jurídica com uma medida bastante de apuro analítico para distinguir entre norma jurídica e objetos adjacentes com os quais ela pode ser confundida – e, de fato, o foi por outros filósofos do direito. Em sua segunda obra, Razão prática e normas, Raz viria a desenvolver e modificar consideravelmente o conceito de norma jurídica esquematizado em O conceito de sistema jurídico. Ele próprio fez questão de ressaltar seu abandono de partes do conceito originalmente introduzido – e o fez no pós-escrito que adicionou à segunda edição de O conceito de sistema jurídico, de 1980. Intrigante é que essa segunda edição apareceu depois de Razão prática e normas, que é de 1975. Esse detalhe cronológico suscita a questão: Por que Raz insistiu em reeditar sua primeira obra mesmo depois de ter modificado consideravelmente o conceito de norma jurídica? É óbvio que a resposta é que O conceito de sistema jurídico não gira só em torno do conceito de norma jurídica; assim, seria conjecturável que mesmo uma considerável modificação desse conceito não afetaria profundamente aquela obra. De fato, se o conceito de sistema jurídico é teoricamente prioritário perante o de norma jurídica, então uma reforma do último tende a não exigir uma reforma do primeiro. Inobstante, a modificação que Razão prática e normas imprime ao conceito de norma jurídica do jovem Raz não é simplesmente periférica e de somenos importância em relação à

 Doutorando em Ética e Filosofia Política (PPGFil/UFSC), com pesquisa publicamente fomentada (CAPES). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3085919257774539. E-mail: [email protected]. 1 “Kelsen foi o primeiro a insistir em que ‘será impossível compreender a natureza do direito se limitamos nossa atenção à norma isolada’. Aqui, tenho o propósito de ir mais além: segundo a tese principal deste estudo, a teoria do sistema jurídico é pré-requisito para qualquer definição adequada de ‘lei’, e todas as teorias existentes sobre os sistemas jurídicos são malsucedidas em parte porque não conseguem perceber esse fato” (RAZ, 2012, p. 3).

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construção de O conceito de sistema jurídico. É que O conceito de sistema jurídico apresenta um conceito de norma jurídica que é articulado na estrita medida em que ele é delimitado pelo conceito de sistema jurídico. Ou seja: no jovem Raz, o conceito de norma jurídica é tão necessariamente dependente do conceito de sistema jurídico que: (1) comporta só os traços gerais de um conceito que deveria ser posteriormente desenvolvido; (2) o desenvolvimento posterior do conceito, porém, não poderia desviar-se desses traços gerais porque eles são fundados em um conceito teoricamente prioritário e previamente elaborado, o de sistema jurídico; (3) o abandono de partes de tais traços gerais tende a exigir uma modificação do conceito de sistema jurídico2. Assim, uma bifurcação se coloca no caminho do leitor do jovem Raz desde que Razão prática e normas se imiscui no horizonte, isto é, entre a primeira e a segunda edição de O conceito de sistema jurídico: ou (1) uma reforma deve ser feita no conceito de sistema jurídico do jovem Raz; ou (2) uma reforma deve ser feita no conceito de norma jurídica do jovem Raz. Tomar o caminho (1) pressupõe adotar a hipótese de que, em Razão prática e normas, Raz modificou os traços gerais de seu conceito original de norma jurídica a tal ponto que, sendo essa modificação correta, seu anterior conceito de sistema jurídico encontra-se mais ou menos comprometido, sendo necessário reavaliar a articulação desse conceito prioritário e prévio. Tomar o caminho (2), por sua vez, pressupõe adotar a hipótese de que não é necessário modificar o conceito de sistema jurídico do jovem Raz porque o que está comprometido em O conceito de sistema jurídico é unicamente a conceituação dos traços gerais de norma jurídica, de modo que é só essa conceituação que deve ser reavaliada. A hipótese aqui, portanto, é que o jovem Raz não teria estabelecido corretamente os traços gerais do conceito de norma jurídica a partir de um conceito correto de sistema jurídico. Ambos os caminhos, todavia, são espinhosos para o leitor do jovem Raz. O caminho (1), por um lado, envolve adotar uma hipótese altamente problemática, pois incompatível com a tese básica de O conceito de sistema jurídico, a saber, a tese de que o conceito de sistema jurídico possui precedência teórica sobre o conceito de norma jurídica. Se essa tese é correta, como uma modificação do conceito de sistema jurídico poderia vir a ser exigida a partir de uma modificação do conceito de norma jurídica? Como seria possível exigir uma readaptação do conceito de sistema jurídico para que ele se reacoplasse a um conceito modificado de norma 2

Raz critica Kelsen por, apesar de ser o primeiro filósofo do direito a dar-se conta da natureza sistêmica do direito, ter falhado em desenvolver uma teoria do direito baseada na sistematicidade do direito e ter oferecido, em última análise, uma teoria do direito centrada na norma jurídica. Raz, portanto, critica Kelsen por não ter se mantido isento da “tendência predominante de considerar a definição de lei [norma jurídica], e não a explicação do sistema jurídico, como o problema principal da teoria do direito” (RAZ, 2012, p. 119).

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jurídica? O caminho (2), por outro lado, envolve adotar uma hipótese que não parece subsistir diante da afirmação explícita de Raz, no pós-escrito de 1980, de que ele procedeu a várias modificações no conteúdo da obra; tampouco parece subsistir diante da construção visível de Razão prática e normas, obra na qual Raz parte de uma investigação sobre o conceito de norma e, com base nessa investigação, introduz novas observações sobre o conceito de sistema normativo (jurídico). Portanto, também a construção de Razão prática e normas parece solapar a tese da precedência teórica do conceito de sistema jurídico sobre o de norma jurídica. Eis, portanto, um duplo paradoxo no jovem Raz: ou (1) seu conceito de sistema jurídico é falho porque ele realizou uma correção ulterior de seu conceito geral de norma jurídica – hipótese que, entretanto, parece chocar-se com sua tese de que o conceito de norma jurídica forma-se na esteira conceitual do conceito prioritário de sistema jurídico; ou (2) seu conceito de norma jurídica é falho porque ele não o elaborou corretamente a partir de seu conceito (correto) de sistema jurídico – hipótese que, no entanto, desmente a observação expressa de Raz de que ele introduziu ulteriormente modificações em seu conceito de sistema jurídico, modificações produzidas na sequência de uma reconceitualização de norma jurídica. É possível dissolver esse paradoxo? Uma perquirição minuciosa no texto do jovem Raz, assim como na obra seguinte (Razão prática e normas), pode bastar para demonstrar que o paradoxo é meramente aparente e que só aparece se for apresentado na forma abstrata em que ele foi acima apresentado?

2.

NORMAS, ENUNCIADOS NORMATIVOS, IMPERATIVOS, ESTATUTOS, LEIS Não só a comparação entre a primeira e a segunda obra de Raz patenteia uma colisão

entre duas diferentes teses basilares sobre a natureza do direito – entre a tese de que a natureza do direito é sistêmica (defendida na primeira obra) e a tese de que a natureza do direito é normativa e racional (sustentada na segunda obra). Dentro de O conceito de sistema jurídico, já se entrevê tal colisão: primeiro, quando Raz estabelece o pressuposto de que “o direito é normativo, institucionalizado e coercitivo, e essas são suas três características mais gerais e importantes”, de modo que “toda teoria dos sistemas jurídicos deve ser compatível com uma explicação dessas características” (RAZ, 2012, p. 4); segundo, quando ele admite que “o ideal seria que a teoria dos sistemas jurídicos fosse tratada como parte de uma teoria geral das normas”, tanto que “os maiores filósofos do direito, entre os quais aqueles aqui discutidos [e que baseiam a obra de Raz], desenvolveram suas próprias teorias das normas como fundamento de suas teorias jurídicas” (RAZ, 2012, p. 59).

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No primeiro momento acima apontado, Raz parece antepor uma tese sobre a natureza do direito que ele vê como canônica (endossada por dois grandes filósofos novecentistas do direito: Kelsen e Hart) – a tese da natureza normativa, institucionalizada e coercitiva do direito – à tese sobre a natureza do direito que ele pretende defender em O conceito de sistema jurídico – a tese de que o direito é sistema. Essa anteposição implica que a sistematicidade do direito seria uma característica subsidiária, secundária, dependente em relação às “três características mais gerais e importantes”? Interpreto aquela anteposição não como evidência de que, já em O conceito de sistema jurídico, Raz subordina a tese da natureza sistêmica do direito à tese da normatividade do direito, cuja explicação detalhada ele viria a desenvolver em Razão prática e normas. Antes, interpreto tal anteposição como evidência do esforço do jovem Raz no sentido de aprender com Kelsen e Hart e de mostrar que sua teoria dos sistemas jurídicos não se divorcia da tradição filosófico-jurídica, mas a herda e aperfeiçoa. Essa interpretação respalda-se em que, em O conceito de sistema jurídico, Raz empreende explicações das “três características mais gerais e importantes” à luz da sistematicidade do direito, demonstrando, em última análise, que o caráter normativo, institucionalizado e coercitivo do direito depende de sua sistematicidade. No segundo momento acima mencionado, parece mesmo haver uma confusão no jovem Raz quanto a se a natureza do direito deve ser explicada prioritariamente em termos de sistema ou em termos de norma. Porém, essa interpretação é demasiado ríspida e poderia ser substituída por outra interpretação, que proponho e é favorável à consistência da obra inaugural de Raz. Ao julgar como ideal que “a teoria dos sistemas jurídicos fosse tratada como parte de uma teoria geral das normas”, Raz simplesmente sublinha que a explicação da sistematicidade do direito necessariamente passa pela resolução de problemas que também pertencem à teoria da norma jurídica. Essa interpretação condiz com a observação raziana de que, tomando em conta que “os sistemas jurídicos são sistemas de leis” e que “o significado de uma ‘lei’ é tema por demais polêmico para ser entendido como incontroverso” (RAZ, 2012, p. 60), tornam-se necessárias explicações sobre leis (e normas) a fim de clarificar a natureza sistemática do direito. Para Raz, portanto, uma teoria dos sistemas jurídicos não prescinde de incursões na teorização da norma jurídica, uma vez que problemas daquela teoria só podem ser resolvidos mediante a clarificação de questões sobre a norma jurídica. É correto, pois, compreender O conceito de sistema jurídico como uma obra que orbita em torno da tese central da sistematicidade do direito. À luz dessa tese, seria possível explicar mesmo aquelas características generalíssimas e importantíssimas do direito que tanto Kelsen quanto Hart, apesar de suas diferenças teóricas, frisaram: o direito é, por natureza, normativo (regula o comportamento dos agentes), institucionalizado (é criado e aplicado – é reconhecido

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– por instituições estabelecidas) e coercitivo (muitas vezes, recorre ao uso da força quer para executar medidas administrativas, quer para fazer cumprir normas judiciais). À luz da tese da sistematicidade, ademais, seria possível até abordar e resolver questões sobre a norma jurídica. Nesta seção, objetivo explicitar que Raz, partindo da tese da sistematicidade, delimita o conceito de norma jurídica em relação a conceitos próximos, isto é, desenreda-o de confusões conceituais e estabelece suas fronteiras semânticas. Essa é a principal contribuição que se pode extrair de O conceito de sistema jurídico para a conceituação de norma jurídica.

2.1.

Normas & enunciados normativos Raz começa delimitando o conceito de norma jurídica em relação ao de enunciado

normativo. Em primeiro lugar, Raz segue Kelsen quanto à necessidade de distinguir entre normas e enunciados normativos: “Os enunciados normativos são enunciados que falam sobre leis” (RAZ, 2012, p. 60)3. Raz, segundo, levanta os critérios distintivos de Kelsen: (1) normas jurídicas são prescritivas, ou seja, dizem respeito ao que deve ser, enquanto enunciados normativos são descritivos, ou seja, dizem respeito ao que é; (2) normas jurídicas não são qualificáveis como verdadeiras ou falsas, mas enunciados normativos o são; (3) normas jurídicas são qualificáveis como válidas ou inválidas, ou seja, como vinculantes ou não vinculantes, mas enunciados normativos não o são. Em seguida, Raz ressalta como Kelsen relaciona normas e enunciados normativos: (4) para Kelsen, normas jurídicas são comandos (emitem ordens), permissões (fixam faculdades) ou autorizações (conferem poderes)4, de modo que, como enunciados normativos são descrições de normas jurídicas, eles equivalem a descrições de comandos, permissões ou autorizações juridicamente vinculantes; (5) em Kelsen, os enunciados normativos necessariamente se referem, explícita ou implicitamente, a um sistema normativo vigente em determinado momento; (6) segundo Kelsen, um enunciado normativo equivale à afirmação de que a norma descrita existe, ou seja, é válida. Raz, então, critica Kelsen. Raz rejeita (4). Em vez de (4), Raz defende que enunciados normativos não se circunscrevem a descrições de normas jurídicas, pois há enunciados normativos que não informam o conteúdo de qualquer norma jurídica: por exemplo, “o sistema Como veremos adiante, Raz confere ao termo “lei” um sentido muito mais abrangente que o sentido que reserva ao termo “norma (jurídica)”; e, para Raz, “lei” inclui “norma”, ou seja, “norma” é subespécie de “lei”. 4 Mais adiante, veremos também que, para Raz, normas jurídicas se circunscrevem àquilo que Kelsen chamou de comandos (ou seja, mandados e proibições) e autorizações (ou seja, atribuições de poder). Para Raz, em O conceito de sistema jurídico, permissões não são normas jurídicas. 3

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jurídico brasileiro passou por diversas mudanças radicais no século passado”. Ele também defende que enunciados normativos não se reduzem a descrições de comandos, permissões ou autorizações, já que há enunciados normativos vazios de referência a essas três modalidades normativas: por exemplo, “a constituição brasileira vigente contém uma invocação a Deus”. Dado que Raz rejeita (4), poder-se-ia concluir que Raz também rejeita (6): para ele, nem todo enunciado normativo corresponde à afirmação de que uma norma jurídica existe. No entanto, em vez de rejeitar (6), Raz modifica essa assunção kelseniana: (7) para ele, “um enunciado é normativo (jurídico) se e somente se a existência de uma norma (jurídica) for uma condição necessária para sua verdade” (RAZ, 2012, p. 66). Assim, um enunciado normativo não precisa ter relação direta com uma norma jurídica, como Kelsen supunha, mas precisa ser, pelo menos, indiretamente relacionado a uma norma jurídica. Segue-se de (7) que os enunciados que não informam o conteúdo de qualquer norma jurídica, tampouco contêm expressões ligadas às modalidades normativas (comandos, autorizações), são, inobstante, enunciados normativos se precisam ser relacionados indiretamente a normas jurídicas para terem valor de verdade. No final das contas, Raz concorda com Kelsen quanto aos critérios distintivos entre normas e enunciados normativos: (1), (2) e (3). Além disso, Raz está de acordo com Kelsen quanto à relação kelseniana (5) entre normas e enunciados normativos; e propõe a relação (7) entre normas e enunciados normativos.

2.2.

Normas & imperativos

2.2.1. Raz versus Bentham Depois de confrontar-se com Kelsen para calibrar tanto a distinção quanto a relação entre normas e enunciados normativos, Raz confronta-se com Bentham para discernir entre normas e imperativos. Com isso, Raz objetiva delimitar o conceito de norma jurídica em relação ao de imperativo. Raz modifica, de saída, o conceito benthamiano de lei como “uma proposição que diz que o soberano quer isto ou aquilo” (RAZ, 2012, p. 74). Conforme esse conceito, os dois elementos essenciais de uma lei são um ato que é objeto de um desejo e um desejo cujo objeto é um ato – esse desejo é chamado de “aspecto”. Raz propõe que, em vez de os aspectos serem vistos como volições do legislador, eles sejam vistos como as quatro modalidades normativas admitidas por Bentham, a saber, comando, proibição, não comando e não proibição (ou permissão). Assim, “toda lei contém um dispositivo principal que é ou um comando ou uma proibição (caso em que a lei é obrigadora), ou é um não comando ou uma permissão (caso em que a lei é desobrigadora)” (RAZ, 2012, p. 78).

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Bentham, na leitura de Raz, apenas admite leis obrigadoras, pois reduz as leis desobrigadoras quer a atos revogadores de leis obrigadoras (os quais não chegam a ser leis), quer a dispositivos subsidiários de exceção de leis obrigadoras (os quais são componentes dessas leis). Raz, porém, mantém a possibilidade de leis desobrigadoras, especificamente de leis permissivas independentes das leis obrigadoras. Em última análise, Raz rejeita a identificação benthamiana de leis com imperativos emitidos por um soberano, assim como rejeita a circunscrição benthamiana de leis a obrigações (comandos ou proibições). Por outro lado, Raz, seguindo o rastro de Bentham, assume que (1) uma lei é composta (a) pela especificação de um ato e um agente, (b) por uma modalidade normativa, (c) pela especificação das circunstâncias em que o ato é regulado. Porém, Bentham propugna não só que (1), mas também que (2) uma lei pode ser complexa e conter – além de (a), (b) e (c) – (d) explicações sobre conceitos da lei (cláusulas expositivas), (e) previsões de reparação de danos causados pela inobservância da lei (cláusulas satisfativas), (f) previsões de recompensas para a observância da lei ou de sanções para a inobservância da lei (“cláusulas incitativas”). Raz também segue o rastro de Bentham até aqui? Não, pois Raz julga que as leis, caso fossem compostas também por (d), (e) ou (f), se tornariam demasiado complexas, ou seja, perderiam demasiadamente em simplicidade e clareza.

2.2.2. Raz versus Kelsen de novo Depois desse confronto com Bentham, Raz retoma o confronto com Kelsen, desta vez para sustentar o discernimento entre normas e imperativos. Raz rejeita o imperativismo kelseniano, embutido na visão de que normas jurídicas são criadas por “(1) atos humanos (2) voluntários (3) e realizados com uma intenção especial (4) expressa de maneira convencional no próprio ato” (RAZ, 2012, p. 83). Para Raz, normas jurídicas não podem ser explicadas com base na vontade do legislador de que os sujeitos da norma se comportem de determinado modo, uma vez que, “frequentemente, os legisladores assinam ou votam uma lei sem conhecer seu conteúdo e, portanto, também sem pretender que o sujeito da norma se conduza da maneira prescrita” (RAZ, 2012, p. 84). Mesmo que se interpretasse (3) não como uma intenção de que alguém se comporte desta ou daquela forma, mas como uma intenção de criar norma, o imperativismo kelseniano permanece rejeitável, já que “não consegue explicar a criação do direito pelo costume e tampouco consegue explicar o direito criado por via judicial” (RAZ, 2012, p. 91). É que tanto o direito consuetudinário como os precedentes judiciais surgem mesmo sem o apoio de uma vontade de criar normas.

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Não obstante, Raz aponta que os elementos que compõem uma norma são, em Kelsen, os mesmos que em Bentham. Para ambos, uma norma se compõe de quatro elementos, a saber, “‘caráter da norma’ (isto é, o ‘aspecto’ de Bentham e o ‘dever’ de Kelsen), ‘sujeito da norma’, ‘ato da norma’ e ‘condição executiva’ [isto é, as circunstâncias nas quais o agente ‘deve’ 5 agir da maneira especificada]” (RAZ, 2012, p. 81). Quanto a isso, Raz não diverge de Bentham e Kelsen, mas os reverbera. Além disso, Raz concorda com Kelsen em que uma norma jurídica só pode existir desde que “exista o sistema jurídico ao qual ela pertence” (RAZ 2012, p. 82). Assim, a existência de uma norma jurídica pressupõe a existência de um sistema jurídico, não havendo norma jurídica fora de um sistema jurídico. A validade das normas jurídicas é, portanto, validade sistêmica. Por isso, uma norma jurídica se extingue, deixa de existir, em face do “colapso total do sistema jurídico como um todo” (RAZ, 2012, p. 85). Raz, porém, repele a doutrina kelseniana de que o costume negativo (desuetudo) extingue a validade de uma norma jurídica. Raz sustenta que “a eficácia de uma lei se relaciona com sua validade apenas na medida em que afeta a eficácia do sistema jurídico como um todo” (RAZ, 2012, p. 85), de modo que o costume negativo só surte o efeito de extinguir uma norma jurídica se ele arruinar a eficácia global do sistema jurídico ao qual ela pertence. Ademais, Raz demonstra que o costume negativo não é sequer costume, tampouco pode criar norma jurídica.

2.3.

Normas & estatutos Bentham e Kelsen convergem a que normas não se confundem com estatutos, isto é,

textos oficiais como lei constitucional, códigos parlamentares, regulamentos administrativos, sentenças judiciais – Raz se alia a eles. Com isso, Raz objetiva delimitar o conceito de norma jurídica em relação ao conceito de estatuto (ou material jurídico). Essa delimitação é necessária, primeiro, porque “partes de uma norma podem ter sido criadas por decretos ministeriais, enquanto outras partes da mesma norma podem ter sido criadas por autoridades locais, outras ainda, por juízes e assim por diante” (RAZ, 2012, p. 95). Noutras palavras: uma norma jurídica pode ter suas partes dispersas entre vários estatutos, de maneira que pode ser necessário recorrer a vários estatutos para formar uma norma jurídica completa. Aquela delimitação é necessária, segundo, porque, “ao promulgar uma constituição, elaborar uma lei ou um regulamento etc., o legislador não cria apenas parte de uma norma, mas parte de muitas normas, comumente de um vastíssimo número de normas” (RAZ, 2012, p. 95). Aqui, “deve” é usado metonimicamente para resumir as quatro modalidades normativas: comando, não comando, proibição, permissão. 5

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Assim, um único estatuto pode conter uma pluralidade de normas, ou uma pluralidade de partes de normas. A delimitação é necessária, terceiro, porque “nenhum material jurídico se cria quando uma norma costumeira passa a existir” (RAZ, 2012, p. 98). Isto é: se não se delimita o conceito de norma jurídica em relação ao de estatuto, torna-se inviável explicar o direito consuetudinário. Portanto, em um sistema jurídico, não há uma correspondência biunívoca entre o conjunto dos estatutos vigorantes e o conjunto das normas válidas. Diante disso, cabe à filosofia jurídica uma dupla tarefa. “Primeiro, tem de formular critérios para determinar a identidade do material jurídico oficial”; trata-se de determinar, para cada tipo de estatuto, as partes constitutivas de um estatuto completo. “Em segundo lugar, tem de formular princípios de individuação das leis para determinar qual fração do material contido em todo o sistema basta para constituir uma lei” (RAZ, 2012, p. 97); trata-se de determinar critérios para o conhecimento de uma lei (norma jurídica) completa.

2.4.

Normas & leis Raz, por último, estabelece uma distinção clara entre norma jurídica e lei: “o termo ‘lei’

será usado para designar as unidades básicas em que o sistema jurídico está dividido, e o termo ‘norma jurídica’ será usado para designar uma lei que dirige a conduta dos seres humanos na medida em que impõe deveres ou confere poderes” (RAZ, 2012, p. 101). Para Raz, nem toda lei é uma norma, ou seja, há leis que não impõem deveres, sequer conferem poderes; mas toda norma é uma lei, ou seja, uma unidade básica de um sistema jurídico. A distinção raziana entre lei e norma jurídica é uma distinção entre um gênero e uma espécie (portanto, uma distinção no interior de um gênero): as normas jurídicas formam uma espécie do gênero das leis. O que distingue as normas jurídicas das demais espécies de lei é a característica especial de dirigir a conduta humana. Para Raz, apenas leis que impõem deveres (comandos ou proibições) e leis que conferem poderes dirigem a conduta humana. Permissões não são normas jurídicas, mas uma espécie diferente de lei. Em última análise, as leis podem ser divididas entre leis que são normas jurídicas e leis que não são normas jurídicas. É necessário ressaltar que “a natureza de cada espécie de lei só pode ser compreendida quando se entendem as relações internas entre cada espécie e as demais leis” (RAZ, 2012, p. 162). Desse modo, a distinção entre espécies de lei se baseia em critérios intrassistêmicos, não em critérios extrassistêmicos: é do ponto de vista da “estrutura comum a todos os sistemas jurídicos” – é do ponto de vista dos “padrões de relação [interna] entre as leis que pertencem ao mesmo sistema, padrões que estão presentes em todos os sistemas jurídicos” (RAZ, 2012, p. 2) – que Raz distingue entre espécies de lei.

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Raz, pois, se desgarra da redução benthamiana de todas as leis a normas prescritivas, centradas em comandos ou proibições. Ele também se desgarra da redução kelseniana de todas as leis a normas explicitamente permissivas e implicitamente prescritivas – para Kelsen, toda lei é uma norma que, primeiro, autoriza diretamente um órgão aplicador a aplicar uma sanção sobre um sujeito da norma que cometeu um ilícito; e que, segundo, obriga os sujeitos da norma a se absterem de cometer ilícitos. Segundo Raz, os sistemas jurídicos contêm leis que não se deixam reduzir às normas benthamianas, muito menos às normas kelsenianas.

2.4.1. Normas razianas a.

Normas como padrões de avaliação e regulação da conduta humana Raz retém as duas primeiras das “quatro ideais principais [que] contribuem para o

conceito de norma imperativa em Kelsen: as normas são (1) padrões de avaliação (2) que regulam a conduta humana, (3) amparadas por razões convencionais de obediência, sob a forma da perspectiva de que algum dano decorra da desobediência, e (4) criadas por atos humanos que pretendem criar normas” (RAZ, 2012, p. 163). Raz rejeita (4) porque há normas que são criadas por atos humanos aos quais não se pode ligar a intenção de criar normas e os quais, portanto, criam normas não intencionalmente: normas consuetudinárias e normas judiciais gerais (precedentes). Além disso, Raz rejeita (3) porque, embora concorde com Kelsen em que “os guias para a conduta só existem se forem acompanhados de alguma razão convencional para que sejam seguidos” (RAZ, 2012, p. 167), discorda da tese kelseniana de que as razões convencionais das quais o direito se utiliza são desvantagens aplicadas contra quem quebra o direito. Assim, para Raz, as razões convencionais que amparam as normas jurídicas não são sanções (não são os desejos de evitar sanções). Por outro lado, para Raz, toda norma jurídica afeta a conduta humana de dois modos: (1) possibilita que a conduta seja julgada como legal ou ilegal, lícita ou ilícita; (2) é um guia para a conduta, “uma razão para que as pessoas cuja conduta é avaliada por aquele padrão decidam executar um ato que tenha determinado valor [legal], e não outro [ilegal]” (RAZ, 2012, p. 166).

b.

Normas como entidades abstratas e sistematizadas Tanto quanto normas, ordens também podem ser vistas como padrões para avaliar e

regular a conduta humana: primeiro, a conduta de alguém pode ser julgada como conforme ou desconforme com uma ordem dada; segundo, uma ordem é dada a fim de que seu destinatário se conduza conforme ordenado. Entretanto, normas se diferenciam de ordens de dois modos.

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A primeira diferença das normas em relação às ordens consiste no “fato de haver tantas ocasiões para fazer referência às leis sem levar em conta as circunstâncias de sua criação”, ao passo que “é característica das ordens que sejam normalmente discutidas mediante referência ao contexto real em que são dadas” (RAZ, 2012, p. 171). Normalmente, para que uma lei se imponha como lei, é totalmente desnecessário que se saiba quem a criou, quando, sob quais pressões circunstanciais. Para que uma ordem se imponha como ordem, porém, é necessário possuir essas informações. A segunda diferença consiste no fato de que “toda norma jurídica pertence a um grupo de normas jurídicas interligadas de determinadas maneiras, ao passo que as ordens nem sempre pertencem a tais grupos” (RAZ, 2012, p. 172). Se normas jurídicas isoladas, desentranhadas de um sistema jurídico, são inconcebíveis, ordens podem existir isoladamente. Portanto, normas jurídicas são padrões avaliadores e reguladores da conduta humana que se caracterizam por sua abstração contextual e seu entrelaçamento sistemático (essas duas últimas características são compartilhadas por todas as espécies de lei).

c.

Normas como leis positivas Para Raz, todas as normas (e isso vale também para as demais espécies de lei) são leis

positivas, não havendo normas não positivadas. Todas as normas de um sistema jurídico são normas reconhecidas por instituições judiciais e emanadas de fontes sociais (da legislação, do costume ou dos precedentes judiciais). Raz rejeita, por isso, as normas fundamentais kelsenianas: “Não é necessário pressupor qualquer norma fundamental, ou seja, qualquer lei não positiva” (RAZ, 2012, p. 187). A total desnecessidade do recurso teórico a normas fundamentais demonstra-se, segundo Raz, em que a aparente necessidade delas só é cogitável: (1) para o fim de explicar a validade jurídica da constituição originária (primeira constituição histórica) de um sistema jurídico; e (2) contanto que se suponha, com Kelsen, que os poderes para a criação de uma lei só podem ser conferidos por outra norma. Raz crê que a suposição de (2) é equivocada: ele defende que os criadores da constituição originária podem ter poderes legislativos não previamente autorizados por uma norma jurídica pré-existente. Para ele, “a constituição originária faz parte do direito porque pertence a um sistema jurídico eficaz (fato que só pode ser determinado algum tempo depois de a primeira constituição ser promulgada)” (RAZ, 2012, p. 185). Assim, Raz reafirma que a validade de normas jurídicas é eminentemente validade sistêmica. Entretanto, mesmo concedendo que a suposição de (2) seja admissível, a necessidade aparente das normas fundamentais não se sustenta porque a validade jurídica da constituição

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originária é explicável por uma de duas saídas rigorosamente positivistas: ou (a) “os poderes dos autores da constituição originária podem ser conferidos por uma lei ordinária do sistema” (por exemplo, uma lei ordinária da metrópole pode autorizar a criação da primeira constituição independente de uma colônia); ou, caso não haja lei ordinária do sistema que confira poderes legislativos para a criação da constituição originária, (b) a constituição originária “pode autorizar indiretamente sua própria criação”, pois nada impede que haja “leis que confiram poderes legislativos com efeito retroativo” e, ao mesmo tempo, sejam “parcialmente autorreferentes” (RAZ, 2012, p. 185).

d.

Normas que impõem deveres & normas que conferem poderes Raz defende que “o direito é universalmente considerado um método social especial de

regular a conduta humana, orientando-a de diversas maneiras e em diversas direções. Essa função do direito, que também é a principal razão para que ele seja compreendido e para que se lance mão dele, deve ser elucidada em sua análise teórica” (RAZ, 2012, p. 193). Tal função primordial do direito é levada a cabo mediante normas que impõem deveres (leis D) e normas que conferem poderes (leis P). Leis D e leis P são o conteúdo nuclear de um sistema jurídico, de modo que todas as demais leis de um sistema jurídico mantêm relações internas com elas, dependendo intrinsecamente delas, só sendo explicáveis com referência a elas. Leis D se caracterizam pelo fato de que a violação delas é acompanhada por reações críticas, as quais, muitas vezes (mas nem sempre), se traduzem, dentro dos sistemas jurídicos, em leis que estabelecem sanções (leis S). Como sanções jurídicas são aplicadas por órgãos aplicadores, “a qualidade de uma lei enquanto lei D depende das reações críticas dos tribunais e de outros órgãos aplicadores da lei” (RAZ, 2012, p. 204). Para Raz, “nem toda lei D tem uma lei S correspondente” (RAZ, 2012, p. 207), mas “a existência de toda lei D cujos sujeitos não sejam autoridades do estado depende da existência de uma lei S correspondente” (RAZ, 2012, p. 208); assim, toda lei D desse tipo mantém uma relação punitiva interna com uma lei S. Apenas as leis que impõem deveres sobre autoridades estatais independem de leis S, embora possam ser acompanhadas por leis S eventualmente; inobstante, tais leis podem relacionar-se com leis que fornecem remédios (anulação e indenização) contra a violação de um dever por uma autoridade estatal. Leis P, por seu turno, são “normas que orientam a conduta sem prescrevê-la” (RAZ, 2012, p. 209). Leis P guiam a conduta humana porque desempenham a função normativa de “prover aos indivíduos os meios para a realização de seus desejos” (RAZ, 2012, p. 211).

13

A forma geral das normas que conferem poderes pode ser descrita assim: “ao praticar A1 na circunstância C1, o agente tem um poder O sobre P [um estado de coisas desejável ou indesejável para o agente] (ou para alcançar P)” (RAZ, 2012, p. 212). Tendo em conta a forma geral, pode-se dizer que a existência de uma lei P, às vezes, “é uma razão para a prática do ato da norma [A1] e, às vezes, é uma razão para não o praticar, pois suas consequências prováveis [P] são, às vezes, favoráveis e, às vezes, desfavoráveis” (RAZ, 2012, p. 215). Leis P podem manter dois tipos de relações internas com leis D, uma vez que todo sistema jurídico contém: (1) leis PR, leis que conferem poderes reguladores sobre leis D; (2) leis PL, leis que conferem poderes legislativos sobre leis D. Leis PR regulam “a aplicação de determinados deveres [estabelecidos por leis D] mediante casos particulares de situações de ato determinadas”, isto é, mediante a definição da “identidade das pessoas que a norma prescritiva obriga a conduzir-se de determinada maneira, bem como [das] circunstâncias nas quais elas são obrigadas a agir assim” (RAZ, 2012, p. 216). Leis PL, por sua vez, baseiam a criação de leis D novas, ainda não existentes quando as leis PL são criadas. “As leis promulgadas pelo exercício dos poderes legislativos conferidos por uma lei PL guardam uma relação interna com essa lei, a qual será denominada ‘relação genética’” (RAZ, 2012, p. 218).

2.4.2. Leis razianas Raz repele a assunção, comum a Bentham, Kelsen e Hart, de que toda lei é uma norma. Há duas considerações que conduzem Raz a propugnar que há, em todo sistema jurídico, leis que não são normas, a saber: (1) o conteúdo mínimo e a complexidade mínima de todo sistema jurídico; (2) os critérios metodológicos que requerem que as leis sejam individuadas de tal forma que (a) repetições sejam evitadas, (b) a proximidade do discurso teórico com o discurso cotidiano seja mantida, salvo por boa razão, (c) a simplicidade e a clareza sejam priorizadas. Como Raz não aprofunda a consideração (1), é, em última análise, para satisfazer os critérios metodológicos (a), (b) e (c) que Raz chega a propugnar a existência de leis não normativas. Tais leis existem porque, se não existissem, seria irremediável a inconveniência metodológica de leis demasiado repetitivas (com partes idênticas), demasiado complexas (com um grande número de partes), demasiado obscuras (de difícil referência e de difícil compreensão) e demasiado distantes do discurso cotidiano (no qual as leis não aparecem com excessos de repetitividade, complexidade e obscuridade). Portanto, é eminentemente por conveniência metodológica que Raz admite leis que não impõem deveres, sequer conferem poderes. Entretanto, Raz observa que leis que não são normas mantêm relações internas com as normas jurídicas (com as leis D e as leis P, portanto): “Todas as leis de um sistema jurídico que

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não são normas [...] afetam a existência ou a aplicação de normas jurídicas. Além disso, sua única pertinência legal é o modo pelo qual afetam a existência ou a aplicação de normas jurídicas” (RAZ, 2012, p. 226). Dois exemplos de leis não normativas são enfatizados por Raz: leis que concedem permissões (leis M) e leis que instituem direitos. Quanto às leis M, Raz distingue, primeiro, entre permissões fracas e permissões fortes: uma permissão fraca (de um ato) é só o resultado da ausência de regulação jurídica (de tal ato); uma permissão forte (de um ato), porém, não se reduz a um vazio normativo, mas emana de uma lei que concede permissão (para a realização de tal ato). Assim, leis M são permissões fortes. Além disso, Raz esclarece que, se uma lei M contradiz parcialmente uma lei D, a lei M é uma exceção da lei D. Ele vai ainda mais longe e propugna que toda lei M é uma exceção a uma pluralidade de leis D: “uma das razões que poderíamos ter para postular a existência de uma lei M é que a permissão seja uma exceção a cada uma da leis que faça parte de um grupo de leis D; e que revele uma característica comum importante a todas elas, mostrando, assim, uma ligação importante entre as leis” (RAZ, 2012, p. 231). Não obstante, Raz observa que há leis que permitem – e não prescrevem – a aplicação de sanções (leis MS); e que “a razão para postular leis MS não é o fato de elas destacarem uma característica comum a muitas leis, mas o fato de esclarecerem a relação entre as leis D e as leis S, elucidação essa que tem a maior importância no entendimento do direito” (RAZ, 2012, p. 232). Em qualquer desses dois casos, uma lei M é invariavelmente uma lei não normativa que tem relação interna com uma lei D. Quanto às leis que instituem direitos, Raz aponta três tipos de tais leis, a saber, leis de investidura, leis de destituição e leis constitutivas: “As leis de investidura especificam as formas pelas quais os direitos podem ser adquiridos. As leis de destituição determinam as formas pelas quais os direitos podem deixar de existir. As leis constitutivas especificam as consequências de ser um detentor de direitos” (RAZ, 2012, p. 235). Em termos claros, leis constitutivas fixam que, se uma pessoa tem um direito, se, além disso, determinadas condições ocorrem, então tal pessoa passa a ter outro direito, ou um dever, ou um poder. Raz defende que “uma definição [teórica] jurídica de um direito tem por meta destacar as características mais importantes [do conteúdo e da estrutura] dos vários tipos de leis que instituem o direito”. Assim, uma vez que a explicação justeórica de um direito é a explicação das leis que o instituem, “uma teoria geral da estrutura dos sistemas jurídicos é um pré-requisito para uma análise adequada dos direitos” (RAZ, 2012, p. 237).

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3.

NORMAS, RAZÕES DE PRIMEIRA ORDEM, RAZÕES DE SEGUNDA ORDEM, RAZÕES EXCLUDENTES Demonstrou-se na seção anterior que, em O conceito de sistema jurídico, Raz oferece

uma contribuição significativa à conceptualização de norma jurídica: contribuição que reside em delimitar o conceito de norma jurídica em relação a outros conceitos vizinhos. Também se demonstrou na seção anterior que tal contribuição é rigorosamente feita com base na tese da natureza sistemática do direito. A partir de agora, incumbe perscrutar a contribuição raziana à conceptualização de norma jurídica que se encontra em Razão prática e normas – com o fim de demonstrar que a nova contribuição não é feita sobre a base da tese da sistematicidade do direito, mas sobre a base da tese da tese da racionalidade da normatividade. Além disso, o fim é demonstrar que Raz tenta reconciliar essas duas teses, mas não é bem-sucedido. O conceito de razão excludente é o conceito principal de Razão prática e normas, tanto que permeia abundantemente tal obra. De fato, ali, razões excludentes são indispensáveis para distinguir entre “regras e razões que não são regras (p. 51) e entre decisões e intenções (p. 66); e são características distintivas de normas mandatórias (p. 74), prescrições (p. 82), ordens (p. 84), permissões ‘fortes’ (p. 89), super-rogação (p. 91), normas ‘que conferem poderes’ (p. 101), regras de jogos (p. 122), papéis (p. 196), regras jurídicas (p. 144) e sistemas jurídicos (p. 139, 145)” – esse é o levantamento de Edmundson (1993, p. 331) dos usos razianos do conceito de razão excludente em Razão prática e normas. Edmundson, além disso, propõe que Raz poderia ter usado o conceito de razão excludente para explicar a autoridade, os precedentes judiciais, os direitos e os deveres jurídicos e morais e o próprio dever ser moral. Trata-se, assim, de um conceito extremamente abrangente, que perpassa diversos conceitos práticos. Como, pois, Raz usa esse novo conceito em proveito da teoria do direito? Qual é a conexão que Raz coze entre razões excludentes e direito? Para chegar ao ponto em que estabelece a conexão entre razões excludentes e direito, Raz tem de retroceder para aquém da teoria do direito, isto é, tem de retroceder para a filosofia prática formal, a qual ele concebe como análise conceitual do agir racional, como dissecação lógica do teor conceitual da ação valorativa, conforme com razões e responsável. Desse ponto de vista, a filosofia do direito “não é senão a filosofia prática aplicada a uma instituição social” (RAZ, 2002, p. 149), ou seja, aplicada aos valores característicos do direito, às razões providas pelo direito e à responsabilização jurídica. Entretanto, não é com todos os três ramos da filosofia prática formal (a teoria do valor, a teoria da norma e a teoria da imputação) que Raz se ocupa a fim de montar uma filosofia do direito, mas só com um deles: a teoria normativa, cujos conceitos mais importantes são “dever

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ser, razões para a ação, regras, deveres e direitos” (RAZ, 2002, p. 11), entre os quais o conceito basilar é o de razão para a ação. É certo que a teoria normativa não é dissociada dos dois outros ramos da filosofia prática formal: de um lado, sendo seu principal problema determinar “quem deve realizar quais valores e como” (RAZ, 2002, p. 11), ela pressupõe a teoria do valor; e, de outro lado, ela suscita uma teoria da imputação que examine “as consequências normativas do fracasso em conformar-se com os requerimentos da teoria normativa” (RAZ, 2002, p. 12). Não obstante, Raz seleciona a teoria normativa como o ramo dentro do qual uma teoria do direito pode ser elaborada, provavelmente porque, segundo Raz, a questão de algo ser ou não ser um valor é uma questão de moral, e não uma questão de lógica, mas são questões de lógica “que valores são razões; e que uma razão é uma razão ainda que tenha menos peso que outras razões conflitantes” (RAZ, 2002, p. 25). Em Razão prática e normas, Raz está interessado só em uma teoria lógica do direito.

3.1.

Razões de primeira ordem & razões de segunda ordem A teoria normativa orbita em torno do conceito de razão para a ação. Conforme Raz,

razões para a ação desempenham as funções de guiar e avaliar o comportamento das pessoas. Elas “têm uma dimensão de força. Algumas são mais fortes ou mais pesadas que outras. Em casos de conflito, a razão mais forte supera a mais fraca” (RAZ, 2002, p. 25). É necessário distinguir entre duas forças que uma razão para a ação tem: a força lógica, que depende de sobre quais outras razões ela tem precedência; e a força fenomenológica, que equivale ao grau em que o pensamento de uma razão preocupa uma pessoa. A teoria normativa interessa-se só pela força lógica. É tendo em vista os conflitos entre razões para a ação que Raz introduz seu argumento crucial: “Meu argumento [...] é que devemos distinguir entre razões de primeira ordem para a ação e razões de segunda ordem; e que conflitos entre razões de primeira ordem são resolvidos pela força relativa das razões conflitantes, mas que isso não é verdadeiro quanto aos conflitos entre razões de primeira e razões de segunda ordem” (RAZ, 2002, p. 36). Para Raz, nem todos os conflitos entre razões para a ação são solúveis com base no princípio de que o que alguém deve fazer é o que prevalece no balanceamento de todas as razões relevantes. É que há razões para não agir com base no mérito do caso: razões para desconsiderar outras razões para a ação. Por exemplo, uma “ordem é uma razão para fazer o que você foi ordenado independentemente do balanceamento de razões” (RAZ, 2002, p. 38). A única diferença entre razões de primeira e razões de segunda ordem é, pois, quanto a seu efeito em conflitos de razões.

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Uma razão de segunda ordem é “qualquer razão para agir por uma razão, ou para deixar de agir por uma razão” (RAZ, 2002, p. 39). Uma razão excludente é uma razão de segunda ordem para deixar de agir por um conjunto de razões de primeira ordem – é necessário notar que uma pessoa deixa de agir por uma razão se ela não realiza a ação baseada nessa razão, ou se a realiza, mas não pela mesma razão. Razões excludentes sempre prevalecem quando em conflito com razões de primeira ordem simplesmente em virtude de serem de ordem superior: “Uma razão excludente pode excluir uma razão que teria sido superada de qualquer maneira [no balanceamento entre razões de primeira ordem], mas ela também pode excluir uma razão que teria inclinado a balança de razões” (RAZ, 2002, p. 41). No entanto, o conflito entre uma razão excludente e uma razão de primeira ordem não é um conflito estrito: a razão excludente não é uma razão para deixar de realizar a ação respaldada pela razão de primeira ordem; antes, a razão excludente é uma razão para deixar de realizar a ação com base na razão de primeira ordem excluída, não vetando que a ação seja realizada com base em uma razão de primeira ordem não excluída, ou seja, não pertencente ao escopo da razão excludente. Uma conduta pode ser guiada e avaliada, ao mesmo tempo, por razões de ordens diferentes: em todo caso, a orientação e o julgamento que logicamente prevalecem são a orientação e o julgamento à luz da razão de ordem superior. É certo que uma razão excludente pode conflitar com e ser superada por outra razão de segunda ordem, mas os conflitos de uma razão excludente com as razões por ela excluídas não têm outro desfecho além da sobreposição da razão excludente e da desconsideração das razões excluídas. Em última análise, Raz recorre à existência de razões de segunda ordem porque: (1) há vários casos nos quais algumas razões são vistas como razões para abster-se de agir com base em outras razões, isto é, com base no mérito da questão – por exemplo, quando o agente tem uma incapacidade temporária de formar um julgamento balanceado, ou quando está submetido a uma autoridade; (2) não é possível distinguir tais razões para a desconsideração de outras razões das razões desconsideradas mediante a atribuição de diferentes tipos de força a elas – existe só um tipo de força; (3) é, então, necessário conceber as razões para a desconsideração de outras razões como pertencentes a um nível diferente do nível das razões desconsideradas; (4) essa diferença de níveis reflete uma diferença fundamental na resolução de conflitos entre razões para a desconsideração de outras razões, por um lado, e razões desconsideradas, por outro – trata-se de que esses conflitos não são resolvidos mediante balanceamento, mediante avaliação das forças relativas, mas mediante o critério de que as últimas sempre se subordinam às primeiras.

18

3.2.

Normas & razões excludentes Raz, então, defende que regras são razões para a ação. Uma vez que passam a ser vistas

como razões para ação, “o principal problema da compreensão de regras é entender que sorte de razões elas são e como elas diferem de outras razões” (RAZ, 2002, p. 51). Para Raz, normas não podem ser distinguidas de outros tipos de razões com base no caráter dos sujeitos da norma, sequer com base no caráter do ato da norma, pois qualquer pessoa e qualquer ação podem ser reguladas por normas e podem ser guiadas e avaliadas por razões. Normas também não se distinguem de outros tipos de razões com base na força, pois normas podem tanto ter elevado peso quanto ter diminuto peso. Normas tampouco podem ser distinguidas de outros tipos de razões com base em seu modo de origem. Em primeiro lugar, elas não podem ser explicadas como imperativos que seriam estabelecidos por um indivíduo ou um grupo de indivíduos com a intenção de guiar o comportamento humano – é que normas costumeiras não podem ser explicadas como imperativos. Em segundo lugar, normas foram explicadas por Hart como práticas, mas Raz acredita que a concepção de normas que subjaz às diversas teorias práticas é equivocada. Conforme Raz, a teoria prática tem três defeitos fatais, a saber: (1) não explica normas que não são práticas – normas morais não precisam ser praticadas para existirem, e uma prática como tal não é necessariamente uma razão para a ação, mas normas são razões para a ação; (2) não distingue entre normas sociais e razões amplamente aceitas; (3) priva as normas de seu caráter normativo. Assim, Raz propugna que uma teoria alternativa substitua a teoria prática. Ele oferece, pois, um modelo teórico segundo o qual normas se distinguem dos demais tipos de razão para a ação por serem não só uma razão de primeira ordem para realizar a ação da norma, mas também uma razão excludente para não agir por certas razões conflitantes. De acordo com esse modelo, seguir uma norma envolve: (1) crer que a norma é uma razão válida para realizar o ato da norma; (2) crer que a norma é uma razão válida para desconsiderar outras razões; (3) agir com base nessas crenças. Raz observa que normas não são razões últimas e, assim, carecem de justificação. Ele sustenta que elas não são arbitrárias, mas se justificam instrumentalmente por servirem quer como dispositivos de economia de tempo e trabalho; quer como dispositivos de eliminação de erros; quer como emanando de autoridades socialmente erigidas que detêm sabedoria prática ou asseguram a coordenação social. Nesse sentido, Raz sustenta também que normas só podem preencher seu propósito se constituírem razões para a ação protegidas por razões excludentes. Além disso, Raz defende que normas se justificam intrinsecamente, isto é, não só por servirem a determinados objetivos sociais: “Como uma norma é o resultado [do balanceamento] das

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exigências de vários valores [últimos] conflitantes, ela não carrega sua desejabilidade em sua face. Ela simplesmente enuncia o que é requerido, de quem e quando, mas ela nem sempre o faz de um modo que torna óbvias as razões das exigências” (RAZ, 2002, p. 76). Para ele, “ter uma regra é como ter decidido de antemão o que fazer” (RAZ, 2002, p. 73). Assim, “a prova conclusiva de que uma regra é vista como uma regra, isto é, como uma razão excludente” é que a seguinte reação das pessoas é bastante comum: “Frequentemente sentimos que a regra deveria ter sido seguida, mesmo que se tenha sabido antecipadamente e provado depois do evento que se desviar da regra teria sido benéfico; e mesmo que esteja estabelecido que se desviar da regra não teria minado as chances de que ela fosse seguida noutras ocasiões” (RAZ, 2002, p. 75). Raz tem, entretanto, o cuidado de notar que nem toda razão excludente é uma norma, de modo que é necessário estabelecer o critério que, uma vez satisfeito, faz de uma razão excludente uma norma. Normas não se diferenciam de outras razões excludentes com base em seu papel no raciocínio prático, o qual é o mesmo para normas e outras razões excludentes. A diferença é, segundo Raz, ontológica. Normas são entidades porque é possível fazer referência a seu conteúdo independentemente das circunstâncias das quais depende sua existência: “Portanto, falamos de normas quando temos e esperamos ter ocasião de nos referirmos ao conteúdo da norma, regra ou ordem, deixando de lado as circunstâncias particulares que dão origem à norma: o ato de dar uma ordem, o fato de que a norma é praticada ou as circunstâncias que a justificam” (RAZ, 2002, p. 78). Por conseguinte, uma razão excludente é uma norma se pode ser referida abstratamente, com a omissão de sua origem, sua eficácia e sua justificação. Assim, normas são razões excludentes relativamente independentes das fontes de que provêm, de seu sucesso prático (isto é, do fato de serem massivamente vistas como razões excludentes e como razões de primeira ordem) e das razões que as justificam. Em Razão prática e normas, Raz defende que há: tanto (1) normas mandatórias, isto é, normas que comandam ou proíbem que alguém faça algo sob certas circunstâncias; quanto (2) normas não mandatórias, isto é, normas permissivas e normas que conferem poderes. Normas mandatórias consistem de uma razão de primeira ordem (para que certos sujeitos realizem ou deixem de realizar certa ação sob certas circunstâncias) protegida por uma razão de segunda ordem (para que os sujeitos não ajam por razões de primeira ordem concorrentes). Por sua vez, normas não mandatórias também são a união entre uma razão de primeira ordem e uma razão excludente – com as peculiaridades apontadas a seguir. Uma norma permissiva é uma permissão para desconsiderar (não agir de acordo com) um conjunto de razões conflitantes (mesmo que elas sejam conclusivas) com uma razão de

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primeira ordem. Uma norma permissiva, portanto, é uma permissão excludente – é necessário notar que uma permissão excludente não é uma razão para desconsiderar outras razões, mas só uma permissão para o fazer. Porém, nem toda permissão excludente é uma norma permissiva. Apenas as permissões excludentes que podem ser abstraídas de sua origem, seu sucesso prático e sua justificação é que são normas permissivas: “O fato de que frequentemente temos ocasião de nos referirmos ao conteúdo de permissões excludentes abstraído das circunstâncias que estabelecem a permissão cria uma necessidade de referir-se a normas permissivas como entidades abstratas” (RAZ, 2002, p. 95). Uma norma que confere poderes é uma norma que “estipula que a realização do ato da norma pelo sujeito da norma tem certas consequências normativas” (RAZ, 2002, p. 104) – ela não precisa ou mesmo não consegue especificar detalhadamente a natureza das consequências normativas. Os poderes conferidos por uma norma que confere poderes podem ser: (1) poderes para criar normas – poderes para criar ou revogar normas; (2) poderes reguladores – poderes para alterar a aplicação de normas. Raz sublinha que “normas que conferem poderes assemelham-se a normas permissivas e diferem de normas mandatórias porque têm uma força normativa, sem serem, elas mesmas, razões completas para a ação” (RAZ, 2002, p. 106). Isto é, normas que conferem poderes equivalem somente a parcelas de uma justificação completa do exercício dos poderes que elas conferem: esses poderes não devem ser exercidos pelo simples fato de existirem as normas que os conferem, mas só são exercidos quando, às normas que os conferem, se somam os desejos (de alcançar certos objetivos) dos sujeitos da norma.

3.3.

Normas & sistemas normativos Para Raz, em Razão prática e normas, sistemas normativos são agregados de normas

que só são relevantes se fazem alguma diferença normativa, ou seja, alguma diferença para o agir com base em normas: “Do ponto de vista da teoria normativa, grupos de regras são de interesse somente se o fato de que as regras formam um grupo é normativamente relevante, se isso tem consequências normativas” (RAZ, 2002, p. 107). Segundo ele, há quatro tipos de sistemas normativos de significância normativa: (1) sistemas de normas interligadas; (2) sistemas de validade compartilhada; (3) sistemas autônomos; (4) sistemas institucionalizados. Sistemas de normas interligadas emergem do fato de que normas podem manter relações internas entre si – é necessário esclarecer que “uma norma está internamente relacionada a outra se a existência de uma é parte de uma condição suficiente para a existência da outra, ou se o conteúdo de uma só pode ser completamente explicado mediante referência à outra” (RAZ,

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2002, p. 112). Tomando em conta esse fato, “sistemas de normas interligadas podem ser definidos como qualquer conjunto de normas no qual a relação de ‘ser internamente relacionado a’ está presente. Nem todo sistema normativo, contudo, é um sistema desse tipo” (RAZ, 2002, p. 113). Um sistema jurídico não se reduz a um sistema de normas interligadas, mas contém vários sistemas de normas interligadas, ou seja, é um conjunto de vários agregados de normas jurídicas internamente relacionadas umas às outras. Sistemas de validade compartilhada, por sua vez, emergem do fato de que, algumas vezes, “diferentes normas dependem de uma justificação comum de um modo que torna a conformidade com uma delas totalmente sem sentido e sem valor a não ser que se conforme com todas elas”. Esse fato se verifica, por exemplo, com relação a jogos e à etiqueta de festas formais. Levando em consideração esse fato, sistemas normativos de validade compartilhada “consistem de normas cada uma das quais é válida para uma pessoa somente se ela segue todas as outras, ou certas normas designadas dentre as outras” (RAZ, 2002, p. 114). Sistemas jurídicos não são sistemas de validade compartilhada porque a conformidade com uma norma jurídica qualquer não requer a conformidade com todas as demais normas jurídicas do mesmo sistema. Sistemas autônomos, o terceiro tipo de sistema normativo, emergem do fato de que há regras que “são constitutivas da razão de sua própria validade”, de modo que as razões para as seguir “não podem ser explicadas independentemente das próprias regras” (RAZ, 2002, p. 114). Noutras palavras, há regras que são justificadas por valores que só se estabelecem e só podem ser realizados se as regras forem seguidas. Nesse sentido, “jogos são únicos porque são sistemas normativos autônomos” e são sistemas normativos autônomos porque: (1) “consistem de regras e valores interdependentes”; (2) “seus valores [ganhar e perder] são valores artificiais”, valores que não se enraízam nas preocupações mais abrangentes da vida humana (RAZ, 2002, p. 123). Sistemas jurídicos não são sistemas autônomos porque as normas jurídicas dizem respeito a valores centrais da vida humana. Sistemas institucionalizados, o quarto tipo de sistema normativo, emergem do fato de que há normas que são criadas e aplicadas por instituições: sistemas institucionalizados se caracterizam por apresentarem “um tipo especial de instituições, aquelas que não somente são estabelecidas por normas, mas cuja função é criar e aplicar normas” (RAZ, 2002, p. 123). Os principais sistemas institucionalizados são, segundo Raz, os sistemas jurídicos: um sistema jurídico existe “se e somente se os sujeitos das leis geralmente se conformam a ele, e os funcionários estabelecidos pelas leis do sistema as endossam e seguem. O mesmo teste se aplica a outros sistemas normativos institucionalizados” (RAZ, 2002, p. 126). Raz defende, ademais, que “todas as normas de sistemas jurídicos e sistemas institucionalizados semelhantes têm

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relações internas com aquelas normas que estabelecem ou instituições criadoras de normas ou instituições aplicadoras de normas” (RAZ, 2002, p. 126). Na visão de Raz, sistemas institucionalizados são “sistemas coordenados de orientação e avaliação. Eles contêm normas que guiam o comportamento e instituições para avaliar e julgar o comportamento. A avaliação é baseada nas mesmas normas que guiam o comportamento”. Essa identidade entre as normas que os sujeitos devem seguir e as normas que as instituições devem aplicar é possível porque o próprio critério de pertencimento de uma norma ao sistema é “que ela seja uma norma que os órgãos primários devem aplicar quando julgam e avaliam o comportamento” (RAZ, 2002, p. 139). Por conseguinte, um sistema jurídico é formado apenas por aquelas normas que os tribunais estão vinculados a seguir, independentemente de sua apreciação balanceada do mérito delas: “Uma regra que as cortes têm completa liberdade para desconsiderar ou modificar não é vinculante sobre elas e não é parte do sistema jurídico” (RAZ, 2002, p. 140). Além disso, Raz enfatiza que um sistema institucionalizado desse tipo – no qual as instituições aplicadoras não detêm completa discricionariedade, mas devem aplicar as normas pré-existentes – são sistemas excludentes. Eles excluem todas as normas não pertencentes ao sistema: não só (1) da orientação do comportamento dos sujeitos das normas; mas também (2) da avaliação do comportamento deles por parte das instituições aplicadoras.

3.4.

Normas jurídicas & sistemas jurídicos Com base nas elaborações teórico-normativas acima sublinhadas, Raz identifica três

tipos diferentes de regras jurídicas: (1) regras jurídicas mandatórias – são “uma razão para a realização (ou a omissão) de uma ação e também uma razão excludente para não agir por razões conflitantes que não sejam ou normas jurídicas, ou razões juridicamente reconhecidas”; (2) regras jurídicas permissivas – são “uma permissão para realizar o ato da norma e uma permissão de segunda ordem para não agir por razões para não realizar o ato da norma que não sejam ou normas jurídicas, ou razões juridicamente reconhecidas”; (3) regras jurídicas que conferem poderes – são internamente relacionadas a normas jurídicas mandatórias ou permissivas (RAZ, 2002, p. 144). Além disso, Raz defende que, de suas elaborações teórico-normativas, segue-se que os sistemas jurídicos são sistemas normativos únicos. Primeiro, porque são compreensivos: “reclamam autoridade para regular qualquer tipo de comportamento” (RAZ, 2002, p. 150). Segundo, porque são supremos: “todo sistema jurídico reclama autoridade para regular o estabelecimento e a aplicação de outros sistemas institucionalizados por sua comunidade de

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sujeitos”; “reclama autoridade para proibir, permitir ou impor condições sobre a instituição e a operação de todas as organizações normativas às quais membros de sua comunidade de sujeitos pertencem” (RAZ, 2002, p. 151). Terceiro, porque são abertos: todo sistema jurídico “contém normas cujo propósito é dar força vinculante dentro do sistema a normas que não pertencem a ele” – por exemplo, contratos, costumes, normas de outros sistemas jurídicos (RAZ, 2002, p. 152). Tendo em conta essas características dos sistemas jurídicos, Raz conclui que “o direito provê a estrutura geral dentro da qual a vida social ocorre” e “estabelece a si mesmo como o guardião supremo da sociedade” (RAZ, 2002, p. 154). Por fim, Raz enfatiza que, das elaborações de sua teoria normativa, segue-se que “sistemas jurídicos são caracterizados por seu caráter institucionalizado e podem ter quaisquer regras com qualquer conteúdo que seja” (RAZ, 2002, p. 168). Não fica claro, porém, como Raz estabelece uma ponte entre o cerne de Razão prática e normas – a saber, a concepção de normas em geral como razões para a ação protegidas por razões excludentes – e o desfecho da obra – a saber, a concepção de sistemas jurídicos como agregados de regras jurídicas mandatórias, permissivas e que conferem poderes e como sistemas institucionalizados compreensivos, supremos e abertos. É que, de nenhum modo, esta concepção de sistema jurídico decorre cristalinamente daquela concepção de normas em geral, sem a necessidade de clarificar premissas adicionais. Antes, várias assunções sociológicas sobre os sistemas jurídicos estão embutidas implicitamente e não clarificadas explicitamente entre o cerne e o desfecho de Razão prática e normas. Assim, a transição que Raz faz da concepção de normas em geral para a concepção de sistemas jurídicos suscita e deixa abertas várias questões difíceis, das quais a mais evidente é: A filosofia prática raziana, reduzida a uma teoria da norma que parte da noção de razão para a ação, não seria abstrata demais e, ao mesmo tempo, estreita demais para clarificar minimamente os sistemas jurídicos? Essa filosofia prática pode lançar luz sobre os sistemas jurídicos unicamente a partir de uma exploração lógica da noção de razão para a ação? Parece que a única resposta que Raz poderia oferecer a essa questão seria apontar para trás, isto é, para O conceito de sistema jurídico: as premissas adicionais sobre os sistemas jurídicos já teriam sido investigadas nessa obra. Ocorre, contudo, que O conceito de sistema jurídico não se deixa reconciliar facilmente com Razão prática e normas.

4.

CRÍTICA À CONCEITUAÇÃO DE NORMA JURÍDICA NO JOVEM RAZ Depois de um exame detalhado de O conceito de sistema jurídico e Razão prática e

normas do ponto de vista da formação do conceito de norma jurídica, o possível paradoxo no

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jovem Raz (ver seção 1, p. 3) demonstra-se como uma forte incompatibilidade entre suas duas primeiras obras. O jovem Raz, por um lado, captou a tese da natureza sistêmica do direito, isto é, a tese de que, para explicar o que é o direito, é necessário inquirir, em primeiro lugar, o conceito de sistema jurídico e, apenas em segundo lugar, o conceito de norma jurídica, o qual depende (e só pode ser articulado na esteira) da conceituação de sistema jurídico6. O jovem Raz, por outro lado, fracassou em levar às últimas consequências essa tese: fracassou na tarefa de conceituar norma jurídica com base na conceituação de sistema jurídico. Em um primeiro momento, ele conseguira realizar essa tarefa até o ponto da delimitação precisa do conceito de norma jurídica em relação a conceitos adjacentes, conceitos de objetos com os quais a norma jurídica pode vir a ser confundida, mas aos quais ela não equivale. Em um segundo momento, porém, ele abandonou a continuação coerente da tarefa, a saber, o desenvolvimento detalhado do conceito de norma jurídica com base naquela delimitação conceitual, a qual, por sua vez, fora realizada com base na conceituação de sistema jurídico. Nesse segundo momento, Raz adotou um novo ponto de partida, uma nova base para a conceituação de norma jurídica: não mais o conceito de sistema jurídico, mas, sim, o conceito de razão prática7 – o conceito de razão para a ação8. Em última análise, o jovem Raz está dividido entre duas teses diferentes: (1) a tese da natureza sistêmica do direito; (2) a tese da racionalidade da normatividade. A tese de que o normativo é racional não é necessariamente incompatível com a tese de que o direito é sistema. Contudo, mesmo que se conceda que Raz foi exitoso em apontar compatibilidades entre ambas as teses na obra Razão prática e normas, Raz foi omisso em esclarecer várias questões que emergem de sua tergiversação entre ambas as teses, tais como: Qual das duas teses é, no final das contas, o ponto de partida da teoria do direito? Sendo a segunda tese muito mais abstrata que a primeira, então a segunda tese é o ponto de partida da teoria do direito? Se não, como uma tese extremamente abstrata poderia subordinar-se a uma tese muito menos abstrata? A teoria do direito poderia ter como tese basilar uma tese tão abstrata quanto a da racionalidade da normatividade? Em palavras claras: Raz falhou em articular uma conexão minimamente 6 O jovem Raz propugna até que a distinção entre direito e moral só se fixa com base na sistematicidade do direito, mas não com base na norma jurídica: “O direito deve ser distinguido da moral positiva etc. por certas características dos sistemas jurídicos que não estão presentes em cada uma de suas leis” (RAZ, 2012, p. 120). 7 Raz (2002, p. 211) sublinha que Razão prática e normas ocupa-se principalmente com a explicação da natureza do direito com base na razão prática: “Muito de meu interesse original no projeto do livro foi em uma tentativa de prover uma fundação para uma teoria do direito que fosse somente parte da teoria geral da razão prática”. 8 Edmundson (1993, p. 329) inicia sua resenha da segunda edição de Razão prática e normas frisando que “a pedra angular da filosofia prática [tal como concebida por Raz] é não, como muitos filósofos supuseram, os conceitos deônticos que se reúnem em torno da palavra ‘dever’ [ought] e de seus cognatos, mas o conceito de uma razão para a ação”.

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fundamentada entre aquelas duas teses, falhou até em formular uma hipótese minimamente explícita acerca de tal conexão. Assim, as compatibilidades que aparecem em Razão prática e normas entre a tese da natureza sistêmica do direito e a tese da racionalidade da normatividade são meramente eventuais, isto é, não explicáveis com referência a uma conexão explícita e fundamentada entre tais teses. Que, a partir de ambas as teses, Raz chegue a assunções comuns – por exemplo, que o direito é um sistema institucionalizado, que as instituições primárias do direito são tribunais e cortes, que o direito não guia o comportamento das pessoas só indiretamente com sanções, que o direito guia o comportamento das pessoas diretamente com normas mandatórias – é simplesmente aleatório. As assunções comuns, partindo de teses diferentes, têm justificações diferentes e conteúdos diferentes e, em última análise, diluem-se entre visíveis disparidades entre a primeira e a segunda obra do jovem Raz. No epicentro dessas disparidades, está a conceituação de norma jurídica. É na conceituação de norma jurídica que o jovem Raz divide sua teoria do direito entre dois pontos de partida dificilmente reconciliáveis. Do ponto de vista metateórico, o que significa que Raz adote, em Razão prática e normas, a tese da racionalidade da normatividade como tese básica da teoria do direito? Essa pergunta me conduz a uma interpretação arriscada, mas defensável, do “giro racional-prático” raziano. Com esse giro metateórico, Raz resvala em dois equívocos teóricos que ele, em sua obra anterior, censurara em Kelsen, a saber: (1) a adoção da concepção do direito como norma, em lugar da concepção do direito como sistema; (2) a identificação da validade de normas jurídicas com a justificação de normas jurídicas. Quanto a (1), mesmo que Raz, em Razão prática e normas, dedique um capítulo inteiro aos sistemas normativos em geral e um capítulo inteiro aos sistemas normativos jurídicos em particular, ele claramente só consegue tematizar esses dois objetos do ponto de vista da norma. Um sistema normativo é um agregado de normas cuja sistematicidade só se torna relevante na medida em que afeta a base racional-normativa do agir. Quanto a (2), Raz desaprova, em O conceito de sistema jurídico, a visão kelseniana de que: Embora uma norma jurídica não possa ser justificada absolutamente, isto é, com base em uma moral absoluta, muito menos possa depender de uma justificação absoluta para assegurar sua validade jurídica; embora, ademais, a validade jurídica de uma norma não dependa de sua justificação relativa, isto é, com base em uma moral relativa; o fato de uma norma ter validade jurídica significa que ela fora criada à luz de uma norma jurídica pré-existente e, além disso, que a norma jurídica que lhe regula a criação é-lhe uma justificação relativa. Em suma: Toda norma jurídica, segundo Kelsen, é relativamente justificada em virtude de que sua criação se

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mostra conforme com uma norma jurídica pré-existente. Para Raz, entretanto, “Kelsen cai em uma armadilha ao identificar a validade com a existência da norma, por um lado, e com sua justificação, por outro” (RAZ, 2012, p. 181). Raz sublinha aqui que, enquanto a validade da norma é igual a sua existência, a validade da norma não é igual a sua justificação, mesmo que se trate só de justificação relativa, isto é, justificação de um ponto de vista meramente jurídico. Raz, no nível metateórico (e contra Kelsen), defende reiteradamente que: (1) “Eu preferiria dizer que o positivismo jurídico não justifica o direito de modo algum, mas descreve e analisa um método que pode ser usado para justificar leis” (RAZ, 2012, p. 180); (2) “O objetivo da teoria do direito não é justificar o direito, mas explicá-lo” (RAZ, 2012, p. 182); (3) “As normas nem sempre são exigências justificadas” (RAZ, 2012, p. 184). Em Razão prática e normas, contudo, Raz distancia-se da diretriz metateórica de que validade não é justificação. Ao conceituar a norma não apenas como (1) razão para agir de determinada forma, mas também como (2) razão para deixar de agir conforme outras razões diferentes de (1) – ao conceituar, portanto, a norma como a união entre uma razão de primeira ordem e uma razão de segunda ordem –, Raz embute em toda norma uma justificação relativa (nas palavras dele, “instrumental”) dela mesma. O Raz de Razão prática e normas, em última análise, vê a norma como autojustificadora e autojustificada: toda norma, por um lado, contém uma justificação de si mesma e, por outro, é justificada em si mesma. É que a razão de segunda ordem contida em uma norma opera como uma justificação da razão de primeira ordem. A razão de segunda ordem está lá, na norma, para garantir que a razão de primeira ordem conte com uma justificação superior à justificação que ela poderia ganhar (ou perder) no balanceamento com razões de primeira ordem concorrentes. Tal justificação superior (que é a própria razão de segunda ordem) é superior porque não pode ser derrotada pelas razões de primeira ordem concorrentes; e não o pode ser porque as exclui: a razão de segunda ordem garante que, embora a razão de primeira ordem da norma possa ser superada por outras razões de primeira ordem, ela permanece justificada como a razão em conformidade com a qual o agente deve agir. Além disso, a razão de primeira ordem da norma torna-se justificada porque é protegida pela razão de segunda ordem. Sua justificação sequer entra em questão, sequer é ameaçada, pois ela é blindada, por assim dizer, por uma razão que exclui a possibilidade de a razão de primeira ordem ser tornada injustificável. A razão de primeira ordem da norma pode até se patentear como não justificada em face de razões de primeira ordem concorrentes, isto é, pode até não prevalecer no balanceamento de razões de primeira ordem, mas, mesmo assim, não se

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torna injustificável, uma vez que conta indefectivelmente com um reforço justificatório de segunda ordem. Uma norma é justificada em si mesma na medida em que a razão de primeira ordem que ela contém é reforçada pelo segundo componente da norma, a saber, a razão de segunda ordem, a qual não é suscetível de derrota em balanceamentos realizados no primeiro nível de razões para agir porque não entra nesses balanceamentos.

5.

HIPÓTESES METATEÓRICAS Para finalizar este artigo, proponho, em contraste com a teoria do direito apresentada

pelo jovem Raz, três hipóteses metateóricas que não posso justificar completamente aqui, mas cujo teor posso esboçar e desenvolver minimamente: (1) A investigação dos sistemas jurídicos e a investigação das normas jurídicas não podem ser dissociadas; (2) A investigação dos sistemas jurídicos e a investigação das normas jurídicas não podem ser reduzidas uma à outra; (3) Institucionalização, normatividade e coercitividade, características generalíssimas e importantíssimas do direito, não podem ser investigadas satisfatoriamente só mediante análise semântica. Em geral, o direito não pode ser satisfatoriamente clarificado só mediante incursões sobre conteúdos conceituais. Sobre (1). Por um lado, não é possível teorizar sobre os sistemas jurídicos – quer a teorização seja geral, sobre todos os sistemas jurídicos, quer seja particular, sobre um sistema jurídico – sem lidar com a questão: O que é uma lei? Essa questão é incontornável para a teorização dos sistemas jurídicos porque o conteúdo deles é uma pluralidade de leis; porque a estrutura deles é a padronização das relações internas (de dependência intrínseca) entre leis; porque a identidade deles é inseparável da identificação das leis que lhes pertencem; porque a existência deles é inseparável da existência das leis, sem as quais eles se esvaziam. Por outro lado, não é possível teorizar sobre as normas jurídicas – quer geral, quer particularmente – sem ocupar-se com a questão: O que é um sistema jurídico? É que normas jurídicas só existem enquanto unidades sistêmicas, componentes de sistemas jurídicos. Em O conceito de sistema jurídico e em Razão prática e normas, Raz parece adotar essa consideração metateórica. Sobre (2). Se investigar os sistemas jurídicos e investigar as normas jurídicas não são separáveis, é necessário, entretanto, ressaltar que qualquer uma dessas investigações não pode ser resumida a um capítulo da outra. Ou seja, qualquer uma delas é relativamente independente da outra. Tentarei esboçar essa consideração metateórica com referência à normatividade do direito.

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Que o direito seja normativo implica que os sistemas jurídicos são normativos e que as normas jurídicas são normativas. Raz parece estar de acordo com isso em suas duas obras aqui enfocadas. Em O conceito de sistema jurídico, ele apresenta os sistemas jurídicos como normativos porque concebe o conteúdo nuclear deles como sendo leis D e P, todas as demais leis mantendo relações internas com elas; e apresenta as normas jurídicas como normativas porque as concebe como guias da conduta humana; ademais, ele até parece apresentar as leis que não são normas como indiretamente normativas porque sublinha que elas só são leis em virtude de se conectarem necessariamente com normas jurídicas. Em Razão prática e normas, por sua vez, Raz mostra os sistemas jurídicos como normativos porque os concebe não apenas como agregados de normas, mas também como dotados de supremacia sobre todos os demais sistemas normativos quanto ao direcionamento racional da ação; e mostra as normas jurídicas como normativas porque as concebe como razões excludentes para a ação. Assim, dado um sistema jurídico, ele como um todo e cada norma que o compõe são normativos. Isso não implica, no entanto, que a normatividade do sistema seja redutível à da norma, sequer que a normatividade da norma seja redutível à do sistema. Em O conceito de sistema jurídico, Raz parece não reduzir uma coisa à outra: a normatividade do sistema reside em que seu cerne é formado por leis D e P e em que as demais leis necessariamente se vinculam às leis D e P; e a normatividade de cada norma reside em ela prover a seus sujeitos orientação sobre como se conduzir. Assim, a normatividade do sistema revela-se mais complexa que a da norma, pois o sistema não se esgota em normas, mas contém outras leis que se relacionam de diversas maneiras com as normas do sistema. Em Razão prática e normas, de modo similar, Raz parece não reduzir a normatividade sistêmica à normatividade da norma: a primeira é mais complexa que a última porque traduz a prioridade do sistema não só sobre normas conflitantes isoladas, mas também sobre qualquer outro sistema normativo in totum. Inobstante, sente-se que, em ambas as obras, Raz não logrou distanciamento definitivo em relação ao reducionismo rejeitado em (2). Resta a dupla impressão de que, em O conceito de sistema jurídico, Raz incorre, em alguma medida, em reduzir a norma ao sistema; e de que, em Razão prática e normas, Raz resvala, em alguma medida, em reduzir o sistema à norma. Tal impressão provém de que, em ambas as obras, Raz não foi plenamente exitoso em manter e desenvolver o vínculo entre teoria dos sistemas jurídicos e teoria das normas jurídicas: em observar (1). Parece que ele, na primeira obra, entronizou o sistema perante a norma, mas, na segunda obra, coroou a norma em face do sistema. Sobre (3). Em primeiro lugar, a análise semântica, enquanto clarificação de conceitos, é inseparável da clarificação da estabilização social dos conceitos cujo teor semântico é

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submetido à reflexão teórica. Conceitos não levitam por cima da sociedade, mas são forjados na sociedade: sua existência é construída no contexto de ideias e interesses sociais, no interior de estruturas e funções sociais, no âmbito de estágios evolutivos e constelações epocais da sociedade. Assim, a análise semântica de conceitos só pode assegurar-se de sua efetividade teórica caso não se desvincule da investigação sobre a ancoragem social de conceitos. Caso negligencie, contudo, a emergência social, os nexos sociais e as disputas sociais de conceitos, ela se expõe ao risco de hipostasiar equívocos. Em segundo lugar, se se convém com Raz em que três características generalíssimas e importantíssimas do direito são a institucionalização, a normatividade e a coercitividade, de modo que a análise conceitual do direito não pode deixar de explicá-las, torna-se inevitável assumir que a análise conceitual do direito é indissociável da clarificação do enraizamento social do direito: a teoria do direito não prescinde da sociologia do direito. É que instituições, normas e coerções só se deixam explicar satisfatoriamente se são investigados seus substratos sociais: instituições, normas e coerções não existem em um espaço esvaziado de sociedade, tampouco existem em uma sociedade ultramundana, mas somente existem em uma sociedade historicamente estabelecida. Em última análise, a perquirição conceitual das instituições, das normas e das coerções que caracterizam o direito é incompleta se não baseada na perquirição social delas; tal perquirição conceitual pode mesmo se mostrar arbitrária se não se basear sequer em intuições sociais minimamente refletidas; no pior dos casos, ela pode mostrar-se errônea se suas intuições sociais subjacentes não forem acertadas. Em todo caso, a teoria do direito (como análise conceitual) perderia valor se incompleta, isto é, se apoiada apenas em intuições não desenvolvidas teoricamente sobre como o direito se embute na sociedade. Desse ponto de vista, Raz, em O conceito de sistema jurídico, apresenta uma teoria do direito que é uma combinação de três elementos: primeiro, história do conceito de sistema jurídico; segundo, intuições sociais sobre o direito explicitadas aqui e ali, mas não submetidas a exame; terceiro, refinamentos novos do conceito de sistema jurídico. Em tal obra, Raz parece compensar o déficit sociológico (a falta de desenvolvimento das intuições sociais sobre o direito) com uma investigação detalhada das elaborações do conceito de sistema jurídico disponíveis na história da teoria do direito – com foco nas elaborações de Austin, Bentham, Kelsen e Hart. É como se Raz se confiasse na história do conceito de sistema jurídico, limitada à filosofia analítica do direito e, portanto, sem considerar outras correntes filosóficas, muito mais do que devesse. Se, de um lado, é necessário e frutífero recorrer a essa história9, o recurso Kramer faz questão de registrar que “a obra do próprio Hart e do jovem Raz é um testemunho da fecundidade do engajamento direto com escritos e argumentos de outros estudiosos” (KRAMER, 2000, p. 129). 9

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a ela, de outro lado, não suspende, muito menos preenche, a necessidade de desenvolver as intuições sociais sobre o direito utilizadas10. Do mesmo ponto de vista, Raz, em Razão prática e normas, defende a tese de que a coercitividade não é uma característica conceitualmente necessária do direito, mas é só uma característica empiricamente necessária do direito. Isto é: Raz defende que é conceitualmente possível um sistema jurídico totalmente sem coercitividade (em uma sociedade de anjos), mas tal sistema jurídico é humanamente impossível, dada a “natureza humana”. Interpreto tal tese raziana como uma evidência de que o déficit sociológico na filosofia analítica do direito pode levar a duplicações insatisfatórias do direito, isto é, cismas entre o direito socialmente estabelecido e o direito conceitualmente depurado. Não é que Raz devesse ter defendido que a coercitividade é uma característica conceitualmente necessária do direito. Em vez disso, meu argumento é: Apenas mediante a clarificação das intuições sociais sobre o direito, das quais a análise conceitual do direito não pode escapar porque necessariamente se imbui delas, é que a análise conceitual do direito pode evitar duplicações irritantes do direito em direito socialmente estabelecido e direito dissecado na análise conceitual. Mesmo quando duplicações forem incontornáveis, apenas a sociologia do direito é que poderá prover à análise conceitual do direito recursos teóricos para articular mediações satisfatórias entre o direito socialmente estabelecido e o direito conceitualmente esclarecido. De outro modo, a teoria do direito se tornaria vulnerável a gerar tais duplicações, que não são senão denúncias do ensimesmamento da teoria em relação à prática11.

Referências EDMUNDSON, William A. Rethinking exclusionary reasons: a second edition of Joseph Raz’s “Practical reason and norms”. Law and Philosophy, v. 12, n. 3, 1993, p. 329-343. FITZGERALD, P. J. The concept of a legal system. By J. Raz. The Modern Law Review, v. 34, n. 5, 1971, p. 586-589. 10

Fitzgerald, em sua resenha de O conceito de sistema jurídico, parece ter notado o déficit sociológico da obra: “ele [Raz] afirma que seu livro examinará ‘as pressuposições e as implicações do fato (itálico adicionado) de que toda lei necessariamente pertence a um sistema jurídico’; porém, no final do livro, sente-se que, enquanto as implicações da proposição de que toda lei etc. foram plenamente examinadas, o fato de que toda lei etc. não foi realmente demonstrado” (FITZGERALD, 1971, p. 588). Aliás, Fitzgerald parece ir mais longe: parece sugerir que a própria conclusão raziana de que o conceito de norma jurídica depende do conceito de sistema jurídico é extraída não de premissas fáticas comprovadas, mas de premissas teóricas necessariamente arbitrárias que Raz insere (das quais ele cita a premissa raziana de que há leis que não são normas). Fitzgerald parece sugerir, pois, que Raz oferece uma teoria autorreferente. 11 Sobre a tese raziana de que o direito não é conceitualmente coercitivo, Martin observa: “Claramente, Raz não está considerando as limitações da sociedade humana quando discrimina entre características necessárias e contingentes do direito” (MARTIN, 2014, p. 17). Portanto, é como se Raz estivesse teorizando em um espaço lógico para além do espaço social.

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GANS, Chaim. Mandatory rules and exclusionary reasons. Philosophia, v. 15, n. 4, 1986, p. 373-394. KRAMER, Matthew H. Practical reason and norms. By Joseph Raz. Oxford essays on jurisprudence: fourth series. Edited by Jeremy Horder. The Cambridge Law Journal, v. 59, n. 3, 2000, p. 629-631. MARTIN, Margaret. Setting the stage: Practical reason and norms reconsidered. In: __________. Judging positivism. Oxford, Portland: Hart Publishing, 2014, p. 1-26. PERRY, Stephen R. Second-order reasons, uncertainty and legal theory. Southern California Law Review, v. 62, n. 3 e 4, 1989, p. 913-994. RAZ, Joseph. O conceito de sistema jurídico: uma introdução à teoria dos sistemas jurídicos. Tradução de Maria Cecília Almeida. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. __________. Practical reason and norms. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2002.

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