A conceptualização do “Outro” na obra “Mongólia” de Bernardo de Carvalho

July 11, 2017 | Autor: Tatiana Azenha | Categoria: Brasilian (Literature), Portuguese Literature, Asian Literature, Orientalism, Mongolia
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A conceptualização do “Outro” na obra “Mongólia” de Bernardo de Carvalho

Tatiana Azenha [email protected] Mestrado em Estudos Asiáticos, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa

Introdução No seguimento do seminário "Presenças Asiáticas nas literaturas Ocidentais" lecionado pela professora Marília Lopes e a partir da leitura e análise do livro “Mongólia” de Bernardo Carvalho, este trabalho vem refletir uma análise e reflecção sobre os diferentes tipos de espaço e discurso na conceptualização do “Outro” na narrativa. Publicado em 2003 e vencedor do prémio Jabuti em 2004, o romance Mongólia de Bernardo Carvalho, resulta de uma experiência pessoal única do autor neste país. Encomendado pela editora Cotovia e em parceria com a Fundação Oriente, a produção deste livro incluíra a atribuição de uma Bolsa de Criação Literária e posterior publicação de um livro, com inspiração no destino escolhido pelo candidato. Ao escolher a Mongólia, Bernardo Carvalho realiza assim o desejo de conhecer o deserto Mongol, no qual acabaria por permanecer durante dois meses. O resultado desta experiência culmina com a criação de uma obra literária contemporânea, num romance onde narrativas de viagem se cruzam numa investigação meticulosa sobre a história deste país. De discurso informal e envolvido num suspense permanente, “Mongólia” conta a história de um diplomata brasileiro (Ocidental), recém-chegado à China que pouco tempo depois da sua chegada ao Oriente, é destacado para a Mongólia onde tenta encontrar Buruu Nomton, um jovem fotógrafo brasileiro desaparecido um ano antes nos montes Altai. O diário do desaparecido e do Ocidental, ambos narrados pelo diplomata aposentado e amigo do Ocidental, questionam identidades, tradições, histórias e culturas, num jogo entre diálogos tipograficamente distintos. 1

Podemos constatar nesta obra, uma relação íntima e complementar da literatura com o ato de viajar. Confundem-se histórias, ficção, mitologia e sonhos impossíveis, numa experiência única e desejável, que nunca chega a ser totalmente desvendada. Nesta obra Bernardo Carvalho, apresenta um movimento quase subtil no espaço e no tempo, que rapidamente capta a atenção do leitor para o mistério que percorre o livro. Desmistificado apenas nas últimas páginas, o leitor deixa esta obra com uma sensação de ter lido algo “moderno” e “inteligente” mas também com um sentimento de “vazio” que o acumular de informações históricas e enredos secundários sobre a Mongólia, acabaria por dissimular. À semelhança do livro “Nove Noites” (2002), a receção do livro “Mongólia” passaria a ser rotulada de literatura de viagens. Embora positiva, a receção pública da obra acabaria por não corresponder às espectativas do autor, o qual ambicionaria uma crítica e análise de carácter, na conceptualização da temática abordada e narrativa ficcional. Baseando-me na minha experiência enquanto leitora crítica desta obra e perante o amplo leque de artigos e trabalhos apresentados nesta temática, irei tentar apesentar no presente trabalho uma divisão estratégica que permita compreender uma perspetiva crítica sobre a conceptualização do “Outro”.

O Jogo de Espelhos na Narrativa e no Espaço

“It only had to do with how it felt to be in the wild. With what it was like to walk for miles for no reason other than to witness the accumulation of trees and meadows, mountains and deserts, streams and rocks, rivers and grasses, sunrises and sunsets. The experience was powerful and fundamental. It seemed to me that it had always felt like this to be a human in the wild, and as long as the wild existed it would always feel this way. “ (Strayed, 2012)

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Cheryl Strayed, autora do livro e argumento auto-bibliográfico do filme "Wild” descreve no seu diário o percurso atribulado de uma viagem de percorrida no "Pacific Crest Trail"1. Nesta viagem de (re)descoberta interior, Cheryl aprende a redefinir limites e experiencia num cenário naturalista embora geograficamente circunscrito, as aventuras de uma jovem viajante, rodeada de mistérios e perigosas aventuras durante o seu percurso. Por se tratar de um filme que retrata a história da própria argumentista, os critérios antropológicos deste filme permitem ao indivíduo que o “lê”, identificar no seu próprio passado histórico às relações de proximidade do ser humano com o ato de viajar. Num distanciamento temporal entre o que lhe é familiar e o que é desconhecido, o viajante determina o destino e a distância que procura realizar. Nesta experiência, ao exercer o ato da escrita para dar sentido á sua memória, fornece inconscientemente um sentido á experiência vivida, que apenas a memória conseguirá reavivar. O diário poderá servir portanto como meio de transmissão de motivações, registos e memórias resultando nos casos mais clássicos, na produção de uma literatura odepórica2, numa experiência revivida por leitor e viajante, onde são evocados numa linha intemporal o espaço e tempo que apenas a literatura consegue fixar: “(...) A literatura e a viagem nascem juntas como “experiência” comparatista. O hibridismo da literatura de viagem reformula a definição tradicional de literatura como ficção ou como artificio. Os textos de viagem são de fato, responsáveis por transgredir as convenções e as fronteiras do literário (...)” (D’Angelo, 2008: 86)

Vencedor de uma Bolsa de Criação Literária pela Fundação Oriente em Lisboa, Bernardo Carvalho opta por visitar os Montes Altai, rodeados pelo território da China, Rússia e Mongólia. A obra Mongólia resulta portanto, de uma análise e estudo factual do

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Percurso pedestre de longa distância nos Estados Unidos, estende-se pelo méxico até à fronteira com o Canadá, sempre paralelo ao Oceano Pacífico ao longo de 160 a 240 quilómetros. A rota deste percurso passa essencialmente por florestas nacionais e reservas florestais, com uma rota para bicicletas com cerca de 27 lugares de descanso oficiais. "Pacific Crest Trail Association", acedido no dia 27 de Junho, 2015 http://www.pcta.org/discover-the-trail/ 2 Designado por alguns autores como um subgénero de escrita, a escrita odepórica aparece pela primeira vez identificada pelo professor Luigi Monga (1941-2004). Apaixonado pelos relatos dos descobridores europeus do século XVI e XVII, Luigi identificou neste tipo de literatura um género literário a que denominou "odepórico". Termo originário da junção dos termos gregos hondós (caminho, estrada) e porewo (viajar). Luigi Monga é autor de duas extensas obras sobre a literatura odepórica.

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território e da cultura Mongol, onde as sensações de isolamento, abandono e frustração demarcam os processos de adaptação do viajante numa cultura estranha. O paradigma da riqueza geológica, sobre as areias de um deserto interminável, esconde uma reflecção contínua sobre o verdadeiro significado da condição humana. A escolha predileta do deserto por Bernardo Carvalho, passaria assim a funcionar como um correspondente ficcional a nível do pensamento 3 abrangendo assim, a exposição da situação de estranheza dos protagonistas desta obra. No binômio ambientação (deserto) / focalização (estrangeiro) o enredo narrativo deste romance é subtilmente manipulado. O primeiro termo, corresponde a uma versão simbólica na imagiologia do discurso sobre a chegada do indivíduo a um país desconhecido e o segundo, presta particular atenção para a discussão sobre a identidade, alteridade e condição deste ser. A imagem do deserto não se constrói, não se fotografa. Ele é a referência sem referentes. (Nuñez, 2009:2) Durante o processo de análise desta narrativa, o autor optaria por apelidar as personagens principais com alcunhas ou nomes de referência (como é o caso do diplomata que vai para a China, o Ocidental) antropológica. O romance opta por focalizar a sua atenção para o discurso e enredo, focalizando a situação de estranheza enquanto o Ocidental, num espaço perdido e desconhecido procura encontrar comparações com o oriente. Neste romance de espaço, numa categoria onde o espaço exerce um eixo dinamizador de toda a narrativa, assistimos a uma protagonização e jogo de cenários na acção de forma quase inocente, promovendo um desvio de atenções do ponto focal da narrativa para outro ponto4. Dividido em três capítulos intitulados com nomes dos lugares proeminentes na narrativa, (“Pequim – Ulaanbaatar”, “Os Montes Altai” e “O Rio de Janeiro”) podemos verificar á primeira vista, a importância que o espaço ganha ao longo da narrativa. O movimento do espaço geográfico na obra Mongólia acaba por se tornar numa estrutura central na narrativa e o mapa apresentado nas primeiras páginas da narrativa dos dois percursos percorridos pelas personagens ilustra o movimento incessante da narrativa

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Carlinda Nuñez enuncia no seu trabalho uma relação do pensamento do conceito grego de Aristóteles “diánoia” à ficção. (COLOCAR ARTIGO) 4 Das referências históricas aos relatos de cultura e lugares, aos indivíduos que enriquecem a experiência dos protagonistas deste romance.

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bernardina. Não existe á partida um ponto de partida ou data de finalização da viajem. Existem apenas objetivos que devem ser cumpridos. (Mata, 2005: 5) “O Desaparecido busca imagens da Mongólia, sobretudo a paisagem em que se deu a aparição de uma deusa. O Ocidental tenta refazer o caminho do Desaparecido. Seu ponto fixo é encontrar o Desaparecido.” (Mata, 2005: 5)

Numa interação entre géneros literários que articulam e transformam o eixo central da narrativa, a alternação constante entre narradores, as estranhas simetrias entre personagens e contextos culturais, a exploração do conteúdo refletivo do pensamento das personagens, a exploração de personalidades instáveis e enredos com investigações envolventes demarcam a produção de Bernardo Carvalho que se converte num objecto interessante de reflecção. (Júnior, 2009: 66) Quando os viajantes escrevem apontamentos sobre a cultura mongol, ambas acabam por revelar uma incapacidade de avaliação no que veem. Confirmada pelo próprio autor, a exploração de personalidades instáveis (Carvalho, 2006) acaba por ser um dos atributos mais marcantes nas suas obras. No caso de Mongólia, também elas deixam os seus locais de conforto e de estagnação cultural (Brasil) e procuram no ato de viajar, formas de descoberta e entendimento pessoal num processo de dissolução de experiências, problemas e inquietudes. Numa narrativa em constante movimento, a viagem continua por lugares labirínticos onde encontramos espaços, referências pessoais e culturais que pouco ou nenhuma importância têm para o processo de exploração da identidade em que estão mergulhadas. A exploração de identidades, elaborada nesta obra, como se de uma investigação ou mistério policial se tratasse, constitui um verdadeiro processo de bricolagem onde o ajustamento da matéria-prima (ou trabalho de pesquisa) do autor é orientado para uma montagem inteligente e estruturada da estrutura da narrativa. (Júnior, 2009: 68) Ao reunir e combinar fragmentos de textos e informações nos guias turísticos e espaços anteriormente enunciados, Bernardo Carvalho procura ao longo da narrativa dar um sentido a uma variedade de pontos de vista nas suas personagens na procura de algo que nunca conseguem verdadeiramente alcançar. O excerto de Kafka que abre o romance, poderá servir como motivo para uma caracterização das linhas gerais do Jogo de Espelhos Bernardino:

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“(...) como são vãos os seus esforços; continua a forçar a passagem pelos aposentos do palácio mais interior; nunca conseguirá vencê-los; e mesmo se o conseguisse, ainda assim nada teria alcançado; ainda teria os pátios para atravessar; e depois dos pátios; e mais um palácio; e assim por diante, por milénios...” (Mongólia, 2007: 7)

Em Mongólia encontramos um mundo escondido da civilização, em constante mutação onde os próprios cidadãos deste país são indiferentes á evolução e contente processo de globalização. Construída a partir da costura nos diários de viagem do jovem fotógrafo desaparecido e do Ocidental, o deserto parece funcionar como um correspondente no jogo de espelhos conceptualizado por Bernardo Carvalho. Neste jogo de correspondências espelhadas, ganha lugar de destaque o discurso do narrador, complementado com a fala e relatos dos diários das personagens que cruzam fronteiras atrás de uma sensação de pertença que não conseguem encontrar. No material de pesquisa angariado pelo autor, a história que á primeira vista faz sentido ao leitor, acaba por inconscientemente criar um enredo de lacunas preenchido pela imaginação. É por isso difícil perceber na narrativa, onde começa e acaba a realidade. Uma vez que o protagonista tenta desvendar este mundo e o outro, este acaba por refletir sobre a sua própria história e condição. (Magdaleno, 2011) Conceptualizado pelo autor, o jogo de espelhos em que os objecto se deformam sucessivamente á imagem das bonecas russas deixam o leitor á espera de uma revelação que encerre o suspense da narrativa, quando finalmente nas últimas paginas o leitor assiste a esse desfecho, o acumular de informação e intriga, sugerem no leitor uma sensação de ter lido algo “inteligente” mas também com a impressão de algo que está em falta.

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A conceptualização do “Outro”

Do género medieval ao clássico, passando por Fernão Mendes Pinto5, a literatura portuguesa é uma literatura de viagens. Também na literatura contemporânea portuguesa, acabamos por assistir a uma fidelidade quase inata para este tipo de literatura: Fernando Pessoa, José Saramago, Sophia de Mello Breyner Andresen e Mia Couto são alguns dos escritores da literatura portuguesa contemporânea que abordaram com alguma frequência o tema da viagem nas suas obras e captando os mais variados tipos de público. Em Mongólia, unem-se história e literatura numa obra envolvente e cativante, pelo conteúdo enriquecedor e registos históricos e ficcionais na narrativa. Existem três vozes que narram esta história: os diários de viagem dos estrangeiros brasileiros que visitam o país (N2 e N3) e ainda, o diplomata aposentado que relata e partilha com o leitor o conteúdo dos mesmos (N1). Nas primeiras páginas do livro o leitor é introduzido ao narrador principal (N1) conduzindo o enredo da narrativa principal. Residente no Itamaraty, o diplomata aposentado inicia a sua narrativa com o relato da morte do Ocidental e encontra na despensa do seu apartamento, uma pasta de documentos suspeitos, descobrindo-se os diários do jovem fotógrafo desaparecido na Mongólia:

“ Fui até a despensa do apartamento, onde, no lugar das provisões, mantenho amontoados os arquivos mortos e as tralhas inúteis que me sobraram de tantas viagens e mudanças e passei horas à procura da pasta em que devia ter metido aqueles papéis, que encontrara por acaso entre as minhas coisas na embaixada, quando arrumava as malas antes de deixar Pequim, á quatro anos” (Carvalho, 2007: 16)

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Publicado em 1614, a obra Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, regista o impacto das civilizações ocidentais europeias no oriente e vice-versa. Trata-se de uma espécie de diário relativo aos comportamentos, atitudes e hábitos das civilizações orientais, daí a sua importância.

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O próprio narrador (N1) acaba por partilhar a necessidade de conduzir uma investigação diplomática discreta sobre o desaparecimento do jovem fotógrafo a quem os diários haviam pertencido e assistimos a uma sobreposição perspicaz e imediata do segundo narrador (N2), o Ocidental. Este é portanto quem relata o percurso de uma viagem inevitável e indesejável mas que acaba por realizar a pedido do diplomata aposentado. O desconforto pela viagem faz-se notar no excerto seguinte onde o Ocidental revela o seu desconforto numa carta enviada ao diplomata/narrador (N1):

“(...) Em busca de um pouco de ar, aluguei uma bicicleta e fui visitar os hutongs ao longo do lago Houhai. Em vão. São igualmente opressivos e fedorentos neste calor, e devem ser inabitáveis no frio do inverno. Alguém poderia chegar ao cúmulo de defender a teoria de que os hutongs são uma resistência, também labiríntica, ao poder e à sua representação nas largas avenidas e esplanadas, mas seria um pontode-vista tolo e superficial. O principal é que não há prazer ou alívio em lugar nenhum. Tudo ou é demasiado aberto ou confinado demais. Não há meio-termo. (...) ” (Carvalho, 2007: 24-25)

Este segundo narrador (N2) acaba por delinear grande parte desta narrativa e estabelecer na história um papel fundamental para a conceptualização do “outro”. A terceira “voz”, de igual importância, remete para os diários do jovem fotógrafo desaparecido (N3), contratado por uma revista de turismo brasileira para atravessar e fotografar a Mongólia. Em oposição ao segundo narrador, o jovem desaparecido (N3) considera a viagem um prazer e a sua condição de aventureiro acaba por demarcar o enredo desta obra. O movimento das personagens não se limita a um espaço geográfico circunscrito e acaba por demarcar e modelar a personalidade de cada uma das personagens. O modo de narrar em Mongólia é diversificado, distinguindo-se as três vozes dos narradores com o recurso a três tipos de letra distintos. A experiência da viagem e literatura como podemos verificar nas entradas dos diários dos dois narradores (N2 e N3) apresenta num espaço circundante, uma reflecção sobre as motivações de cada um e questiona indiretamente permitindo uma reflecção interior profunda sobre cada um.

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No espaço criado por Bernardo Carvalho, o “Outro”, o ser estranho que vive dentro de cada uma das personagens e conhecem nos seus percursos, servem como complemento para a sua identidade. Segundo Taufer, que cita Edna Tarabori Calobrezi no seu artigo, a autora apresenta uma teoria sobre a subdivisão do “eu”, podendo este ser visto como objecto, modelo ou exemplo para o “Outro” dependendo das relações estabelecidas e da intensidade do choque cultural a que são submetidos. (Taufer; 2007: 8) Esta teoria apresenta na sua essência uma relação de proximidade com a conceptualização do “Outro” idealizada por Carvalho uma vez que, é através do contacto com as culturas orientais mongóis e com a leitura dos diários, que as personagens evidenciam e refletem sobre o encontro entre as culturas ocidental e oriental. Para o Ocidental, viajar é algo frustrante, sofrido e difícil de perceber. Para ele, o “outro” representa uma presença ameaçadora com situações de pânico frequentes. Podemos portanto concluir que a perspetiva de viagem para o Ocidental seria deformada por uma visão ocidentalista onde os objetos seriam deformados pelo olhar, exercendo uma constante comparação com a própria cultura em oposição ao “Outro”. Por outro lado, temos o jovem desaparecido para quem a viagem constitui um prazer, relatando detalhadamente todos os momentos do contacto com o “Outro” : “ (...) Os tsaan são da etnia turca e falam uma língua próxima do turco. No geral, são simpáticos e recetivos, como os mongóis. (...)” (Bernardo, 2007: 55). Neste caso, o choque cultural é suavizado e a atitude do jovem enquanto viajante varia conforme a sua curiosidade e motivação, como podemos depois averiguar. Motivações diferentes levam a prioridades distintas: o jovem fotógrafo teria o objetivo de fotografar os tsaatan6 enquanto o Ocidental teria uma missão diplomática e pessoal para cumprir. Esta distinção clara no que diz respeito aos olhares e interpretações do “outro” na narrativa, pode ser verificada nos comentários que o diplomata (N1) tece sobre os relatos de ambos os diários: “(...)De alguma forma o desaparecido e o Ocidental tinham uma afinidade sinistra nas suas ideias etnocêntricas. A diferença, como eu acabaria entendendo, era que o desaparecido ainda tentava tratar o mundo como aliado. Era mais ingênuo ou otimista. O Ocidental não fazia esse esforço. O desconforto o levava a assumir com

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Os tsaatan são criadores de renas de nacionalidade mongol que vivem isolados na fronteira com a Rússia.

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naturalidade o papel adversário. Debatia-se com o mundo. (...)” (Bernardo, 2007: 64-65)

O trabalho de representação dos sujeitos age como elemento fundamental das personagens de Bernardo Carvalho. (Mata, 2005; 6) O tema da homossexualidade na narrativa, justifica uma sexualidade vista como um mito, um tema que não merece qualquer discussão ou reflexão. (idem, ibidem) Este tema acaba por ser ocasionalmente referenciado nas várias descrições e relatos da história de uma deusa budista a que Ganbold, o guia mongol do Ocidental comenta: “Não existem homossexuais na Mongólia”. (idem, 7, 8) A ambivalência do tema da sexualidade presente nesta obra merece uma atenção especial uma vez que, a condição de viajantes num país onde o nomadismo é uma prática comum, este entra em contraposição com a realidade do mundo ocidental, globalizado onde o desejo de retorno acaba por se tornar numa realidade impossível. (idem, ibidem) Noutro ponto de análise que poderá explicar a conceptualização do “Outro” nesta obra, nos nomes dos diferentes narradores, Carvalho acabaria por personificar e garantir as diferentes identidades das suas personagens. Ao reduzir a importância do nome próprio às suas personagens, o autor atribui um sentido e traços na personalidade que são rapidamente percetíveis mesmo antes da sua análise. Na narrativa seria portanto importante sublinhar, para além da condição em que se insere, um estado de movimento constante das suas personagens.

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Conclusão

Inserido na temática da literatura de viagens, ao contrário do que o autor desejaria e dependendo do gosto e da maturidade literária do leitor, o livro Mongólia acabaria por suscitar uma variedade de reações no público português e brasileiro. Na descrição do percurso do diplomata brasileiro que tenta encontrar o fotógrafo desaparecido (também ele brasileiro) em território Mongol, o relato de viagem e o choque cultural são temas que mergulham o leitor numa reflexão intensiva nas temáticas enunciadas neste trabalho. Viajar não é apenas deslocamento no espaço e no tempo mas é também, transformação, crescimento, aprendizagem e adaptação. Os diferentes olhares dos narradores apresentados e propostos pelos diferentes autores enunciados nos vários trabalhos académicos sobre esta obra, revelam um profundo interesse na perceção e impressão sobre a descoberta de uma verdade universal que apenas será possível através da análise do “Outro” sobre o “Eu”.

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Bibliografia

Carvalho, Bernardo (2007), Mongólia, Lisboa: Biblioteca Editores Independentes Carvalho, Bernardo (2010), Fiction as Exception, Luso-Brazillian Review, V.47, n.1, p.1-10 D’Angelo, Biagio (2008), Escritas circulares: a viagem e a morte em Mongólia, de Bernardo Carvalho, SCRIPTA, V.12, N.23, p. 84-97 Nuñez, Carlinda (2009), "Mongólia" de Bernardo Carvalho: romance de espaço e imagiologia, Cadernos do CNLF (CiFEFil), v. 13, p. 1-8 Filho, António (2012), Representação e Técnica Narrativa na Prosa de Ficção de Bernardo Carvalho, Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, p. 1-15 Júnior, Marcílio (2009), Espaços de Enfrentamento: Reflexões sobre o espaço em Mongólia de Bernardo Carvalho, Revista Cerrados, V.18, N.27, p. 63-77 Laub, Michael (2006), Entrevista Bernardo Carvalho, Entrelivros, São Paulo, V.2, N.13, p.20 Magdaleno, Renata (2001), Literatura e deslocamento: o cruzar de fronteiras na obra de Bernardo Carvalho, Badebec – Revista del Centro de Estudios de Teoría Y Crítica Literaria, V. 1, p. 6 Marques, Ana (2013), Paisagem com figuras: fotografia na literatura contemporânea, Belo Horizonte: Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, p. 223-243 Mata, Andreson (2005), Á deriva: espaço e movimento em Bernardo Carvalho, Revista de História e Estudos Culturais, V.2, N.2, p.1-20 Taufer, Adauto (2007), Os eus e os outros: a viagem e o senso de alteridade em Mongólia, de Bernardo Carvalho, Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas, V.3, N.1, p.1-11

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Vieira, Yara (2004), Refração e Iluminação em Bernardo Carvalho, Novos Estudos, n. 70, p. 195-206 Vallée, Jean (2014), Wild, Fox Searchlight Pictures, Estados Unidos

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