A concretização da Justiça Restaurativa na Mediação Penal - As notas especificas da Mediação Penal

Share Embed


Descrição do Produto

A concretização da Justiça Restaurativa na Mediação Penal AS NOTAS ESPECIFICAS DA MEDIAÇÃO PENAL

Marisa David e Tânia Santos| Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Mestrado em Ciências Jurídico Criminais – Unidade Curricular: Criminologia, lecionada pela Professora Doutora Cláudia Santos | Ano letivo 2014/2015

“A prisão não são as grades, e a liberdade não é a rua; existem homens presos na rua e livres na prisão. É uma questão de consciência.” Mahatma Gandhi

PÁGINA 1

Índice

1- Breve Introdução ....................................................................................................3 2- A Justiça Restaurativa ........................................................................................... 4 2.1- Princípios Fundamentais ................................................................................ 8 2.2- Estratégias e Objetivos .................................................................................. 12 2.3- As eventuais (des)vantagens ......................................................................... 14 3- A concretização da Justiça Restaurativa na Mediação Penal ............................. 17 3.1- Âmbito de aplicação ....................................................................................... 17 3.2- Análise das suas potencialidades .................................................................. 21 4- Reflexos da mediação em Portugal: o caso particular da Lei nº21/2007, de 12 de Junho......................................................................................................................... 23 4.1- As principais figuras da mediação ................................................................ 24 4.2- A pluralidade de ofendidos ...........................................................................27 4.3- A pluralidade de arguidos ............................................................................ 29 4.4- A função do advogado ................................................................................... 31 4.5- O acordo......................................................................................................... 33 5- Conclusão ............................................................................................................. 37 6- Bibliografia .......................................................................................................... 39

PÁGINA 2

1- Breve Introdução A Justiça Restaurativa surge no âmbito de uma reflexão sobre o pensamento das soluções dadas pelo nosso tradicional Direito Penal, será a orientação de uma Justiça Retributiva compatível com a evolução dos nossos quadros mentais da realidade atual? Isto é, será o mais benéfico para a vítima, para o agente do crime, e para a comunidade em geral? Ou, por outro lado, existirá uma perfeita harmonia em sede de complementaridade entre Justiça Retributiva e Justiça Restaurativa? Que papel tem a vítima nos contornos da sua (eventual) influência sobre as soluções apresentadas para a resposta do que a levou à figura de vítima em primeiro lugar? Será o suficiente? Afinal de que se trata na Justiça Restaurativa? Será importante a exposição das ideias nucleares da Justiça Restaurativa na luz dos faróis orientadores que são os seus princípios basilares, numa caminhada para a perceção da natureza intrínseca da Justiça Restaurativa. No cumprimento da averiguação dos demais objetivos inerentes à pluralidade da essência significativa da proposta restaurativa cumpre indagar as suas estratégias. Ponderando, ainda que brevemente as suas eventuais (des)vantagens. Segue-se um maior enfoque à concretização da Justiça Restaurativa no que diz respeito à Mediação Penal, delimitando o seu âmbito de aplicação, objeto, características e potencialidades numa cuidada atenção ao caso Português e à lei nº 21/2007 de 12 de Junho.

PÁGINA 3

2- A Justiça Restaurativa A ideia de Justiça Restaurativa surge na década de 70, associada segundo Frederico Marques a um certo “fracasso” da Justiça Retributiva, inábil para “respostas adequadas” ao crime e “ás problemáticas específicas de vítimas e infratores”.1 Todavia, acreditamos que será bem explicito no desenvolvimento deste trabalho que não é bem disso que se trata, sendo certo que apenas podemos afirmar que a proposta restaurativa surge como “algo diferente da justiça penal ao nível das finalidades”.2 Na esteira de Frederico Marques3 a Justiça Retributiva é considerada formalmente legalista e garantística, acarreta elevados custos do aparelho judicial, sendo a reincidência e o insuficientemente envolvimento das vítimas pontos sensíveis às debilidades inerentes à Justiça Retributiva, sendo certo que “uma das pedras de toque da Justiça Restaurativa é precisamente o envolvimento das vítimas”4 isto é, a Justiça Restaurativa pretende seguir uma via diferente do caminho seguido na Justiça Retributiva. Porém, segundo Francisco Ferreira, essa via “não deve ser entendida como uma forma privada de realização da justiça” nem como uma “justiça pública ou oficial” mas antes como uma “justiça tendencialmente comunitária, menos punitiva, mais equilibrada e humana”5 1

MARQUES, Frederico Moyano, “Justiça Restaurativa” in “Temas de Vitimologia – realidades emergentes na vitimização e respostas sociais”, 2011, Almedina Editora, P.271. Cfr. Neste sentido, DUARTE, José Henrique, “Todo o Homem é Maior do Que o Seu Erro”, 2012, G. C. – Gráfica de Coimbra, P. 23, “As funções declaradas pelo direito penal – que visam uma função concreta no sistema social de retribuição, de prevenção geral (positiva e negativa) e a reinserção social – surgem como óbice os chamados espaços de sombra que se escapam ao cidadão e à maioria dos operadores jurídicos, são zonas onde a luz da justiça ás vezes não ilumina.” Cfr. ROBALO, Teresa Lancry de Gouveia de Albuquerque e Sousa, “Justiça Restaurativa – Um caminho para a humanização do direito”, 2012, Editorial Juruá, P.21 e seguintes. 2 SANTOS, Cláudia Cruz, “A Justiça Restaurativa – Um modelo de reação ao crime diferente da Justiça Penal – Porquê, para quê e como?”, 2014, Coimbra Editora, P. 313. 3 Op. Cit. P.271 e seguintes. 4 MARQUES, Ibidem, Op. Cit. P.272. 5 FERREIRA, Francisco Amado, “Justiça Restaurativa – Natureza, Finalidades e Instrumentos”, 2006, Coimbra Editora, P. 24 e 25. Cfr. Taipa de Carvalho “a preocupação político-criminal com os interesses da vítima (…) não tem, de modo algum, de levar a uma privatização do direito penal (…)” apud Costa, Inês Almeida, “Poderá a “reparação penal” ter lugar como autónoma reação criminal?”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 21, n.º4, Outubro-Dezembro 2011, P.542. Cfr. Francisco Amado Ferreira distingue a Justiça Restaurativa da Justiça Retributiva por considerar, desde logo, que a Justiça Restaurativa ao invés da justiça tradicional, não pretende

PÁGINA 4

refletindo um “novo padrão de pensamento”, ou seja, o crime não é apenas uma violação da lei mas sim um ato que causa efetivos “danos às vítimas, à comunidade e até aos infratores”.6 Sendo assim, a Justiça Restaurativa parte dos danos concretos e reais e na reflexão de como reparar esses danos, através de uma solução adquirida pelo diálogo, num espírito de abertura e compreensão, assumindo esta via uma maior eficácia quanto à responsabilização do próprio infrator, reforçando o papel da vítima que pode corporizar os seus pensamentos, sentimentos e emoções, ao invés de permanecer num papel apagado. Desta forma, pode haver um verdadeiro ultrapassar, por exemplo, dos medos inerentes a um crime por parte das vítimas e uma verdadeira prevenção de futuros crimes que passa, em muito, pela verdadeira (e sincera) responsabilização e compreensão das consequências do crime por parte do infrator.7 Na esteira de Francisco Ferreira, note-se que a Justiça Restaurativa comporta certas “propriedades curativas ou restauradoras e reconstrutivas” essas propriedades pretendem obter a reabilitação, restituição e eventual indeminização dos danos comportando também uma “dimensão emocional e simbólica plena de significado e de esperança.”8 No fundo, as ideias nucleares da Justiça Restaurativa é proteger a vítima, reparar o dano causado e intimidar o ofensor mas antes pretende encorajá-lo a aprender melhores formas de atuar, contendo um “carácter pedagógico e preventivo” e com isso se alcançando uma crescente eficiência, celeridade, flexibilidade dos meios segundo os quais se resolvem os conflitos e também uma certa desjudiciarização. Op. Cit. P.26. 6 MARQUES, Ibidem, Op. Cit. P.272. Vide: As principais questões que se colocam são essencialmente: qual a natureza dos danos que resultam do crime? O que é necessário para reparar? Quem é o responsável por essa reparação? Ao contrário do sistema tradicional em que as perguntas se aproximam mais das questões sobre quem praticou o crime? Que norma foi violada? E como punir o infrator? Op. Cit. P.273. 7 Cfr. “(…) mais do que reparar a vítima pelos danos sofridos, a meta ideal é a restauração cabal desta, a ultrapassagem dos efeitos físicos, psicológicos e materiais da vitimização.” MARQUES, Ibidem, Op. Cit. P.278. Cfr. A Justiça Restaurativa permite “ (…) alargar os horizontes da vítima e do agressor, ao criarlhes uma melhor oportunidade de confissão, arrependimento sincero, de perdão e de reconciliação.” FERREIRA, Francisco Amado, Op. Cit. P.25. Cfr. “As finalidades da intervenção restaurativa serão, assim, a reparação dos danos originados pelo crime através de uma responsabilização voluntariamente assumida pelo agente.” SANTOS, Cláudia Cruz, “A Justiça Restaurativa – um modelo de reação ao crime diferente da justiça penal. Porquê, para quê e como?”, 2014, Coimbra Editora, P.304. 8 Op. Cit. P.25. Esta dimensão pode até se materializar, por exemplo, num simples pedido de desculpas.

PÁGINA 5

integrar socialmente o infrator.9 Enunciadas as ideias centrais de Justiça Restaurativa, há que admitir que proceder a uma concreta definição não é uma tarefa fácil, e impõe-se realçar que se trata de um mecanismo de diversão que pode assumir várias manifestações, desde logo os “sentencing circles”10 e os “family group conferences”.11 No seguimento de Cláudia Santos, podemos dizer que a proposta restaurativa “surge como denominação sob a qual se agrupa uma pluralidade de teorias e de programas com contornos diversos”, a autora afirma mesmo que estamos perante “uma teoria [em certa medida] tendencialmente anárquica, no sentido em que é alheia às regras de delimitação do objeto das restantes ciências criminais,”12 observando-se uma “pluralidade de abordagens influenciadas por várias outras ciências ou áreas de conhecimento que tomam o crime como objeto em sentido amplo.”13 Na esteira de Cláudia Santos, consideramos estar perante uma “proposta restaurativa” que deve ser vista como um modo de responder ao crime que advém do reconhecimento de uma “dimensão (inter)subjetiva do conflito” tendo em vista um apaziguamento deste pela via da reparação14 dos danos através da responsabilização do agente do crime, a autora defende que estas finalidades só podem ser plenamente atingidas “através de um procedimento de encontro, radicado na autonomia dos intervenientes no conflito, quer quanto à participação, quer quanto à modulação da solução”.15 John Braithwaite define Justiça Restaurativa como “(…) processo onde se pretende trazer conjuntamente os indivíduos afetados por uma ofensa e onde se procura com o seu acordo, saber como reparar os danos causados pelo crime. O objetivo deste processo consiste em restaurar as vitimas, os agentes do crime e as

9

Cfr. DUARTE, Ibidem, Op. Cit. P.26. Para uma visão mais completa, ROBALO, Ibidem, Op. Cit. P.68 e seguintes. 11 Cfr. ROBALO, Ibidem, Op. Cit. P. 74 e seguintes. 12 SANTOS, Cláudia Cruz, Op. Cit. P.299. 13 Ibidem, P.300 14 Para uma compreensão mais abrangente vide SANTOS, Cláudia Cruz, Op. Cit. P. 368 a 387. 15 Ibidem, Op. Cit. P.302 e seguintes. 10

PÁGINA 6

comunidades (…),”16 certo é que para tal é necessário um encontro entre a vítima e o agente (direto ou indireto) para que por um lado, sejam atingidas as finalidades de prevenção especial positiva17, e por outro lado, para que a vítima tenha a possibilidade de se exprimir e, assim, exprimir os seus sentimentos e emoções, as suas angustias derivadas do crime, ou seja, mostrar ao agente o mal que lhe causou e o impacto que a sua conduta teve na sua vida, em nosso entendimento, esta demonstração favorece a vítima, o agente do crime e até a comunidade em geral. Ajuda a vítima porque promove a solução dos medos e angustias inerentes aos constrangimentos vividos e sentidos após a situação vivida, auxilia o agente do crime no sentido em que é uma forma real e verdadeira de o fazer compreender a dimensão das consequências dos seus atos e a necessidade de não os repetir, promovendo ainda a sua reintegração social, e protege a comunidade em geral uma vez que diminui a eventual reincidência dos agentes, pacifica a sociedade, diminui os encargos do Estado com o aparelho judicial e promove uma evolução social, uma vez que acentua o diálogo ao invés de um “virar de costas”. Na esteira de Cláudia Santos atentamos à existência de uma “situaçãoproblema”18 que permite e reforça o próprio fundamento da Justiça Restaurativa, pois por um lado, mostra-nos que o que a fundamenta é antes de mais o “reconhecimento do conflito criminal enquanto situação que cria problemas concretos a pessoas concretas, aquelas pessoas tradicionalmente agrupadas sob os conceitos de “agente” e de “vítima” ” e já não a “dimensão pública do conflito que se corporizava numa “ofensa insuportável a bens jurídicos.”19

16

BRAITHWAITE, John apud Robalo, Ibidem, Op. Cit. P. 26. Neste sentido, ROBALO, Ibidem, Op. Cit. P. 29. 18 HULSMAN, Louk apud Santos, Ibidem, Op. Cit. P.307. 19 Op. Cit. P.308. Cfr. Neste sentido também MARQUES, Frederico Moyano, Op. Cit. P.274. Cfr. Para uma compreensão mais global, vide, P. 308 e seguintes, SANTOS, Op. Cit. 17

PÁGINA 7

2.1- Princípios Fundamentais Para uma maior compreensão cumpre averiguar quais os princípios fundamentais que norteiam a Justiça Restaurativa. É evidente que terá de se conduzir por uma conduta voluntária para as partes intervenientes, de outra forma não faria qualquer sentido. Temos de estar, portanto, perante uma conduta livre, esclarecida e atual acerca dos seus direitos, natureza do processo e eventuais consequências não sendo, por isso, “uma atuação impositiva e unilateral própria do sistema judicial”.20 Esta atuação voluntária conduz a que por um lado, o infrator não seja coagido a participar pois, na esteira de Francisco Amado Ferreira, tornar o processo restaurativo obrigatório seria torna-lo num “ato inútil” e num “desperdício de tempo e de recursos” 21, por outro lado, estamos também a proteger a vitima, no sentido em que, obrigar a vitima forçosamente a contatar com o agressor, contra a sua vontade, seria submete-la àquilo a que a doutrina tem denominado de vitimização secundária ou até terciária. Só contendo um autêntico carácter voluntário podemos atingir resultados como a verdade e o arrependimento espontâneo que constituem a base de todo o processo.22 Como bem defende Ron Claasen “a justiça restaurativa opta por dar uma resposta ao crime no mais breve espaço de tempo possível, com o máximo de cooperação voluntária e o mínimo de coação, visto que a recuperação dos relacionamentos e a aprendizagem são processos voluntários que têm por base a cooperação”,23 ou seja, importa sublinhar que só por livre vontade pode ser

20

FERREIRA, Ibidem, Op. Cit. P. 29 Cfr. Note-se que há quem entenda que devíamos estar perante uma obrigatoriedade e parte integrante do processo criminal como acontece com algumas experiencias na Bélgica (O Strafbemiddeling), Alemanha (O Tater-Opfer-Ausgleich), Áustria (O Ausergerichtliche Tatauscleich), Holanda, Inglaterra, Canadá e EUA. Ibidem, P.30. 21 Op. Cit. P.31. 22 DUARTE, Ibidem, Op. Cit. P.85 23 CLAASSEN, Ron apud Robalo, Ibidem, Op. Cit. P.49.

PÁGINA 8

possível a compreensão, responsabilização e interiorização do mal causado à vitima.24 Para além de uma atuação, isto é, uma manifestação voluntária de vontade no sentido de participar livremente no processo de Justiça Restaurativa, nessa participação tem ainda de haver consensualidade, veja-se o que acontece, por exemplo, no caso da mediação penal com o contrato de mediação, mostrando-se assim uma evidente necessidade de consensualidade para a produção de frutos na Justiça

Restaurativa.25

Segundo

advoga

Francisco

Amado

Ferreira,

a

consensualidade exige a participação de todas as pessoas a que diz respeito a questão que se está a analisar, uma vez que se torna óbvio que as ofensas se podem repetir sempre que não forem “resolvidas ou perdoadas as «velhas» ofensas”,26 isto é, tal como uma gripe mal curada se pode transformar em algo mais grave, uma gripe bem curada, efetivamente recuperada, tenderá a desenvolver mais anticorpos para que num futuro, face ás mesmas situações externas que outrora conduziram ao estado de “gripe”, emergindo da força de combate produzida por estes anticorpos se possa produzir uma força de resistência, ou seja, de combate, de prevenção! A confidencialidade é um outro princípio a sublinhar, esta impõe-se a todos os intervenientes no processo de Justiça Restaurativa e a todos os conteúdos inerentes à tentativa de solução do conflito, note-se que, por exemplo, ainda que a mediação não venha a ter sucesso os elementos a ela relativos “não devem poder ser comunicáveis em juízo”. 27 Note-se que se assim não fosse, poderíamos estar a comprometer a sinceridade, efetividade, utilidade e a própria adesão a estas vias de solução de conflitos, uma vez que poderíamos estar perante um iminente

24

Cfr. Neste sentido também Francisco Amado Ferreira, Op. Cit. P.30. e Teresa L. Albuquerque e Sousa Robalo, Op. Cit. P. 50. Esta autora deixa bem sublinhado que a ressocialização do agente só é possível se ele intervir de livre vontade no processo de justiça restaurativa uma vez que “só assim pode absorver os ensinamentos pretendidos, no sentido de compreender o verdadeiro mal causado” e modificar o seu comportamento. 25 Este assunto será concretamente desenvolvido a partir do tópico 3 do presente trabalho. Cfr. FERREIRA, Ibidem, Op. Cit. P. 34 e seguintes. 26 Op. Cit. P.36. 27 FERREIRA, Ibidem, Op. Cit. P. 37.

PÁGINA 9

receio de entrada de uma espécie de “cavalo de troia”, no sentido em que, as partes ficariam constrangidas no diálogo com receio de serem posteriormente prejudicadas pelas suas próprias palavras. Vigora, por isso, o principio da oralidade, no intuito de aumentar a confiança e boa fé entre as partes, diminuindo eventuais constrangimentos potenciando a liberdade de participação e consequentemente a própria eficácia do processo.28 Francisco

Amado

Ferreira

salienta

também

o

carácter

de

complementaridade uma vez que nem sempre a Justiça Restaurativa evita um processo criminal, no entanto, o autor sublinha que ainda assim pode ter grande utilidade, uma vez que “o agressor poderá reparar extrajudicialmente a vítima e retratar-se perante a mesma, sendo-lhe aplicada, por conseguinte, uma pena de prisão de menor duração”29 o autor refere a existência de uma “dupla complementaridade” entre o sistema de justiça tradicional e os mecanismos de Justiça Restaurativa, uma vez que em sede geral devem coexistir na prevenção e administração de conflitos e por outro lado, no caso concreto, podem também funcionar ao mesmo tempo e em satisfação dos interesses públicos e privados originados pela mesma ofensa. 30

28

Cfr. FERREIRA, Ibidem, Op. Cit. P. 37 e 38. Cfr. Neste sentido também DUARTE, José Henrique, Op. Cit. P. 86 a 88. O autor afirma mesmo que “é importante que se valorize a confiança e a fé negocial entre as partes, tranquilizando-as quanto à possibilidade de uma utilização das suas declarações noutras sedes. Desta forma libertando-as de possíveis e desnecessários constrangimentos tanto no momento de adesão à iniciativa como ao longo da sua participação no evento pacificador pelas mesmas.” 29 FERREIRA, Ibidem, Op. Cit. P.38. Cfr. art.º 72/2/c) CP, no nosso ordenamento jurídico considera-se uma atenuação especial da pena, em conformidade com o art.º72CP, se por exemplo, tiver havido atos por parte do agressor que demonstrem “arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados” à vítima. Reafirme-se a enorme importância que assume no nosso ordenamento jurídico a “reparação”, a conduta pós-delitiva do agente, o seu “arrependimento”, ainda que estejamos perante casos em que não seja possível recorrer à Justiça Restaurativa. 30 FERREIRA, Ibidem, Op. Cit. P.40. Cfr. No mesmo sentido Maria Leonor Assunção para quem a Justiça Restaurativa para além de alternativa é também complementar da Justiça Penal tradicional, “(…) na realização dos fins de política criminal que lhes são comuns” apud Robalo, Ibidem, Op. Cit. P.54 e 55. Cfr. Também com a mesma opinião, ROBALO, Op. Cit. P.54 e seguintes. Cfr. Art.º 7/1/2 da Lei 21/2007 de 12 Junho.

PÁGINA 10

Francisco Amado Ferreira avança com mais quatro princípios, a celeridade, a economia de custos, a mediação e a disciplina31. Todavia, a existência destas características enquanto princípios não é alvo de unanimidade na doutrina, atente-se na opinião de Teresa L. Albuquerque e Sousa Robalo quando defende que celeridade e economia de custos não são princípios da Justiça Restaurativa mas sim vantagens que resultam dos seus processos, além disso, a mediação é uma forma que alguns processos de Justiça Restaurativa podem tomar, não sendo um princípio mas sim uma possível forma.32 Para esta autora, estes restantes princípios que alguns autores defendem, não são na realidade princípios, mas sim “decorrência” dos princípios fundamentais, tais como o facto de o crime consistir, primeiramente, numa ofensa aos relacionamentos humanos e só depois numa ofensa à lei; a verificação de que com a existência do crime há danos para a vítima e oportunidades mediatas para o agente; o carácter voluntário da intervenção por parte dos intervenientes no processo de Justiça Restaurativa; a consensualidade no início e no decurso do processo e a existência de confidencialidade, estes sim são, para a autora, os verdadeiros princípios que delimitam “qualquer processo que vise a resolução de um litígio criminal fora da máquina judiciária estadual”.33 No seguimento de Cláudia Santos consideramos importante distinguir Justiça Restaurativa da mediação, uma vez que a mediação se reporta a um conceito “mais amplo do que a Justiça Restaurativa” pois enquanto que esta é direcionada apenas para questões criminais, a mediação pode ir de encontro a conflitos de diversas naturezas, como por exemplo, laboral ou familiar, no entanto a autora defende que de um outro ponto de vista se pode considerar a Justiça Restaurativa com um carácter mais amplo, apesar do exposto, “na medida em que [a mediação] constitui apenas um dos instrumentos” da Justiça Restaurativa. 34

31

FERREIRA, Ibidem, Op. Cit. P.40 e seguintes. ROBALO, Ibidem, Op. Cit. P.56. 33 ROBALO, Ibidem, Op. Cit. P.57. 34 SANTOS, Ibidem, Op. Cit. P.306 e 307. Cláudia Santos admite que apesar da mediação se poder considerar, eventualmente, o principal instrumento nos países europeus da Justiça Restaurativa, esta pode ser considerada mais ampla na medida em que este não será o único dos seus instrumentos. E, por outro lado, pode ser considerada menos ampla que a mediação uma vez que a mediação se pode dirigir a áreas para além do “fenómeno criminal”. 32

PÁGINA 11

Ainda em relação à celeridade e à economia de custos apontada por certos autores como princípios das práticas restaurativas, entre eles Francisco Ferreira, consideramos que se torna ainda mais evidente que não se tratam de princípios quando percebemos o fundamento da Justiça Restaurativa como considerado na decisão-quadro que a instituiu, isto é, com um fundamento ético, sendo fundamento essencial para a sua conformação, há que entender que o acordo não é a própria finalidade da Justiça Restaurativa.35

2.2- Estratégias e Objetivos A Justiça Restaurativa tem inerente um “elemento social” (que demonstra o crime como uma "disfunção das relações humanas”, isto é, o crime é um ato de uma pessoa uma contra a outra), um “elemento participativo ou democrático” (postula um envolvimento ativo das pessoas envolvidas no crime), e um “elemento reparador” (orienta-se para a reparação da vítima, isto é, do dano concretamente causado, indo ao “encontro das reais e concretas necessidades”).36 A expressão “reapropriação do conflito” de Niels Christie exprime, segundo muitos autores, um elemento essencial da Justiça Restaurativa, uma vez que se considera que a vítima, o infrator e a comunidade são os seus “legítimos proprietários” e o que se pretende é isso mesmo uma “reapropriação” para os “donos” considerados legítimos do conflito.37 No fundo o que se pretende é um contacto (direto ou indireto)38, um diálogo aberto e sem receios, a reparação dos danos que o crime originou, sendo certo que essa reparação pode passar por um pedido de desculpa, por uma

Todavia, a autora argumenta que apesar da proposta restaurativa estar circunscrita ao “universo criminal” a necessidade da intervenção restaurativa vai mais além, isto é, “mais do que o cometimento do crime” a Justiça Restaurativa exige a existência de uma “situação-problema tal como foi cunhada por Louk Hulsman.” Op. Cit. P. 307 Cfr. Sobre o âmbito de aplicação da Mediação vide tópicos 3 e seguintes do presente trabalho. 35 Neste sentido, SANTOS, Cláudia, Ibidem, Op. Cit. 36 MARQUES, Ibidem, Op. Cit. P. 274. 37 MARQUES, Op. Cit. P. 275 38 De onde se podem extrair elementos de encontro, narração, emoção, compreensão e acordo. MARQUES, Op. Cit. P. 279 e seguintes.

PÁGINA 12

mudança de comportamento, generosidade, arrependimento, restituição, indemnização, entre outros. E para além de tudo, pretende-se também a reintegração do agente, numa luta contra a estigmatização ao infrator (mesmo depois do cumprimento da pena), e a reintegração também da vítima ao retorno de uma vida física e mentalmente tão saudável quanto possível.39 Vários autores, corroboram as ideias inerentes à “teoria da vergonha reintegrativa” ou reintegrative shaming assim denominada pelo autor australiano Jonh Braithwaite na década de 80 que procura demonstrar as virtualidades de um procedimento que faça com que no infrator se consiga conciliar aquilo que aparentemente seria contraditório, isto é, uma “vergonha” que cause um bem, ou seja, “marcar ou estigmatizar o ato [que o infrator cometeu] como mau, mas procurando preservar a identidade do agente como essencialmente boa” procurando demonstrar uma desaprovação para que o infrator sinta “remorsos pelo mal que causou”40 e, desta forma, não volte a praticar esses atos. Nas palavras de John Braithwaite podemos distinguir então dois caminhos que a vergonha pode seguir, teremos uma vergonha contraproducente e uma vergonha producente, a vergonha será “contraproducente se empurrar o agente para as malhas das subculturas criminais; [por outro lado] a vergonha controla o crime quando for simultaneamente poderosa e derivada de cerimonias que tenham por objetivo reintegrar o agente na comunidade de cidadãos responsáveis (…)”41 ou seja, deriva da vergonha do agente com a prática daquele crime, algo benéfico, isto é, a facilitação da sua própria reintegração.42 Essa vergonha que o agente sentirá será tanto mais persuasiva quanto mais próximas forem as pessoas ao próprio agente

39

Neste sentido, MARQUES, Op. Cit. P.281. SANTOS, Cláudia Cruz, Op. Cit. P. 366. 41 BRAITHWAITE, John, in “Crime, Shame, and reintegration” apud Robalo, Op. Cit. P. 57. 42 ROBALO, Ibidem, Op. Cit. P.58. Vide “ a vergonha reintegrativa abrange as expressões da desaprovação comunitária, que tanto podem abranger uma leve reprimenda como cerimonias mais degradantes, [mas] que são seguidas por gestos de reaceitação na comunidade dos cidadãos cumpridores da lei. Estes gestos de reaceitação tanto podem variar entre um simples sorriso que expresse a desculpa e o amor até cerimonias bastante formais com o intuito de ser afastada a convicção de que o agente seja desviante. Ao invés, a vergonha desintegrativa (a estigmatização) divide a comunidade por criar uma classe de marginalizados” BRAITHWAITE, John, apud Robalo, Op. Cit. P. 58. 40

PÁGINA 13

que cometeu o crime. Atente-se ao exemplo dos bons pais que conseguem mostrar o seu sentimento de desaprovação perante certo comportamento dos seus filhos tido como um comportamento reprovável, sem que os filhos se sintam rejeitados pelos pais.43 Porém, seguindo inteiramente o pensamento de Cláudia Santos esta teoria demonstra-se questionável em vários aspetos, desde logo será duvidoso se conduz realmente a uma maior reintegração do agente, a autora questiona se “será suficiente rodear esses atos de um cerimonial de aceitação como parece supor Braithwaite”, haverá eficácia e novidade nesta opção?44 Outras críticas foram sendo apontadas pela doutrina, designadamente, por Roger Mattews que questiona, entre outros aspetos, “a compatibilidade do “ato de envergonhar” com a promoção da dignidade das pessoas que cabe ao Estado”, além do mais, as “representações sobre o dever ser” não são uniformes em todas as pessoas, de maneira que se assume uma certa complexidade em provocar a vergonha perante estas diferenças que a teoria parece delegar para o esquecimento, acresce ainda uma “dificuldade em comprovar a verdadeira eficácia preventiva das práticas inspiradas nesta teoria”,45 em nosso entendimento esta não se demonstra ser a via mais adequada à efetiva consciencialização do infrator. Porém, sublinhe-se que há autores que manifestam uma certa indiferença em relação a esta teoria, é o caso de Teresa L. Albuquerque e Sousa Robalo para quem é irrelevante se o arrependimento provém da vergonha sentida pela desaprovação alheia ou se provém de ter tomado um contato direto com o mal causado pelo crime. Não podemos concordar com esta posição, desde logo porque não podemos realçar de forma tão profunda os fins e desleixar os meios, não cremos que a Justiça Restaurativa passe pela busca exclusiva de fins, mas também numa cuidada atenção aos seus meios e esses meios importa, como referimos supra, uma 43

Exemplo dado por John Braithwaite apud SANTOS, Claudia Cruz, Op. Cit. P. 366. Cfr. Exemplo japonês, ROBALO, Op. Cit. P.60. 44 Op. Cit. P.367. “A objeção maior a esta teoria que pretende fundar a autonomia da proposta restaurativa na rejeição do comportamento e não na rejeição do autor do comportamento é, assim, a de ela ser inadequada à distinção entre a justiça restaurativa e uma justiça penal que seja – como deve ser – também ela baseada em um estrito direito penal do facto, e não do seu agente. E que, para além disso, assuma como finalidade a reintegração do agente através da sua socialização.” 45 SANTOS, Cláudia Cruz, Op. Cit. P. 368.

PÁGINA 14

consciencialização do infrator pelo mal cometido e não pela vergonha sentida com o mal cometido, importa que se atente aos fatos que infrator cometeu e na sua

responsabilização

sincera

por

estes,

colocando

em

causa

esta

consciencialização parece ser colocar em causa a verdadeira inovação que nos trouxe a proposta restaurativa. Além de que devemos ter em conta as criticas supra apontadas por Roger Mattews.

2.3- As eventuais (des)vantagens Numa caminhada por uma reflexão equilibrada dos contornos da Justiça Restaurativa cumpre atentar as suas eventuais (des)vantagens. É imperioso reconhecer as vantagens, os méritos desta proposta, desde logo para as vítimas que podem manifestar os seus sentimentos e necessidades específicas, reflexo das consequências de determinado crime46 e verem as suas privações concretas serem reparadas, quer estejamos perante danos materiais ou não materiais, havendo uma maior individualização das respostas da justiça tendo em conta cada caso concreto e os seus específicos contornos.47 Por outro lado, os infratores, têm uma verdadeira oportunidade de reinserção social, compreensão e responsabilização gerada pelo canal (direto ou indireto) do diálogo e da tomada de consciência da repercussão das consequências dos seus atos. Note-se que através deste tipo de perceção, de tomada de consciência, podemos acreditar numa maior eficácia da prevenção, assumida através desta consciencialização concreta. Crê-se possível também um ganho para a comunidade através da “recuperação da paz social”, na “aproximação dos cidadãos da realização da

46

Cfr. MARQUES, Ibidem, Op. Cit. P. 275 e seguintes. Na esteira de Frederico Moyano Marques cremos que só o autor do crime pode responder a certas questões essenciais para a verdadeira “paz” da vítima, tais como: porque é que fez o que fez, porquê a mim, será que eu fiz alguma coisa que proporcionasse ou provocasse o crime, etc. Serve também para afastar medos e receios sobre o infrator, tais como: será que ele vai voltar? Estarei eu em perigo? 47 MARQUES, Ibidem, Op. Cit. P.276.

PÁGINA 15

justiça”, na redução dos custos do aparelho judiciário e na redução também do impacto do encarceramento na comunidade, entre outros.48 Todavia, a proposta restaurativa nutre também dificuldades, como é o caso do problema dos agentes imputáveis e que cometeram crimes graves, os casos de ausência de vontade de participação nas práticas restaurativas, os chamados “crimes sem vítimas”, e os “contextos de grande desigualdade.”49 Há quem argumente que a Justiça Restaurativa debilita os direitos fundamentais das pessoas.50 Richard Delgado entende até que as vitimas no âmbito da Justiça Restaurativa estão constrangidas a perdoar o infrator numa fase em que ainda não estão psicologicamente preparadas,51 neste aspeto concordamos com a opinião de Teresa L. Albuquerque e Sousa Robalo quando manifesta a sua discordância argumentando que as vitimas em causa serão maiores e por isso totalmente capazes de construírem os seus juízos de valor, sendo certo que, para além do mais participarão livre e voluntariamente num processo em que conhecem previamente os seus contornos.52

48

Cfr. MARQUES, Ibidem, Op. Cit. P.275 e seguintes. Para uma visão mais completa vide SANTOS, Cláudia Cruz, Ibidem, Op. Cit. P. 588 e seguintes. 50 ROBALO, Ibidem, Op. Cit. P.84. Designadamente, porque o infrator sobre pressão se vê constrangido a aceitar a responsabilização dos seus atos perante órgãos não judiciais. 51 DELGADO, Richard apud Robalo, Op. Cit. P. 87. 52 Op. Cit. P. 87. 49

PÁGINA 16

3- A concretização da Justiça Restaurativa na Mediação Penal 3.1- Âmbito de aplicação Não obstante a sua sedimentação em princípios, valores e determinadas características comuns, a Justiça Restaurativa conhece diversas vias de concretização, fundamentando-se essas diferenças quiçá “nas origens culturais que os inspiram”.53 No presente trabalho pretendemos dar um enfoque à Mediação Penal como via de concretização da Justiça Restaurativa. Porém, antes de mais, cumpre distinguir os conceitos, isto é, a mediação nutre um conceito mais amplo do que a Justiça Restaurativa, uma vez que esta só é direcionada para questões criminais, sendo certo que a mediação se pode destinar à resolução “de conflitos interpessoais de várias naturezas”, como será o caso de conflitos no âmbito laboral ou familiar.54 Pode, no entanto, a Justiça Restaurativa ser considerada como um conceito mais amplo, ainda que só direcionado a questões criminais, no sentido em que a mediação é apenas um dos instrumentos ou vias de que dispõe a Justiça Restaurativa.55 Pretendemos refletir concretamente na mediação penal como uma via de concretização da proposta restaurativa. Conforme a definição dada pelo Uniform Mediation Act da National Conference of Comissioners on Uniform State Laws “a mediação significa um processo em que o mediador facilita a comunicação e a negociação entre os sujeitos e auxilia-os a chegarem a um acordo voluntário atinente ao litígio que os opõe”.56 Apoiadas pelo art.º 4 n.º1 e art.º 6 n.º1 da Lei 21/2007 de 12 de Junho, sobressaem características nucleares como a flexibilidade, informalidade57,

53

MARQUES, Ibidem, Op. Cit. P.283. SANTOS, Cláudia Cruz, Op. Cit. P. 305 e 306. 55 SANTOS, Cláudia Cruz, Op. Cit. P.306. 56 LEITE, André Lamas, “A mediação Penal de Adultos – Um novo «paradigma» de Justiça? Análise crítica da Lei n.º 21/2007 de 12 de Junho”, 2008, Coimbra Editora, P. 41. 57 Cfr. Art.º 4 da Lei n.º 21/2007 de 12 de Junho “1- A mediação é um processo informal e flexível, conduzido por um terceiro imparcial, o mediador, que promove a aproximação entre o arguido e o ofendido e os apoia na tentativa de encontrar 54

PÁGINA 17

voluntariedade de participação dos mediados nesta via de diversão através de um consentimento completamente livre e esclarecido sendo as partes totalmente informadas sobre os contornos do que é possível acontecer, sendo certo que todo o processo se orienta “para a reparação de danos advenientes do crime e para a satisfação das necessidades preventivas especiais e gerais.”58 O papel do mediador como um terceiro imparcial é característica nuclear na mediação penal, sendo certo que a sua função não é impor um acordo mas sim o de promover a interação entre vítima e infrator, auxiliando assim a que cada um dos intervenientes assuma um papel ativo na construção de cada solução em concreto, a solução mais equilibrada para ambos.59 No processo penal português nota-se a crescente amplificação dos espaços de resolução consensual do conflito e a mediação penal é o mais recente instrumento legal ao serviço da Justiça Restaurativa e está consagrada na Lei 21/2007 de 12 de Junho60 em concretização do art.º10 da decisão-quadro

ativamente um acordo que permita a reparação dos danos causados pelo facto ilícito e contribua para a restauração da paz social.” Cfr. Art.º 6 da Lei n.º 21/2007 de 12 de Junho “1- O conteúdo do acordo é livremente fixado pelos sujeitos processuais participantes, sem prejuízo do disposto no número seguinte.” 58 LEITE, Ibidem, Op. Cit. P.42. Cfr. FERREIRA, Ibidem, Op. Cit. P. 73 e seguintes. 59 MARQUES, Ibidem, Op. Cit. P.284. Cfr. A mediação penal constitui uma forma de composição de interesses e não de definição de direitos. FERREIRA, Ibidem, Op. Cit. P.41. Cfr. Art.º 10 da Lei n.º 21/2007 de 12 de Junho “1- No desempenho das suas funções, o mediador penal deve observar os deveres de imparcialidade, independência, confidencialidade e diligência. 2 - O mediador penal que, por razões legais, éticas ou deontológicas, não tenha ou deixe de ter assegurada a sua independência, imparcialidade e isenção deve recusar ou interromper o processo de mediação e informar disso o Ministério Público, que procede à sua substituição de acordo com o previsto no n.º 1 do artigo 3.º 3 - O mediador penal tem o dever de guardar segredo profissional em relação ao teor das sessões de mediação. 4 - O mediador penal fica vinculado ao segredo de justiça em relação à informação processual de que tiver conhecimento em virtude de participação no processo de mediação. 5 - Não é permitido ao mediador penal intervir, por qualquer forma, nomeadamente como testemunha, em quaisquer procedimentos subsequentes à mediação, como o processo judicial ou o acompanhamento psicoterapêutico, quer se tenha aí obtido ou não um acordo e ainda que tais procedimentos estejam apenas indiretamente relacionados com a mediação realizada.” 60 CARMO, Rui, “Um exercício de leitura do regime jurídico da mediação penal” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 20, n.º3, Julho-Setembro, 2010, Coimbra Editora, P.451.

PÁGINA 18

n.º2001/200/JAI do Conselho de 15 de Março. A mediação penal pode abranger os processos que se encontrem na fase de inquérito61, em crimes cujo procedimento depende de acusação particular e os crimes contra as pessoas e contra o património cujo procedimento dependa de queixa, desde que a pena aplicável não seja superior a 5 anos de prisão e o ofendido não seja menor de 16 anos62. Fora deste âmbito de aplicação ficam, designadamente, os crimes públicos, nas palavras de André Lamas Leite admitir este mecanismo de diversão nos crimes públicos, seria introduzir “entorses ao entendimento de bem jurídico fundante do étimo da essência da materialidade definidora do delito”, para além de que existe uma indisponibilidade tendencialmente absoluta dos bens jurídicos protegidos, a que se acrescenta a situação de em princípio “ser essencial a intervenção da «tradicional» via de condução do processo a fim de cumprir as exigências descritas no art.º 40 CP”.63 Ficam também excluídos do âmbito de aplicação da mediação penal os crimes em que o ofendido é menor de 16 anos,64 quando esteja em causa crime

61

Cfr. LEITE, Ibidem, Op. Cit. P. 57. Cfr. LEITE, Ibidem, Op. Cit. P. 62. 63 Op. Cit. P. 56. Cfr. ROBALO, Ibidem, Op. Cit. P. 141, “ (…) a adoção de um sistema que permitisse a resolução definitiva da questão penal independentemente da natureza do crime seria perverso e, mais ainda, perigoso. Não conseguimos imaginar um ordenamento jurídico como o nosso onde os crimes mais graves fossem retirados das mãos dos juízes, podendo ser resolvidos por meio de acordo.”; Cfr. “A pena é um mal necessário” Germano Marques da Silva, apud Robalo, Op. Cit. P. 141. 64 CARMO, Ibidem, Op. Cit. P. 455 e seguintes; Cfr. ALMEIDA, Carlota Pizarro, “Diferentes versões do consenso: suspensão provisória do processo e mediação penal”, in Revista do CEJ, 2º semestre 2011, n.º16, Almedina Editora. P. 106 e seguintes. Cfr. Art.º 2 da Lei n.º 21/2007 de 12 de Junho “1- A mediação em processo penal pode ter lugar em processo por crime cujo procedimento dependa de queixa ou de acusação particular. 2- A mediação em processo penal só pode ter lugar em processo por crime que dependa apenas de queixa quando se trate de crime contra as pessoas ou de crime contra o património. 3- Independentemente da natureza do crime, a mediação em processo penal não pode ter lugar nos seguintes casos: a) O tipo legal de crime preveja pena de prisão superior a 5 anos; b) Se trate de processo por crime contra a liberdade ou autodeterminação sexual; c) Se trate de processo por crime de peculato, corrupção ou tráfico de influência; d) O ofendido seja menor de 16 anos; e) Seja aplicável processo sumário ou sumaríssimo. 4 - Nos casos em que o ofendido não possua o discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa ou tenha morrido sem ter renunciado à queixa, a mediação pode ter lugar com intervenção do queixoso em lugar do ofendido. 62

PÁGINA 19

contra a liberdade ou autodeterminação sexual, crime de peculato65, corrupção ou tráfico de influência e crime em que seja aplicável processo sumário ou sumaríssimo66. Em conformidade com o disposto no art.º3 da Lei n.º21/2007 de 12 de Junho, o processo pode ser remetido para mediação penal no decurso do inquérito, havendo indícios de que o crime foi cometido por aquele agente e quando o MP dispor de elementos suficientes para o correto enquadramento jurídico-penal dos factos, pois enquanto assim não for há o risco de remeter para a mediação casos em

cuja

qualificação

jurídica

não

permitiria

essa

remessa,67

acresce

cumulativamente a existência de um “juízo de prognose favorável quanto à reparação dos danos do fato ilícito.68 É ainda necessário que o MP transmita ao mediador que for designado todas as informações importantes para o bom desempenho das suas funções o que, na esteira de Carlota Pizarro de Almeida, “pressupõe que já tenha um conhecimento mais do que incipiente das circunstâncias que rodeiam a prática do facto.”69

5 - Nos casos referidos no número anterior, as referências efetuadas na presente lei ao ofendido devem ter-se por efetuadas ao queixoso.” 65 Cfr. LEITE, Ibidem, Op. Cit. P.66. 66 Cfr. Art.º 381 CPP; art.º 392 CPP; art.º 2/3/e) Lei n.º 21/2007 de 12 de Junho. Cfr. Carlota Pizarro de Almeida, faz-nos refletir sobre a opção do legislador em excluir o sistema de mediação penal em processos sumário e sumaríssimo, a autora crítica que esta opção “trai uma perspetiva que encara este sistema apenas como uma forma de abreviar os prazos de conclusão dos processos – relegando para segundo plano as muitas outras vantagens que o sistema de mediação proporciona.” Op. Cit. P. 109 e 110. Cfr. Neste sentido também Rui do CARMO, o autor precisa que “não se vislumbra qualquer razão substantiva justificativa destas duas exceções à aplicação da mediação penal.” Op. Cit. P. 473 e 474. 67 ALMEIDA, Ibidem, Op. Cit. P. 106. Cfr. Art.º3 da Lei n.º21/2007 de 12 de Junho. 68 LEITE, André Lamas, “A mediação penal de adultos – um novo «paradigma» de justiça? – análise crítica da lei n.º 21/2007 de 12 de Junho”, 2008, Coimbra Editora, P.71 e 72. 69 Op. Cit. P.107.

PÁGINA 20

3.2- Análise das suas potencialidades O principal objetivo da mediação será conseguir a reparação da vítima e a atribuição a esta de uma posição mais ativa na resolução do litígio do que ela teria no processo dito “tradicional”, promovendo a resolução do litígio e a reconciliação entre as partes70. De acordo com Germano Marques da Silva71 são três as finalidades da mediação: assegurar a reparação dos danos causados à vítima, restaurar a ordem pública (só há mediação se considerar-mos que ela é uma possível resposta às exigências de prevenção geral e especial que se façam sentir no caso concreto) e ressocializar o agente da infração. A reparação pode ser obtida, por exemplo, através de um pedido de desculpas, de uma promessa do infrator de que não voltará a cometer a infração, a prestação de trabalho a favor da comunidade, etc.72 Há, porém, autores que entendem que o principal objetivo da mediação e de outros métodos de resolução alternativa de litígios seria o alívio da sobrecarga dos tribunais. Porém, tal é uma visão muito redutora do que é a mediação e dos seus benefícios73. Muitos são os benefícios que se podem apontar ao instituto da mediação penal. Ao invés do que acontece com o sistema de justiça tradicional, aquela permite uma participação ativa das partes, deixando-as contar a sua história e permitindo-lhes a procura de soluções de forma conjunta. Esta forma de resolução de conflitos contribui para ajudar o ofendido a ultrapassar o trauma de ter sido vítima de um crime e faz com que o infrator se veja como um sujeito e não objeto do processo penal. Uma vez que o objetivo da mediação não é apenas a resolução do litígio mas também uma reconciliação entre as partes, este mecanismo contribui ainda para a reintegração do agente e para a pacificação social. Além

70

CRISÓSTOMO, Cátia Caetano, Sistema Criminal de Justiça e Mediação Penal – Âmbito de Aplicação da Lei nº 21/2007; sob a orientação da professora Doutora Cláudia Santos. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2009. Dissertação de Mestrado. p. 23. 71 SILVA, Germano Marques da, apud CRISÓSTOMO, Cátia Caetano, Ob. Cit. p. 24. 72 CRISÓSTOMO, Cátia Caetano, Ob. Cit. p. 24. 73 Idem. p. 25.

PÁGINA 21

disso, a mediação penal é um processo célere, informal e flexível e permite que o conflito seja tratado com confidencialidade. 74 Em termos pessoais podemos ainda frisar a melhoria da relação entre as partes (ou pelo menos, evita que esta se degrade), uma vez que promove uma aproximação, uma colaboração entre as partes na abordagem ao problema, permitindo-lhes tratar o conflito nos moldes fixados por si e não de acordo com critérios estabelecidos por outras entidades. Podemos mesmo dizer aqui que “a mediação penal possibilita a efetiva reparação pessoal, uma vez que são as partes que criam a solução para o problema, reduzindo assim o desgaste emocional dos seus intervenientes”75. Outra vantagem que podemos retirar da mediação é o facto de se tratar de um processo livre de custas para as partes (o que não significa que não tenha custos para o Estado mas estes serão muito inferiores quando comparados com os custos dos processos judiciais)76. Como

desvantagem

podemos

enumerar

o

problema

da

sua

compatibilização com alguns princípios básicos do nosso sistema penal, por exemplo, os princípios da legalidade, da presunção da inocência, do direito ao defensor, da publicidade do processo, da proporcionalidade, da adequação, etc.77. Outra desvantagem será, de acordo com Germano Marques da Silva, o perigo da não reafirmação solene da norma violada e a consequente diminuição do efeito preventivo do direito processual penal78. No entanto, pesando os prós e os contras da mediação penal, parece-nos que os seus benefícios superam em grande parte as desvantagens que lhe são apontadas.

74

ANDRADE, Alexandra Maria de Oliveira, Justiça Restaurativa e Mediação Penal: Uma nova perspetiva de realização da Justiça; sob a orientação da professora Doutora Cláudia Santos. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2009. Dissertação de Mestrado. p. 38. 75 ANDRADE, Alexandra Maria de Oliveira, Ob. Cit. p. 38. 76 CRISÓSTOMO, Cátia Caetano, Ob. Cit. p. 25. 77 Ibid. p. 25. 78 SILVA, Germano Marques da, apud CRISÓSTOMO, Cátia Caetano, Ob. Cit. p. 24.

PÁGINA 22

4- Reflexos da mediação em Portugal: o caso particular da Lei nº 21/2007, de 12 de Junho A mediação penal em Portugal não se circunscreve apenas à Lei nº 21/2007, de 12 de Junho, também designada por mediação penal “de adultos”. O primeiro campo a ser abrangido, entre nós, pela mediação penal foi o da denominada “delinquência juvenil”. Assim, apareceu a Lei Tutelar Educativa (Lei nº 166/99, de 14 de Setembro) cujo âmbito de aplicação se destina, de acordo com o seu art. 1º, a factos praticados por menores, com idade compreendida entre 12 e 16 anos, que sejam qualificados como crime79. Posteriormente, em 2009, foi aprovada a Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, que prevê a possibilidade de haver um “encontro restaurativo” entre a vítima e o agressor, no qual possa estar presente um mediador, apesar de ainda ser bastante controversa a possibilidade de aplicação de práticas restaurativas relativamente aos crimes de violência doméstica80. Por fim, cumpre ainda fazer uma breve referência à chamada mediação pós-sentencial, prevista desde 2009 no Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, que dá a possibilidade de o recluso que esteja a cumprir pena poder participar em sessões de mediação penal com o ofendido81.

79

SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 666.

Cf. Artigo 1º da Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro: “A prática, por menor com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos, de facto qualificado pela lei como crime dá lugar à aplicação de medida tutelar educativa em conformidade com as disposições da presente lei.” 80 SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. pp. 669 e 725. Cf. Artigo 39º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro: “Durante a suspensão provisória do processo ou durante o cumprimento da pena pode ser promovido, nos termos a regulamentar, um encontro entre o agente do crime e a vítima, obtido o consentimento expresso de ambos, com vista a restaurar a paz social, tendo em conta os legítimos interesses da vítima, garantidas que estejam as condições de segurança necessárias e a presença de um mediador penal credenciado para o efeito.” (itálicos nossos) 81 SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. pp. 669 e 670. Cf. Artigo 47º da Lei nº 115/2009, de 12 de Outubro: “4 - O recluso pode participar, com o seu consentimento, em programas de justiça restaurativa, nomeadamente através de sessões de mediação com o ofendido.”

PÁGINA 23

Apesar de existirem vários instrumentos que privilegiam a mediação penal como forma de resolução de conflitos no ordenamento jurídico português será sobre à mediação penal “de adultos” que nos iremos debruçar neste trabalho.

4.1- As principais figuras da mediação Para que a mediação ocorra é preciso que existam várias figuras: as partes e o mediador. Relativamente às partes, de acordo com o art. 3º, nº 5 da Lei nº 21/2007, de 12 de Junho, exige-se que o ofendido e o arguido prestem o seu consentimento livre, esclarecido e informado. Já no que concerne ao mediador dispõe o art. 10º, nº1 do mesmo diploma a necessidade de ele conter notas como a imparcialidade, independência, confidencialidade e diligência como requisitos essenciais para poder participar na mediação82. Analisaremos, de seguida, cada uma das principais figuras e o seu papel no processo de mediação penal. Relativamente à vítima, enquanto no processo tradicional ela tinha uma intervenção muito reduzida, agora participa de forma ativa e direta, tendo a possibilidade de resolver o conflito por ela mesma. No entanto, é necessário que seja efetuada uma observação ao perfil da vítima com o intuito de perceber se esta manifesta uma personalidade débil e influenciável, pois se assim for ela é facilmente manipulável pelo delinquente. É ainda necessário que o mediador tenha conhecimento de eventuais experiências anteriores de vitimização, bem como da existência de um suporte proveniente dos amigos e familiares, devendo ser excluídas as vítimas que sejam movidas por desejos de vingança83.

82

Cf. Artigo 3º da Lei nº 21/2007, de 12 de Junho: “5 - O mediador contacta o arguido e o ofendido para obter os seus consentimentos livres e esclarecidos quanto à participação na mediação, informando-os dos seus direitos e deveres e da natureza, finalidade e regras aplicáveis ao processo de mediação, e verifica se aqueles reúnem condições para participar no processo de mediação. “ Artigo 10º da supra citada Lei: “1 - No desempenho das suas funções, o mediador penal deve observar os deveres de imparcialidade, independência, confidencialidade e diligência.” 83

FERREIRA, Catarina Alexandra da Silva, Mediação Penal: Realidade ou Ilusão? ; sob a orientação da professora Doutora Cláudia Santos. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2009. Dissertação de Mestrado. p. 23.

PÁGINA 24

Os fatores que podem influenciar a vítima a participar na mediação são vários, desde a possibilidade de confrontar o agressor com a sua responsabilidade, a vontade de sensibilizar o agressor para as consequências dos seus atos, a tentativa de perceber porque foi ela a vítima daquele crime e o desejo de restituição e de reparação dos danos sofridos, etc. No entanto, sentimentos como a raiva e o medo e algum ceticismo quanto à possibilidade de chegarem a acordo são fatores que podem levar a vítima a não querer participar na mediação84. De acordo com Catarina Ferreira, muitas vezes “um importante resultado qualitativo da mediação é o processo partilhado que cada uma das partes experimenta, e atingir ou não o acordo surge apenas como um demonstrador parcial de êxito”, ou seja, o mais importante no processo de mediação nem sempre é atingir um acordo mas sim a experiência que as partes partilham. Apesar de tudo isto, é óbvio que quando não se consegue chegar a um acordo há como que um desapontamento da vítima, que tinha esperança de que a mediação tivesse sucesso85. O infrator, tal como a vítima, também tem que ser avaliado, especialmente para evitar que participem na mediação penal infratores com perfil psicopático. O agressor terá aqui a oportunidade de se desculpar perante a vítima e proporcionarlhe uma reparação justa pelos danos sofridos. Diz-nos Raúl Esteves que “a verdade e o arrependimento constituirão a base de todo o processo” 86. O agressor beneficia ainda de uma prerrogativa: pelo facto de assumir a sua responsabilidade, ela apenas dizer respeito aos principais factos relevantes. Não se exige na mediação uma confissão da culpa, pois se assim fosse estaríamos perante uma violação do princípio da presunção da inocência. É também por causa deste princípio que a participação na mediação não pode ser usada contra o acusado no caso de reenvio do processo para as autoridades judiciárias e uma confissão de culpa nas sessões de mediação não pode servir como prova no

84

Ibid. p. 23. FERREIRA, Catrina Alexandra da Silva, Ob. Cit. p. 24. 86 ESTEVES, Raúl, apud, FERREIRA, Catrina Alexandra da Silva, Ob. Cit. p. 25. 85

PÁGINA 25

processo criminal. No entanto, e apesar de este ser o entendimento dominante na doutrina, não é unânime para todos os autores87. Por último, cumpre-nos falar do mediador. Ele vai ser decisivo para o sucesso da mediação, aproximando as partes, visando encontrar uma solução que agrade a ambas e que permita a reparação dos danos causados pela prática do facto ilícito. Por essa razão exige-se, como já foi dito, que o mediador reúna algumas características como a imparcialidade, a independência, a diligência e a confidencialidade, entendida no sentido de guardar segredo profissional e também segredo de justiça. Além disso, o mediador tem que ter uma formação específica: o curso de mediador, reconhecido pelo Ministério da Justiça, de acordo com o art. 12º, nº1, al. d) da Lei88. Seguindo Catarina Ferreira e uma vez que a lei apenas diz relativamente à formação profissional que tem que ser a adequada, faz sentido que o mediador seja uma pessoa ligada a áreas como a psicologia, a sociologia, entre outras, e que além disso, tenha os conhecimentos jurídicos necessários ao exercício da profissão89.

4.2- A pluralidade ofendidos Diz-nos Cláudia Santos que a Lei nº 21/2007, de 12 de Junho é minimalista, não só relativamente ao âmbito de aplicação da mediação (pois esta é restringida a certo tipo de crimes e só pode ser utilizada na fase de inquérito) mas também no sentido em que deixa sem resposta expressa várias questões que deveriam ter sido consagradas. Uma dessas questões prende-se com a “delimitação exata do

87

FERREIRA, Catrina Alexandra da Silva, Ob. Cit. p. 25. FERREIRA, Catrina Alexandra da Silva, Ob. Cit. p. 27. Cf. Artigo 12º da Lei 21/2007, de 12 de Junho: “1 — As listas de mediadores penais são preenchidas mediante um procedimento de seleção, podendo candidatar-se quem satisfizer os seguintes requisitos: (…) d) Estar habilitado com um curso de mediação penal reconhecido pelo Ministério da Justiça;” 89 FERREIRA, Catrina Alexandra da Silva, Ob. Cit. pp. 27 e 28. 88

PÁGINA 26

número de participantes” (pretendendo, com isto, interrogar-se se a Lei pressupõe que haja a intervenção de um mediador, um ofendido e um arguido, ou se consagra antes a participação de outros ofendidos, outros arguidos ou outras pessoas que tenham alguma conexão com aquele conflito, em particular) e ainda com a “definição exata do sentido da intervenção dos vários sujeitos e do modo da sua participação” (aqui caberão as questões relativamente à possibilidade, ou não, de o arguido e o ofendido estarem acompanhados de advogado ou advogado estagiário)90. Neste primeiro momento iremos debruçar-nos sobre a problemática dos ofendidos. As questões que respeitam à participação do ofendido na mediação penal colocam-se em dois casos: quando há uma inexistência e uma pluralidade de ofendidos. Quando se fala aqui em inexistência de um ofendido, pensamos nos chamados “crimes de vítima abstrata” (em que ninguém se sente ofendido) ou nos “crimes sem vítima” (em que não há um ofendido mas existem várias e indeterminadas vítimas). Dentro da pluralidade de ofendidos cairão aqueles casos em que do crime resultam vários ofendidos, “individualizáveis e conscientes da sua vitimização”91. Relativamente à inexistência de ofendidos, no anteprojeto, que admitia a mediação para alguns crimes públicos puníveis com pena de prisão não superior a cinco anos, parecia que havia uma exclusão da possibilidade de mediação quando não houvesse um ofendido que assumisse, individualmente, esse papel92. John Braithwaite a propósito dos crimes de colarinho branco (que muitas vezes causam uma vitimização abstrata) defende as vantagens da justiça restaurativa e da reparação dos danos causados, preterindo aqui a justiça punitiva. Para ele, por exemplo, os poluidores poderiam desenvolver programas de recuperação ambiental, as empresas farmacêuticas que tivessem praticado crimes poderiam fornecer gratuitamente medicamentos a certos segmentos da população, etc.93

90

SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. pp. 683 e 684. SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. pp. 684 e 685. 92 SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 685. 93 BRAITHWAITE, John, apud, SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 685. 91

PÁGINA 27

De acordo com Cláudia Santos, não existe uma impossibilidade absoluta de recurso a práticas restaurativas (maxime à mediação penal), mesmo para aqueles crimes em que não haja vítimas que começam por se assumir individualmente como ofendidos, desde que haja a possibilidade de identificar sujeitos ou associações de sujeitos que acabem por se reconhecer como portadores mais próximos ou diretos dos interesses lesados. E isso entende-se com recurso a um exemplo: havendo a consumação de um crime ambiental, apesar do carácter difuso da ofensa ao bem jurídico supra-individual, é possível haver aqui práticas restaurativas quando existam cidadãos ou grupos de cidadãos que pretendam participar em reuniões com o agente com o intuito de favorecer a reparação, através do cumprimento de um acordo. No entanto, e tendo em conta o âmbito material da Lei nº 21/2007, de 12 de Junho, também não parece possível esta opção no regime português da mediação penal, sendo que faria mais sentido aplicar, a estes casos, outro tipo de práticas restaurativas que não a mediação penal94. Relativamente àqueles casos designados por pluralidade de ofendidos será possível haver mediação penal? Cláudia Santos entende que o silêncio do legislador não deve significar uma exclusão imediata da possibilidade de mediação quando existam vários ofendidos. No entanto, há que distinguir aqui dois tipos de casos: terão que ser individualizados os casos em que existem vários ofendidos pela prática de um só crime (por exemplo, A furta um veiculo de que são proprietários B e C) daqueles casos em que um mesmo agente comete várias infrações, lesando os interesses de pessoas distintas (por exemplo, A furtou uma bicicleta pertencente a B e, posteriormente, outra bicicleta cuja propriedade pertence a C)95. Se ao agente forem imputados vários crimes em concurso que caibam dentro do âmbito de aplicação da Lei nº 21/2007, de 12 de Junho, havendo, relativamente a cada um deles, um único ofendido, a possibilidade de mediação

94 95

SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 686. SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 687.

PÁGINA 28

será avaliada para cada um, em função dos interesses dos envolvidos em cada um dos conflitos criminais96. Mais complexos serão aqueles casos em que ao agente é imputada uma infração que originou a existência de vários ofendidos. Se os dois ofendidos manifestarem disponibilidade para participarem na mediação penal não haverá aqui nenhum problema. Dificuldades surgirão quando apenas um dos ofendidos deseja a mediação ou, no caso de ambos os ofendidos terem participado na mediação, apenas um deles considera o acordo satisfatório. Nestes casos, e seguindo a opinião de Cláudia Santos, estar a dar relevo à mediação que é pretendida apenas por um dos ofendidos (ou cujo acordo apenas satisfez um dos ofendidos) no sentido de afastar a resposta penal seria manifestamente abusivo na perspetiva do ofendido que não se sentiu reintegrado com a mediação ou não quis mesmo nela participar e estaríamos a privá-lo de uma via de acesso à justiça ao obriga-lo a aceitar a mediação que não o satisfez ou na qual nem sequer pretendeu fazer parte97.

4.3- A pluralidade de arguidos Outra questão que também não vem expressamente consagrada na Lei nº 21/2007, de 12 de Junho, é o caso de haver uma pluralidade de agentes. Por exemplo, A e B agridem C, que apresenta queixa por ofensa à integridade física simples. O ofendido C pretende recorrer à mediação; o agressor A quer participar na mediação de forma séria e empenhada e chega até a acordo com o ofendido, acordo este considerado satisfatório. Porém, o agressor B não pretende participar na mediação. Aqui há duas questões que suscitam dúvidas: se um arguido não pretender participar na mediação esse facto obsta de imediato à possibilidade de mediação entre o outro arguido e o ofendido? Será que os efeitos da mediação

96 97

SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 687. SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 689.

PÁGINA 29

bem sucedida entre um dos arguidos e o ofendido deverão aproveitar também ao outro arguido?98 Relativamente à primeira questão, parece-nos, seguindo Cláudia Santos, que a rejeição da mediação por um dos arguidos não deve privar o outro da possibilidade de recorrer à mediação (uma vez que esta é mais vantajosa porque é uma solução não punitiva)99. Já no que diz respeito à segunda questão o caso torna-se mais complexo. Sabendo nós que, relativamente às consequências de um acordo obtido através da mediação penal, a assinatura desse mesmo acordo equivalerá a uma desistência da queixa por parte do ofendido (de acordo com o art. 5º, nº4 da Lei nº 21/2007, de 12 de Junho) e a desistência de queixa relativamente a um dos comparticipantes aproveitar aos outros (segundo o art. 116º, nº3 do Código Penal), o que devemos perguntar é fará sentido este regime da desistência de queixa passar, sem mais, para o regime da desistência de queixa que está subjacente à mediação penal100. A opinião aqui defendida por Cláudia Santos e com a qual concordamos é a de que esse entendimento seria pouco coerente com o fundamento e as finalidades da mediação penal enquanto instrumento de justiça restaurativa. Existem diferenças expressivas entre a desistência de queixa prevista no Código Penal e esta que resulta da mediação em que se chegou a um acordo: a primeira pode ser designada de simples porque existe no processo desligada de qualquer esforço do agente para reparar os danos causados e a segunda significará (em regra) o reconhecimento pelo ofendido do empenho do agente na admissão da

98

SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 690. SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 690. 100 Ibidem. p. 690. Cf. Artigo 5º da Lei nº 21/2007, de 12 de Junho: “4 — No caso previsto no número anterior, a assinatura do acordo equivale a desistência da queixa por parte do ofendido e à não oposição por parte do arguido, podendo o ofendido, caso o acordo não seja cumprido no prazo fixado, renovar a queixa no prazo de um mês, sendo reaberto o inquérito.” Artigo 116º do Código Penal: “3 - A desistência da queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, salvo oposição destes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa.” 99

PÁGINA 30

sua responsabilidade e na reparação dos prejuízos causados. Por esse facto, o empenho do agente na participação na mediação e o esforço no sentido da reparação dos prejuízos causados, que muitas vezes levam a que se assumam deveres que se podem prolongar o tempo, entende-se que estas circunstâncias levam a que esta segunda desistência de queixa tenha um carácter marcadamente pessoal. Em consequência, disso a desistência de queixa derivada da obtenção de um acordo através da mediação penal será de “comunicabilidade” muito duvidosa. Pelo contrário, receia-se que uma “não-comunicabilidade” possa favorecer acordos indevidos entre um dos arguidos e o ofendido, que terminarão com a responsabilização apenas do outro arguido, ao contrário do que é pretendido pelo legislador101.

4.4- A função do advogado O legislador, de acordo com o art. 8º da Lei nº 21/2007, de 12 de Junho, ficou “a meio caminho” entre a obrigatoriedade da presença do advogado ou a interdição da sua participação nas sessões de mediação penal, optando por permitir essa participação mas sem clarificar os moldes em que esta ocorre102. A este propósito cumpre-nos tentar perceber se é admitida a participação de advogado nas sessões de mediação e, no caso de ser admitida em que moldes é que ela poderá ocorrer. Relativamente à primeira questão há duas posições opostas: a dos que defendem que é inerente às práticas restaurativas a existência de um “empoderamento” do conflito pelo arguido e pelo ofendido, sendo indesejável a participação de um advogado; e a dos que defendem que a presença obrigatória do advogado resulta do direito dos participantes na mediação a ter

101

SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. pp. 690 e 691. SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 692. Cf. Artigo 8º da Lei nº 21/2007, de 12 de Junho: “Nas sessões de mediação, o arguido e o ofendido devem comparecer pessoalmente, podendo fazer-se acompanhar de advogado ou de advogado estagiário.” 102

PÁGINA 31

aconselhamento jurídico, uma vez que estão em causa decisões que poderão colocar em causa interesses seus que mereçam proteção103. É quase unânime que na fase inicial da mediação o advogado será quem melhor poderá ajudar às partes a seguir o caminho mais correto para a resolução do litígio, pois ele irá aconselhar e informar as partes sobre as possibilidades e consequências do processo penal tradicional e do processo de mediação e quais as vias que melhor acautelam os interesses das partes. No entanto, relativamente às sessões de mediação propriamente ditas, há ainda muita controvérsia sobre a aceitação da participação de advogado nas mesmas104. A nossa opinião, seguindo Ana Guerra, é a de que o advogado não irá desvirtuar a mediação ao intervir nesta, uma vez que ele não terá o seu papel “normal”, enquanto representante do arguido ou do ofendido, como acontece no processo penal tradicional. O advogado assumirá mesmo um papel de garante, não só da legalidade da atuação do mediador e da condução do processo, mas também de garante do cumprimento de princípios fundamentais de direito penal e processual penal105. Concluímos assim, nas palavras de Ana Guerra, que o advogado “deverá intervir sempre que entenda que o seu cliente necessita da sua ajuda, para melhor se expressar, sempre que entenda que o mediador está a exceder as suas competências como terceiro imparcial, independente e facilitador do diálogo entre as partes e (…) sempre que considere não estarem a ser cumpridos, ou estarem a ser violados princípios fundamentais, como os princípios da culpa e da proporcionalidade, nomeadamente no que ao acordo respeita"106.

103

SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 692.

104

GUERRA, Ana Catarina Peres dos Santos, Qual o papel reservado ao Mandatário Judicial na Mediação Penal?; sob a orientação da professora Doutora Cláudia Santos. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2009. Dissertação de Mestrado. pp. 24 e 29. 105 106

GUERRA, Ana Catarina Peres dos Santos, Ob. Cit. pp. 29 e 30. GUERRA, Ana Catarina Peres dos Santos, Ob. Cit. p. 46.

PÁGINA 32

No entanto, tem que haver o cuidado de os advogados representarem as partes e não se substituírem a elas e é nesta medida que temos que encontrar um “meio-termo” que permita a separação entre o representar e o substituir, pois se houver uma efetiva substituição estaremos a colocar em causa os próprios valores da justiça restaurativa e da mediação penal107.

4.5- O acordo Relativamente ao acordo proveniente da mediação penal o legislador não previu um catálogo das medidas possíveis de constar nesse acordo, limitando-se a dizer que o conteúdo do acordo é livremente fixado pelas partes, desde que não se incluam sanções privativas da liberdade ou deveres que ofendam a dignidade do arguido ou cujo cumprimento demore mais de seis meses108. A questão que aqui se coloca é a de saber se isso viola o princípio da determinabilidade das sanções109. André Lamas Leite considera que o art. 6º da Lei nº 21/2007, de 12 de Junho, padece de inconstitucionalidade material uma vez que viola o art. 29º, nº3 da Constituição

da

República

Portuguesa,

que

prevê

o

princípio

da

determinabilidade ou taxatividade das sanções110. Porém, segundo Cláudia Santos, estes deveres não poderão ser assimilados a sanções porque lhes falta a nota da coercividade e o seu conteúdo resulta de um poder de conformação do arguido e do ofendido. O que se entende é que a exigência de determinabilidade das sanções penais não se coaduna com o sentido 107

GUERRA, Ana Catarina Peres dos Santos, Ob. Cit. p. 35. SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. pp. 695 e 696. Cf. Artigo 6º Lei nº 21/2007, de 12 de Junho: “1 — O conteúdo do acordo é livremente fixado pelos sujeitos processuais participantes, sem prejuízo do disposto no número seguinte. 2 — No acordo não podem incluir-se sanções privativas da liberdade ou deveres que ofendam a dignidade do arguido ou cujo cumprimento se deva prolongar por mais de seis meses.” 109 SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 695. 110 LEITE, André Lamas, Ob. Cit. p. 82. Artigo 29º CRP: “3. Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior. “ 108

PÁGINA 33

da mediação penal. Por outro lado, a previsão legal dos deveres que poderiam fazer parte do acordo iria eliminar a margem de liberdade que as partes têm para a resolução do conflito. Parte-se aqui da ideia de que ninguém melhor do que as partes para decidir qual a resposta mais adequada às suas vontades111. Caso o ofendido e o arguido cheguem a um acordo quanto ao modo de reparação dos prejuízos, as injunções que o constituem são reduzidas a escrito, assinadas pelas partes e pelo mediador, com posterior envio do documento, pelo mediador, ao magistrado titular do inquérito (art. 5º, nº3 Lei nº 21/2007, de 12 de Junho). Este irá efetuar o controlo mínimo de legalidade, verificando se não foram acordadas obrigações que violem o disposto no art. 6º, nº 2 Lei nº 21/2007, de 12 de Junho e se os mediados prestaram o seu consentimento. Esse acordo homologado irá equivaler a uma desistência de queixa (art. 5º, nº5 Lei 21/2007, de 12 de Junho)112. Uma outra questão que se pode suscitar relativamente ao acordo é quais as consequências que resultam do incumprimento do mesmo. Quando o ofendido considerar que não houve um cumprimento do acordo, a Lei possibilita-lhe a renovação da queixa, a que se seguirá o controlo, pelo magistrado do Ministério Público, se existiu ou não esse incumprimento. Se este órgão entender, pelo contrário, que as obrigações a que o arguido se vinculou foram satisfeitas, não ordenará a reabertura do inquérito, continuando válida a desistência de queixa (art. 5º, nº4, Lei nº 21/2007, de 12 de Junho)113.

111

SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. pp. 696 a 698. LEITE, André Lamas, Ob. Cit. pp. 94 e 95. Cf. Artigo 5º Lei nº 21/2007, de 12 de Junho: “3 — Resultando da mediação acordo, o seu teor é reduzido a escrito, em documento assinado pelo arguido e pelo ofendido, e transmitido pelo mediador ao Ministério Público. (…) 5 — Para os efeitos previstos no número anterior, o Ministério Público verifica se o acordo respeita o disposto no artigo 6.o e, em caso afirmativo, homologa a desistência de queixa no prazo de cinco dias, devendo a secretaria notificar imediatamente a homologação ao mediador, ao arguido e ao ofendido.” (itálicos nossos) 113 LEITE, André Lamas, Ob. Cit. p. 104. Cf. Artigo 5º Lei nº 21/2007, de 12 de Junho: “4 — No caso previsto no número anterior, a assinatura do acordo equivale a desistência da queixa por parte do ofendido e à não oposição por parte do arguido, podendo o ofendido, caso o acordo 112

PÁGINA 34

O legislador português no art. 5º, nº5 da Lei nº 21/2007, de 12 de Junho, como já foi referido, atribuiu ao Ministério Publico a função de controlo do conteúdo do acordo e de homologação da desistência de queixa. Esta solução, porém, é ainda uma outra aceção do carácter minimalista desta Lei e fortemente criticada: sendo no nosso direito processual penal, a regra, a exigência da intervenção do Ministério Público e do juiz de instrução para a adoção de medidas de diversão, quanto à mediação o legislador atribuiu apenas a função homologatória ao Ministério Público114. André Lamas Leite entende que esta norma será inconstitucional115. Pelo contrário, Cláudia Santos não concorda com essa inconstitucionalidade por várias razões: ainda que consideremos que a adoção de medidas de diversão não podem prescindir, sob pena de violação da Constituição, da intervenção de um juiz, é certo que há diferenças significativas entre a intervenção das autoridades judiciárias exigida pelo Código de Processo Penal para aquelas medidas e a intervenção homologatória do Ministério Público relativamente à desistência de queixa que é consequência do acordo obtido em decorrência da mediação penal. Podemos dizer que o acordo obtido através da mediação penal afasta-se das outras medidas de diversão previstas no Código de Processo Penal, uma vez que pressupõe um dever de modelação do seu conteúdo, pelo arguido e pelo ofendido, ao qual são alheias as finalidades de prevenção, não se podendo entender aqui que há uma imposição de deveres ao arguido. Por outro lado, se restringíssemos o âmbito material da mediação penal a alguns crimes particulares em sentido amplo, sempre poderia haver, logo na fase de inquérito em que a mediação penal ocorre, uma desistência de queixa. E aqui não há dúvidas de que a homologação desta queixa seria da competência do Ministério Público116.

não seja cumprido no prazo fixado, renovar a queixa no prazo de um mês, sendo reaberto o inquérito”. (itálicos nossos) 114 SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 721. 115 LEITE, André Lamas, Ob. Cit. p. 115. 116 SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. pp. 722 a 724.

PÁGINA 35

Por isso, e de acordo com o referido por Cláudia Santos, concordamos que a exigência de uma intervenção homologatória do juiz para a desistência de queixa, em consequência da assinatura do acordo obtido através da mediação penal seria incoerente e, que até poderia descredibilizar a função jurisdicional117.

117

SANTOS, Cláudia Cruz, Ob. Cit. p. 724.

PÁGINA 36

5- Conclusão Distinguida por diferentes fins, a Justiça Restaurativa nutrindo um fundamento ético na sua essência enquanto luz conformadora da sua própria raiz e do seu específico procedimento, mostra-nos que o importante não é um acordo, isto é não é a finalidade da Justiça Restaurativa e por isso mesmo é uma prática que se distingue. Os

princípios

conformadores

da

Justiça

Restaurativa

serão

a

voluntariedade, a consensualidade, confidencialidade e a complementaridade entre a Justiça Retributiva e a Justiça Restaurativa, sendo certo que não se pode considerar a celeridade e a economia de custos princípios da Justiça Restaurativa, mas sim (eventuais) decorrências. A mediação penal é um dos principais instrumentos concretizadores da Justiça Restaurativa. A mediação penal bebe da Justiça Restaurativa características como a flexibilidade, a informalidade, a voluntariedade e a confidencialidade. No nosso ordenamento jurídico, encontramos, entre outras, a Lei nº 21/2007, de 12 de Junho, relativa à mediação penal “de adultos”, cujo âmbito de aplicação engloba crimes cujo procedimento depende de acusação particular, crimes contra as pessoas e o património cujo procedimento dependa de queixa, desde que a pena aplicável não seja superior a 5 anos de prisão e o ofendido não seja menor de 16 anos. Ao contrário do que sucedia no seu Anteprojeto os crimes públicos deixaram de estar abrangidos no âmbito de aplicação desta Lei. A mediação penal permite uma participação mais direta e ativa das partes do que sucedia com o processo penal “tradicional”, pretendendo alcançar a resolução do litígio através do estabelecimento de um acordo entre as partes e ainda uma reconciliação entre o arguido e o ofendido. Pressupõe a existência de uma participação voluntária e esclarecida das partes, que tentam chegar a um acordo quanto à resolução do diferendo que as opõe, sendo auxiliadas por um terceiro imparcial e independente, o mediador.

PÁGINA 37

Muitas são as questões que esta Lei nº 21/2007, de 12 de Junho, deixa em aberto. Entende-se mesmo que esta Lei é minimalista quer relativamente ao seu âmbito de aplicação, quer relativamente à questão de deixar muitas perguntas fulcrais sem resposta. São disso exemplo os casos em que há uma pluralidade de arguidos e de ofendidos, quais as funções que competirão ao advogado na mediação, que deveres poderão constar do acordo resultante da mediação, o que acontece se o ofendido entender que o acordo não foi efetivamente cumprido, etc. Foram estas algumas das questões a que pretendemos dar resposta com este trabalho. No entanto, parece-nos que a mediação penal em Portugal está “subaproveitada” pois não são vislumbradas por algumas autoridades judiciárias as suas potencialidades e o carácter menos estigmatizante que a mediação tem para com as vítimas, permitindo uma reparação que vá de encontro à vontade das partes e não que esteja pré-estabelecida por outras entidades. Concluímos, assim, pela necessidade de alargamento da utilização da mediação penal, tendo em vista os interesses das partes em litígio, que muitas vezes não se sentem minimamente reparadas com a justiça dita “tradicional”. Pois quem melhor do que as partes para decidir qual a forma de reparação mais adequada para fazer face a um prejuízo que lhes foi causado?

PÁGINA 38

Bibliografia ALMEIDA, Carlota Pizarro; “Diferentes versões do consenso: suspensão provisória do processo e mediação penal”, Revista do CEJ, 2º Semestre 2011, nº16, Almedina Editora. ANDRADE, Alexandra Maria de Oliveira; “Justiça Restaurativa e Mediação Penal: Uma nova perspetiva de realização da Justiça”; sob a orientação da professora Doutora Cláudia Santos. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2009. Dissertação de Mestrado. BORGES, António Ferreira; “Mediação Penal ou a justiça da cidadania”. In Boletim da Ordem dos Advogados. Lisboa: Ordem dos Advogados, nº 59 (2009). CARMO, Rui; “Um exercício de leitura do regime jurídico da mediação penal” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 20, nº3, Julho – Setembro, 2010, Coimbra Editora. CORREIA, João Conde; “O papel do Ministério Público no regime legal da mediação penal”. In Revista do Ministério Público. Lisboa: Editorial Minerva, nº 112 (outubro/dezembro 2007). COSTA, José de Faria; “Diversão (desjudiciarização) e Mediação: que rumos?”. In Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, vol. 61 (1985). COSTA, Inês Almeida; “Poderá a «reparação penal» ter lugar como autónoma reação criminal?”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 21, nº4, Outubro – Dezembro 2011, Coimbra Editora. CRISÓSTOMO, Cátia Caetano; “Sistema Criminal de Justiça e Mediação Penal – Âmbito de Aplicação da Lei nº 21/2007”; sob a orientação da professora Doutora Cláudia Santos. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2009. Dissertação de Mestrado.

PÁGINA 39

DUARTE, José Henrique; “Todo o Homem é maior que o seu erro – A Mediação Restaurativa no direito prisional Português”, 2012, G.C- Gráfica de Coimbra. FERREIRA, Catarina Alexandra da Silva; “Mediação Penal: Realidade ou Ilusão?” ; sob a orientação da professora Doutora Cláudia Santos. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2009. Dissertação de Mestrado. FERREIRA, J. O. Cardona; “Sistemas de Justiça e Mediação”. In Themis – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, nº 11 (2005). FERREIRA, Francisco Amado; “Justiça Restaurativa – Natureza, finalidades e instrumentos”, 2006, Coimbra Editora. GUERRA, Ana Catarina Peres dos Santos; “Qual o papel reservado ao Mandatário Judicial na Mediação Penal?”, sob a orientação da professora Doutora Cláudia Santos. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2009. Dissertação de Mestrado. LEITE, André Lamas; “A Mediação Penal de Adultos: um novo “paradigma” de justiça? Análise crítica da lei nº 21/2007, de 12 de junho”, Coimbra: Coimbra Editora, 2008. MANO, Susana Raquel da Silva; “O Acordo em Mediação Penal: Relevância e Fragilidades face à Lei nº 21/2007, de 12 de junho”; sob a orientação da professora Doutora Cláudia Santos. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2009. Dissertação de Mestrado. MARQUES, Frederico Moyano; “Temas de vitimologia”, 2011, Almedina Editora. ROBALO, Teresa Lancry Gouveia de Albuquerque e Sousa; “Justiça Restaurativa – um caminho para a humanização do direito”, 2012, Editorial Juruá. SANTANA, Tânia Cristina Veiga, “A Mediação Penal na Perspetiva da Vítima”, sob a orientação da Professora Doutora Cláudia Santos. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2009. Dissertação de Mestrado.

PÁGINA 40

SANTOS, Cláudia Cruz, “A Justiça Restaurativa: Um modelo de reação ao crime diferente da Justiça Penal: Porquê, para quê e como?” Coimbra: Coimbra Editora, 2014. SANTOS, Cláudia Cruz, “A Mediação Penal, a Justiça Restaurativa e o Sistema Criminal – Algumas reflexões suscitadas pelo Anteprojeto que Introduz a Mediação Penal “de Adultos” em Portugal”. In Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra: Coimbra Editora, nº 1 (janeiro/março 2006).

Trabalho realizado por: Tânia Santos (pp. 1 a 20) Marisa David (pp. 21 a 37)

PÁGINA 41

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.