A concretizacao dos direitos sociais de criancas Emporio

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A concretização dos direitos sociais de crianças e adolescentes brasileiros
(sobreviventes do capitalismo tardio) e o risco do nivelamento na crítica
ao "ativismo judicial"



Por Danielle M. Espezim dos Santos – 08/03/2015
Site Jurídico: Empóriododireito.com.br
Disponível em http://migre.me/uCALM


 A virada que se deu com a entrada em vigor da doutrina da proteção
integral por intermédio do artigo 227[1] da Constituição de 1988 exsurge na
definição das responsabilidades (responsabilidade solidária) relativas à
infância e à adolescência brasileiras: atribuía-se, então, à Família, à
Sociedade e ao Estado a incumbência de concretizar a proteção integral. Já
não se podia aceitar uma velha concepção de que à família cabe o cuidado
com os filhos e que, só no fracasso daquela, o Estado deveria assumir
responsabilidades. Diante do novo quadro, são direitos positivados, tendo
como obrigados, ora a família, ora o Estado, por seus agentes diversos[2].

O reconhecimento da condição de sujeito vem bem representado na urgência da
alteração da linguagem: de menores, passa-se a adotar as terminologias
"criança" e "adolescente". O sujeito do Direito da Criança e do Adolescente
– criança ou adolescente – é toda pessoa com idade entre zero e dezoito
anos, independentemente de outra espécie de caracterização, como por
exemplo: delinquência, exposição a perigo moral ou pobreza[3]. Crianças são
aquelas pessoas com até doze anos incompletos, e adolescentes, aquelas com
idade entre doze e dezoito anos incompletos, segundo o artigo 2.º do
Estatuto da Criança e do Adolescente.

A incorporação dos direitos sociais ao rol de direitos fundamentais é a
configuração de direito atribuída à necessidade humana de viver. E viver de
modo coerente com as possibilidades criadas por cada cultura. O legislador
brasileiro, no Estatuto da Criança e do Adolescente, adotou esse
mandamento, impulsionado pela sociedade organizada no período. A
constatação de que a história brasileira não havia garantido a devida
proteção à criança e ao adolescente, motivou o legislador a absorver as
demandas sociais que se impunham.

A plêiade de direitos sociais de crianças e adolescentes prevista é
extensa. Além da vida e da saúde, a proteção se espraia pela condição
familiar e comunitária do sujeito; afirma sua dignidade; manda que a
família, a sociedade e os Poderes Públicos atentem para a necessidade
básica de formação escolar de qualidade e democrática nos níveis infantil,
fundamental e médio; reconhece e exige respeito aos valores culturais e ao
desenvolvimento artístico; confere proteção especial à relação de trabalho
e à necessidade de formação profissional adequada, que são dois momentos
diferentes do direito ao trabalho (Estatuto da Criança e do Adolescente –
artigos 7 a 69)[4].

Muito embora o Brasil figure nas pesquisas dos organismos internacionais
como um país que enfrentou na última década a extrema pobreza e o
analfabetismo dos situados nesta estrato social[5] , o acesso ao ensino
básico[6] e a redução da mortalidade infantil[7] segundo a pesquisa de
2013 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, a conformação
classicista da sociedade brasileira e concentrada da economia (esta
considerada como espaço de produção, circulação e distribuição de
riquezas), ainda impede que se arrisque classificar a efetividade dos
direitos em estudo como de alto grau.

Sobre o papel do judiciário na defesa dos direitos sociais de crianças e
adolescentes, Veronese e Silveira[8]:

Não obstante, o acesso pleno ao Poder Judiciário não será suficiente se
este, no exercício da prestação jurisdicional, não focar as demandas
jurídicas sob o prisma dos novos direitos, garantindo, para além do devido
processo legal, fazendo jus ao disposto no art. 6º do Estatuto: "na
interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se
dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e
coletivos.".

Porém, na entrada do vigésimo quinto ano de vigência do Estatuto da Criança
e do Adolescente, há forte oposição à atividade jurisdicional – considerada
ativista – em relação aos direitos sociais, sob o argumento de que são uma
exacerbação da função tradicional e uma afronta à democracia; democracia
esta, que se basearia, para uma teoria estritamente liberal, na separação
estrita – e não na interdependência – entra a atividade de legislar,
administrar e julgar.

Um alerta de Luigi Ferrajoli datado do início deste século não foi
superado: a debilidade política dos direitos sociais é, também, no entender
deste autor articulador do garantismo como teoria geral do direito, uma
debilidade teórica. Para ele, os direitos desta espécie – desde a saúde,
educação, previdência e assistência social – sofrem, neste início de
século, ataques dos políticos liberais e têm corrido o risco de ser
comprometidos, apesar de constituírem, juntamente com as políticas de bem
estar, a maior conquista jurídico-política do século passado.[9]

É certo que o tema, conhecido como "ativismo judicial", deve ser abordado,
sim, perscrutado, sim, mas na perspectiva mais ampla que se puder. Essa
perspectiva – mais ampla – demanda reflexão sobre políticas sociais
públicas como simples atendimento ao que está determinado em Lei –
constituição e normas superiores – acerca da concretização de direitos. A a
concepção garantista ferrajoliana se presta a reconhecer que todas as
funções ou poderes estatais devem ser julgados, também, pelo grau de
concretização de direitos sociais e coletivos. Assim se pode discutir
"ativismo judicial" em bases mais técnicas e menos ideológicas, tendo em
vista o modelo constitucional brasileiro atual.

No caminho do alargamento da reflexão sobre a mediação judicial em sede de
direitos sociais da criança e do adolescente no Brasil, também cabe ter em
mente a categoria cunhada na segunda metade do século XX, o "capitalismo
tardio", que auxilia na compreensão acerca do modelo atual econômico
brasileiro, especificamente no que concerne ao papel possível das políticas
sociais. E que merece revisão na área que aqui se mergulha.

Em uma divisão geral – e polêmica do ponto-de-vista terminológico – acerca
das fases do capitalismo mundial, se reconhece a seguinte tripartição: a
livre-concorrência, o imperialismo clássico e o capitalismo tardio[10].
Esta classificação tem relação com o período histórico, sim, mas também se
refere a momentos distintos, e necessários entre si, do fenômeno
capitalista[11] que, na visão mandeliana[12], envelhece e apresenta mais
claramente suas contradições e limites.

O capitalismo tardio é, reconhecidamente, a fase que se inicia depois das
duas grandes guerras mundiais (pós-1945) e se caracteriza, principalmente:
pela redução das taxas de lucros, pela busca por superlucros e pela
manutenção de taxas de desemprego de natureza estrutural e não eventual (o
que é determinante em sede de políticas sociais).

Especificamente, tendo em vista a função/possibilidades das políticas
sociais em um país que se fortalece em termos de modelo econômico
capitalista a partir do período posterior à segunda guerra mundial, como o
Brasil, cumpre situar as políticas sociais em geral, e contrastar este
quadro com o relativo a crianças e adolescentes, diante da opção do pós-
1988 pela prioridade absoluta no seio de uma doutrina intitulada e marcada
como "Proteção Integral".

O capitalismo tardio consubstancia uma progressiva incorporação da
revolução tecnológica (reprodução ampliada do capital fixo) e se
caracteriza em um processo considerado "a quintessência objetivada das
antinomias inerentes ao modo de produção capitalista", em sua fase tardia:
à mudança do papel da força de trabalho no processo de constituição de
valor se liga um intenso ressurgimento do exército industrial de reserva,
configurando não um desemprego eventual, mas um desemprego estrutural que
aprofundou-se no decorrer das últimas três décadas. [13]

Nesse contexto do pós segunda-guerra até os dias atuais, a função das
políticas keynesianas (tradicionalmente, o lugar das políticas sociais,
além de outras ligadas ao princípio intervencionista do capitalismo
imperialista clássico) parece se esvaziar ou reduzir muito, tendo em vista
o fato contínuo – e não eventual – do desemprego e a consequente
fragilidade do poder de consumo que se vislumbra[14].

Para ir direto ao ponto e contextualizar a função e as possibilidades das
políticas sociais no Brasil contemporâneo: o que se caracteriza como modelo
de desenvolvimento econômico à brasileira é, como sabemos, baseado na
superexploração dos trabalhadores. O mercado interno, no caso, é reduzido,
não constituindo uma via de absorção efetiva de produção[15]. Textualmente,
nas palavras de Ernest Mandel: "[…] mais de 50% dos habitantes do mundo não
participam das bases do crescimento rápido do pós-guerra. Não participaram
do crescimento moderado de 1976-77. Eis o pano de fundo do debate sobre a
nova 'ordem econômica mundial' e seu caráter amplamente artificial e
hipócrita."[16].

Entre outros caminhos, se aponta o deslocamento do financiamento das
políticas sociais para fontes de receita (tributação) ligadas ao lucro e
que tem mais vocação distributiva, chegando à questão estrutural, que é
velha contradição entre os que detém o capital e os que detém a força de
trabalho.

No contexto da doutrina da proteção integral, é inconteste que crianças e
adolescentes são fundamentais no debate da equalização de oportunidades ou,
em outras palavras, igualdade de pontos-de-partida. Para uma sociedade que
as elegeu como prioridade absoluta, as decisões judiciais de concretização
de direitos sociais exigem que se supere a discussão do ativismo judicial
apenas na visão tradicional da separação dos poderes.

O imperativo também deveria estar em estabelecer uma cultura jurídico-
política mais afinada com as escolhas normativas no campo da proteção
integral no que diz com direitos que visam à concretude, à equalização de
oportunidades e não apenas com uma igualdade abstrata ou ideal.

Claramente, não se trata de um poder – como o judiciário – resolver
problemas estruturais, mas de alertar para o fato de que deixar cair toda a
questão complexa acerca da desigualdade intrínseca ao sistema econômico
instaurado no Brasil e da prioridade absoluta de crianças e adolescentes –
fruto da decisão interna constitucional – na vala do debate confuso e
nivelador do "ativismo judicial" não é algo racional, muito menos
juridicamente aceitável.

Notas e Referências:
FERRAJOLI, Luigi. Prólogo. Em: ABRAMOVICH, Víctor e COURTIS, Christian. Los
derechos sociales como derechos exigibles. 2 ed.. Madri: Trotta, 2004.

BEHRING, Elaine Rossetti. Política social no capitalismo tardio. 5. ed..
São Paulo: Cortez, 2011.

ONU. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Objetivo
1: erradicar a extrema pobreza e a fome. Disponível em
http://www.pnud.org.br/ODM1.aspx. Acesso em 19jan2015a.

ONU. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Objetivo
2: atingir o ensino básico universal. Disponível em
http://www.pnud.org.br/ODM2.aspx. Acesso em 19jan2015b.

ONU. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Objetivo
4: reduzir a mortalidade na infância. Disponível em
http://www.pnud.org.br/ODM4.aspx. Acesso em 19jan2015c.

SARLET, Ingo Wolgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5 ed. Porto
alegre: Livraria do Advogado, 2005.

SILVA, Aristóteles de Almeida. O capitalismo tardio e sua crise: estudo das
interpretações de Ernest Mandel e a de Jürgen Habermas. Dissertação
apresentada ao programa de pós graduação do Instituto de Filosofia e
Ciência Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), 2012.
Disponível em http://marxismo21.org/wp-
content/uploads/2012/07/AristotelesdeAlmeida-SILVA-Capitalismo-Tardio-
Mandel-e-Habermas.pdf. Acesso em 22jul2013.

VERONESE, Josiane R. P.; SILVEIRA, Mayra. Estatuto da Criança e do
Adolescente comentado: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Conceito
Editorial, 2011.




[1] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[2] No âmbito do Estatuto, no artigo 4º, a "responsabilidade solidária"
está presente, apenas com a inclusão da comunidade que, ao lado da
sociedade, se refere a grupos de pessoas sem vínculo jurídico com a criança
e o adolescente, mas de natureza moral. Assim se lê: "Art. 4º É dever da
família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar,
com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária. […]" (Constituição Federal de 1988)

[3] Qualificantes típicas do Código de Menores de 1979, que justificam a
intervenção estatal via Juizado de Menores.

[4] Sobre aplicabilidade ou eficácia jurídica dos direitos sociais, nos
termos adotados por Sarlet: a eficácia jurídica, diferente da social, diz
respeito ao grau de densidade normativa que, por sua vez perpassa juízos
relativos à clareza e abrangência dos conteúdos dos direitos, das
obrigações e obrigados por estes direitos, além da identificação das
garantias a estes direitos. Ver: SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos
Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

[5] "NOSSO TRABALHO PELO OBJETIVO. BRASIL. O Brasil foi um dos países que
mais contribuiu para o alcance global da meta A do ODM 1, reduzindo a
pobreza extrema e a fome não apenas pela metade ou a um quarto, mas a menos
de um sétimo do nível de 1990, passando de 25,5% para 3,5% em 2012. Isto
significa que o país, considerando os indicadores escolhidos pela ONU para
monitoramento do ODM 1, alcançou tanto as metas internacionais quanto as
nacionais. Outro fator em que houve mudanças foi o analfabetismo na extrema
pobreza. Em 1990, a chance de uma família liderada por um analfabeto estar
em situação de pobreza extrema era 144 vezes maior que a de uma família
liderada por alguém com curso superior. Essa razão diminuiu em 2012 e
passou a ser de apenas 11:1." (ONU, PNUD, 2015a)

[6] "NOSSO TRABALHO PELO OBJETIVO. BRASIL. A busca pela universalização da
educação primária no país tem focado na ampliação do acesso obrigatório. A
percentagem de jovens de 15 a 24 anos com pelo menos seis anos completos de
estudo passou de 59,9% em 1990, para 84% em 2012. Ou seja, a percentagem de
jovens que não tiveram a oportunidade de completar um curso primário caiu
para dois quintos do nível de 1990. Além disso, a desigualdade do acesso à
escola pelas crianças de 7 a 14 anos foi superada graças às sucessivas
políticas de universalização do ensino que reduziram radicalmente as
restrições de oferta de serviços educacionais." (ONU, PNUD, 2015b)

[7] NOSSO TRABALHO PELO OBJETIVO BRASIL. Segundo o Relatório Nacional de
Acompanhamento dos ODM 2013, o Brasil já alcançou a meta de redução da
mortalidade na infância, estando à frente de muitos países. O principal
indicador da meta A é a taxa de mortalidade entre crianças menores de 5
anos, que expressa a frequência de óbitos nessa faixa etária para cada mil
nascidos vivos. A taxa passou de 53,7 em 1990 para 17,7 óbitos por mil
nascidos vivos em 2011 e, de acordo com as tendências atuais, é possível
que em 2015 seja alcançado um resultado superior à meta estabelecida para
este ODM. O Brasil também já atingiu a meta estabelecida em relação às
mortes de crianças com menos de 1 ano de idade, passando de 47,1 para 15,3
óbitos por mil nascidos vivos, superando a meta de 15,7 óbitos estimada
para 2015." (ONU, PNUD, 2015c)

[8] VERONESE, Josiane R. P.; SILVEIRA, Mayra. Estatuto da Criança e do
Adolescente comentado: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Conceito
Editorial, 2011, p 314.

[9] FERRAJOLI, Luigi. Prólogo. In: ABRAMOVICH, Víctor e COURTIS,
Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. 2.ª ed.. Madri:
Trotta, 2004, p. 9.

[10] BEHRING, Elaine Rossetti. Política social no capitalismo tardio. 5.
ed.. São Paulo: Cortez, 2011, p. 113.

[11] SILVA, Aristóteles de Almeida. O capitalismo tardio e sua crise:
estudo das interpretações de Ernest Mandel e a de Jürgen Habermas.
Dissertação apresentada ao programa de pós graduação do Instituto de
Filosofia e Ciência Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
2012, p. 17 e ss. Disponível em http://marxismo21.org/wp-
content/uploads/2012/07/AristotelesdeAlmeida-SILVA-Capitalismo-Tardio-
Mandel-e-Habermas.pdf. Acesso em 22jul2013.

[12] Ernest Mandel (1023-1995), economista político de posição contrário ao
marxismo stalinista. Quanto a sua contribuição à categoria "capitalismo
tardio", ilustra-se: "A categoria capitalismo tardio em Mandel refere-se à
totalidade do mundo do capital numa época em que suas tendências de
desenvolvimento alcançaram amaturidade e suas contradições estão ainda mais
latentes promovendo, como nunca, efeitos regressivos." Em: BEHRING, Elaine
Rossetti. Política social no capitalismo tardio, p. 113 [grifos no
original].

[13] BEHRING, Elaine Rossetti. Política social no capitalismo tardio, p.
170.

[14] Idem, ibidem, p. 170 e ss.

[15] Idem, ibidem, p. 155.

[16] Apud BEHRING, Elaine Rossetti. Política social no capitalismo tardio,
p. 156.



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