A CONDIÇÃO DO EFÉMERO

June 6, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: ESCULTURA, Arte Contemporanea
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A CONDIÇÃO DO EFÉMERO1 Emília Ferreira

Neto e filho de pesebristas – na linha tradicional dos criadores de presépios –, Josep Bofill iniciou o seu percurso plástico como imaginário, ou seja, artesão de imagens sacras. Desde cedo dedicado também ao desenho e à pintura, a sua chegada à escultura não excluiu nunca outras linguagens. Contudo, foi aí que encontrou a sua expressão preferencial, cumprindo o desejo de ver o espaço ocupado por volumes e vazios criadores de sensações. Usando técnicas e materiais clássicos (ferro, bronze, madeira), soma-lhes outros (como, por exemplo, a resina, tratada como matéria escultórica) que o século XX convocou para se reinventar plasticamente. Esse sentido do tempo é igualmente servido pela clara adequação da linguagem formal ao conteúdo temático e poético da escultura. Elemento de incontornável importância, o tempo é argumento e agente de claras alterações no itinerário criativo. Assim, se nos anos 70, os seus bronzes evidenciavam intensa animação, indiciando apontamentos de dança, em promessas ou encontros de seres viventes no amor, depois de alguns anos esse quadro mudou. Após breve interregno, no início da década de 80, a dança ressurgiu na sua obra, encenando de novo os sentimentos na sua contenção necessária, máxima afirmação física da teatralidade, nudez e cenário, exercício e pose do corpo na sua verdade e mentira, jogando com sentimentos presentes e pretéritos, projectando dores e alegrias numa moldura de história e luz. Nessas peças, o bronze tornou-se mais liso, despido, apresentando-se como elemento de levitação, adquirindo uma leveza que por vezes lembra o fazer escultórico de Ruben Nakian. Atente-se, depois, na questão do cruzamento das formas, na mistura entre a base e a figura. Nos meados da mesma década de 80, as estruturas abstractas das peças escultóricas tomaram um lugar mais importante na obra, dialogando de igual para igual com as figuras. A separação base 1

Texto para o catálogo da exposição do escultor catalão Josep Bofill, A Condição do Efémero. Almada, Casa da Cerca-Centro de Arte Contemporânea, 2000.

figura/abstracto-figurativo

desapareceu,

integrando-se

mutuamente,

complementando-se, num equilíbrio perfeito. Quanto ao movimento, iniciou um progressivo apagamento. Na década de 90, as figuras hieráticas apresentam-se paradas – essa gradual petrificação e sacralização intensificou-lhes a majestade e o mistério, e, sobretudo, dotou-as de uma maior capacidade de reflexo e reflexão do, e sobre, o seu tempo. Porém, se a obra de Bofill parece encerrar-se numa crescente rigidez formal, e se é certo que, em vinte anos, a sua expressão plástica nunca cessou de buscar uma maior sobriedade, tal não significa redução de meios. Como o próprio esclarece, referindo a conjugação da fotografia com a escultura – perspectiva plana e tridimensionalidade –, esse diálogo permite-lhe obter resultados plásticos originais, aprofundando o simbolismo e a autenticidade das coisas. Complemento de leitura do mundo, a fotografia corrobora a escultura como primeiro passo e memória (como gesto primordial), e afirma-se depois como elemento escultórico. Outras ligações são também recordadas. Em “Trajecte” o próprio traçado do fio de metal, indicador do caminho da pequena figura caminhante, evoca uma relação com o desenho e o seu traço espontâneo, na liberdade de movimentos e na circularidade marcada nesses caminhos. Crescentemente simplificadas nas formas, cada vez mais nuas, e assumindo continuamente os materiais e componentes geométricos como parte integrante do corpo da escultura, as obras de Bofill, marcadamente urbanas, reflectem o vertiginoso afastamento da natureza nas nossas vidas, confirmando-nos cada vez mais como “fragmentos urbanos”, evidenciando o corpo como pormenor arquitectónico. As marcas dessa urbanidade solitária ficam também evidentes nos problemas e temas enunciados sob a forma de título: abismo, incomunicação (conseguindo, no entanto, uma comunicação de extrema eficácia com o espectador), escalada social, aborrecimento, solidão, atomização da sociedade, medo da crescente tecnificação. Afirmam posturas – armadura, comunicação hermética, grito, máscara, ténebra, origem. E remetem para um certo classicismo, citando, por exemplo, as esculturas gregas koiré, ou até a pintura, como na sua peça “Solitud”, em que uma figura, circunscrita em moldura circular, avança precariamente sobre uma vara, num

movimento penoso, que remete para Masaccio e o seu Adão, expulso do Paraíso – como notou Rafael Santos Torroella. Esse sentimento, que poderíamos designar como abatimento do ser, revela-se no seio desta paisagem urbana, sempre povoada. E se tanto vazio dificilmente poderia ser o do deserto – já que este é o vazio impositivo do silêncio, não o da revelação do espaço e do espírito – é talvez por isso mesmo que, depois, se experimenta uma vontade de sonho. Isso acontece nos locais mais imprevisíveis: veja-se “Avorriment”, peça em que a figura encena uma pose de negligência existencial, ao equilibrar-se precária mas descontraidamente no topo de frágeis construções em altura. E veja-se também “Abisme”, em que a postura encurvada da figura, desta vez sublinhada pelo recolhimento da cabeça (escondendo o rosto) entre as mãos, cotovelos apoiados nas pernas, cruzadas nos tornozelos, se apresenta sentada no extremo de uma frágil estrutura. A estrutura sugere, na sua forma de vértice, servido por dois braços longos e estreitos, a fragilidade do mundo, sustentáculo dos nossos passos, vontades e desilusões. É esse suporte que se apresenta de tal modo ténue, vacilante, que a existência/sobrevivência da figura é posta em causa. Caminho para o limite, o sentar-se de pernas balouçantes sobre o abismo serve a vertigem de sentir o chão fugir de baixo dos pés. No espaço exíguo e restringido em que as figuras são apresentadas, acentuase a noção cenográfica, a teatralidade da apresentação da figura humana, dentro de uma moldura que lhe sublinha os limites físicos e intelectuais. Ciente de vivermos sempre em cenários, Bofill devolve-nos um mundo em que a figura humana se mostra, também, como arquitectura. As formas dialogam, assim, para uma busca e obtenção de sentido comuns, idêntica construção de uma poética englobante. Por isso muitas vezes surgem como um composto de evidente geometrização – veja-se “Marta”. Ou por reflexo de abismos vários, exteriores e sobretudo interiores, como em “El Crit”; ou ainda em alinhado – ou entranhado – diálogo com as componentes não antropomórficas da peça, como acontece em “Tenebra”. Plasticamente, as linhas finas, o traçado realista das figuras (mesmo quando mutiladas como em “Pantallas Antropòfiques”; ou quando se multiplicam os vestígios até ao apagamento, como em “Progressió I”), afirmam de modo despojado os

conteúdos teóricos. As suas figuras são belas; contudo, e porque não existem vidas (nem vias) isentas de dor, de mágoa, têm na alma cicatrizes do tempo e da consciência, traços impostos pelo saber, pela dimensão da consciência da perda. O rosto trágico, que tal consciência lhes aporta, confere-lhes simultaneamente um recorte de inescapável fragilidade. Já foi afirmado que a atenção do escultor é à alma do “retratado”; e isto porque de todos os seus intervenientes – bailarinos ou misteriosos seres de movimento ausente – Bofill capta sempre uma interioridade fundamental, um momento de intimidade dado mas inviolável, inviolado, que permanece secreto e do qual só conhecemos a nossa própria abordagem ao silêncio, ao não-dito. Será talvez por tão aguda consciência da finitude que a serenidade existe aqui como promessa. Ou seja, para além do vazio, persiste o sonho. Pode-se dizer que a escultura de Josep Bofill observa o essencial e respira com intensidade o mistério da vida. É por isso mesmo que a cenografia faz parte integrante dela, instituindo a verdade de um modo de ser e representar devedora do teatro (tal como o entendia Artaud), enigmática e aberta, vivendo das duplicidades, da vontade de ser e do cansaço existencial, do desejo do riso e da morte. Esta encenação teatral – que nos apanha a alma no frio de todos os medos – liberta-nos também, no processo catártico descrito por Aristóteles na “Poética”. Identificamo-nos com os personagens na exacta medida em que o seu destino podia também ser o nosso: lugar de acontecimento e acolhimento acidental do erro, do equívoco. Não um equívoco qualquer, menor, benigno. Mas uma suspeição, uma falácia do destino, repleta de implicações maiores. Incontornáveis, inevitáveis. Fatais, portanto. E contudo, no fim da peça, saímos vivos e ilesos. Purificados e aliviados por não partilharmos, afinal, tão terríveis fados. Assim, de certo modo, a teatralização da obra de Josep Bofill liberta-nos do mal. Do mal estar, do mal ser, do desamor. Se a sua crua lucidez nos agarra pelas vísceras e nos remete para um olhar pessoal e intransmissível de incontornável solidão de existências e destinos, e se essa sensação nos é passada por um eficientíssimo veículo cenográfico, não é menos verdade ser a encenação o que nos salva da morte. No próprio momento do encontro, em que o desencontro se insinua.

As figuras de Bofill parecem ter assumido a efemeridade como condição, encarando o fim com serenidade. A ideia de finitude foi já incorporada. O viver com ela conferiu-lhe sentido e a poética essencial de uma alma habitada pelo saber. Sobretudo, de uma alma que se decidiu a ser luz. Corpos que aprenderam a viver e a amar (n)o silêncio. Estas figuras encaram a velha angústia de modo novo. Com um olhar necessariamente mais benigno sobre a existência, aqui a consciência do fim – mais do que uma falência de sentido – apresenta-se como o único sentido; e por isso mesmo passível e possível de se tornar plena de sentidos, criar mundos, caminhos, trajectos. Esse sentido aposta na incorporação de todos os elementos do humano e das suas múltiplas paisagens criadas. Talvez seja por isso que a solidão aqui não tem um condicionante olhar amargo de fatalista “descrição” ou ocupação do mundo, mas uma vivência de relativa tranquilidade. É talvez o sinal da assunção de um novo homem, de um novo espaço de sagrado, como preconizou María Zambrano – lembrando que depois de cada momento de vazio ou negação do sagrado, em cada triunfo do profano e do racional, logo outro momento de visão mágica, encantatória e sacralizante se prepara. Desde sempre que nos perguntamos qual o caminho. No percurso feito dos passos de cada um, hoje mais íntimos da solidão, encontramos uma porta aberta para criarmos a próxima sacralidade e a amarmos nas suas limitações. Em Bofill, as vias de ressurreição do mundo estão próximas, tangíveis. Ou, pelo menos, o saber viver aceitando a intangibilidade do mundo está mais ciente, menos cego do desamor causado pelo sentimento de perda que era ainda tão visível em Giacometti, por exemplo. E, sobretudo, aqui, tudo fala da memória, com tranquilidade, tudo cita sem medo, com verdade, um tempo pretérito para o qual se olha, serenamente, para construir e reconstruir o presente. E o futuro.

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